Resumo
No dia 1 de março de 2018, um grupo de ativistas trans publicou um vídeo em suas redes sociais simulando a queima de laudos psicológicos e psiquiátricos. O vídeo foi uma comemoração à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275. Curiosamente, a decisão foi muito diferente do pedido inicial da ação, feito em 2009. Busco no presente texto identificar as condições de possibilidade da decisão proferida no acórdão, para isso retraço as alterações científicas e jurídicas sem as quais a decisão não seria tomada da maneira como foi. Trata-se de uma pesquisa empírica interpretativa que toma como corpus os documentos do referido processo e fontes complementares.
Palavras-chave: Transexualidade; ADI 4275; Coprodução; Gênero; Estado; Ciência
Abstract
On March 1st, 2018, a group of trans activists published a video on their social networks sites simulating the burning of psychological and psychiatric reports. The video was a celebration of the decision of the brazilian Federal Supreme Court in the judgment of Direct Action of Unconstitutionality 4275. Interestingly, the decision was very different from the initial request for the action, made in 2009. I seek in this text to identify the conditions of possibility of the decision handed down in judgment, to that end I retrace the scientific and legal changes without which the decision would not have been taken the way it was. It is an empirical interpretative research based on the aforementioned legal process and complementary sources.
Keywords: Transsexuality; ADI 4275; Coproduction; Gender; State; Science
Às 19h56min do dia 1 de março de 2018 a então presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) Keila Simpson postou um vídeo em seu perfil do facebook. Nele, Keila aparece sentada a mesa de bar, ao lado das também ativistas trans Bruna Benevides, Megg Rayara e Simmy Larrat, segurando um papel rasgado e falando:
acabou o laudo. O aquézinho que você ganhava dando os seus laudos, não pode mais. Eles agora vão virar fogueira. Os laudos têm que ser queimados, virando fogueira. É fogueira com os laudos. Toca fogo no laudo. Você, psicólogo radical, que diz que ajuda as pessoas e não ajuda, aí, queimado agora. Decisão da suprema corte! [em coro] Não tem mais laudo! Não tem mais laudo [...] (SIMPSON, 2018).
Essa foi a maneira como algumas das ativistas trans com maior destaque no Brasil comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275. Vianna e Lowenkron (2017) nos alertam para uma dinâmica de duplo fazer do gênero e do Estado, ou seja, de que as lógicas sociais generificada que nos atravessam não seriam autônomas e existiriam “fora do Estado”. Tais lógicas teriam no Estado um agente central, que produz e/ou legitima categorias oficiais e modos de regulação de corpos e gêneros. A maneira como essas ativistas optaram por celebrar, fazendo uma queima simbólica de laudos, deixa bastante explícito esse duplo fazer. E mais, a comemoração revela também que a decisão marca uma reconfiguração da forma como gênero, ciência, direito e Estado se entrelaçaram até aquele momento. O julgamento autorizou a retificação de nome e gênero da pessoa transgênero1 de forma administrativa, direto no cartório e sem a necessidade de comprovação da transexualidade por qualquer meio que não seja a autodeclaração.
Curiosamente, o resultado do julgamento foi bastante distinto do pedido inicial das ações: a aplicação da interpretação conforme a constituição para reconhecer o direito das pessoas transexuais a retificar seu nome e gênero judicialmente sem a necessidade de realização de cirurgias de transgenitalização, desde que cumprissem alguns requisitos, dentre esses uma avaliação por profissionais da psicologia e medicina. Como, então, nesse interregno de quase dez anos que há entre a propositura da ação e a decisão, os laudos passaram de requisito necessário para algo que podia e deveria ser queimado? O que permitiu que as engrenagens da ciência, do gênero e do direito girassem e se encaixassem nesse novo formato?
Parte considerável da literatura empírica sobre o STF se tem dedicado à tarefa de analisar o comportamento judicial partindo do pressuposto de que haveriam razões não expressas na argumentação judicial que a explicariam. Assim, a indicação presidencial, a trajetória profissional, a instituição de origem da norma e outras variáveis têm sido exploradas como possíveis influenciadoras ou preditoras do comportamento judicial (ARAÚJO, 2017; FONTAINHA; JORGE; SATO, 2018; FONTAINHA; SANTOS; OLIVEIRA, 2017; OLIVEIRA, 2012; SILVA, 2018). Essas pesquisas são muito valorosas e me influenciam, mas meu objetivo aqui é um pouco mais modesto: pretendo identificar as condições de possibilidade da decisão proferida no acórdão da ADI 4275, isto é, as alterações científicas e jurídicas sem as quais a decisão não seria tomada da maneira como foi.
Há tempos sabemos que direito e ciência se entrecruzam e que mudanças no campo científico podem estimular mudanças jurídicas (JASANOFF, 1995), sabemos também que há uma relativa influência das cortes internacionais nas cortes domésticas (SIKKINK; WALLING, 2007). O interessante do caso da ADI 4275 é que nos permite observar de perto ambos aspectos entrelaçados. Não apenas houve uma mudança tanto científica quanto jurídica entre a propositura e o julgamento da ação, mas uma mudança grande ocorreu durante o julgamento. Este se iniciou no dia 07 de junho de 2017, oportunidade em que foi lido o relatório e foram ouvidos os amici curiae. Após isso, o julgamento foi suspenso e retornou em 28 de fevereiro de 2018.Nesse curto período de tempo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) proferiu um parecer consultivo que impactou o julgamento e alterou sua direção.
Metodologicamente, me insiro numa tradição de pesquisa empírica interpretativa das ciências sociais. Para realizar a análise pretendida me debrucei sobre os documentos do processo da ADI 4275 disponíveis no site do STF, especialmente a peça inicial da ação e o acórdão, tentando analisar os arranjos entre gênero, ciência e direito presentes nas argumentações jurídicas. Seja por estratégia, conhecimento técnico precário e/ou ingenuidade, frequentemente as partes do processo usam de citações científicas como uma forma de revelação da verdade sobre o mundo, ocultando ou negligenciando uma miriade de disputas científicas. Dessas “verdades” são derivadas consequências jurídicas normativas para o caso. É esse o movimento que busquei extrair das argumentações. Operacionalizei isso em três passos que, por questão de estilo, se misturam no texto. Primeiro, observei quais noções de transexualidade foram utilizadas. Segundo, identifiquei como essas noções foram justificadas, quais as fontes (livros/artigos acadêmicos, portarias, entrevistas) foram utilizadas. Terceiro, avaliei qual o papel que essas noções possuíram na justificação do resultado jurídico defendido na argumentação.
Mais do que contrastar a diferença nos arranjos e suas consequências, me interessou compreender como isso ocorreu. Para tanto, fiz uso de materiais variados como notícias, dados de tramitação da ação do portal do STF, outros documentos jurídicos, artigos, etc, que me auxiliaram na reconstrução do contexto do julgamento e das disputas científicas sobre a transexualidade. Me baseio principalmente em uma série de outras pesquisas empíricas que realizei anteriormente (COACCI, 2013a; 2018a; 2018b).
No que se segue, o texto se divide em duas grandes partes. Na primeira parte, busco apresentar o contexto em que a ADI 4275 é proposta, em 2009, tanto do ponto de vista dos debates jurídicos, quanto científicos sobre a transexualidade. Ao analisar o texto da inicial da ação perceberemos como essa está atravessada por concepções patológicas sobre a transexualidade que condicionam o raciocínio jurídico, estabelecendo critérios bem diferentes daqueles que foram posteriormente adotados pelo Supremo Tribunal Federal. Na segunda parte, apresento brevemente as mudanças jurídicas e científicas ocorridas no período entre 2009 e 2017, para em seguida, descrever o julgamento da ADI 4275. Comparo os votos do relator, Min. Marco Aurélio Mello, com o do Min. Edson Fachin para demonstrar como esses realizam diferentes encaixes entre gênero, ciência e direito, produzindo consequências diversas para as vidas das pessoas trans.
1. Quando os laudos ainda não eram queimados
A ADI 4275 foi proposta por Deborah Duprat em 21 de julho de 2009, durante os poucos dias em que ocupou o cargo de procuradora geral da república. Duprat, que já possuía uma estreita relação com ativistas e movimentos sociais brasileiros, refletiu essa proximidade no exercício do seu cargo, resultando na proposição de mais de 20 ações que influenciaram o cenário jurídico brasileiro2. A ADI 4275 foi uma dessas e constituiu uma resposta da Procuradoria Geral da República (PGR) à demanda apresentada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) à PGR3. Naquele momento, pessoas trans por todo o país já demandavam o poder judiciário, em primeira e segunda instâncias, para retificar seu nome e gênero há alguns anos. Há relatos documentados dessa demanda desde pelo menos a década de 1970, mas ela se intensifica nos anos 2000 (COACCI, 2018a; VECCHIATTI, 2019; VENTURA, 2010, p. 126). Todavia, como não havia uma legislação explícita regulando o caso, frequentemente o processo ocorria de forma violenta, obrigando as pessoas trans a se submeter à avaliações psiquiátricas, a provar por diversos meios a “realidade” de seu gênero e, algumas vezes, até a realizar perícias médicas para comprovação de cirurgias. Os movimentos sociais de pessoas trans desejavam alterar essa situação.
Do ponto de vista jurídico, o debate na época se dividia em dois eixos principais: sobre a possibilidade jurídica do pedido de retificação4; e sobre os requisitos necessários para o acesso ao direito. Existiam diversos entendimentos em relação à possibilidade jurídica. O primeiro, daqueles que julgavam ambas as retificações impossíveis, extinguindo a ação sem julgamento de mérito (COACCI, 2013b, p. 48-51). Esse entendimento que já fora mais comum em décadas anteriores, estava pouco a pouco cedendo espaço para uma posição mais matizada da situação. A possibilidade de retificação de nome se tornava quase um consenso, entretanto a retificação de gênero ainda sofria forte resistência por grande parte dos magistrados (COACCI, 2013a; VENTURA, 2010). A diferença de tratamento entre a retificação de nome e de gênero era tal que alguns advogados criaram estratégias como ingressar primeiramente com uma ação pedindo exclusivamente a retificação de nome, que tinha uma resposta geralmente positiva e relativamente ágil, para posteriormente ingressar com outra ação solicitando a retificação do gênero5.
Se a possibilidade jurídica do pedido causava dissidências e fazia emergir distintas posições, as exigências para o acesso ao direito eram ainda mais variadas. Como Coacci (2013b), Freire (2016), Lima (2015) e Teixeira (2013) perceberam, tais julgamentos eram marcados por uma busca incessante de construção de uma narrativa da verdadeira transexualidade e que era materializada através da apresentação de fotos, cartas, certidões negativas, testemunhos de familiares e amigos de longa data, entrevista com a própria pessoa e laudos e mais laudos de diversas especialidades médicas, da psicologia e até de assistentes sociais. Cada magistrado poderia exigir um certo número desses documentos para o seu convencimento, mas dois se mostraram essenciais para a maior parte dos julgamentos: o laudo psiquiátrico diagnosticando a transexualidade (CID F-64.0) e o laudo médico comprovando a realização da cirurgia de transgenitalização.
Tanto a possibilidade jurídica do pedido, quanto os critérios exigidos para se acessar o direito, se encontravam diretamente ligados à maneira como a transexualidade era compreendida, mesmo que às vezes de maneira pouco rigorosa, pelos magistrados e pela ciência hegemônica: como uma espécie de patologia mental. Márcia Arán sintetizou bem o pensamento científico sobre a transexualidade do período:
Nas diversas teorias que abordam esta questão parece haver um aspecto consensual: o de que na transexualidade haveria uma incoerência entre sexo e gênero. O discurso atual sobre o transexualismo na sexologia, na psiquiatria e em parte na psicanálise faz desta experiência uma patologia - um "transtorno de identidade" dada a não-conformidade entre sexo biológico e gênero. Por outro lado, ele também pode ser considerado uma psicose devido à recusa da diferença sexual leia-se, da castração dita simbólica (ARÁN, 2006, p. 50).
A busca judicial por encontrar a verdadeira transexualidade era partilhada com os saberes científicos sobre a transexualidade e algo que demonstra o alto grau de entrelaçamento e coprodução do gênero, da ciência e do direito. Os cientistas que se dedicavam a estudar a transexualidade buscaram, incessantemente, meios de refinar os critérios diagnósticos, pois tinham a consciência de que isso funcionaria como uma porta de acesso às cirurgias de transgenitalização e à retificação de nome e gênero. Dessa maneira, acreditavam que era seu papel selecionar rigorosamente quem merecia acessar tais direitos6. Tais critérios e saberes se institucionalizaram internacionalmente nas principais classificações médico-psiquiátricas como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)7.
Esses saberes também instruíram a maneira como o processo transexualizador se estruturou como política pública no Brasil em 2008, um ano antes da proposição da ADI 4275. Tal política pública foi fruto de um processo que envolveu ações judiciais contra o Estado, buscando reconhecer a sua obrigação de oferecer atendimento à saúde das pessoas trans, assim como resultou de diálogos e negociações entre ativistas trans, pesquisadoras e gestores do Ministério da Saúde (TENENBLAT, 2014). Seu formato final, baseado numa perspectiva biomédica e tendo a cirurgia de transgenitalização como eixo central, foi fortemente influenciado pelo DSM e pela Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1651/2002, que regulamentava a realização dessas cirurgias no Brasil.
É nesse contexto que a ADI 4275 se insere, buscando alterá-lo. O objetivo da ação contido na inicial, então, é que seja aplicada a técnica da interpretação conforme a Constituição ao art. 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6015/73) para reconhecer o direito de retificação de nome e gênero das pessoas transexuais, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização. É importante destacar que, naquele momento, a ação restringia explicitamente o seu alcance ao que entendia como pessoas transexuais, em oposição a homossexuais e travestis (BRASIL, 2018 - §§7 a 9 da inicial)8; e também não havia pedido explícito para que a retificação ocorresse administrativamente.
Seja por algum tipo de raciocínio estratégico na elaboração da peça ou seja pelo fato de que esse era o conhecimento disponível a Débora Duprat naquele momento, a inicial está profundamente atravessada pelos saberes que patologizam a transexualidade. A apresentação dos conceitos de transexualidade que fundamentam o raciocínio se encontra entre os parágrafos 3 a 10 da peça inicial. Não obstante afirmar haver duas abordagens não excludentes entre si, é a biomédica que prevalece para a definição da transexualidade e não a social. O conceito oferecido é retirado do DSM-IV, de obras de psiquiatria e de alguns textos jurídicos que, por sua vez, ecoam o saber médico-psiquiátrico9. Assim, a transexualidade era compreendida como um transtorno mental caracterizado por “tentativas de se passar por membro do sexo oposto na sociedade e de obter tratamento hormonal e cirúrgico para simular o fenótipo do sexo biológico oposto” (KAPLAN; SADOCK, 1999 apud BRASIL, 2018 - §4 da inicial). Esse tipo de fenômeno ainda seria diferenciado da homossexualidade e do travestismo. Os trechos citados operariam essa diferença explicando que o homossexual teria “uma orientação sexual diferente da esperada para seu sexo e gênero” (LIMA, 2007 apud BRASIL, 2018 - $8º da inicial). Já para travestis são apresentadas duas definições, ligeiramente diferentes entre si, que se distinguiriam da transexualidade pela presença da ambiguidade de gênero e pela ausência do sofrimento relacionado a sua genitália.
Dado que pessoas transexuais existem e que a ciência comprovaria isso, o próximo passo da peça é construir uma argumentação pela existência do direito de retificação de nome e gênero e pela desnecessidade da cirurgia de transgenitalização. A estratégia adotada foi conjugar: uma argumentação filosófica que apresenta a autonomia da pessoa para determinar o desenvolvimento de sua personalidade como requisito para a concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana; com elementos de direito comparado alemão, em especial, com menções à Transsexuellengesetz - TSG10, lei alemã que regulamenta a retificação de nome de pessoas transexuais, e o julgamento do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerfG), de julho de 2006 (1 BvL 1/04, 1 BvL 12/04)11, que julgou inconstitucionais os artigos da TSG que exigiam a realização de cirurgia de transgenitalização. Assim, são a condição transexual e a autonomia da pessoa sobre si que garantiriam o direito à retificação, de modo que o direito não derivaria da realização da cirurgia, nem poderia ser condicionado a ela.
Além disso, a TSG alemã serviu para oferecer os parâmetros de como regulamentar o direito de retificação de nome e gênero no Brasil. É dessa legislação que são retirados os critérios propostos para se adotar por aqui com vistas à realização da retificação de nome e gênero nos casos em que a pessoa transexual não se submeteu a cirurgia. São eles:
pessoas a partir de 18 anos de idade, que se encontram há pelo menos três anos sob a convicção de pertencer ao gênero oposto ao biológico, e seja presumível, com alta probabilidade, que não mais modificarão a sua identidade de gênero, requisitos que devem ser atestados por um grupo de especialistas que avaliem aspectos psicológicos, médicos e sociais (BRASIL, 2018 - §32 da inicial).
Não por acaso, tais critérios são bastante similares aos adotados pelas normas internacionais para o diagnóstico de transexualismoe também os utilizados pela Resolução CFM de 2002 para selecionar pacientes para a cirurgia de transgenitalização. Vejamos:
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1. Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2. Maior de 21 (vinte e um) anos;
3. Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2002)
Como foi demonstrado, a peça inicial de Duprat é fruto de sua relação com ativistas e movimentos sociais, busca alterar a situação jurídica das pessoas trans consolidando o direito de retificação de nome e gênero e facilitar seu acesso ao dispensar a necessidade da realização de cirurgia de transgenitalização. A forma como faz isso, no entanto, dá continuidade a um entrelaçamento entre o Direito e determinados discursos científicos sobre a transexualidade. Nesse encaixe, a patologização da transexualidade tem servido como a chave que permite o acesso ao direito. A peça buscou um avanço, sem dúvidas, mas que, se houvesse sido alcançado em seus próprios termos, teria condenado as pessoas transa permanecer na dependência da chancela de terceiros, em especial do saber médico, para dizer a verdade sobre seu gênero. De toda maneira, isso não foi o que ocorreu.
2. A queima dos laudos. Reconfigurações jurídicas e científicas
De 2009 até 2017, ano em que o julgamento se iniciou, muita coisa mudou. Esse foi um período de reconfigurações intensas do gênero em nossa sociedade, dos saberes científicos a seu respeito e também das relações entre ciência, gênero e Estado.
Primeiro, o cenário científico era outro. Segundo mapeamento que pude realizar em outra oportunidade (COACCI 2018b) desde meados da década de 2000, o número de trabalhos acadêmicos sobre pessoas trans vinha crescendo no Brasil e há na década de 2010 uma expansão sem paralelo de artigos, dissertações e teses publicados sobre o tema. Não só o número de trabalhos se alterou, mas também os temas de pesquisa e os enquadramentos. Em 2009 eram raros os trabalhos que questionavam o fato de as experiências trans serem consideradas uma patologia mental12, mas na década seguinte, esse se tornou um tema amplamente discutido nas universidades e até em outras arenas de debate, no país e fora, em função da atuação dos movimentos sociais de pessoas trans, de pesquisadores principalmente vinculados às ciências humanas e também do próprio ciclo de revisão da CID.
A despatologização da transexualidade se tornou uma possibilidade alcançável com a abertura dos debates para a produção da CID-11. Ativistas de todo o mundo se organizaram para atuar no Grupo de Trabalho sobre Transtornos Sexuais e Saúde Sexual, argumentando pela manutenção da transexualidade na classificação, mas não como uma condição patológica (BENTO; PELÚCIO, 2012; REED et al., 2016). Reconhecendo os vínculos entre saberes médico-psi e direitos, surgiram também algumas propostas estratégicas de jogar com os poderes conferidos àqueles sem esperar uma alteração nos sistemas classificatórios internacionais. Nesse sentido, Beatriz Bagagli(2016) propôs esvaziar os laudos de seu sentido de verdade e encará-los como um instrumento para as pessoas trans. Isto por entender a relevância do laudo psiquiátrico e psicológico como acesso à cirurgia de transgenitalização e também ao direito de retificação.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) foi uma das principais e mais rápidas instituições brasileiras a reagir ao debate sobre a despatologização e, em determinados momentos, até mesmo protagonizá-lo. Além de uma série de debates em âmbito estadual e federal, em 2013, produziu a Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans que explicitamente afirma considerar que a “transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013). Em dezembro de 2017, o CFP avançou ainda mais e decidiu pela publicação de uma resolução regulando o atendimento à pessoas travestis e transexuais, bem como vedando a realização de terapias de conversão. A publicação ocorreu em janeiro de 2018 (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).
Essas mudanças se deram sempre na zona de atrito entre gênero, ciência e direito. Mesmo que de forma não tão explícita, os julgamentos também foram se alterando. As referências aos conhecimentos científicos que patologizam a transexualidade, que antes reinavam incontestes nas peças jurídicas, abriram espaço para uma pluralidade maior de referências ou até mesmo, em raros casos, uma predominância de obras com perspectivas não-patologizantes. Houve também o relaxamento de alguns requisitos exigidos para a retificação de nome e gênero. A comprovação da realização da cirurgia de transgenitalização deixou de ser exigida por um número considerável de magistrados, principalmente para a retificação de nome e em menor grau para o gênero (NELSON et al., 2019). Essa posição foi afirmada durante a I Jornada de Direito da Saúde, organizada pelo Conselho Nacional de Justiça para debater alguns dos principais temas da área e produzir enunciados, sem força normativa, para orientar a comunidade jurídica13.
Mesmo o laudo psiquiátrico, em algumas localidades, já não era mais um requisito obrigatório. Um exemplo pioneiro e de grande sucesso foi o trabalho feito em Porto Alegre que substituiu os laudos psiquiátricos por pareceres psicológicos nos mutirões de retificação realizados pelo Serviço de Atendimento Jurídico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS) (LENTZ, 2013). Além de ser um documento produzido por um psicólogo e não um psiquiatra, a opção por um parecer e não um laudo trazia uma perspectiva menos patologizante e mais ágil, uma vez que não exigia os vários anos de avaliação psicológica14.
Outro sinal pioneiro foi a solicitação, em 2016, perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Pedido de Providências 0005184-05.2016.2.00.0000. Na inicial deste, a Defensoria Pública da União (DPU) requisitou que o CNJ orientasse os cartórios a retificar o nome e o gênero das pessoas trans independente de judicialização e da comprovação da cirurgia de transgenitalização (DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, 2016)15. Apesar do pedido focar exclusivamente na dispensa da cirurgia, fica subentendido que não poderia ser exigida uma forma de comprovação da transexualidade, além da autodeclaração. A argumentação jurídica foge do padrão apresentado na seção anterior, não oferecendo um debate sobre a ciência da patologização da transexualidade.
O próprio STF foi provocado a decidir sobre a retificação de nome e gênero em outra ação: o Recurso Extraordinário 670422, interposto em 2012 pela advogada Maria Berenice Dias16. Tal ação se diferencia da ADI por se tratar de recurso em um caso concreto e, assim, os efeitos da decisão se restringem exclusivamente àquele julgamento. Em 2014, o STF reconheceu a repercussão geral dessa ação, em uma decisão monocrática que já indicava uma aceitação da tese, ao menos para o relator. Além disso, o julgamento do RE se intercalou com o da ADI 4275. No dia 22 de novembro de 2017, o recurso foi a julgamento e obteve votos favoráveis de cinco ministros. Por solicitação do Ministro Marco Aurélio Mello, o julgamento foi suspenso e só seria concluído após o julgamento da ADI 4275. Isso, por si só, já era um indício positivo.
É nesse contexto um tanto fervilhante que se inicia o julgamento da ADI 4275. O primeiro a votar foi o Ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação. Seu voto concedeu parcialmente o pedido da inicial, autorizando a retificação judicial sem a realização da cirurgia. O raciocínio desenvolvido se assemelha ao da peça inicial, com a influência de saberes que patologizam a transexualidade, mas de forma menos explícita uma vez que não há citações diretas de textos e manuais psiquiátricos. Logo no início de seu voto, Mello alerta sobre a necessidade de esclarecer a terminologia que envolve o caso e segue distinguindo a homossexualidade, a transexualidade e a travestilidade de maneira bastante similar à feita por Duprat. A definição específica de transexualidade que utiliza é a oferecida por Maria Berenice Dias:
A transexualidade é uma divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e morfológicas perfeitas que associam o indivíduo ao gênero oposto. [...] Existe uma ruptura entre o corpo e a mente, o transexual sente-se como se tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita (DIAS, 2014 apud BRASIL, 2018, p. 11).
Esse curto-circuito entre sexo e gênero presente na condição transexual promoveria o sofrimento nas pessoas, o que legitimaria as cirurgias de transgenitalização e também justificaria o direito de retificação de nome e gênero. Mesmo que essa maneira de compreender a transexualidade talvez não a coloque explicitamente na ordem do patológico, ao menos a coloca na ordem do desvio e permanece no campo da cisnormatividade, como definido por Vergueiro (2018), uma vez que há a presença clara da premissa de que determinados genitais levariam natural e normalmente a determinadas identificações de gênero.
Além disso, Mello segue Duprat em relação aos critérios para a retificação, transpondo-os da resolução do CFM que regula o processo transexualizador para o mundo jurídico da retificação de nome e gênero, agora em sua versão atualizada. Dessa maneira, atrela definitivamente a patologização como critério necessário para o acesso ao direito de retificação:
A alteração do assentamento de pessoa não submetida à transgenitalização deve ser condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos: (i) idade mínima de 21 anos - cumpre esclarecer, neste ponto,não estar em jogo a maioridade civil, alcançada, nos termos do Código Civil de 2002, aos 18 anos, mas, sim, a maturidade adequada para a tomada de decisão; e (ii) diagnóstico médico de transexualismo, consoante os critérios do artigo 3o da Resolução no 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina, por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto (BRASIL, 2018, p. 15).
É com o voto de Fachin que há uma virada no julgamento. O Ministro foi o terceiro a votar, imediatamente após o Ministro Alexandre de Moraes que, em grande medida, seguiu Marco Aurélio Mello. Fachin lembra que o tema daquele julgamento é muito similar ao do RE 670.422, mas que haveria um fato superveniente que teria alterado o seu entendimento: a emissão pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) do Parecer Consultivo OC-24/17, em 24 de novembro de 2017. Tal fato o obrigaria a ir além da interpretação constitucional e realizar também uma interpretação de adequação ao Pacto de San José da Costa Rica.
A Corte IDH pode ser consultada pelos estados membros sobre a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e outros tratados de direitos humanos (art. 64.1 da CADH). No caso, a República da Costa Rica solicitou que a Corte respondesse: (i) se os estados deveriam reconhecer e facilitar a retificação em função da identidade de gênero; (ii) se a via judicial poderia ser a única pelo qual esse procedimento é autorizado; e (iii) se o tratamento já previsto na legislação local seria adequado ou se o Estado deveria prover um mecanismo administrativo, rápido e gratuito. A resposta da Corte IDH, consolidada na OC 24/2017, interpretou a CADH de forma a afirmar que os Estados têm o dever de reconhecer e oferecer proteção legal à identidade de gênero autopercebida das pessoas, nos seguintes termos:
Os Estados devem garantir que as pessoas interessadas na retificação da anotação do gênero ou, se este for o caso, às menções do sexo, em mudar seu nome, adequar sua imagem nos registros e/ou nos documentos de identidade, em conformidade com a sua identidade de gênero autopercebida, possam recorrer a um procedimento ou um trâmite: a) enfocado na adequação integral da identidade de gênero autopercebida; b) baseado unicamente no consentimento livre e informado do requerente, sem exigir requisitos como certificações médicas e/ou psicológicas ou outras que possam ser irrazoáveis ou patológicas; c) deve ser confidencial. Além disso, mudanças, correções ou adequações nos registros e nos documentos de identidade não devem refletir mudanças de acordo com a identidade de gênero17; d) deve ser expedito e, na medida do possível, deve ser gratuito, e e) não deve exigir a acreditação de operações cirúrgicas e/ou hormonais. O procedimento que melhor se adapta a estes elementos é o procedimento ou trâmite materialmente administrativo ou cartorial. Os Estados podem fornecer, ao mesmo tempo, um canal administrativo que permita a eleição da pessoa, nos termos estabelecidos nos pars. 117 a 161 (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017b, p. 81).
A decisão da Corte IDH convenientemente aborda os diversos aspectos em debate no julgamento da ADI 4275 e oferece três importantes contribuições para Fachin: (a) um modelo de argumentação que não depende da conceituação de transexualidade, mas de identidade de gênero; (b) a legitimidade institucional para decidir extrapolando o pedido original da PGR e abandonando os critérios do CFM; e (c) parâmetros concretos e bastante detalhados de como o Estado deveria regulamentar as retificações de nome e gênero em função da identidade de gênero.
O voto de Fachin destoa bastante dos de seus colegas. Não há nenhuma tentativa de explicação do que seria a transexualidade ou a transgeneridade18. No lugar, é o conceito de identidade de gênero que ganha centralidade e uma versão bastante específica desse. Não a versão que foi criada originalmente pela ciência que patologiza a transexualidade, mas uma que remete aos princípios de Yogyakarta e à literatura crítica da patologização da transexualidade. Essa não é uma virada banal. Esse enquadramento não se baseia no pressuposto cissexista de uma figura transexual doente ou em sofrimento como fonte do direito, mas na autonomia de cada pessoa para definir sua identidade de gênero, elemento da personalidade de todas as pessoas. Trata-se também de uma proposta que altera a maneira como esse duplo fazer do gênero e do Estado vinha ocorrendo, o que Fachin parece estar muito ciente:
Tais obrigações se justificam na medida em que a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Ademais, se ao Estado cabe apenas o reconhecimento, é-lhe vedado exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico que exijam do indivíduo a assunção de um papel de vítima de determinada condição (BRASIL, 2018, p. 38).
A proposta de Fachin causou polêmica e debate no plenário. Todos que se pronunciavam afirmavam que parecia haver um consenso sobre a desnecessidade da cirurgia, mas os ministros Lewandowski e Marco Aurélio Mello questionaram se a melhor forma de regulamentar seria pela via administrativa, defendendo a permanência da via judicial por meio da jurisdição voluntária. A posição de Fachin foi seguida pela maioria dos ministros (Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux19, Celso de Mello e Cármen Lúcia, respectivamente), mesmo que sob fundamentos distintos e algumas argumentações, como a de Rosa Weber, que paradoxalmente se utilizaram da definição da transexualidade como patologia, mas logo em seguida abriram mão dos laudos como critério exigível para a retificação. Pelo menos para a retificação do nome e do gênero, os laudos podiam agora ser queimados.
Conclusões
Ao longo do texto, busquei retraçar algumas variações internas aos discursos jurídicos e científicos sobre a transexualidade, demonstrando como diferentes encaixes têm produzido distintos resultados concretos. Desde a década de 1970, pelo menos, os saberes científicos que consideram a transexualidade como uma patologia têm sido utilizados como mediadores da relação das pessoas trans com o Estado, seja para negar ou para conceder determinados direitos. Essa relação obrigava as pessoas trans a se submeter a um ritual extenuante de performar um gênero segundo critérios altamente arbitrários, perante uma equipe de profissionais, para conseguir um laudo e, depois, novamente, perante um juiz para ter esse laudo chancelado judicialmente.
Argumentei que a decisão do STF na ADI 4275 representa uma virada, uma nova forma de relacionamento entre gênero, ciência e direito. O julgamento ocorreu em um momento em que a certeza da patologização já se encontrava abalada e outros discursos científicos se fortaleciam institucionalmente, tanto internacionalmente quanto em nosso país. Além disso, a decisão da Corte IDH na OC-24/17 ofereceu uma camada extra de legitimidade institucional para essa abordagem jurídica, assim como critérios objetivos de como a retificação de nome e gênero deveria ser realizada. Demonstrei isso a partir de uma análise da ADI, em especial dos votos dos Ministros Marco Aurélio Mello e Edson Fachin.
A forma como operei essa análise, em consonância com a provocação de Vianna e Lowenkron (2017), buscou evitar o congelamento seja do gênero, seja do Estado. O gênero tem se mostrado um elemento central de organização da nossa vida social, de direitos e políticas e não por acaso é altamente regulado. Nesse sentido, a história da transexualidade é, de certa maneira, inseparável de uma história do Estado, uma vez que essas pessoas disputam a forma como a sociedade e o Estado classificam as pessoas em diferentes gêneros, bem como os sentidos atribuídos à esses. Os processos sociais e estatais de classificação de gênero produzem as pessoas trans enquanto um grupo distinto das pessoas cisgênero e que devem ocupar uma posição social subalterna. Isso quer dizer que própria distinção entre pessoas cis e trans só faz sentido dentro desse sistema classificatório em que o Estado e a ciência possuem papeis centrais.
A demanda pela retificação de gênero aceita e reencena esse liame entre gênero e Estado, em que o esse tem o poder de chancelar a realidade do gênero de determinada pessoa. Todavia, essa demanda também produz Estado ao provocar uma transformação nesses processos de classificação e legitimação do gênero das pessoas. Um processo de fazer Estado que se corporifica em decisão judicial, normativas e chega até a ponta da burocracia guiando a ação dos funcionários dos cartórios. Esse talvez seja um dos exemplos mais explícitos de coprodução do gênero e do Estado, mesmo que não haja uma relação simétrica de influência entre esses.
Dessa maneira, as transformações narradas até aqui não mostram um rompimento com a lógica do duplo fazer do gênero e do Estado, apenas uma nova etapa. Como Foucault (2008) já nos lembrou há algumas décadas, liberdade e controle não são opostos. Liberdade pode, inclusive, ser uma das tecnologias de controle. O levantamento das barreiras judiciais para a retificação de nome e gênero permitirá que um número de pessoas ainda maior tenha seu gênero reconhecido - e controlado - pelo Estado. Além disso, essa mudança nos critérios classificatórios implicará em adaptações dos processos de Estado que dependem, mais ou menos explicitamente, do gênero e que ainda não estão muito claros de que maneira se reformularão como, por exemplo, aposentadorias, cumprimento de penas privativas de liberdade em presídios e até a titularidade preferencial do bolsa família.
A continuidade desse entrelaçamento entre gênero e Estado, mesmo sem possuir a patologização como liga, não seria sem contradições. Como a pesquisadora e ativista transfeminista Caia Coelho (2020) argumenta: a retificação administrativa de nome e gênero é um remendo à lógica cisgênera e uma sofisticação da uma violência do Estado que marca a vida das pessoas trans. Realizar a retificação, de certo modo, seria reconhecer que até aquele momento seu nome e seu gênero foi aquele que consta nos registros do Estado e isso seria violento.
Por fim, é preciso reconhecer que a minha opção metodológica de focar no contexto e na argumentação jurídica, no entanto, contribui apenas até certo limite, deixando algumas lacunas para trabalhos futuros. Seria interessante uma pesquisa que, na perspectiva do que vem sendo chamado de mobilização do direito (LOSENKANN; BISSOLI, 2017), investigasse os acontecimentos menos visíveis e que influenciaram esse julgamento, por exemplo, a partir de entrevistas com ativistas, Ministros, amici curiae e outros personagens. Além disso, talvez a principal agenda de pesquisa da atualidade seja analisar a forma como esse julgamento tem se materializado em práticas de Estado e afetado a vida das pessoas trans, na esteira do que Gabriela F. da Maia (2019) vem fazendo.
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1
Utilizo aqui “pessoa transgênero” como termo nativo do discurso jurídico da decisão analisada, todavia, é importante ressaltar que há na literatura especializada e no ativismo uma longa disputa sobre as categorias e identidades para se referir a essas pessoas. Para mais informações sobre tais disputas, ver Barbosa (2013) e Carvalho (2011).
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Apenas para exemplificar podemos mencionar a ADI 4277 sobre as uniões estáveis de pessoas de mesmo sexo e seu parecer favorável na ADPF 54 sobre aborto de anencéfalos.
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A inicial traz como anexo os ofícios de ambas as associações formalizando a demanda. Provavelmente há uma história de mobilização e diálogos anterior à formalização por meio do ofício e que, infelizmente, se perde em pesquisas documentais como a presente.
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4
O pedido de retificação do registro civil é aquele que busca a correção ou alteração de determinada informação constante em tal documento. A retificação judicial está prevista no art. 109 da Lei 6015/1973. No caso das pessoas trans, o pedido frequentemente tem como objeto a retificação do gênero e/ou do prenome, ou seja, aquele(s) nome(s) que antecede(m) os nomes de família.
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5
Essa estratégia também foi motivada por um conflito de competência entre varas de família e varas de registro público que ocorreu em alguns estados. Não havia consenso sobre onde essas ações deveriam ser julgadas. Em alguns estados do país, como em Minas Gerais, as varas de registro público aceitavam ações exclusivamente sobre retificação de nome, mas a retificação de gênero seria competência das varas de família por se tratar de uma “mudança de estado” da pessoa natural. Assim, abria-se um leque de estratégias para se beneficiar das diferenças entre as varas.
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6
Já na década de 1980 Robert Stoller, um dos pesquisadores pioneiros sobre a transexualidade, se dizia preocupado com a “atmosfera ‘festiva’ e inconsequente que predomina no manejo do transexualismo masculino” (STOLLER, 1982, p. 249). Esse pesquisador via com bastante restrições a indicação para a cirurgia de transgenitalização, reservando essa apenas à pessoas corretamente diagnosticadas como transexual verdadeiro.
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7
Para uma análise detalhada do processo de institucionalização dos saberes sobre a transexualidade na CID e no DSM e de suas mudanças, ver Bento (2008, p. 75-94) e Coacci (2018b, p. 56-91).
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8
Pelo fato de a ABNT não possuir uma forma para referenciar documentos que integram o processo judicial, além do acórdão, e em razão de o documento em questão possuir múltiplas paginações (a impressa no documento original e duas feitas pelo STF), opto por desviar um pouco das normas padrões e utilizar a numeração dos parágrafos presente na própria peça para me referir aos trechos. Espero, assim, evitar possíveis confusões.
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9
Veja, por exemplo, a citação do livro Antropologia e Direito de Lima (2007), no parágrafo 8 da peça, que diferencia transexual e travesti a partir da rejeição da genitália e da busca pela cirurgia. Como mostrado por Barbosa (2013) e Coacci (2018b) essa conceituação espelha os critérios diagnósticos presentes na CID e no DSM.
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10
Desde o ano de 1980 a Alemanha possui uma legislação que garante o direito de retificação de nome para pessoas trans, a Gesetz über die Änderung der Vornamen und die Feststellung der Geschlechtszugehörigkeit in besonderen Fällen, chamada de forma resumida de Transsexuellengesetz ou só TSG. Disponível em: <https://www.gesetze-im-internet.de/tsg/BJNR016540980.html> Acesso em 04.02.2020.
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11
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12
Apesar de raro, já existia marginalmente algumas pessoas como Berenice Bento (2003) e Márcia Arán (2006) protagonizando o debate sobre a despatologização da transexualidade no Brasil.
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13
ENUNCIADO N.º 42 - Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil. ENUNCIADO N.º 43 - É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014, p. 9)
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14
Segundo a Resolução CFP nº 07/2003 que regulamentava a elaboração de documentos por psicólogos, o Parecer se difere do Laudo ou Relatório Psicológico por não ser um documento produzido a partir de uma avaliação psicológica. O parecer é uma resposta especializada à uma questão pertencente ao campo da psicologia. No caso concreto, os pareceres argumentavam que a transexualidade não é uma patologia, mas que o não reconhecimento dessas identidades pelo Estado provocava sofrimento.
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15
Tal pedido foi aproveitado pelo CNJ para regulamentar a decisão do STF na ADI 4275. Assim, no dia 28 de junho de 2018, alguns meses após a decisão, o CNJ publicou o Provimento 73 que estabelece os critérios segundo os quais os cartórios devem realizar a retificação administrativa de nome e gênero de pessoas trans.
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16
O processo tramita em segredo de justiça, assim, não é possível acessar a peça inicial, nem o acórdão.
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17
O texto em português da tradução oficial dessa frase ficou um pouco confusa e pode levar a interpretações equivocadas. A versão original em espanhol é: “Además, los cambios, correcciones o adecuaciones en los registros, y los documentos de identidad no deben reflejar los cambios de conformidad con la identidad de género” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017a, p. 87)
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18
O voto inicial de Fachin faz uso do termo pessoa transexual, sem defini-lo. Fachin, todavia, faz uma retificação oral ao seu voto, após ser questionado pelos advogados Maria Berenice Dias e Paulo Iotti, e passa a substituir o termo pessoa transexual por pessoa transgênero. Como o debate jurídico anterior distinguia travestilidade de transexualidade, havia dúvidas sobre o alcance dessa decisão para pessoas identificadas como travestis. Por influência dos advogados mencionados, Fachin passa a adotar o termo pessoa transgênera, considerando-o como um termo englobante para as diversas identidades trans, assim não excluindo as travestis do direito de retificação. Para mais informações sobre a história do termo transgênero e sua recepção no Brasil ver Barbosa (2015).
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19
O voto de Fux presente no acórdão se difere do proferido oralmente. Pela leitura exclusiva do acórdão, não fica claro que esse ministro segue os termos propostos por Fachin. Além disso, o acórdão não traz a transcrição do debate que Fux travou com o Min. Marco Aurélio Mello sobre se a exigência de ação judicial seria uma condição arbitrária ou não para a retificação, oportunidade em que lembra que a decisão da Corte IDH explicitamente exige o procedimento administrativo. O voto proferido oralmente pode ser visto no canal do youtube do STF. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sRhdrUUaYMg> acesso em: 03.02.2020
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2020
Histórico
-
Recebido
18 Abr 2020 -
Aceito
22 Abr 2020