Acessibilidade / Reportar erro

O acesso à justiça de mulheres atingidas no caso Rio Doce

The access to justice of affected women in the Rio Doce case

Resumo

Este artigo apresenta um estudo de caso sobre o uso de metodologias participativas como instrumento de diagnóstico da violação ao direito à água e acesso à justiça de mulheres atingidas no caso do rompimento da barragem que contaminou a bacia do rio Doce em 2015. O diagnóstico foi elaborado a partir da articulação entre as mulheres atingidas, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e a Defensoria Pública do Espírito Santo.

Palavras-chave:
Direito à água; Mulheres atingidas; Caso Rio Doce

Abstract

This article presents a case study on the use of participatory methodologies as an instrument to diagnose violations of the right to water and access to justice of affected women in the case of the dam breakage that contaminated the Doce River basin in 2015. The diagnosis was based on the dialogue among affected women, the Movement of People Affected by Dams (MAB), and the Public Defender’s Office of the Espirito Santo State.

Keywords:
Right to water; Affected women; Rio Doce case

1. Introdução1 1 Este artigo é o resultado de um convite feito pelo Fórum Justiça ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no bojo da pesquisa colaborativa sobre o Direito à Água liderada pelo Ministério Público de Defesa da Cidade de Buenos Aires, no âmbito da qual foi publicada a versão original em espanhol deste artigo. O Fórum Justiça é um espaço aberto aos movimentos sociais, organizações da sociedade civil, setores acadêmicos e agentes públicos do sistema de justiça, que busca discutir coletivamente a política judicial com redistribuição, reconhecimento de direitos e participação popular, enfatizando a justiça como um serviço público. Como um de seus objetivos, visa estimular o debate sobre política judicial no Brasil, considerando o contexto Ibero-Latino-Americano. Mais informações em www.forumjustica.com.br.

A centralidade da água para a vida humana é indiscutível. Fundamental para a sobrevivência, são inúmeros os estudos que remontam à organização socioespacial da humanidade em decorrência da disposição de recursos hídricos em determinados territórios. Além disso, é um recurso natural central para a produção capitalista, especialmente nos países periféricos de capitalismo tardio-dependente, onde o modelo neoextrativista hidro-agro-mineral tem se expandido (SVAMPA, 2020SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina. São Paulo: Editora Elefante, 2020.). Desde a perspectiva da ecologia política, pode-se compreender como os processos econômicos e políticos, bem como as relações de poder entre humanidade e natureza, determinam a forma como os recursos naturais são explorados e como isso afeta hierarquicamente a população. Nos conflitos socioambientais, as mulheres, muitas vezes, são as principais afetadas, especificamente nos casos em que seu trabalho se relaciona com o meio ambiente. Devido ao seu papel social, constantemente se ocupam das relações com a natureza e, portanto, acabam se envolvendo em processos participativos, movimentos sociais e ambientais, em um esforço de ação coletiva para melhorar as condições de vida das suas famílias em situações limite (BONILLA, 2015BONILLA, Irene. La feminización de la justicia ambiental desde la ecología política. Una alternativa para Ocotlán, Jalisco. Em: Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero. Ponta Grossa, v.6, n.2, p. 38-51, agosto/dez, 2015.). Porém, muitas vezes não são consideradas sujeitas legítimas nos processos de negociação com governos e empresas.

O presente artigo se dedica a comunicar a experiência de organização de mulheres em conflitos provocados pelo rompimento de barragens de mineração, especificamente o rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana, estado de Minas Gerais (MG) em novembro de 2015. Milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração contendo componentes tóxicos foram carregados para a bacia do Rio Doce interrompendo o abastecimento e uso de água para milhões de pessoas que dependiam dela para alimentação, renda, lazer, além dos aspectos imateriais das relações estabelecidas com o rio.

Nesse trabalho apresenta-se um estudo de caso sobre o uso de metodologias participativas como instrumento de acesso à justiça em casos de violações de direitos humanos, especificamente da violação ao direito à água em conflitos socioambientais, sob a perspectiva de gênero. O estudo de caso apresentado visa, secundariamente, analisar como a exclusão das mulheres dos processos de reparação de direitos em casos de conflitos socioambientais levou à construção de espaços organizativos para o reconhecimento de direitos que as alçaram à posição de principais interlocutoras nos processos de reparação e de visibilização do crime socioambiental nos territórios. Neste processo, destaca-se a experiência de articulação entre as mulheres atingidas, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e a Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) para o reconhecimento de direitos das comunidades atingidas. Essa articulação se deu por meio da utilização da construção de um diagnóstico participativo da violações aos direitos das mulheres em face do direito à água e do emprego das Arpilleras.

A construção deste artigo se baseou na experiência de duas das autoras no acompanhamento deste processo, das entrevistas realizadas por elas, bem como de outras fontes primárias e secundárias produzidas pela Defensoria Pública, pelo MAB e por outros atores envolvidos no processo.

O texto se divide em quatro partes para além desta introdução. A primeira parte se dedica à contextualização da problemática da água no caso estudado, buscando refletir sobre a atuação das instituições de justiça e das instâncias de governança criadas para o caso. Na segunda parte, refletimos sobre a proposta de reparação trazida pela institucionalidade e a disputa em torno à água. Na terceira parte do artigo, apresentamos a discussão teórica e sua relação com a realidade vivida pelas mulheres atingidas. Na quarta parte descrevemos a articulação entre a DPES e o MAB, responsável por levar o tema de gênero para a agenda da reparação integral do caso Rio Doce. Nessa parte também serão discutidas as metodologias (i) de produção do diagnóstico sobre a situação das mulheres e (ii) de emprego das Arpilleras pelo MAB como forma de visibilizar as mulheres atingidas.

O trabalho de construção da reparação integral desses territórios traz resultados em longo prazo. Assim, esse artigo busca o compartilhamento de experiências preliminares que ainda não alcançaram o objetivo maior da indenização das mulheres atingidas e do reconhecimento do direito à água numa perspectiva mais ampla. Ainda assim, essas experiências demonstram um caminho para a atuação das instituições do sistema de justiça, propondo maior centralidade à escuta ativa das comunidades, especialmente das mulheres. Esse olhar é fundamental para que a reparação integral de fato reflita os interesses daqueles que foram atingidos.

2. Contextualização do caso

No dia 05 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos de mineração de Fundão, situada no complexo minerário de Germano, no Município de Mariana em Minas Gerais, rompeu, extravasando imediatamente cerca de 40 milhões de m³ de rejeitos de mineração da empresa Samarco. A lama atingiu a barragem de Santarém, que armazenava água para limpeza na extração. Assim, com a água, a lama se diluiu, alcançando maior força, altitude e, consequentemente, maior velocidade, o que causou a destruição de todo o distrito de Bento Rodrigues, uma comunidade logo abaixo da represa, matando 19 pessoas. O rejeito atingiu o riacho Santarém e, posteriormente, o rio Gualaxo do Norte, que carregou a lama até a comunidade de Paracatu de Baixo, ainda no Município de Mariana, e a comunidade Gesteira, no Município de Barra Longa, chegando finalmente ao Rio Doce.

Figura 1
Mapa do deslocamento da lama pela bacia do Rio Doce

A lama percorreu 700 km ao longo de 17 dias até chegar no distrito de Regência, Estado do Espírito Santo2 2 No mar, a lama percorreu para o norte, atingindo o arquipélago de Abrolhos, um dos principais berçários marinhos do Brasil. E, ao sul, chegou até a cidade de Aracruz, com uma faixa contínua de lama e pequenas manchas que flutuaram até o Rio de Janeiro. No Espírito Santo não foi decretado estado de emergência, mas a Defesa Civil apontou quatro municípios atingidos: Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Linhares, sendo esses dados anteriores às constatações de impactos na zona marítima (WANDERLEY et al., 2015). . Ao todo foram 43 cidades atingidas nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo3 3 Incluindo a região de Ouro Preto por impactos regionais e Anchieta/ES pelo impacto na indústria da mineração. , 19 pessoas mortas, três reservas indígenas atingidas (povos Krenak, Tupiniquim e Guarani), uma comunidade quilombola atingida, degradação ambiental em aproximadamente 240,88 hectares de Mata Atlântica e 14 toneladas de peixes mortos, recolhidos ao longo dos rios Carmo e Doce (FGV, 2019). A complexidade dos danos não permite apontar com certeza o número de pessoas atingidas. Porém, segundo a Agência de Bacias do Rio Doce, cerca de 500 mil pessoas tiveram o abastecimento de água comprometido nos municípios atingidos (BRASIL, 2015).

O processo de reparação integral chega em novembro de 2020 ao marco de 5 anos, com violações sistemáticas de direitos humanos e um processo de reparação que pouco reparou. A complexidade do processo trouxe novos desafios ao sistema de justiça brasileiro, pois envolve não somente milhares de pessoas atingidas, mas também mais de 24 municipalidades, dois estados e o Governo Federal. Além desses entes federativos, todos os órgãos do Judiciário brasileiro estão envolvidos nos processos de negociação. A Força Tarefa criada pelo Ministério Público Federal (MPF) ainda representa o segundo maior orçamento da instituição, atrás apenas da Operação Lava-Jato4 4 Operação contra corrupção e lavagem de dinheiro que ganhou notoriedade pública ao investigar crimes cometidos por políticos, gerentes de empresas estatais e operadores financeiros, tendo levado ao indiciamento e prisão de figuras de destaque na cena nacional, a exemplo do ex-presidente Lula de Silva. Ao mesmo tempo, é criticada pela violação de garantias do direito de defesa, comunicação indevida entre acusação e juiz, seletividade e lawfare. .

A complexidade do caso também provém da multiplicidade de direitos violados, o que apontava que somente políticas abrangentes e participativas de reparação seriam efetivas para a reparação dos atingidos. Entretanto, através de mediação do Governo Federal, um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) foi firmado, de maneira rápida e sem participação social, entre os entes estatais e as empresas, estabelecendo metas, programas e ações. Estas seriam gerenciadas e implementadas por uma fundação privada constituída pelas empresas responsáveis, a Fundação Renova, dentro de um sistema de governança com participação dos diversos atores envolvidos. O acordo foi muito criticado à época pelos movimentos sociais e populares, que de imediato apontaram que o processo de governança estabelecido não respeitava a necessária participação popular diante das inúmeras violações de direitos humanos.

Após um processo intenso de articulação entre os atores populares e instituições do sistema de justiça, em 2018 foi realizado um novo acordo extrajudicial prevendo uma nova forma de governança (conhecido como TAC Governança). Desta vez foi prevista a participação dos atingidos a partir do redesenho dos fluxos de participação e da contratação de assessorias técnicas independentes para atuar junto aos atingidos. Entretanto, passados quase cinco anos do rompimento, apenas 19 dos 42 programas de reparação previstos nos acordos foram iniciados e nenhum foi concluído. Das assessorias técnicas independentes, das 19 previstas somente quatro foram contratadas diante da oposição das empresas quanto a novas contratações. Os locais mais afetados, como Bento Rodrigues, distrito de Mariana, e Gesteira, em Barra Longa, ainda não tiveram seus reassentamentos realizados. A denúncia feita pelos movimentos sociais é de que a reparação mal aconteceu, ao passo que as empresas apontam que o processo de reparação já estaria terminando. Os arranjos institucionais do caso são complexos, dinâmicos e demonstram um domínio do poder corporativo das empresas sobre o Poder Judiciário. Consequentemente, indicam a necessidade de avançar em estratégias e metodologias para dar conta da complexidade e da desigualdade de poder envolvida em grandes casos de violações de direitos humanos cometidos por empresas.

3. A proposta de reparação trazida pela institucionalidade e a disputa metrificada pela água

Nesta seção, iremos abordar dois aspectos mais específicos do processo de reparação. Primeiramente, situaremos o conflito pela água e sua construção enquanto uma das principais controvérsias do caso. A partir disso, iremos debater o contexto das violações dos direitos das mulheres em conflitos socioambientais, especificamente os decorrentes de projetos de desenvolvimento, e quais as especificidades dessas violações no caso do Rio Doce.

Imediatamente após o rompimento da barragem, a contaminação da água trouxe a interrupção do abastecimento em diversas cidades e a proibição do uso e captação da água do Rio Doce em toda a sua extensão, incluindo parte do litoral capixaba. Em cidades como Baixo Guandu (ES), por iniciativa da prefeitura local, foi improvisada a captação alternativa provisória do Rio Guandu. Os municípios de Alpercata, Belo Oriente, Galileia, Itueta, Resplendor e Tumiritinga, em Minas Gerais, também tiveram problemas de abastecimento, mas não receberam atendimento à época. Entretanto, em cidades como Governador Valadares (MG) e Colatina (ES), a chegada da lama obrigou à interrupção do abastecimento de água sem que houvesse a adoção de medidas mitigadoras por parte dos entes públicos e privados responsáveis, o que levou a uma disputa pelo acesso à água em caminhões pipa. Os dois municípios estão entre os maiores atingidos, com mais de 400 mil habitantes cada um, e dependiam do abastecimento de forma exclusiva do Rio Doce, sem que houvesse alternativa de captação.

Esses municípios passaram a distribuir água potável com apoio do Exército ou da polícia. Em geral, os caminhões passavam a cada três dias nos bairros. Ambas as cidades possuem o relevo acidentado, o que dificultava o acesso dos caminhões, que paravam nos pés dos morros para que as pessoas fossem buscar a água. A população se via obrigada a formar imensas filas e muitas mulheres, crianças e idosos tinham que subir as ladeiras com vários galões de água. Não houve política de atendimento prioritário a idosos, crianças e gestantes. Tudo dependia da organização interna das famílias. As mulheres atingidas em Colatina relatam que ficavam até quatro horas na fila para assegurar o acesso à água. Houve relatos de um homicídio acontecido no contexto de desespero pelo acesso à água (G1, 2015a).

Em Governador Valadares, o abastecimento foi interrompido por sete dias, e só foi retomado com a introdução do produto químico Tanfloc, usado para decantar as partículas de metais pesados. Nessa localidade, diversas polêmicas surgiram pela falta de informação à população relacionada com a qualidade da água tratada, o que levou à compra de água mineral por parte da população e o estoque para consumo (ALVES, 2016ALVES, Alessandra. Moradores de Governador Valadares ainda desconfiam da qualidade da água do Rio Doce. Estado de Minas Gerais, 05 fev. 2016. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/02/05/interna_gerais,731701/moradores-de-governador-valadares-ainda-desconfiam-da-qualidade-da-agu.shtml Acesso em 11 set. 2020
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais...
). Em diligência especial realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara em 2016, foi obtida uma série de relatos de pessoas da região com problemas de saúde em decorrência do consumo da água (BRASIL, 2016).

Algumas ações foram ajuizadas pelo MPF visando resguardar o direito da população ao acesso à água potável e sem contaminação. A maioria destas ações ainda está em curso e, apesar de terem sido estabelecidos termos de ajuste de conduta com as empresas, eles não vêm sendo cumpridos. As prefeituras, através do Sistema de Abastecimento Municipal, alegam que não há contaminação da água. Por sua parte, as empresas, por meio da Fundação Renova, alegam que o monitoramento atesta a boa qualidade da água. Contudo, o Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento - Instituto Lactec (2019), citado pelo MPF, alega em seus relatórios que os sistemas municipais não possuem parâmetros adequados para a análise da presença de metais pesados como arsênio, bário, chumbo, cobalto, cromo, manganês, níquel, vanádio e zinco, e tampouco levam em consideração elementos da reconstrução do ciclo das águas.

No âmbito da governança estabelecida no plano de Fundação Renova, há medidas previstas para o acesso à água, especialmente a criação de programas e ações sobre segurança hídrica e qualidade da água, manejo dos resíduos sólidos5 5 Conforme previsão da Cláusula 177 do TTAC, este programa recebe o nome de Programa de Monitoramento Quali-quantitativo sistemático de água e sedimentos e visa, além do monitoramento direto das águas, realizar estudos e avaliações de riscos toxicológicos e ecotoxicológicos no rio (TTAC, 2015). e a melhoria dos sistemas de abastecimento6 6 De acordo com a cláusula 171 do TTAC, esta medida de cunho “reparatório”, como é classificada no acordo, visa a construção de sistemas alternativos de captação de água para todas as cidades que tiveram o abastecimento público de água inviabilizado temporariamente como decorrência do desastre, para reduzir a captação de água diretamente do Rio em 30%, sendo a redução de 50% para os municípios que tenham mais de 100 mil habitantes, como é o caso da cidade de Colatina-ES (TTAC, 2015). . Em suma, a principal obrigação da Fundação Renova e das empresas é monitorar a qualidade da água, o que é feito por meio de pontos ao longo da bacia do Rio Doce. Porém, o monitoramento por parte das empresas não é contraposto pelo Estado, que não fiscaliza nem produz contralaudos. Algumas políticas de captação alternativa de água vêm sendo discutidas ao longo dos mais de quatro anos da reparação, mas nenhuma delas foi efetivada. Ainda, há a previsão de um programa que visa mapear possíveis riscos à saúde para aqueles que utilizam a água do Rio Doce.7 7 Importante aqui salientar que o órgão diretamente responsável pela fiscalização da execução do TTAC é o Comitê Interfederativo (CIF), criado pelo Termo e que é composto por diversos órgãos da União e dos Estados. Com relação aos programas relativos à água, a responsabilidade direta é de uma Câmara Técnica, dentro do CIF, chamada de Câmara Técnica de Segurança Hídrica e Qualidade da Água - CT-SHQA, esta é responsável por, além de fiscalizar, orientar o desenvolvimento do PMQQS, a ser executado pela fundação RENOVA.

Nesta etapa, identificamos as principais incertezas e controvérsias nos conflitos dentro da estrutura de governança, permeadas por algumas ações civis públicas específicas sobre a água. A primeira delas sobre o desencontro de informações por parte dos órgãos de controle ambiental a respeito da mudança na concentração de metais pesados na água e nos sedimentos do Rio Doce após o rompimento da barragem. Além de se definir a concentração dos metais, seria necessário ainda analisar a forma como eles se encontram. Os metais pesados, dependendo do ambiente, podem se imobilizar, o que reduziria o risco, ou se tornar biodisponíveis, sendo assimilados pelos seres vivos8 8 Muitas dessas substâncias são biocumulativas, ou seja, se acumulam ao longo das cadeias alimentares. Assim, mesmo que presentes em pequenas quantidades, elas podem ser incorporadas por pequenos animais aquáticos, depois por peixes e, finalmente, por seres humanos. Ao mesmo tempo, há plantas que retiram esses metais do solo contaminado e, quando animais se alimentam dessas plantas, os metais também se acumulam em seus tecidos, podendo ser ingeridos pelos seres humanos. . As incertezas associadas ao comportamento dos metais pesados no vale do Rio Doce após o rompimento da barragem ainda são muito grandes. Temos aqui os impactos do crime sobre os múltiplos usos das águas, trazendo a problemática da fiscalização e controle, e dos danos de longo prazo, como na saúde.

A segunda controvérsia versa sobre a dimensão das políticas compensatórias realizadas. Para as empresas e a Fundação Renova, a medida compensatória para a interrupção do abastecimento foi o estabelecimento do Programa de Indenização Mediada da Água (PIM ÁGUA). O programa previa a indenização das vítimas que ficaram mais de 24 horas sem abastecimento de água. Segundo dados da Fundação Renova (2020), foram indenizadas 174 mil pessoas em Minas Gerais e 84 mil pessoas no Espírito Santo. A base de cálculo das indenizações eram as médias das contas de água, realizando para os municípios que tiveram até cinco dias sem abastecimento a multiplicação por 12 meses e para municípios com mais de cinco dias, por 14 meses. A média de indenizações foi de R$1.000 para famílias de Governador Valadares e de R$880 para famílias de Colatina, com acréscimo de 10% para idosos, grávidas, crianças e pessoas com deficiência. O Programa encontra-se encerrado desde novembro de 2017. Ao todo, foram mais de dez cidades na bacia que tiveram seu abastecimento interrompido por diversos dias, gerando o caos social já apontado. Também houve cidades em que o Rio Doce se constitui como fonte de abastecimento alternativo, como Baixo Guandu, ou em que houve sobrecarga em rios para o abastecimento alternativo. Todos esses fatores ficaram de fora da matriz reparatória.

Além disso, há ainda a questão dos problemas de saúde surgidos em decorrência da água do Rio Doce que voltou a ser captada, mas não tratada. Alergias, problemas gástricos, infecções e quedas de cabelo podem ser citados como exemplos de problemas de saúde com que a população atingida passou a conviver. Os programas de compensação aos municípios pelas perdas e danos sofridos pelo corte de água, como a construção de estruturas de saneamento básico, não vêm sendo implementados em diálogo com a população atingida. Não está sendo garantida a participação da população em audiências públicas nem o acesso a outros mecanismos de rendição de contas sobre o repasse de recursos da Fundação Renova para as prefeituras.

O relatório apresentado pela Fundação Renova no ano de 2019 sobre o monitoramento realizado no Rio Doce aponta violações dos limites legais para os parâmetros de manganês total e ferro dissolvido. Contudo, aponta que os demais parâmetros para os metais estão dentro dos limites legais (FUNDAÇÃO RENOVA, 2019). No geral, o discurso de normalidade sobre a qualidade das águas do Rio Doce se mantém por parte da Fundação. Em suas próprias notas ela afirma: “se a água é tratada, pode beber” (FUNDAÇÃO RENOVA, 2019). Acrescenta ainda que contribuiu diretamente para a melhoria dos sistemas de abastecimento de água, entregando nove adutoras que visam diminuir a dependência de captação da água do Rio Doce, e aduz que “a responsabilidade pela qualidade continua sendo das entidades que operavam os sistemas de abastecimento antes do rompimento de Fundão” (FUNDAÇÃO RENOVA, 2019).

Um relatório produzido pela empresa Ramboll, contratada como assistente técnica para a avaliação e o monitoramento dos programas em implantação pela Fundação Renova, demonstra alguns problemas com relação à ação da empresa na execução dos programas socioambientais. No tocante à captação alternativa para a diminuição da dependência do Rio Doce, a empresa afirma em relatório apresentado ao Comitê Interfederativo (CIF)9 9 O Comitê Interfederativo é um órgão colegiado e a instância máxima do sistema de governança estabelecido, ao qual cumpre acompanhar, monitorar e fiscalizar a implementação e execução dos programas e ações de reparação, conforme delimita o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta. que está cumprindo o pactuado e que as adutoras instaladas no município fornecem uma vazão de 240 l/s. Entretanto o relatório da Ramboll aponta que a vazão verificada nas adutoras é de 80 l/s (RAMBOLL, 2020), muito abaixo do pactuado, que ficaria em torno de 192 l/s.

Com relação ao programa de monitoramento da qualidade das águas (PMQQS), a empresa Ramboll também aponta alguns dados importantes. Segundo a empresa, a Fundação Renova tem dificultado o processo de diálogo com a população, pois não traduz devidamente os dados em uma linguagem de fácil compreensão. Além disso, o município de Colatina-ES está na faixa de municípios que tiveram diversas violações dos parâmetros de qualidade das águas para os elementos: alumínio, arsênio, cádmio, chumbo, cobre, cromo, ferro, manganês, mercúrio, níquel, prata e zinco (RAMBOLL, 2020), o que contraria diretamente as afirmações da Renova.

O panorama apresentado aqui deve ser lido como um sintoma de um quadro maior, que se apresenta diante de várias perspectivas. A primeira é a da metrificação do sofrimento no âmbito dos conflitos socioambientais, acompanhada por uma mudança do comportamento corporativo para uma governança do risco. O tratamento institucional aos atingidos também implica no aprofundamento do sofrimento social. Esse conceito é importante porque esses conflitos não apenas causam, mas também resultam de uma atuação arquitetada de metrificação do conceito de atingido e da negligência com conflitos socioambientais anteriores (ZHOURI et al., 2016ZHOURI, Andréa et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Cienc. Cult., São Paulo, v. 68, n. 3, p. 36-40, Sept. 2016. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15 Set. 2020. http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300012.
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php...
).

O conflito colocado no caso do Rio Doce, dos quais as empresas visam escapar por meio de uma guerra de laudos, é sobre a toxicidade da água e a recuperação da água para seus usos diversos. O caso serve de exemplo no debate sobre a toxicidade da lama, os atingidos seguem, após anos do incidente, sem saber sobre os impactos da contaminação na terra e água. Isso leva a dúvidas sobre a qualidade dos alimentos produzidos nas regiões atingidas, marcando uma espera interminável causadora de “sentidos de sujeição e uma crescente frustração, que afligem as vítimas” (ZHOURI et al., 2016ZHOURI, Andréa et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Cienc. Cult., São Paulo, v. 68, n. 3, p. 36-40, Sept. 2016. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15 Set. 2020. http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300012.
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php...
).

A negação da contaminação da água pela Renova, está atrelada aos supostos efeitos que a confirmação da contaminação acarretaria para o consórcio de empresas. Os laudos duvidosos sobre a contaminação da água são confrontados com o reconhecimento do real papel da água nos territórios, sua importância e valor. Por isso, também, são usados como ferramentas a serem usadas diante da possibilidade de se espoliar e inserir esse bem comum nos circuitos privados do capital. É essa realidade negada aos atingidos que se coloca como pano de fundo das resistências e contestações que se irrompem. Essas contestações, que se opõem à metrificação da água, a afirmam enquanto bem comum de consumo, segurança alimentar, fonte de renda, mas também de espaço de lazer, sociabilidade e de usufruto do meio ambiente que estabelecem formas não comodificadas e colonizadas da natureza.

A análise de gênero, neste sentido, também retira a água dos circuitos de produção do capital, ganhando novo significado nos meios da reprodução social. Como teoriza Federici, “as mulheres, como sujeitos principais do trabalho reprodutivo, tanto histórica como atualmente, dependem mais que os homens do acesso aos recursos comuns, e estão mais comprometidas com sua defesa” (FEDERICI, 2014FEDERICI, Silvia. O Feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva. Em: MORENO, Renata (Org). Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista, 2014, p.151). Assim, apontamos que as contestações apresentadas mais à frente, advindas das denúncias das mulheres atingidas quanto a sua exclusão dos processos de reparação, são também um reflexo do seu autorreconhecimento enquanto mulheres em um sistema patriarcal-capitalista, em que as defesas de seus direitos denunciam também outras estruturas de opressão percebidas ao longo dos processos de organização social.

4. A realidade não diagnosticada das mulheres atingidas

Pensar a reparação integral dos danos causados pelo rompimento de barragens é um desafio complexo. Para entender as dinâmicas territoriais que são afetadas nos territórios da mineração, tal como a capacidade de resistência dos povos e das comunidades atingidos, e de reconstrução de seus territórios, entendemos necessário analisar esse cenário a partir da perspectiva das mulheres. A mineração adiciona inúmeros desafios e conflitos à realidade das mulheres atingidas, a qual já é marcada pela desigualdade do modelo patriarcal na sociedade (BRITO, 2017BRITO, Mariana Fernandes de. Mulheres e Mineração no Brasil. Rio de Janeiro: IBASE, 2017, p. 15). Nessa parte, apontaremos algumas das questões presentes na relação da mineração com a vida das mulheres.

Primeiramente, a mineração é majoritariamente exercida por homens, uma vez que mulheres, pela legislação internacional, estão proibidas de certos trabalhos. Nesse sentido, para a construção de uma mina são necessários grandes contingentes de trabalhadores homens, que possuem um caráter de transitoriedade na região, o que está vinculado ao aumento da prostituição e exploração sexual das mulheres (GIFFONI et al., 2019GIFFONI, Raquel. et al. A mineração vem aí… E agora? Série - Mineração para quê? Para quem? FASE - POEMAS, caderno 1, Rio de Janeiro, 2019.). São inúmeros os relatos históricos das situações de aumento da violência contra a mulher em zonas de garimpo, por exemplo. Ainda que estes dados sejam notórios, estão pouco sistematizados ao longo da história. Além disso, no Brasil não há políticas públicas de prevenção nem previsão de mecanismos de proteção das mulheres nos processos de autorização estatal para construção desses empreendimentos.

Por outro lado, os impactos socioambientais geram rearranjos abruptos e não consensuados nas práticas espaciais dessas comunidades. Essas práticas englobam as experiências sensíveis, as representações do espaço que informam as práticas de percepção imaterial e os espaços de representação que contêm as práticas imaginativas10 10 Harvey realiza essa sistematização das práticas espaciais a partir das teorizações realizadas por Henri Lefebvre (HARVEY, 1989, p. 221). . Quando há disputa por recursos como terra e água com as mineradoras, as mulheres acabam tendo seu trabalho sobrecarregado, uma vez que, devido ao patriarcado, elas ocupam o papel de cuidado do lar e da garantia da saúde da família (LAHIRI-DUTT, 2012LAHIRI-DUTT, Kuntala. Digging women: towards a new agenda for feminist critiques of mining. Gender, Place & Culture, [S.L.], v. 19, n. 2, p. 193-212, abr. 2012. Informa UK Limited. http://dx.doi.org/10.1080/0966369x.2011.572433.
http://dx.doi.org/10.1080/0966369x.2011....
). Em muitos casos, a mineração representa o deslocamento compulsório de muitas comunidades, quebrando os laços comunitários que garantem maior facilidade às mulheres, como as redes de familiares e amigos, fatores fundamentais do processo de socialização do cuidado com as crianças.

Em geral, as mulheres também são as que têm liderado resistências locais à instalação desse tipo de empreendimento, sofrendo um forte processo de perseguição e criminalização, que também precisa ser compreendido. A violência destinada às mulheres defensoras de direitos humanos, seja ela estatal ou privada, é bastante distinta da aplicada aos homens defensores. Na maioria dos casos há maior índices de crueldade ligados a abusos sexuais como mecanismos punitivos (AMNESTY INTERNATIONAL, 2019). Os impactos diferenciados entre mulheres e homens estão associados à divisão sexual do trabalho. Enquanto os homens apresentam mais padecimentos ligados aos riscos e doenças enfrentados pelo exercício profissional no ramo, as mulheres, meninas, meninos e idosos têm padecido pela exposição prolongada à contaminação do ar e da água (CCSG ASSOCIATES, 2004). Por outro lado, o trabalho é uma das formas mais explícitas de controle e reafirmação da hierarquia de gênero, tanto que é um dos elementos de maior eficácia na organização das relações de poder, inerentes às relações de gênero. Inclusive, é apenas com a forte incidência de teóricas feministas, sobretudo da sociologia do trabalho, que o próprio conceito de trabalho foi ampliado, levando-se em conta não só a ação humana produtora de valor ou de bens (o trabalho produtivo), mas também o trabalho reprodutivo, aquele que permite a manutenção e reprodução da vida (BITTENCOURT, 2014BITTENCOURT, Naiara A. Gênero, trabalho e direito na américa latina: a superexploração das mulheres trabalhadoras nos países dependentes. Monografia direito. UFPR, 2014, p.48, p.48).

No mundo do trabalho a situação das mulheres está estruturada pela divisão sexual do trabalho, pela vulnerabilidade social e econômica e pela precarização das atividades desempenhadas. A primeira dimensão de destaque é a categorização do trabalho a partir da dimensão sexual, ou seja, a partir do que chamamos de divisão sexual do trabalho. “No sistema patriarcal capitalista o mundo do trabalho se estrutura a partir da divisão do trabalho entre produtivo e trabalho reprodutivo, a qual implica uma hierarquização e uma separação entre trabalho de homens e trabalho de mulheres” (HIRATA e KERGOAT, 2007HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742007000300005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 set. 2020. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 260).

Historicamente, muitos trabalhos que foram desenvolvidos pelas mulheres de maneira gratuita, em verdade, não se constituíam (e nem se constituem) como trabalho, estando invisibilizados. O discurso é de que as mulheres os realizam por sua alteridade feminina, o dever de amar e a maternidade. Com o movimento feminista passou-se a discutir que essas tarefas “domésticas” não eram naturais das mulheres, ou seja, não lhe era intrínseca à sua essência, de modo que deveriam ser reconhecidas como trabalho. Assim se cunha o termo divisão sexual do trabalho (HIRATA e KERGOAT, 2007HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742007000300005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 set. 2020. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 264).

Em suma, a divisão sexual do trabalho atualmente é entendida como “a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos” (HIRATA e KERGOAT, 2007HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742007000300005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 set. 2020. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 267), modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens ao espaço produtivo e das mulheres, o reprodutivo, adicionando maior valor social às funções masculinas.

Quando pensamos em atividade de mineração, rapidamente pensamos em contaminação, desflorestação, mudanças no solo, eliminação da flora e da fauna. A participação ativa das mulheres na tomada de decisões que envolvem o meio ambiente é chave, uma vez que, devido ao seu papel social, na maioria das vezes são elas que se ocupam das relações com a natureza e tem conhecimentos imprescindíveis. Apesar disso, como sofrem de desprestígio social para tomada de decisões, não são consideradas como sujeitas legítimas nos processos de negociação com governos e empresas.

Nesse sentido, é fundamental, quando falamos em mudanças na conexão entre a dimensão ambiental e social de direitos, a implementação de uma perspectiva de gênero como transversal ao tema do desenvolvimento, em específico para a mineração. Num olhar atento à realidade dos territórios pode-se observar claramente que onde há resistências, há uma relevância na intervenção ativa das mulheres. As ações de denúncia e as disputas políticas que enfrentam o modelo extrativo da mineração têm demonstrado desde o início a participação de muitas e diversas mulheres assumindo movimentos inéditos de defesa do meio ambiente e das comunidades locais contra corporações e governos.

Importante apontar que o processamento dessas denúncias e disputas opera por dois mecanismos complementares. De um lado, quanto ao uso de “tecnologias resolutivas” (ZHOURI ET al., 2016ZHOURI, Andréa et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Cienc. Cult., São Paulo, v. 68, n. 3, p. 36-40, Sept. 2016. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15 Set. 2020. http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300012.
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php...
), o sistema de justiça brasileiro tem incorporado práticas de mediação e resolução de conflitos estabelecidos pelo capitalismo neoliberal e suas instituições multilaterais internacionais, especialmente o Banco Mundial. De outro, a captura das instituições e dos mecanismos de controle dos territórios pelas grandes corporações, devido ao seu poder político-econômico. As consequências disso aparecem no deslocamento do conflito do campo das violações de direitos humanos e efetiva responsabilização das empresas violadoras para o campo da negociação de interesses na lógica de contratualização dos conflitos (ACSELRAD, 2014ACSELRAD, Henri. Prefácio - Mediação e negociação de conflitos ambientais. In: Viegas, R. N.; Pinto, R. G. & Garzon, L. N. Negociação e acordo ambiental: o termo de ajustamento de conduta (TAC) como forma de tratamento dos conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2014, pp. 5-15.) e metrificação dos bens comuns.

Uma das determinações estabelecidas no processo de reparação inaugurado pelo TTAC é o processo de cadastramento dos atingidos, a ser realizado pela Fundação Renova. O cadastro serve como primeiro diagnóstico e porta de entrada para a definição da reparação individual e coletiva dos atingidos. A identificação dos atingidos realizado pela Fundação Renova e suas empresas gestoras somente ocorreu após a realização do cadastro e a aplicação dos critérios de elegibilidade para a aprovação dos indivíduos a serem indenizados. Os entraves nesse processo de identificação são muitos, desde a negativa da Fundação diante da falta de evidências preliminares de que a pessoa sofreu danos até a negativa final do reconhecimento do “status” de atingido por não estar demonstrado o nexo de causalidade entre as provas apresentadas e o rompimento da barragem.

Para as mulheres atingidas, a negação do status de atingida aparece de maneira específica (SOBRAL, 2018SOBRAL, Mariana Andrade. Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo. Vitória: DPES, 2018) a partir do (não) reconhecimento do papel da mulher na divisão sexual do trabalho. Para o próprio cadastramento não foram realizados atendimentos individuais dos membros da família e o preenchimento das informações foi realizado pelos homens. Os cadastros são feitos por núcleo familiar e refletem as perspectivas dos homens quanto aos danos sofridos. Segundo apresentação da Ramboll (2020), o universo de cadastrados é composto em média por 50% homens e 50% mulheres, sendo que apenas 30% das mulheres recebem algum tipo de benefício, em geral na condição de dependente do marido.

O não reconhecimento das mulheres opera pela informalidade e invisibilização de suas atividades como atividades de trabalho que incorporam renda para os domicílios, ainda que de forma indireta. Em grande parte da bacia, as mulheres atingidas trabalham ao longo da cadeia da pesca e na venda de produtos alimentares sem qualquer registro ou comprovação formal. Sem poderem comprovar renda anterior, dada a informalidade, elas não conseguem indenização e são apenas incluídas em programas de qualificação técnica. Assim, trabalhos de mulheres associados à pesca, como a limpeza dos peixes, a preparação das redes e a pesca para alimentação, são vistos como auxiliares, não passando a integrar os auxílios e indenizações. Além dessas, atividades como comerciantes/barraqueiras; vendedoras de diversos produtos, salgados, água, e chup-chup para turistas no rio e salão de beleza não são reconhecidos como afetadas pelo empreendimento. Ainda, há os casos em que as atividades desempenhadas pelas mulheres são invisibilizadas porque operam nos espaços privados e desconhecidos do imaginário urbano-patrimonial, como nos casos em que o complemento de renda dessas mulheres vinha de pequenas hortas e criação de animais em seus terrenos11 11 “Uma mulher atingida pela lama da Samarco/BHP/Vale a partir do rompimento da barragem de Fundão relata que perdeu tudo com a lama, inclusive sua horta. Hoje, não tem como comprovar que a horta existia. Encontra dificuldades de tê-la reconhecida pela empresa e de receber indenização pela perda, visto que a horta era responsável pela alimentação da família” (BRITO, 2017, p.25). .

A Fundação Getúlio Vargas (2019) estudou os registros de reclamações à ouvidoria da Fundação Renova de 2016 a 2019 em que aparecia o termo “mulheres”. As principais questões reivindicadas por elas estão relacionadas ao cadastro como atingidas (39,85%), sobrecarga doméstica (33,92%) e pagamento de auxílio financeiro emergencial (30,90%). Questões relacionadas às atividades econômicas (24,27%), pagamento de indenização (23,74%), questões relacionadas à saúde (21,99%) e conflitos familiares (3,39%) também aparecem.

Dentro da situação de sobrecarga doméstica, o que mais aparece são as dificuldades de arcar com os custos do lar e o cuidado com filhos e netos. Reclamações sobre esse tema têm crescido, o que mostra o aumento da sobrecarga e da vulnerabilidade dessas mulheres com o passar dos anos de um crime sem reparação e sem ações específicas para elas12 12 Essas informações foram obtidas nos trabalhos de campo ao longo das oficinas realizadas na bacia. Também constam no Relatório Preliminar da Defensoria Pública do ES. . O tema da saúde é outro em que há aumento das reclamações ao longo dos anos, principalmente em relação à saúde mental (1,2% em 2016 para 12,8% em 2019) e ao acesso à saúde (1,7% em 2016 e 18,6% em 2019). Em relação às atividades econômicas, as maiores reclamações das mulheres são relacionadas à pesca ou à cadeia da pesca (15,9%), mostrando mais uma vez o não reconhecimento do trabalho das mulheres nessa categoria (FGV, 2019).

Sobre os programas de reparação gerenciados pela Fundação Renova, as principais questões colocadas por elas são de informações sobre a situação do cadastro, atrasos, demoras e erros no pagamento dos auxílios e das indenizações. Em um processo em que as mulheres não são reconhecidas e não recebem seus direitos de forma independente, é de se esperar um aumento da vulnerabilidade, dificuldade de arcar com os custos do lar, sobrecarga doméstica e na saúde mental, assim como aumento dos conflitos familiares.

Em abril de 2016, uma pesquisa de campo realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) apontou casos de aborto “espontâneo” com a notícia da chegada da lama (ainda não reconhecidos pela empresa como consequência); casos de entrega do cartão que dá acesso ao pagamento mensal de indenização aos homens apontados enquanto chefes do núcleo familiar, reduzindo a autonomia econômica das mulheres e implicando em aumento de casos de alcoolismo, uso de drogas e violência doméstica; casos de violência sexual por trabalhadores das empresas terceirizadas contratadas para obras de reparação; destruição dos lugares comunitários e de encontro das mulheres (BRITO, 2017BRITO, Mariana Fernandes de. Mulheres e Mineração no Brasil. Rio de Janeiro: IBASE, 2017).

5. A atuação do MAB e da Defensoria Pública resgatando as memórias e construindo os direitos das mulheres

Apresentaremos a seguir as duas metodologias utilizadas na percepção dos danos sofridos e direitos violados e na transformação disso em demanda por justiça. Os processos ocorreram de maneira simultânea, pela própria concepção da utilização de educação popular na mediação da conscientização dos atingidos pela luta por direitos. A primeira delas foi a realização de um diagnóstico sobre a situação das mulheres e a segunda metodologia foi o emprego do trabalho com as Arpilleras.

A Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) começou a atuar no caso do Rio Doce em novembro de 2015, inicialmente criando um grupo de trabalho especial para prestar atendimento aos atingidos, denominado Grupo SOS Rio Doce. A primeira fase consistiu no levantamento de informações sobre as comunidades atingidas e a forma como o desastre afetou suas vidas. Em janeiro de 2016 começaram as atividades de campo, privilegiando-se a região da foz do Rio Doce, área diagnosticada como mais vulnerável no estado. Foram realizados 800 atendimentos, e 150 ações individuais (BITTENCOURT et al., 2017BITTENCOURT, Fábio. et. al. A atuação do Grupo Interdefensorial do Rio Doce no reconhecimento do litoral do Estado do Espírito Santo e de suas comunidades como afetadas pelo desastre ambiental de Mariana/MG. XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Vitória, 2017. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/38614/F__bio_Ribeiro_Bittencourt.pdf. Acesso em: 15 set. 2020
https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/co...
).

Tal iniciativa aproximou a Defensoria dos movimentos e organizações da sociedade civil, como o MAB, e assim, passou a integrar o grupo Fórum Estadual em Defesa do Rio Doce, no qual se articulam audiências públicas e visitas a municípios. O trabalho envolveu a garantia de acesso ao auxílio emergencial, abastecimento alternativo de água e informações. Como descrito a seguir, a presença em campo foi fundamental para que a Defensoria revisasse sua estratégia no caso.

Em um segundo momento, o Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (NUDAM) passou a atuar no caso, contrariando algumas posições de membros da DPES que acreditavam que a Defensoria não possuía recursos para seguir no caso e que deveria assumir uma posição de passividade, atuando apenas em demandas individuais provocadas por algum atingido. Numa postura de enfrentamento, os defensores e, especialmente duas defensoras, avaliaram que a estratégia de enfrentamento deveria ser a atuação com a tutela coletiva. Elas avaliaram que a atuação baseada nos modos de solução tradicional do direito seria insuficiente para a dimensão do conflito, pois a judicialização não chegaria aos resultados esperados devido à dificuldade de produção de provas, à má compreensão do órgão do Poder Judiciário do caso, além da morosidade decisória e individualização do conflito.

Numa avaliação sobre as ações dos acordos que estavam em curso, perceberam rapidamente “que as soluções tomadas de cima para baixo, dentro de gabinetes, eram vazias, obsoletas dissociadas da realidade. O giro da atuação foi focar na narrativa das comunidades atingidas para a reconstrução da dimensão de danos, nas palavras da defensora Maria Gabriela de Silva: “nenhum técnico, muito menos alguém do direito poderia dizer como a reparação deveria ser feita, ninguém melhor do que as atingidas e atingidos poderiam dizer qual era a urgência de cada pauta” (Entrevista a Maria Gabriela da Silva, 2020).

Essa presença ativa da Defensoria, somada à proximidade com as comunidades e movimentos, o que parecia uma fragilidade em um primeiro momento, se tornou a força da atuação do órgão com a criação de uma relação de confiança entre defensores e atingidos, possibilitando redirecionar a atuação. Segundo a defensora: “o que foi o diferencial foi a construção coletiva nos territórios, a relação de confiança que nos envolveu como profissionais e como seres humanos na causa” (Entrevista a Maria Gabriela da Silva, 2020).

Com a assinatura do TTAC em março de 2016, a DPES precisou rever a estratégia de ação para construir uma atuação mais sólida frente às empresas a fim de alcançar uma reparação mais rápida e efetiva. Assim, firmaram o termo de parceria com a Defensoria Pública de Minas Gerais e a Defensoria Pública da União em 14 de setembro de 2016, formando o Grupo Interdefensorial Rio Doce (GIRD). O grupo atuou primeiramente com os programas de indenização mediada propostos no acordo, tentando rever os critérios de inclusão nos programas de reparação e a proibição do estabelecimento de quitação geral proposto pela Fundação Renova. Outra importante atuação foi o reconhecimento do litoral do Espírito Santo como atingidos pelo crime e, por consequência, o imediato dever de incluir as famílias que vivem nessa área dentro dos programas de indenização (BITTENCOURT et al., 2017BITTENCOURT, Fábio. et. al. A atuação do Grupo Interdefensorial do Rio Doce no reconhecimento do litoral do Estado do Espírito Santo e de suas comunidades como afetadas pelo desastre ambiental de Mariana/MG. XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Vitória, 2017. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/38614/F__bio_Ribeiro_Bittencourt.pdf. Acesso em: 15 set. 2020
https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/co...
). Nas palavras de um dos membros do grupo:

A questão, pela complexidade e pela extensão indefinida do desastre ambiental, exigiu das Defensorias Públicas estabelecer os seguintes vetores de atuação: 1) a necessidade de obtenção dos laudos técnicos dos órgãos ambientais, a fim de subsidiar os relatos colhidos das comunidades; 2) buscar os poderes públicos e pontuar a necessidade de sua atuação, partindo da responsabilidade que possuem em atuar perante as empresas/Fundação Renova; 3) promover trabalhos de educação em direitos nas comunidades, de modo a explicar o que significa o reconhecimento do indivíduo enquanto afetado e quais direitos decorrem dessa posição jurídica, enfatizando que o viés coletivo da questão e a necessidade de mobilização social como instrumento de reivindicação de direitos; 4) presença nos espaços de mobilização criados pelos afetados ; 5) publicitar o tema por intermédio dos veículos de comunicação, imprensa e espaços públicos (Assembleia Legislativa, Seminários, Audiências Públicas) (BITTENCOURT et al., 2017BITTENCOURT, Fábio. et. al. A atuação do Grupo Interdefensorial do Rio Doce no reconhecimento do litoral do Estado do Espírito Santo e de suas comunidades como afetadas pelo desastre ambiental de Mariana/MG. XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Vitória, 2017. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/38614/F__bio_Ribeiro_Bittencourt.pdf. Acesso em: 15 set. 2020
https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/co...
).

Como se observa, o GIRD privilegiou a mobilização social e o protagonismo das comunidades atingidas para construir uma conscientização da luta por seus direitos e traçar a estratégia da ação coletiva, passando a promover maior pressão sobre os entes federados. Foram envolvidos mais atores públicos, como secretarias de estado e prefeituras; e se evitou a “privatização do desastre” com uma atuação marcada pela presença constante da Defensoria Pública nos territórios. Isso representa uma inovação na medida em que a mera judicialização individualizada do conflito não teria criado o mesmo laço entre as comunidades e a Defensoria e poderia até representar a desmobilização das comunidades.

Das instituições do sistema de justiça com atuação no caso, a Defensoria Pública é uma das poucas que possui mulheres como representantes. Dos membros destacadas pelo Ministério Público Federal, Ministérios Públicos Estaduais, Defensoria Pública da União e Defensorias Públicas dos Estados, temos a presença de 10 homens em contraposição à atuação de cinco mulheres. A presença dessas defensoras no território foi fundamental para a percepção de que existia uma diferença nos espaços de fala e decisão com relação às mulheres. As defensoras perceberam a invisibilidade das mulheres como atingidas que não estavam participando adequadamente da reparação13 13 “Como mulher era muito nítido ver que existia alguma coisa errada nos espaços de fala e de decisão em relação às mulheres. Pra mim a questão toda se pautou na visibilidade ou invisibilidade das mulheres atingidas. Era evidente que aquelas mulheres não estavam sendo escutadas, consideradas na reparação. O protagonismo que muitas vezes a gente via nas falas, nas comunidades, no movimento, não tinha reflexo nas tomadas de decisões. As mesas de negociação sequer consideravam alguma discussão com recorte de gênero. Então ficou muito claro que estavam repetindo as estruturas do patriarcado na reparação. Desde o cadastro, construção de parâmetros de indenização e “mediações” individuais ou coletivas. Então o que a gente tem que fazer? Criar sim um trabalho específico voltado pras mulheres, porque seus danos são muitos variados e profundos. Na minha visão as mulheres são sim as mais atingidas pelo crime. Porque são atingidas e oprimidas em muitas frentes: no relacionamento doméstico que se desestrutura e coloca ela em situação de violência, pela precarização do seu trabalho de forma mais acentuada. São as mulheres que em maior número trabalham de forma informal, que perdem mais facilmente a sua remuneração, são elas que sustentam seus filhos e outros membros da família, fora a saúde das mulheres que vai desde a saúde mental como a reprodutiva. Se não houver um recorte de gênero, o machismo estrutural vai ser reproduzido e as mulheres vão ser atingidas duplamente” (Entrevista com Maria Gabriela Agapito da Veiga Pereira, Defensoria no Rio Doce, 2020). .

Com a relação de confiança construída com o MAB, as defensoras e atingidas conversaram sobre iniciar um trabalho específico com as mulheres. No ano de 2018, iniciou-se um mapeamento e diagnóstico preliminar em que se constatou que nas políticas reparatórias da Fundação Renova não estavam sendo consideradas as dimensões de gênero, não havendo propostas para a superação da vulnerabilidade das mulheres.

A Defensoria então buscou colocar nas mesas de negociação com as empresas o tema, que apareceu pela primeira vez na Recomendação Conjunta nº. 10 de 2018. A recomendação trazia a obrigatoriedade de um tratamento mais igualitário às mulheres em respeito às convenções internacionais. Contudo, mesmo após a pactuação, as empresas não alteraram suas políticas.

A Defensoria necessitava dar um conteúdo mais claro às recomendações, de modo elas refletissem a realidade dos territórios, ao passo que o MAB em seus trabalhos encontrava limites para dar visibilidade à atuação das mulheres atingidas. Frente a esse desafio surge a combinação das duas metodologias. A primeira delas sendo a realização de um diagnóstico sobre a situação das mulheres, que abordaremos a história a seguir. E a segunda metodologia o trabalho com as Arpilleras que discutiremos no próximo item.

5.1 Construindo o diagnóstico sobre as mulheres atingidas

Com fins de estruturar o diagnóstico, o MAB e a Defensoria Pública organizaram a primeira reunião com lideranças das mulheres atingidas em outubro de 2018, na sede da Defensoria em Linhares, com a presença de 20 mulheres. Para essa reunião foi organizado um modelo de questionário pelo qual se buscava obter mais informações sobre os impactos na vida das mulheres em decorrência do crime. Em seguida, essas lideranças, atuando como multiplicadoras organizadas pelo MAB, construíram reuniões em suas comunidades nos municípios de Colatina, Regência, Barra Nova Sul, São Mateus e Baixo Guandu. Ao todo foram 83 formulários e o relato de diversas reuniões que embasaram a construção do relatório preliminar sobre a situação das Mulheres Atingidas pelo Desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo (SOBRAL, 2018SOBRAL, Mariana Andrade. Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo. Vitória: DPES, 2018), que passou a ser a ferramenta de incidência sobre a realidade das mulheres no caso.

Após a reunião o MAB organizou as reuniões nos territórios para a aplicação dos questionários e fez uso da segunda metodologia, a técnica das Arpilleras. Nesse momento, os trabalhos organizativos do MAB se conectam à Defensoria no desafio comum de efetivação dos direitos das populações atingidas. As Arpilleras compõem o método no qual as mulheres saem dos espaços de silêncio e se colocam na disputa política do conflito, trazendo o instrumento da memória coletiva negada nas peças. Com isso a DPES tem grupos organizados e dispostos a dar corpo ao seu trabalho de melhorar as condições reparatórias das mulheres atingidas.

Posteriormente ao levantamento de campo do MAB, a Defensoria elencou alguns casos mais emblemáticos dos formulários e realizou algumas entrevistas. Além disso, as mulheres do MAB e a Defensoria levantaram referências bibliográficas na área de conflitos e direitos das mulheres. Com a sistematização dos formulários pela equipe da Defensoria, as entrevistas e a bibliografia, a Defensoria redigiu o Relatório Preliminar da situação das mulheres no Rio Doce, sendo o primeiro documento institucional a tratar do tema no caso, e por isso se consolida como um marco da incidência de gênero no caso.

Em novembro de 2018, o relatório foi apresentado no Primeiro Encontro das Atingidas do Rio Doce e litoral capixaba (MAB, 2018), na cidade de Mariana, marcando as atividades do 5 de novembro, em memória aos 3 anos do desastre, sendo o ato de lançamento público do trabalho. No encontro estiveram presentes mais de 300 mulheres atingidas e crianças, além de representantes das instituições do sistema de justiça. Os relatos ao longo de toda a atividade confirmaram a falta de reconhecimento dos impactos do desastre na vida das mulheres, a relação de resistência das mulheres com os territórios atingidos e a interrelação das situações problemáticas vividas por elas com o fluxo da contaminação ao longo da bacia e do litoral. Ficou evidente que a água do Rio Doce e do litoral eram fonte de alimento, de abastecimento de água, de cultivo do lazer e de práticas culturais, em um complexo de relações sociais não metrificadas.

A interrupção dessas relações sociais pela lama nem sempre geram efeitos imediatos e explícitos, havendo a necessidade de compreensão de tal fenômeno nos espaços-tempos que se desdobram e se acumulam. A percepção da relação de causa (o desastre) e efeito (a interrupção das relações sociais) requer um trabalho de elaboração e a necessidade de mediação para ser construída, por isso a importância do trabalho de diagnóstico. Essa mediação, que nos ajuda a refletir sobre os conflitos socioambientais a partir da centralidade dos atingidos e das atingidas, buscou ser proporcionada pelas metodologias empregadas pelo MAB. Ao mesmo tempo, esse tipo de mediação é um limite-desafio para o sistema de justiça diante das suas conformações estruturais e um desafio para os movimentos sociais e populares no uso do direito para conquista de reparações coletivas e com repercussões históricas, como no caso do não reconhecimento das mulheres.

A utilização da metodologia do diagnóstico, somada à organização popular das mulheres, resultaram em alguns avanços de direitos humanos para as mulheres. O CIF, por meio da Deliberação nº 119, reafirmou que no processo de indenização não deve haver discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma. Em 26 de março as instituições de justiça elaboraram a Recomendação Conjunta n° 10 (MPF et al, 2018), considerando que há na política indenizatória um problema do reconhecimento da força produtiva das mulheres na cadeia da pesca, ao colocar seu trabalho como complementar ao do homem14 14 Propondo como medidas à Fundação Renova: 13. Abstenham-se de utilizar questionários com a mulher atingida que direcione ao não reconhecimento do seu trabalho como autônomo, independente do seu companheiro; 15. Reconheçam a renda da mulher atingida de forma autônoma, concedendo cartão emergencial em seu nome, em respeito à independência econômica conquistada antes do rompimento da barragem; 23. Indenizem as mulheres atingidas em igualdade de condições com os homens atingidos, sem qualquer distinção no tratamento e valores, em respeito a Convenção nº 100 da OIT; 25. Observem, nas hipóteses de negociações com núcleos familiares em que se constate a existência de mulher em situação de violência, a Lei nº 13140/2015 (Lei de Mediação), em seu inciso II, art. 2º, que prevê como princípio orientador a isonomia entre as partes, não sendo possível aferir esse poder de negociação quando se trata de procedimento de autocomposição entre vítima de violência doméstica e familiar e ofensor; 26. Observem que as práticas de autocomposição envolvendo vítima de violência doméstica e familiar e ofensor, além de gerarem verdadeiro processo de revitimização, podem colocar a mulher em risco nos casos em que há perigo de ocorrência de novas violências; 27. Cumpram a Recomendação n.º 33 de 25 de julho de 2015, do Comitê CEDAW - Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, tratando especificamente sobre Acesso à Justiça, assegurando-se “que casos de violência contra a mulher, inclusive violência doméstica, não sejam sob circunstância alguma encaminhados a quaisquer meios alternativos de solução de controvérsias/disputas (SOBRAL, 2018, p.9). .

Ainda assim, o Programa de Indenização da Água (PIM/ÁGUA) não incorporou nenhuma medida de atendimento prioritário às mulheres, em que pese a relação delas com o acesso à água potável para o exercício das tarefas de cuidado. Isso demonstra que as políticas reparatórias em execução pela Renova não são perpassadas pela transversalidade de gênero em busca da equidade.

É evidente que as medidas deveriam ser pensadas na própria elaboração e construção dos programas atualmente executados pela Fundação Renova. Contudo, não é o que se verificou. Assim, após implementação dos programas, diversas violações de direitos humanos já são sentidas pelas mulheres atingidas, quadro social de extrema sensibilidade que sinaliza a urgência de se pensar em maneiras de reformulação e inclusão de medidas que não representem e reafirmam relações de opressão dentro das comunidades atingidas, devendo se iniciar pelo respeito aos direitos das mulheres atingidas como seres humanos autônomos, independentes e com capacidade laborativa reconhecida dentro das suas características e especificidades (SOBRAL,2018SOBRAL, Mariana Andrade. Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo. Vitória: DPES, 2018, p. 8).

A citação acima é do Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no estado do Espírito Santo, elaborado pela DPES. O trabalho constata ainda: maior sofrimento das mulheres pelo conflito, dada as desigualdades de gênero pré-existentes; a falta da produção de dados desagregados de gênero dificultando o reconhecimento delas; a falta de um tratamento específico para as mulheres oculta a existência da problemática; a exclusão das atividades laborativas das mulheres; a falta de participação política das mulheres nas mesas de diálogo e negociação. Apesar de passados dois anos, essas afirmações do diagnóstico seguem atuais para incidência no caso.

5.2 O trabalho com a metodologia das Arpilleras

Existe um desafio em dar visibilidade às opressões das mulheres atingidas em virtude do rompimento. O primeiro entrave é o reconhecimento de que há uma diferença de impactos entre mulheres e homens. O segundo é a criação de formas para que essas mulheres participem dos espaços de negociação e consigam comunicar seus problemas, angústias e subjetividades. O maior desafio é conseguir diagnosticar as violações ao direito à água e sua relação com a vida das mulheres de modo a reconstruir os nexos de causalidade necessários para a reparação.

Tendo em vista que as relações de opressão do patriarcado, ocultadas na subjetividade da vida privada, dificultam que muitas mulheres atingidas percebam as diferenças de tratamento impostas pela Fundação Renova e pelas prefeituras, o MAB vem aplicando o uso das Arpilleras como uma metodologia de educação popular feminista para o trabalho com as mulheres desde 2013. As Arpilleras são uma técnica de bordado tradicional chilena que começou nas Islas Negras, com os primeiros registros em 1952. Durante a ditadura militar chilena, a técnica foi resgatada pelas mulheres dos subúrbios que perderam filhos, maridos, sobrinhos, e que se reuniam nas igrejas em busca de informações. Pouco a pouco, os sacos de batata foram transformados em telas e os retalhos das roupas em bonecas, casas, em um processo de reconstrução das histórias silenciadas. “As arpilleristas denunciaram todo o sofrimento por que passaram através dessa expressão cultural” (BACIC, 2012BACIC, R. História das Arpilleras. IN: ABRÃO, P. Arpilleras da resistência política chilena. Brasília, 2012.p. 4).

A arte das Arpilleras, sob essa perspectiva, possui um grande papel de comunicação com a sociedade. Desperta um sentir sobre a realidade que possibilita a abertura de um novo pensar sobre os problemas, carregando a análise da subjetividade. Assim, a arte é uma importante ferramenta para os movimentos sociais, não apenas por sua obra final, mas também pelo processo de criação, como um instrumento para uma pedagogia libertária entre mulheres. As peças das Arpilleras criam laços entre as mulheres que teceram e quem as contempla, conectando o público ao clima de resistência do qual nasceram. O trabalho com as Arpilleras mostra várias formas de denúncia e reivindicação de direitos:

  1. Resistência contra a pobreza, constituindo-se como uma fonte cooperativa de renda para estas mulheres. Ao mesmo tempo, resistência contra ao papel reprodutivo tradicionalmente relegado para elas, se empoderando economicamente.

  2. Resistência contra um regime repressivo contando a história da vida diária baixo um regime opressor, quebrando o silêncio imposto.

  3. Resistência contra a mesma ideia de resistência, fazendo da costura, geralmente delegada a labor doméstica da mulher e ao um papel social subalterno, um ato de subversão radical. Ao mesmo tempo, resistindo ao formato tradicional das Arpilleras bucólicas de vida rural, criando imagens sobre opressão política e reflexões mais urbanas sobre a vida diária.

  4. Resistência contra as expectativas do mundo da arte sendo exibidas em museus e galerias de arte, dando-lhes o mesmo tratamento que às obras de arte clássica, contribuindo assim a democratização da arte e da cultura. Transcendem o espaço da solidariedade internacional que lhes tinha sido relegado no qual eram simples peças de artesanato que se vendiam campo em feiras de igrejas para captar fundos e criar consciência (GARCÍA, 2008).

Com o desafio permanente de avançar no trabalho com as mulheres, denunciando as opressões de gênero na construção, implementação e operação de barragens, o MAB tomou contato com a metodologia de trabalho popular das Arpilleras chilenas. Partindo da concepção de que “os direitos humanos nascem das lutas populares e se afirmam no processo histórico, estão em construção ‘desde baixo’” (MAB, 2015), o Coletivo de Mulheres do MAB desenvolveu uma proposta de oficinas pelo método popular “formação de formadores” a fim de fortalecer o protagonismo das mulheres atingidas organizadas na luta em prol da construção de direitos (MAB, 2015).

Figura 2
Foto de uma Arpillera

A peça acima foi bordada pelas mulheres atingidas de Mariana/MG, em julho de 2017, e retrata as empresas envolvidas no desastre, os corpos dos 19 mortos e a importância da organização popular, muitos elementos às vezes difíceis de serem pronunciados ou articulados em palavras. As mulheres sentem mais facilidade de ir refletindo sobre sua realidade, em conjunto com outras mulheres, numa roda de costura das peças. Atrás de cada peça existe um bolso que guarda uma carta com a história daquela obra.

A participação em muitas dessas oficinas revelou que ao costurar suas histórias as mulheres repensam a ideia e o lugar tradicionalmente atribuído às mulheres, em um encontro com a leitura feminista que questiona o caráter natural da subordinação feminina. O ato subjetivo de costurar o “não dito” e torná-lo visível é em si um processo libertário. O exercício das atingidas é uma expressão de que são muitas as mulheres, muitas as opressões vividas e realidades negadas. Ao se encontrar para bordar, as mulheres tomam contato com o debate feminista de reconhecimento das estruturas de exploração e dominação às quais são não somente submetidas, mas também reprodutoras. É um árduo trabalho recordar todas as memórias das dores, mas produzir uma memória de resistência às apropriações dos territórios é fundamental para uma construção democrática de direitos e justiça social.

Partindo desse acúmulo, durante a primeira reunião das mulheres atingidas do Espírito Santo, em 2018, elas tiveram o primeiro contato com a história das Arpilleras, desde a sua origem no Chile até a sua utilização nos demais territórios de atuação do MAB. Além da proposta de preencher os formulários elaborados em conjunto com a Defensoria Pública, as mulheres levaram o desafio de construir em seus territórios reuniões para que pudessem partilhar dos problemas comuns do Rio Doce e tecer os bordados.

Outro momento importante foi o I Encontro das Mulheres Atingidas, que mencionamos acima. Nesse encontro, as mulheres atingidas do Espírito Santo tiveram contato com outras atingidas da região do Médio Rio Doce que já estavam trabalhando com a técnica das Arpilleras, tendo contato com as primeiras peças. Nesse encontro também foi possível dar visibilidade à problemática das mulheres atingidas, que compartilharam vários relatos do aumento da violência, do seu não reconhecimento pelas empresas, do problema da água e da saúde.

Nos encontros, todas as mulheres relataram com alegria a presença de uma atividade mais lúdica para trabalhar o caso, pois se mostravam cansadas das inúmeras reuniões e assembleias. Nos trabalhos em grupo de cinco, as mulheres puderam apontar os seguintes problemas que relacionam o desastre com gênero: o problema do cadastramento que exclui as mulheres por estar baseado na noção de núcleo familiar; a dificuldade no acesso à água potável de qualidade nas comunidades e a sobrecarga de trabalho decorrente disso; inúmeros problemas de saúde; o tratamento discriminatório da Fundação Renova; aumento da violência doméstica. Esses relatos convergiram para a construção do Relatório Preliminar da Defensoria Pública (SOBRAL, 2018SOBRAL, Mariana Andrade. Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo. Vitória: DPES, 2018).

Figura 3
Foto de Arpillera “Sonhos da comunidade de São Miguel, São Mateus/ES”

Na peça acima podemos perceber vários elementos que relacionam a água com a alimentação, como peixe e camarão. Estão presentes elementos do território como mata, rio, mar. Também representações de pessoas em suas interações com o rio expressando felicidade.

O exercício de se perceber no fruto de seu trabalho é simbólico, contribui para a percepção das mulheres como sujeitas da história, na materialização e corporificação das violações sofridas e torna-se meio de comunicação com sua comunidade e outras partes do mundo. Ao bordar a mulher se vê, se percebe e se representa em um processo de conscientização e politização, como nas bonecas negras representadas na figura acima. Trata-se de um processo de pluralizar as sujeitas políticas desde a arena popular.

Se analisadas desde a perspectiva dos direitos humanos, com uma concepção histórica, dialética e, portanto, em constante transformação social, as Arpilleras produzidas pelas mulheres atingidas representam o exercício do seu direito à memória, a denúncia de violações por empresas, ao direito ao meio ambiente saudável e a demanda por igualdade de gênero. No campo da individualidade das mulheres, as Arpilleras têm o poder de socializar conflitos vividos, possibilitando um trabalho de simbolização das suas dores e desejos. No plano social, denunciam as violações aos seus direitos desde uma linguagem transgressora, com capacidade de incidência criativa na construção de políticas públicas. Ao serem questionadas sobre a sua vida antes da chegada das barragens, elas percebem as dimensões de sua relação com a casa e a terra e registram nos tecidos essas relações. Isso é registro de memória que pode contribuir para uma eventual reparação. As mulheres se reconhecerem como portadoras de direitos, com um papel protagonista na sua promoção15 15 Inspiradas pelas práticas mais artísticas em 2019, as mulheres atingidas, organizadas no MAB em parceria com a Defensoria Pública do ES, organizaram uma exposição fotográfica “Mulheres Atingidas: da lama à luta”, que percorreu vários estados mostrando os rostos dessas mulheres esquecidas e as dificuldades vividas. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/entretenimento/cultura/exposicao-fotografica-sobre-a-luta-das-mulheres-de-mariana-e-brumadinho-0319 .

“Nós bordamos nossos problemas, e nossos problemas são feios”, contempla Eduardo Galeano (1997GALEANO, Eduardo. Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 1997) em um dos seus escritos. Esse fragmento elucida o papel das Arpilleras no processo de tomada de consciência das violações vividas pelas mulheres atingidas do Rio Doce, que se convertem em artistas arpilleristas. Um trabalho lúdico, mas também profundamente engajado com a libertação que as desloca da identidade de vítimas para agentes, sujeitas, criadoras de suas e outras histórias. As Arpilleras podem ser lidas como uma contação, um registro e um retorno ao que foi vivido. Trata-se de uma história coletiva, revivida, mas também ressignificada ao acessar e reconhecer as violações sofridas.

O uso da metodologia das Arpilleras no MAB permitiu identificar uma realidade de vida das mulheres atingidas anterior ao conflito. Também possibilitou encontrar problemas que não estão identificados no processo reparatório e que foram revelados no trabalho com a subjetividade das mulheres. Nas peças sobressai a relação complexa, profunda e diversa com a água. Assim, essa metodologia permite recriar o não dito e demonstrar fatores que ficaram alheios aos processos judiciais, em contraposição radical à metrificação da água.

Quando o MAB começou a organizar a mulheres atingidas, as violações saíram do espaço privado e do silêncio. O Movimento buscou a DPES, que já vinha tendo um trabalho coordenado na centralidade da participação do atingido no processo reparatório. Então, as mulheres do MAB encontram sororidade para sua dor com as defensoras públicas. E o trabalho institucional foi somado à metodologia das Arpilleras.

6. Conclusão

Este artigo buscou relatar o conflito socioambiental causado pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, em 2015, seu efeito na vida das comunidades e as ações realizadas de reparação, a partir da perspectiva de gênero. Olhar com essa perspectiva ajuda a compreender uma dimensão apagada relacionada com o impacto diferenciado desse desastre na vida das mulheres e as dificuldades que elas enfrentam na reparação, devido à sua invisibilização como sujeitas de direitos. Nesse sentido, evidencia os limites do sistema de justiça no que se refere a um olhar de gênero e da integralidade dos bens comuns.

Além do Relatório, cujas conclusões foram expostas no capítulo 4 deste artigo, até agora não existem outros documentos que busquem demonstrar os problemas de gênero na política reparatória. Contudo, podemos dizer que o trabalho do MAB com as Arpilleras para apreender os impactos do desastre ambiental na vida das mulheres, combinado com o exercício de escuta atenta e qualificação dos resultados realizado pela DPES na produção do Relatório, permitiu abrir uma agenda de incidência sobre a situação das mulheres atingidas no Rio Doce. Desta forma, o Relatório é um marco inaugural dos debates. A partir das preocupações levantadas nele, a Fundação Getúlio Vargas e a empresa Ramboll, ambas assistentes técnicas do Ministério Público Federal, vêm produzindo um diagnóstico mais sistematizado das questões de gênero no processo reparatório.

Outras instituições de justiça e setores da academia passaram a produzir dados desagregados ou mesmo reconhecer que os impactos podem ser diversos na vida das mulheres. A própria Fundação Renova revisou alguns de suas políticas em resposta às recomendações do relatório, cogitando inclusive produzir uma consultoria específica de gênero para auxiliar nas políticas reparatórias, mas ainda não se tem notícia do andamento desse trabalho.

Em que pese o Relatório não conter maiores dados da realidade das mulheres atingidas, ele causou constrangimento em todos os atores e levou ao reconhecimento de que há uma diferença clara de tratamento entre homens e mulheres, apontando os pontos críticos do processo de reparação. A atuação conjunta entre o MAB e a Defensoria Pública na qualificação das demandas para incidência no caso representaram um importante avanço na defesa do direito das atingidas e no fortalecimento das mulheres enquanto protagonistas dos processos de disputa colocados.

Aqui cumpre também apresentar uma perspectiva crítica deste quadro desenhado. As disparidades de recursos e poder entre as empresas e comunidades precisam ser enfrentadas para além do terreno judicial para que seja possível conquistar a paridades de armas no processo judicial de reparação. O MAB, enquanto movimento popular, possui pouca capacidade de incidência política no conflito de tamanha expressividade e tão judicializado, não tendo espaço de participação ativa na construção das políticas reparatórias, ou mesmo acesso a determinados atores do sistema de justiça e das empresas. A Defensoria Pública consegue suprir essas lacunas, ao menos formalmente, mas sua estrutura ainda não permite a contento a capilaridade e o acesso aos territórios para um contato direto e contínuo com as atingidas, nem mesmo a construção de profundas relações de confiança que permitem que as mulheres abram sua subjetividade. Isso tudo para além das próprias disputas no seio da Defensoria Pública sobre a definição da sua política institucional e de suas prioridades estratégicas. Se a política institucional é cotidianamente recortada pela tensão entre forças internas (mais corporativas e mais democráticas) e externas (Estado, mercado e movimentos sociais), essa tensão pode ficar ainda mais evidente em casos de grandes repercussões (SILVA, 2019SILVA, Vinícius A. B. da. Política Judicial: a disputa pela supremacia na Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019).

A DPES segue com um procedimento administrativo específico contendo as informações das Arpilleras, questionários e recomendações propostas no Relatório. Ao longo do ano de 2019 buscaram dar continuidade aos trabalhos conectando a temática da saúde. Realizaram um novo questionário para apuração das denúncias de aborto em decorrência da contaminação da água, não tendo sido ainda publicado o relatório. A Defensoria segue no diálogo com o MAB e no apoio ao trabalho das Arpilleras, estando atenta às denúncias que esses trabalhos levantam. Ambos têm difundido as imagens das Arpilleras na árdua tarefa de dar visibilidade a essa memória.

Referências bibliográficas

  • 1
    Este artigo é o resultado de um convite feito pelo Fórum Justiça ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no bojo da pesquisa colaborativa sobre o Direito à Água liderada pelo Ministério Público de Defesa da Cidade de Buenos Aires, no âmbito da qual foi publicada a versão original em espanhol deste artigo. O Fórum Justiça é um espaço aberto aos movimentos sociais, organizações da sociedade civil, setores acadêmicos e agentes públicos do sistema de justiça, que busca discutir coletivamente a política judicial com redistribuição, reconhecimento de direitos e participação popular, enfatizando a justiça como um serviço público. Como um de seus objetivos, visa estimular o debate sobre política judicial no Brasil, considerando o contexto Ibero-Latino-Americano. Mais informações em www.forumjustica.com.br.
  • 2
    No mar, a lama percorreu para o norte, atingindo o arquipélago de Abrolhos, um dos principais berçários marinhos do Brasil. E, ao sul, chegou até a cidade de Aracruz, com uma faixa contínua de lama e pequenas manchas que flutuaram até o Rio de Janeiro. No Espírito Santo não foi decretado estado de emergência, mas a Defesa Civil apontou quatro municípios atingidos: Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Linhares, sendo esses dados anteriores às constatações de impactos na zona marítima (WANDERLEY et al., 2015).WANDERLEY, LUIZ JARDIM ; MANSUR, MAÍRA SERTÃ ; Milanez, Bruno ; PINTO, RAQUEL GIFFONI . Desastre da Samarco/Vale/BHP no Vale do Rio Doce: aspectos econômicos, políticos e socio ambientais. Ciência e Cultura, v. 68, p. 30-35, 2015
  • 3
    Incluindo a região de Ouro Preto por impactos regionais e Anchieta/ES pelo impacto na indústria da mineração.
  • 4
    Operação contra corrupção e lavagem de dinheiro que ganhou notoriedade pública ao investigar crimes cometidos por políticos, gerentes de empresas estatais e operadores financeiros, tendo levado ao indiciamento e prisão de figuras de destaque na cena nacional, a exemplo do ex-presidente Lula de Silva. Ao mesmo tempo, é criticada pela violação de garantias do direito de defesa, comunicação indevida entre acusação e juiz, seletividade e lawfare.
  • 5
    Conforme previsão da Cláusula 177 do TTAC, este programa recebe o nome de Programa de Monitoramento Quali-quantitativo sistemático de água e sedimentos e visa, além do monitoramento direto das águas, realizar estudos e avaliações de riscos toxicológicos e ecotoxicológicos no rio (TTAC, 2015).
  • 6
    De acordo com a cláusula 171 do TTAC, esta medida de cunho “reparatório”, como é classificada no acordo, visa a construção de sistemas alternativos de captação de água para todas as cidades que tiveram o abastecimento público de água inviabilizado temporariamente como decorrência do desastre, para reduzir a captação de água diretamente do Rio em 30%, sendo a redução de 50% para os municípios que tenham mais de 100 mil habitantes, como é o caso da cidade de Colatina-ES (TTAC, 2015).
  • 7
    Importante aqui salientar que o órgão diretamente responsável pela fiscalização da execução do TTAC é o Comitê Interfederativo (CIF), criado pelo Termo e que é composto por diversos órgãos da União e dos Estados. Com relação aos programas relativos à água, a responsabilidade direta é de uma Câmara Técnica, dentro do CIF, chamada de Câmara Técnica de Segurança Hídrica e Qualidade da Água - CT-SHQA, esta é responsável por, além de fiscalizar, orientar o desenvolvimento do PMQQS, a ser executado pela fundação RENOVA.
  • 8
    Muitas dessas substâncias são biocumulativas, ou seja, se acumulam ao longo das cadeias alimentares. Assim, mesmo que presentes em pequenas quantidades, elas podem ser incorporadas por pequenos animais aquáticos, depois por peixes e, finalmente, por seres humanos. Ao mesmo tempo, há plantas que retiram esses metais do solo contaminado e, quando animais se alimentam dessas plantas, os metais também se acumulam em seus tecidos, podendo ser ingeridos pelos seres humanos.
  • 9
    O Comitê Interfederativo é um órgão colegiado e a instância máxima do sistema de governança estabelecido, ao qual cumpre acompanhar, monitorar e fiscalizar a implementação e execução dos programas e ações de reparação, conforme delimita o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta.
  • 10
    Harvey realiza essa sistematização das práticas espaciais a partir das teorizações realizadas por Henri Lefebvre (HARVEY, 1989HARVEY, David. The condition of postmodernity: an enquiry into the origins of cultural change. Oxford: Blackwell, 1989, p. 221).
  • 11
    “Uma mulher atingida pela lama da Samarco/BHP/Vale a partir do rompimento da barragem de Fundão relata que perdeu tudo com a lama, inclusive sua horta. Hoje, não tem como comprovar que a horta existia. Encontra dificuldades de tê-la reconhecida pela empresa e de receber indenização pela perda, visto que a horta era responsável pela alimentação da família” (BRITO, 2017BRITO, Mariana Fernandes de. Mulheres e Mineração no Brasil. Rio de Janeiro: IBASE, 2017, p.25).
  • 12
    Essas informações foram obtidas nos trabalhos de campo ao longo das oficinas realizadas na bacia. Também constam no Relatório Preliminar da Defensoria Pública do ES.
  • 13
    “Como mulher era muito nítido ver que existia alguma coisa errada nos espaços de fala e de decisão em relação às mulheres. Pra mim a questão toda se pautou na visibilidade ou invisibilidade das mulheres atingidas. Era evidente que aquelas mulheres não estavam sendo escutadas, consideradas na reparação. O protagonismo que muitas vezes a gente via nas falas, nas comunidades, no movimento, não tinha reflexo nas tomadas de decisões. As mesas de negociação sequer consideravam alguma discussão com recorte de gênero. Então ficou muito claro que estavam repetindo as estruturas do patriarcado na reparação. Desde o cadastro, construção de parâmetros de indenização e “mediações” individuais ou coletivas. Então o que a gente tem que fazer? Criar sim um trabalho específico voltado pras mulheres, porque seus danos são muitos variados e profundos. Na minha visão as mulheres são sim as mais atingidas pelo crime. Porque são atingidas e oprimidas em muitas frentes: no relacionamento doméstico que se desestrutura e coloca ela em situação de violência, pela precarização do seu trabalho de forma mais acentuada. São as mulheres que em maior número trabalham de forma informal, que perdem mais facilmente a sua remuneração, são elas que sustentam seus filhos e outros membros da família, fora a saúde das mulheres que vai desde a saúde mental como a reprodutiva. Se não houver um recorte de gênero, o machismo estrutural vai ser reproduzido e as mulheres vão ser atingidas duplamente” (Entrevista com Maria Gabriela Agapito da Veiga Pereira, Defensoria no Rio Doce, 2020).
  • 14
    Propondo como medidas à Fundação Renova: 13. Abstenham-se de utilizar questionários com a mulher atingida que direcione ao não reconhecimento do seu trabalho como autônomo, independente do seu companheiro; 15. Reconheçam a renda da mulher atingida de forma autônoma, concedendo cartão emergencial em seu nome, em respeito à independência econômica conquistada antes do rompimento da barragem; 23. Indenizem as mulheres atingidas em igualdade de condições com os homens atingidos, sem qualquer distinção no tratamento e valores, em respeito a Convenção nº 100 da OIT; 25. Observem, nas hipóteses de negociações com núcleos familiares em que se constate a existência de mulher em situação de violência, a Lei nº 13140/2015 (Lei de Mediação), em seu inciso II, art. 2º, que prevê como princípio orientador a isonomia entre as partes, não sendo possível aferir esse poder de negociação quando se trata de procedimento de autocomposição entre vítima de violência doméstica e familiar e ofensor; 26. Observem que as práticas de autocomposição envolvendo vítima de violência doméstica e familiar e ofensor, além de gerarem verdadeiro processo de revitimização, podem colocar a mulher em risco nos casos em que há perigo de ocorrência de novas violências; 27. Cumpram a Recomendação n.º 33 de 25 de julho de 2015, do Comitê CEDAW - Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, tratando especificamente sobre Acesso à Justiça, assegurando-se “que casos de violência contra a mulher, inclusive violência doméstica, não sejam sob circunstância alguma encaminhados a quaisquer meios alternativos de solução de controvérsias/disputas (SOBRAL, 2018SOBRAL, Mariana Andrade. Relatório Preliminar sobre a situação da mulher atingida pelo desastre do Rio Doce no Estado do Espírito Santo. Vitória: DPES, 2018, p.9).
  • 15
    Inspiradas pelas práticas mais artísticas em 2019, as mulheres atingidas, organizadas no MAB em parceria com a Defensoria Pública do ES, organizaram uma exposição fotográfica “Mulheres Atingidas: da lama à luta”, que percorreu vários estados mostrando os rostos dessas mulheres esquecidas e as dificuldades vividas. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/entretenimento/cultura/exposicao-fotografica-sobre-a-luta-das-mulheres-de-mariana-e-brumadinho-0319

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com