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Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial

Tropicalist legal geography: the critique of legal-spatial materialism

Resumo

Tendo em vista situações concretas que colocam desafios materialistas à teoria do direito, apresentamos e discutimos questões que fundamentalmente afetam a compreensão do fenômeno jurídico, a partir de uma formulação-teste: a forma-jurídica tem configurado os aspectos da nossa existência a partir de certas imagens do espaço que tendem a forjar – de forma acoplada, historicamente, à inflexão da economicização de todas as esferas da vida – a compreensão do jurídico como algo unitário e não ubíquo, difuso e disputado socialmente. O trabalho está estruturado em três espaços-tempo. Primeiro, discutimos a co-constituição entre direito e espaço nas linhas que aproximam teoria jurídica crítica e as teorias da produção da espacialidade. Em seguida, apresentamos o giro espacial das abordagens jurídicas, nos caminhos que vêm sendo construídos pela Geografia Jurídica Crítica para então apostar em uma teoria do direito “sem vestes”, discutindo os compromissos principais e as vantagens epistêmicas do materialismo jurídico-espacial. Ao final, aproximamos esses espaços-tempos a abordagens atuais do campo teórico brasileiro.

Palavras-chave:
Giro espacial; Geografia jurídica crítica; Materialismo; Teoria do direito

Abstract

This paper presents and discusses issues that fundamentally affect the understanding of the legal phenomenon, given concrete situations that pose materialistic challenges to the Legal Theory, from a test-formulation: the legal-form has shaped aspects of our existence from certain images of space that tend to forge - historically coupled with the inflection of economization in all spheres of life - the understanding of the legal as something unitary and not ubiquitous, diffused and socially disputed. The work is structured in three spacetime. First, we discuss the co-constitution between law and space along the lines that bring together Critical Legal Theory and theories of spatial production. Then we present the spatial turn in law, in the ways that have been constructed by the Critical Legal Geography, to then propose a “disrobed theory”, discussing the main commitments and the epistemic advantages of the legal-spatial materialism. In the end, these spacetimes are approximated to current approaches of the Brazilian theoretical field.

Keywords:
Spatial turn; Critical legal geography; Materialism; Legal theory

1. A reação contra o direito vestido1 1 Este artigo retoma reflexões desenvolvidas nas especulações fabulativa da minha tese de doutorado, defendida em março de 2018, sobretudo no que diz respeito às apostas epistêmicas atreladas à virada espacial no trabalho teórico-prático com o direito e suas repercussões de forma e de conteúdo para pesquisa jurídica. Ver: FRANZONI, Julia Ávila. “O direito & o direito: estórias da Izidora contadas por uma fabulação jurídico espacial.” Tese, Universidade Federal de Minas Gerais, 2018. Agradeço à Giovanna Milano e ao Victor Marques pela leitura atenta da versão preliminar deste texto, interlocução crítica e sugestões que contribuíram definitivamente para o amadurecimento de algumas ideias e para continuação do debate em relação a tantas outras.

‘O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior’2 2 ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e outros textos (Grandes Ideias). São Paulo, SP: Penguin-Companhia, 2017. . Em sua reação ao homem vestido, importador de consciência enlatada que concebe o espírito sem corpo, o Manifesto Antropofágico pregava a prática da existência palpável da vida. A ‘transfiguração do Tabu em totem’, conta do roteiro em que nós, caraíbas, fazemos despertar o direito sonâmbulo “devorando”, para rejeitar, sua versão estrambólica dos manuais de catequese. A rejeição tropicalista é também regurgitação que devolve o que foi devorado como realidade sem complexos e sem loucura. Este processo de absorção do ‘inimigo sacro’, denominado no Manifesto de ‘homem vestido’, trata de desnudá-lo, deixando-o sem vestes, sem o impermeável que insiste em manter o dualismo ilusório entre o que está dentro e o que está fora. Afinal, como querem os materialistas, tudo é desse mundo. Expondo o homem vestido às intempéries, os mundos não datados e sem donos registrados em cartório podem emergir.

A pergunta sobre o que é o direito foi a que levou à morte antropofágica o personagem “Galli Mathias”, contada no Manifesto. Esse questionamento de cunho essencialista esconde parte da armadilha do direito vestido, hermético e confuso, cujas fronteiras e etiquetas têm servido para construir, ideologicamente, os limites que separam o direito das outras coisas. O direito separado da política e da moral; o direito cuja fonte estatal o faz distinto dos direitos localizados; o direito cujo juízo de validade difere do juízo de sua realidade. Esse é o direito limitado pela roupagem simbólica das galimatias, das vestes que o encobrem e o escondem, estrategicamente, em ideias mais abstratas e transcendentes, porque o óbvio seria encontrar o direito na materialidade: nas coisas e nos corpos. Contra o direito vestido, a reflexão crítica e situada da juridicidade ‘sem roupas’.

Diferentes debates na literatura crítica sobre o direito têm questionado a construção artificial das fronteiras e dos binarismos no pensamento jurídico, em sua cumplicidade com a ideologia liberal.3 3 Como exemplo e como referência, tomamos os trabalhos de estudos jurídicos críticos desenvolvidos nas diferentes fases do movimento atrelado à Critical Legal Studies nos EUA, sobretudo entre os anos 70 e 90. A título de exemplo, apontamos alguns textos clássicos: KENNEDY, Duncan. Form and Substance in Private Law Adjudication. Harvard Law Review, vol. 88, 1976, 647. TUSHNET, Mark. An Essay on Rights. Texas Law Review, v. 62, n. 8, 1984, 1363-1403. KELMAN, Mark. Trashing. Stanford Law Review, v. 36, 1984, 293-348. BELL, Derrick. Who's Afraid of Critical Race Theory. University of Illinois Law Review, 1995, 893-910. MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method, and the State: Toward Feminist Jurisprudence. Signs, v. 8, n. 4, 1982, 635-658. Não são, estritamente, novidades as reflexões sobre a centralidade da forma-jurídica em dar forma econômica e mercantil ao cotidiano, à natureza e às relações sociais; sobre a existência de direito com e contra o estado e não restrito à fonte institucional; sobre as ambiguidades em se reivindicar direitos e, ao mesmo tempo, reiterar aparatos de dominação; sobre a constituição, pelo sistema jurídico, de categorias aprisionadoras relativas a papéis de gênero, raça, sexualidade, idade, dentre outras; ou mesmo sobre a compreensão de que o jurídico carrega sentidos escondidos, e de que, portanto, seria cúmplice do cotidiano político e do status quo desigual.

Dialogando com essa literatura, outras abordagens críticas têm surgido com a intenção de combater o que é denominado de “tendência de despacialização do direito”4 4 Sobre o tema, ver: PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. “Quem tem medo do espaço? Direito, geografia e justiça espacial”. Traduzido por Maria Fernanda REPOLÊS, Julia Ávila FRANZONI, e Thiago HOSHINO. Revista da Faculdade de Direito da UFMG 70 (15 de fevereiro de 2018). https://doi.org/10.12818/P.0304-2340.2017V70P635. . No bojo dessa expressão, a falsa consciência, a alienação e a ideologia são retrabalhadas como práticas que pensam-fazem direito vestindo-o em roupagens que dissimulam a presença da espacialidade – da matéria, do território, dos corpos. Neste trabalho, iremos dialogar, especificamente, com a literatura atinente à Geografia Jurídica Crítica (Critical Legal Geographies - CLG), com o compromisso de pensar e de fazer o direito sem vestes, exposto às intempéries, na perspectiva daquilo que o produz, o afeta e o mantém: os corpos e as coisas. Nossa pretensão não é a de realizar extensa e rigorosa revisão de literatura – essa aposta, inclusive, esbarra no fato de a CLG tratar-se de campo aberto de reflexão, que não se denomina como movimento próprio, atravessando discordâncias cruciais e enfoques diferenciados. Nosso intuito é mais pedestre, porque mais modesto teoricamente, mas, principalmente, por recusar a busca de soluções definitivas para os desafios socioespaciais para uma vida boa.

O título do trabalho parece antecipar o seu fim: construir uma abordagem conceitualmente situada da Geografia Jurídica Crítica a partir do ‘matriarcado de Pindorama’. Contudo, e com perdão da ironia, o fim era só o começo. A aposta tropicalista para experimentar com o materialismo jurídico-espacial não é tanto a nossa finalidade, mas o ponto de partida para enfrentar as vestes que têm invisibilizado na produção do direito a sua co-constituição com o espaço e, histórica e tendencialmente, enredado pessoas, relações e coisas no ‘território da propriedade privada’.5 5 BLOMLEY, Nicholas. “The Territory of Property”. Progress in Human Geography 40, no 5 (outubro de 2016): 593–609. https://doi.org/10.1177/0309132515596380. Apostamos que essas roupagens da alienação tendem a imprimir nas relações sociais, constituídas com e pelo direito, determinadas visões do espaço que não se relacionam (ao menos não necessariamente) com as maneiras pelas quais as pessoas estão de fato conectadas aos lugares onde vivem, trabalham e reproduzem suas vidas. Para ficar com uma formulação-teste, espécie de questão-guia deste trabalho: a forma-jurídica tem configurado os aspectos da nossa existência a partir de certas imagens do espaço que tendem a forjar – de forma acoplada, historicamente, à inflexão da economicização de todas as esferas da vida – a compreensão do jurídico como algo unitário e não ubíquo, difuso e disputado socialmente.

Trabalhar o giro espacial no direito não é, apenas, disputar uma agenda teórica, não se trata de colocar a antropologia jurídica, a história ou a sociologia do direito de lado. É trazer à tona a espaço-temporalidade própria do fenômeno jurídico, comprometendo-se com as situações de estudo e engajamento teórico-prático, sem reduzir o tempo à mera empiria dos casos. O desafio posto à teoria comprometida com a virada espacial é também o problema de atravessar e de construir ideias no contexto em que a forma-jurídica sobrepõe demandas atreladas à pacificação e à normalização de “conflitos sociais”, às urgências de flexibilização e de efemeridade da governança política neoliberal. Os compromissos do mundo jurídico com os mecanismos de exploração e de subordinação de pessoas, modos de vida e da natureza convivem com formatos e vetores aparentemente díspares: segurança/estabilidade, flexibilidade/nomadismo. Contudo, a tendência inscrita nos acontecimentos jurídico-espaciais que reproduzem nossas vidas indica que essas distintas formas, por contradição ou por acomodação, têm agido como condição de possibilidade da ‘economicização’ de todas as esferas de vida.

A teoria que se quer sem vestes, a contrário sensu, não irá se despir totalmente ao agarrar-se com e pelos acontecimentos jurídico-espaciais. Não há teoria nua. Levar a sério as vantagens teóricas do giro espacial é trabalhar abordagens que desnudem o direito das roupagens da alienação, justamente porque vestida do compromisso ético-político de disputar a produção de verdades desde a perspectiva das lutas dos explorados e dos subalternos. Nossa tarefa teórica é com e sobre esses problemas radicais, pensar caminhos possíveis junto aos acontecimentos devastadores, para reescrever com os corpos, com os territórios, os mundos que reproduzem a vida em condições assimétricas e não equivalentes aos arranjos do Estado-Capital. Ao invés de buscar soluções definitivas, as teorias podem ser intensamente presentes naquilo com o qual elas se desdobram: os perigos, as violências, as angústias, as alegrias e as potências inscritas nas práticas.

Se bem atravessada pelo desejo de trazer para o debate nacional uma literatura especializada na virada espacial da teoria crítica e da teoria do direito, o principal aqui é comer as galimatias do homem vestido, dos cânones idealistas, para devolvê-las em pensamentos e em práticas com mais chance de futuro. Reagimos contra o direito vestido – sobretudo contra as abordagens que insistem em “despacializá-lo” – em um apelo tropicalista de consciência da nossa trajetória colonial-escravocrata, que no ato de devorar o inimigo aproveita, ao digeri-lo, o que é conquista das lutas.

Neste texto, portanto, buscaremos nos concentrar em alguns aspectos que colocam desafios materialistas à teoria do direito, apresentando e discutindo questões que fundamentalmente afetam a compreensão do fenômeno jurídico. O trabalho está estruturado em três espaços-tempo. Primeiro, discutimos a co-constituição entre direito e espaço nas linhas que aproximam teoria jurídica crítica e as teorias da produção da espacialidade, sobretudo a partir de Henri Lefebvre. Em seguida, apresentamos o giro espacial das abordagens jurídicas, nos caminhos que vêm sendo construídos pela Geografia Jurídica Crítica para então apostar em uma teoria do direito “sem vestes”, discutindo os compromissos principais e as vantagens epistêmicas do materialismo jurídico-espacial. Ao final, aproximamos esses

espaços-tempos a abordagens atuais do campo teórico brasileiro.

2. A poesia existe nos fatos

2.1 Direito e produção do espaço

“No princípio era a situação”, já dizia o Manifesto. E a situação estava com o direito e o direito era situação. Afinal, não existe direito sem matéria, sem corpo. ““Where is law?” and “who are we” – depending on one’s commitments about what sorts of things the word “law” names, the two questions can be seen as versions of each other6 6 BRAVERMAN, Irus, Nicholas K. BLOMLEY, David DELANEY, e Alexandre KEDAR, orgs. The expanding spaces of law: a timely legal geography. Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014. Introdução. . Os mundos em que vivemos e construímos são produzidos e entendidos também pelo direito. Não como paradigma universal, ou por meio de proposições abstratas, mas como algo situado no tempo e no espaço. “Embora nossa vida cotidiana nem sempre seja diretamente determinada por um processo jurídico formal, a existência do direito significa que nossas interações assumem uma forma particular”7 7 DAVIS, Margaret. Asking the Law Question; the Dissolutin of Legal Theory. Second Edition edition. Pyrmont, NSW: Lawbook Co., 2002. p. 97. . O status quo é tão fruto do direito quanto o direito é fruto do status quo. O jurídico constitui e integra a materialidade vivida, opera como força que interage e também determina acontecimentos, dinâmicas sociais e identidades: a esposa, o proprietário, o cidadão, o devedor, o criminoso, o juiz. As experiências mais básicas da vida social estão implicadas na juridicidade. O direito também produz e movimenta o contexto institucional em que operamos: a comunidade, o bairro, a família, o mercado, o estado. Estando nas coisas e nos corpos, o direito está sendo, existe em um gerúndio ocultado – dissimulado – pelos mecanismos que insistem em despacializá-lo.

O direito opera criando mundo, “mundanizando-se” com e pelo espaço. Do ponto de vista do imaginário jurídico, contudo, há determinadas categorias legais que tendem a “descorporificar” o direito, excluindo, por exemplo, referências à realidade vivida e à economia política8 8 DELANEY, David. The Spatial, the Legal and the Pragmatics of World-Making: Nomospheric Investigations, 1 edition (New York; Abingdon, Oxfordshire: Routledge-Cavendish, 2011), 4–5. . Essas figuras carregam consigo aspectos materiais e discursivos, produzindo efeitos concretos e compondo o simbólico do direito a partir de sua espacialidade. Por exemplo: as categorias do invasor oposta à do proprietário de terra, ou o território formal versus o território informal na cidade, tendem a construir uma gramática operativa do direito que exclui camadas da vida concreta, encerrando e antecipando nos dispositivos jurídicos um conteúdo determinado, frequentemente moral.

Certo e errado aparecem nessas categorias de forma prematura, como um pré-juízo e um pré-conceito, sob o apanágio de lícito e ilícito. Ademais, incorporam uma visão de tempo como uma dimensão linear, progressiva e corretiva – o informal é adjetivo daquilo que ainda não foi formalizado pela intervenção jurídica, que está em estado de espera, como se em um estágio primitivo. Essa gramática “despacializada” da juridicidade reforça, como já veremos, dualismos que sustentam roupagens fetichizadas do direito, como a separação entre o estado (centro racional-legal) e as margens (periferias/corpos/vidas disfuncionais), a oposição entre estado (polo da normalização) e sociedade civil (lugar da falta e da anomia) e a mitificação de relações socioespaciais, que qualifica como ponto de chegada e como padrão de universalização certas dinâmicas sociais comprometidas com regime de apropriação privada das coisas e dos modos de vida – quem são os cidadãos com carteira assinada, domicílio fixo e família heteronormativa?

A visão convencional projeta determinados imaginários correlatos à espacialidade que pressupõe privilégios não questionados das estruturas sociais, como a propriedade privada e sua partilha, ou vantagens constituídas na pragmática social, como a cor branca e o gênero masculino. As diferenças entre o ambiente público e o privado, a prosperidade econômica de determinados lugares ou as desigualdades regionais no interior do país, bem como o perfil de violência em setores da cidade, não são realidades pré-jurídicas. Alguns modos de vida e determinados usos de bens, como a terra, ou mesmo o corpo, são “selecionados” juridicamente como lícitos e outros, contrariamente, reprimidos e rechaçados. Ao a “despacializar” o direito, certas práticas e abordagens – predominantes – despolitizam o papel que a espacialidade ocupa na produção de fenômenos jurídicos.

O invasor tende a ser responsabilizado por práticas criminosas, como esbulho possessório, e a atentar contra o direito de proprietários, figuras que tendem a ter suas razões ancoradas e legitimadas na mera existência do título de domínio. Os lugares informais tendem a ser tratados como irregulares e ilegais e, dessa forma, os usos que ali se desenvolvem se contaminam por esse juízo espacial e são, normalmente, avaliados como não-permitidos. Instrumentos e finalidades do direito, atravessados pelos imaginários jurídico-espaciais, vão dando forma e construindo a realidade, as dinâmicas de vida, dissimulando a presença do espaço que é constitutiva desses mesmos direitos. Não é que a espacialidade não esteja lá, compondo e construindo o acontecimento jurídico; ocorre que ela é, muitas vezes, invisibilizada como estratégia de se fazer mundos.

A legitimidade jurídica de determinadas intervenções legais como as remoções forçadas, a internação compulsória ou o confisco de pertences da população em situação de rua, está associada às práticas e aos discursos que compreendem os acontecimentos jurídicos de forma “despacializada”. Imaginações espaciais específicas que uniformizam experiências plurais (o território informal-perigoso, o indivíduo louco-incapaz, o pobre-ambulante-criminoso) justificam e salvaguardam dinâmicas jurídicas violentas e antidemocráticas, como se fossem respostas institucionais “naturais”, inevitáveis e pacificadoras.

Não apostamos, contudo, na identificação do direito e do estado no plano de uma transcendência perversa. Não há direito, nem estado, a priori, anterior e transcendente ao espaço dos acontecimentos, da materialidade constitutiva das práticas sociais. O que há são imaginações espaciais construídas historicamente e que mascaram a presença do estado e do direito como anterioridade natural, lógica e temporal – por exemplo, as constituições dos estados como mimese da ficção do contrato social. Não há distinção entre dentro e fora, em espécie de oposição entre a ordem civil e a ordem natural, responsável por também opor estado e sociedade civil. Tudo é parte dos acontecimentos e nada é exterior. Não é que dualismos não existam e não façam mundos, mas não operam em relação simétrica9 9 CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (São Paulo: CosacNaify: n-1 Edições, 2015), 132. . A relação entre direito e espaço não é de contradição ou de causalidade, mas de pressuposição recíproca, não necessariamente proporcional. O ponto de vista do direito sobre o espaço, por exemplo, não é o mesmo do que o ponto de vista do espaço sobre o direito.

Quando olhamos para o não cumprimento de uma decisão liminar de despejo durante seu período de vigência, por exemplo, fica evidente que algo para além da ficção mandatória atrelada aos atos jurisdicionais produz efeitos concretos. A correlação de forças agenciadas no conflito, a combatividade dos movimentos sociais populares, o papel criativo da advocacia popular e as redes de resistência e de articulação de comunidades integram também as razões que produzem os acontecimentos jurídicos, e têm força “executória”. O imaginário social que representa as ocupações urbanas como lugares perigosos e insalubres é contraposto às práticas cotidianas, culturais e festivas que acontecem em diferentes lutas territoriais urbanas no país, como o espraiamento de quintais produtivos, a construção coletiva e por mulheres de centros comunitários, a presença de blocos de carnaval que tradicionalmente ficavam em regiões elitizadas das cidades. Essas experiências evidenciam que diferentes dinâmicas entre juridicidade e espacialidade ocorrem e produzem “mundos”.

Pensar de forma situada a gramática jurídica da “despacialização” é buscar compreendê-la como dispositivo de “ilusão de transparência”10 10 Henri Lefebvre fundamenta-se na crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria, comparando-a ao espaço tratado de forma inocente e ilusória. Dessa forma, a “ilusão de transparência” do espaço abstrato é uma forma induzida de consciência; uma abstração concreta. , nos termos de Henri Lefebvre. Inserida na pragmática contraditória das situações concretas, essa ilusão produz e reitera, no e com o espaço, processos de dominação, como as violências de classe, de gênero, de raça e de sexualidade, para ficar com algumas. O direito vestido dessas roupagens de ilusão é aquele que habita o “espaço abstrato” do estado e do mercado e, desnudá-lo, em uma abordagem sem vestes, implica questionar como o direito e o espaço são imaginados, performados e materializados11 11 DELANEY, David. The Spatial, the Legal and the Pragmatics of World-Making. mutuamente. Tal tarefa exige aliar conhecimento situado e consciência da experiência histórica: os acontecimentos jurídicos e espaciais devem ser avaliados na e pelas condições reais daqueles que os vivenciam.12 12 As apostas do materialismo feminista que influenciam nosso compromisso epistêmico (Donna Haraway, Doreen Massey, Chandra Monhaty, Lélia Gonzales, dentre outras), partem da perspectiva situada não para implicar relativismo casuísta na disputa pela produção de verdade. O saber situado produz conhecimento objetivo e crítico de forma atrelada à experiência histórica (THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981) na medida em que refaz o universal da ciência de forma polêmica, pela preeminência da perspectiva dos corpos, das singularidades e das diferenças – o que o torna capaz de produzir conhecimento novo e não prática de espelhamento. Para desenvolvimento dessa argumentação, ver capítulo “Polifonia espacial” da tese citada “O direito & o direito”.

A produção do espaço é o processo central para compreender as estratégias do estado para governar, regular e legitimar as crises do capitalismo. Para Lefebvre, a qualidade “abstrata” do espaço social representa uma matriz qualitativamente nova de organização, que é de uma só vez produzida e regulada pelo estado moderno. O “espaço abstrato” moderno aparece como homogêneo e transparente, ao contrário das formações sociais pré-capitalistas, onde a característica “absoluta” dos espaços era organizada com referência às diferenciações político-religiosas entre profano e sagrado13 13 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace, 4. éd, Ethnosociologie (Paris: Éd. Anthropos, 2000), cap. IV. As preocupações de Lefebvre com a comoditização da vida cotidiana, o processo de urbanização e as políticas do espaço orientam sua crítica da economia política. O papel do estado na produção da espacialidade capitalista assume centralidade nas suas discussões, oferecendo sugestivas observações ainda relevantes para o debate contemporâneo. .

Existe uma violência inerente à abstração, na sua utilização prática (social). A abstração passa por uma abstenção oposta à presença concreta dos objetos, das coisas. Nada mais falso. A abstração age pela devastação, pela destruição (que, por sua vez, antecede à criação). A violência não vem de uma força que intervém ao lado da racionalidade, fora ou além dela. Ela se manifesta logo que a ação introduz o racional no real, corta, repete a agressão até que ela seja bem-sucedida14 14 LEFEBVRE, 333. Tradução nossa. .

A produção do “espaço abstrato” é, dessa forma, processo histórico que carrega em si violências que negam e silenciam dinâmicas sociais concretas. Por meio de um processo que Lefebvre denomina de “ocultação”, os estados tentam sistematicamente esconder ou, pelo menos, mascarar seu próprio papel na produção e na reorganização do espaço social. Dessa forma, os espaços sociais intensamente comoditizados, homogeneizados e fragmentados do capitalismo moderno adquirem a aura mística de paisagens naturais pré-administradas ou apolíticas e técnicas.15 15 BRENNER, Neil e ELDEN, Stuart, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, International Political Sociology 3, no 4 (dezembro de 2009): 373, https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2009.00081.x.

Estado e território estão historicamente relacionados existindo, portanto, uma arte de contínua produção de território, ao invés de um momento inicial de criação de uma estrutura ou um contêiner dentro qual os processos sociais se desenrolam. Ao reconhecer que estado, espaço e território perfazem uma constituição mútua, Lefebvre desafia a “abstração real” em tentativa de compreender seu funcionamento como meio e produto de práticas sociais relacionadas ao desenvolvimento do capitalismo. Os estados fazem seus próprios territórios, não em condições que escolheram, mas sob as circunstâncias dadas e herdadas historicamente, com as quais são confrontados.16 16 BRENNER e ELDEN, 367. O território não tem apenas papel passivo, constituindo, ao contrário, um dado ativo, devendo portanto ser considerado como um fator e não apenas como reflexo da sociedade.17 17 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (São Paulo: EDUSP, 2007), 18.

Esse processo histórico de territorialização que encerra a unidade política soberana em contornos aparentemente límpidos e homogêneos, dá forma ao que Stuart Elden e Neil Brenner denominam como “espaço estatal” em Lefebvre. O território seria, dessa forma, a produção estatal – institucionalizada – de uma espacialidade própria, estruturalmente condicionada pela formação social (capitalista) em que ocorre. A aparência de homogeneidade guardada pela ideia de território – lugar uniforme onde operam as ações estatais – é instrumental para ambos, capital e estado, servindo às forças que fazem tábula rasa de qualquer diferença que esteja em seu caminho e de qualquer pluralidade que as ameace: a característica de abstração do espaço estatal tende a destruir a historicidade de sua condição, suas diferenças internas e qualquer distinção que possa emergir, para impor uma homogeneidade ilusória.18 18 BRENNER e ELDEN, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, 358.

O espaço estatal que aparece autônomo das relações e condições sociais que realmente o produzem perfaz um duplo processo de fetichismo: (i) a mistificação politicamente induzida das práticas espaciais e (ii) a ocultação sistemática das intervenções espaciais do estado. Esse fetiche está no coração da forma moderna do estado.19 19 BRENNER e ELDEN, 372. A forma-jurídica que dá contornos às ações no interior do espaço estatal permite que as relações sociais produzidas pelas diferentes estruturas de dominação material – o capital, o racismo e o patriarcado, por exemplo – apareçam como técnicas, apolíticas ou naturais. Como afirma Milton Santos, é no território, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta.20 20 SANTOS, O espaço do cidadão, 18.

Na raiz desse processo está o que John Angnew descreveu como “armadilhas territoriais” do sistema westphaliano de estado21 21 WEBER, Max; GERTH, Hans Heinrich e MILLS, C. Wright (Charles Wright), From Max Weber: Essays in Sociology (New York : Oxford university press, 1946), http://archive.org/details/frommaxweberessa00webe. Não por acaso, essa imagem do espaço estatal como algo dado, naturalizado e constitutivo dos processos sociais (e não mutuamente constituinte) é o “tipo ideal” de Estado liberal moderno, reproduzido na popular e amplamente reproduzida construção weberiana: "a human community that (successfully) claims the monopoly of the legitimate use of physical force within a given territory" p. 78. e, Lefebvre, por sua vez, denominou de mecanismo de “ilusão de transparência” – ilusão que dissimula a “verdade do espaço social – a saber, que ele é um produto (social)”.22 22 LEFEBVRE, La production de l’espace, 36. Tradução nossa.

As armadilhas e a ilusão de transparência fazem referência ao “efeito territorial” do estado – a naturalização do território como uma plataforma de realização autocontida das relações sociais e dos projetos políticos. O território assim considerado age como atalho ideológico que busca escamotear os antagonismos e crises que fundam os conceitos de estado, direito e soberania. John Agnew sumariza esse processo por meio de três formulações23 23 AGNEW, John. “The Territorial Trap: The Geographical Assumptions of International Relations Theory”, Review of International Political Economy 1, no 1 (março de 1994): 53–80, https://doi.org/10.1080/09692299408434268. “The first assumption, and the one that is most fundamental theoretically, is the reification of state territorial spaces as fixed units of secure sovereign space. The second is the division of the domestic from the foreign. The third geographical assumption is of the territorial state as existing prior to and as a container of society. Each of these assumptions is problematic, and increasingly so. Social, economic, and political life cannot be ontologically contained within the territorial boundaries of states through the methodological assumption of 'timeless space'. Complex population movements, the growing mobility of capital, increased ecological interdependence, the expanding information economy, and the 'chronopolitics' of new military technologies challenge the geographical basis of conventional international relations theory”., p. 76-77. Os pontos aqui apresentados e redefinidos encontram-se detalhados no texto de introdução à obra State/Space: A Reader. Edited by Neil Brenner, Bob Jessop, Martin Jones and Gordon MacLeod. Oxford: Blackwell. 2003. : 1. O estado possuiria o controle soberano sobre os limites de seu território, o que implicaria a ideia de entidades estatais territorialmente fechadas em si mesmas e identidades unitárias que constituiriam as unidades básicas do sistema político global; 2. A construção da oposição binária entre “doméstico” e “estrangeiro”, o que estabeleceria a escala nacional como ontologicamente necessária para fundação da vida política moderna, conformando as noções de povo, nação e identidade cultural; 3. O estado concebido como um território estático e atemporal que abrigaria os processos econômicos e políticos. As fronteiras geográficas do estado, sociedade e economia passaram a ser tratadas como se fossem, mais ou menos, sobrepostas de forma congruente.

Essa ilusão de transparência quando travestida de território supostamente homogêneo mascara e oculta estratégias políticas, culturais e econômicas – das guerras de conquista à guerra ao terror; dos apátridas à população em situação de rua; dos quilombolas ao sem teto; do desemprego à crise energética. Trata-se em todos os casos de processos de disputa material e simbólica que escancaram diferenças absorvidas e dominadas pelo espaço estatal de forma a manter sua lógica unitária de poder. As distinções de modos de vida são culturalmente reduzidas ao conceito de nação e de povo; a coletividade sem rosto com suposta vontade geral. As distintas fontes de autoridade e de organização das relações sociais são negadas, tendendo a centralizar o poder na forma de soberania estatal.

Essas reduções unificadoras são possíveis tendo em vista as armadilhas territoriais que obliteram o papel que o espaço estatal desempenha na perpetuação dos mecanismos hierárquicos de poder. Apesar de sua centralidade para os processos de acumulação de capital, o espaço abstrato é inerentemente político – sendo instrumental e instituído pelo estado – “o espaço abstrato é, em resumo, produto político da estratégia espacial do estado de administrar, reprimir, dominar e centralizar o poder”24 24 BRENNER e ELDEN, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, 359. . O espaço estatal opera de forma simbólica, arregimentando diferentes dimensões – materiais e imateriais – da vida, como a religião, os costumes, a cultura, a economia, produzindo e transformando o imaginário social, político e jurídico. A forma-jurídica e a racionalidade do direito – como meios de e para ação – agem de maneira a disseminar a racionalidade capitalista para além do econômico, incluindo elementos constitutivos da vida institucional e política.

“O espaço abstrato não é homogêneo; ele tem a homogeneidade por meta, por sentido, por “objetivo”. Ele a impõe. Contudo, ele mesmo é plural”.25 25 LEFEBVRE, La production de l’espace, 330. Na tríade estabelecida por Lefebvre, o imaginário do espaço abstrato envolve formas de “imaginar, conceber e representar”26 26 LEFEBVRE, cap. II. os espaços dentro dos quais a vida cotidiana, a acumulação de capital e a ação estatal podem se desenvolver. Como processo histórico, há que se reconhecer que por trás do conceito opaco de território que a abstração produz, há a conflitualidade (o plural, em Lefebvre) inerente à produção do espaço, que ameaça a estratégia estatal de sufocar os caminhos alternativos e desviantes presentes na multiplicidade de formas de vida.27 27 HARVEY, David, Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, Dialética (Martins Fontes, 2014). As relações socioespaciais do capitalismo não podem ser subsumidas ou englobadas em qualquer sistema regulatório: a organização socioespacial é, portanto, inerentemente política, e sempre contestada.

É o caráter político do espaço estatal que permite afirmar que o mercado não é uma realidade natural, mas algo construído.28 28 É o que já postulava Marcel Mauss ao afirmar que não há naturalidade nas trocas econômicas – elas foram criadas e, portanto, dizem sobre um processo histórico. “O homo oeconomicus não está atrás, está adiante de nós; assim como o homem da moral e do dever; assim como o homem da ciência e da razão. O homem foi por muito tempo outra coisa e não faz muito tempo que é uma máquina, com uma máquina de calcular que a complica”. In: MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre A Dadiva - Coleção Portátil 25, Edição: 1a (Cosac & Naify, 2013), 129. A sua produção depende de intervenção ativa das instituições estatais, vinculada a formas-jurídicas determinadas, específicas – ou seja, históricas. Os territórios herdados de projetos que combinaram regulação estatal, dinâmicas de acumulação de capital e contestação política são continuamente apropriados, reeditados e transformados por meio de diferentes estratégias. E, dessa forma, os conceitos e as discussões relacionadas às armadilhas territoriais e à ilusão de transparência do espaço estatal devem ser atualizados, desafiados e rearticulados para problematizar sua relevância para o momento contemporâneo de hegemonia do capitalismo financeiro e da neoliberalização das mais diversas esferas da vida.

Parte-se do entendimento que a historicidade do processo de fetichização e de abstração do espaço estatal se refaz, convivendo com outras armadilhas territoriais que tendem a expandir o controle e a mercantilização para todas as práticas da vida. Como ordem normativa da razão desenvolvida nas últimas quatro décadas por uma racionalidade governamental ampla e disseminada, o neoliberalismo vem transformando cada domínio de ação humana na direção de uma imagem específica do econômico.29 29 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. First Edition. New York: Zone Books, 2015. p. 9. O fetiche do espaço estatal moderno atualizado de forma justaposta aos processos político-econômico e culturais contemporâneos, nos obriga a reconhecer que o neoliberalismo não é apenas um conjunto de políticas, uma ideologia, nem mesmo apenas a reformulação das relações entre estado e mercado: trata-se de uma ordem normativa da razão – a nova razão do mundo30 30 LAVAL, Christian e DARDOT, Pierre, A Nova Razão Do Mundo: Ensaios Sobre A Sociedade Neoliberal, Edição: 1 (Editora Boitempo, 2016). – em que todas as esferas da existência tendem a ser medidas e reguladas por métricas econômicas, até mesmo quando não se trata de dimensões monetizadas da experiência.

No contexto de reestruturação produtiva global da economia, com a hegemonia do capital portador de juros, o estado deixa de ser o principal eixo condutor para definição de identidades, de culturas, e de processos econômicos, abrindo caminho para estratégias de poder sem fronteiras previamente definidas. Há um rearranjo dos pontos globais de comando, dos quais fazem parte os estados nacionais de forte poder bélico, econômico e político, organismos internacionais e empresas transnacionais, no que Hardt e Negri irão definir como “nova pirâmide imperial de poder”.31 31 NEGRI, Antonio, e HARDT, Michael. Império. Barcelona: Paidós, 2000. A ilusão de transparência do espaço estatal convive com a imaginação atrelada aos espaços de fluxos, móveis e em rede. O espaço abstrato que abriga e dá formas aos processos sociais de subjetivação, trocas econômicas, dominação política e expropriação de riquezas é também representado como contingente, mutante, flexível e inclusivo.

Esse espaço é percebido, ainda, como acessível a todos, como lugar que pode ser alcançado, comprado e imaginado como possível. Esse espaço estatal que parece se converter em espaço mundializado – espaço imperial, para “inventar” com Hardt e Negri –, contudo, não deixa de iludir sua suposta universalidade na representação que faz de questões que são locais e situadas. A despeito de suas possíveis representações, o espaço imperial confirma hierarquias geográficas globais de dominação, acirra desigualdades econômicas e políticas entre diferentes estados, conduz guerras econômicas e culturais, fortalece o uso dos mecanismos violentos do poder estatal, dissemina políticas econômicas de mercantilização de bens e direitos comuns como a água, a moradia e o conhecimento tradicional, e cria contextos e seleciona grupos privilegiados de acesso às suas vantagens, da mesma forma como inclui diferencialmente outros.32 32 Nesse sentido: ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 1a̲ edição (São Paulo, SP: Boitempo, 2015).; NEGRI e HARDT, Império.; e HARVEY, David. The Ways of the World. London: Profile Books Ltd, 2016.

Todos esses fenômenos são indicativos de armadilhas territoriais atualizadas nas trincheiras que a representação hegemônica do espaço imperial mascara. O espaço estatal tende, grosso modo, a iludir suas metanarrativas econômicas e políticas no lugar fictício do “não-território”. Esse mascaramento integra, na verdade, novos projetos estatais e novas estratégias de acumulação. Ao redesenhar as fronteiras territoriais e institucionais de forma a legitimar e a conduzir a movimentação dos fluxos financeiros, os estados nacionais são profundamente cúmplices da criação de fluxos supostamente “desterritorializados” ou “sem fronteiras” na economia global neoliberal.33 33 BRENNER, Neil. et al., orgs., State / Space: A Reader, 1 edition (Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2003), 25. A flexibilidade das fronteiras e as ações em redes determinadas por agentes supranacionais estaria, neste caso, à serviço da dominação econômica e cultural de outros territórios.

Os mecanismos de dominação desse espaço imperial produzem e são produzidos por uma dinâmica espacial que é transescalar, reafirmando assimetrias e desigualdades que se impõem por meio de poderes que operam internacional, nacional, regional e localmente. Fala-se, aqui, a título de exemplificação, das novas políticas de planejamento e de reestruturação pós-keynesianas, do papel das cidades-globais e da revolução urbana planetária, do crescimento do capitalismo rentista e da aparente extraterritorialidade do capital financeiro. O espaço estatal aparece aqui como lugar da governança de respeito a boas práticas e produtor de normas jurídicas controladas pela comunidade financeira internacional. Essa co-governança público-privada da política econômica leva à produção de medidas e de dispositivos nos campos fiscal e regulatório sistematicamente favoráveis aos grandes grupos oligopolistas.34 34 LAVAL e DARDOT, A Nova Razão Do Mundo, 277. A forma-jurídica que aparenta se “desterritorializar” a serviço dos negócios cada vez mais flexíveis, permanece sujeita a um espaço estatal determinado.

Essa perpetuação do espaço estatal tem como objetivo alterar o modo de exercício do poder governamental, baseado na subordinação da racionalidade política e social à globalização e à financeirização do capitalismo. Essa estratégia neoliberal mascara-se como sendo o resultado do “ponto de encontro de forças dispersas”, uma “estratégia sem sujeito”, que seria fruto de “lógica das práticas”.35 35 LAVAL e DARDOT, 192. Está aí uma renovação do mecanismo de ilusão de transparência do espaço abstrato: diferentes práticas que instauram regras de poder no espaço social multiplicam-se, generalizam-se e impõem-se, pouco a pouco, como se fizessem parte do caminho natural das coisas, fruto da evolução inerente, automática, das relações entre estado e mercado.

A reflexão sobre a reconfiguração do estado, portanto, não implica o seu desaparecimento ou enfraquecimento. Suas funções e seus elementos constitucionais não sucumbiram, mas sim, deslocaram-se, em parte, ao plano da dominação dos “organismos nacionais e supranacionais”.36 36 NEGRI e HARDT, Império, 12. Nessa nova arquitetura supranacional do poder no Império, no topo estariam os organismos internacionais e o organismo nacional norte americano; no meio as redes de empresas transnacionais e os organismos nacionais subordinados ao poder destas empresas; e na base a Mídia, a Igreja, os organismos nacionais e, principalmente, as ONGs que representariam os interesses da multidão. Embora os autores remarquem a existência desses três estratos de poder, a soberania imperial descrita na pirâmide não implica uma hierarquia estática entre os níveis, nem um equilíbrio funcional de poder. O que há é uma hibridização entre os poderes, o que, por vezes, abre caminho para multidão provocar abalos estruturais mediante lutas políticas contra o Império. Dessa forma, o neoliberalismo não exclui e, ao contrário, sujeita-se à intervenção do governo para fazer das relações econômicas internas ao jogo do mercado o fundamento de toda a sociedade; selecionar ‘naturalmente’ o arcabouço jurídico dessa ordem; e fazer com que o estado a aplique sobre si mesmo, instaurando, a partir da racionalidade neoliberal, o governo e a proteção do “direito privado” ante tudo e a todos.37 37 LAVAL e DARDOT, A Nova Razão Do Mundo, 182–85.

Como destacam Pierre Dardot e Christian Laval, a normatividade neoliberal tem como estratégia disseminar a razão da concorrência e sua forma “empresa”, submetendo tanto indivíduos como instituições: “a concorrência é a norma de conduta e a empresa é o modelo de subjetivação”.38 38 LAVAL e DARDOT, 17. A imposição de um universo de competição generalizada passa pela formação de uma dimensão moral da ‘empresa’ que é injetada na subjetividade de cada indivíduo, responsável por manter a sociedade de mercado funcionando. A organização social passa a ser medida de forma que a relação consigo próprio, com outros indivíduos e com seus bens deve ser mediada por essa lógica empresarial como unidade de produção em concorrência. O empreendedorismo passa a ser a forma de ‘governo de si’ e o mercado um processo de ‘formação de si’: o sujeito e as relações sociais passam a ser mediadas, necessariamente, pelas práticas do mercado – afinal, apenas no mercado está garantida a liberdade dos indivíduos e sua autonomia.39 39 LAVAL e DARDOT, 151–55.

Essa ausência de rigidez na compreensão do que é indivíduo e empresa (privado) e o que é estado (público) integra o imaginário político do espaço estatal contemporâneo que se institucionaliza negando a prática democrática. A reinvenção corporativa das grandes cidades brasileiras, por exemplo, aciona o discurso corrente de crise fiscal e inchaço estatal que descamba, rápido, para o empresariamento urbano e para o planejamento estratégico (notoriamente “market friendly”). Essa estratégia age como panaceia rumo à retomada do crescimento econômico e da competitividade dos municípios, em detrimento do direito à cidade e da participação popular. A captura do público pelo privado, com progressiva flexibilização dos pactos participativos esculpidos, por exemplo, no Plano Diretor; a assunção pelo estado dos riscos e despesas de vultosos empreendimentos, sem a respectiva distribuição de seus ganhos; e o aprofundamento da cisão social por intervenções pontuais que concentram ilhas de riqueza e infraestrutura num mar de exclusão são alguns dos efeitos perversos de uma política urbana que responde mais aos vetores da financeirização e da mercantilização do que aos da democratização urbana.40 40 FRANZONI, Julia Ávila e HOSHINO, Thiago de Azevendo P., “Direito à cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana”, Le Monde Diplomatique, Brasil, 8 de julho de 2016, seç. Direito à cidade em tempos de crise, http://diplomatique.org.br/direito-a-cidade-sa-a-casa-de-maquinas-da-financeirizacao-urbana/. Esse processo mimetizado na experiência da vida nas grandes cidades, que é ostensivo e abrangente nos corpos, nos territórios e nas práticas sociais, configura o que Wendy Brown denomina de “revolução secreta do neoliberalismo”.

Mais do que simplesmente assegurar os direitos do capitalismo e estruturar a competição, a razão jurídica neoliberal reformula direitos políticos, a cidadania, e o campo da democracia em si mesmo a partir de um registro econômico; ao fazer isso, o neoliberalismo desintegra a própria ideia de demos. A racionalidade jurídica complementa as práticas de governança como meio pelo qual a vida política e o imaginário democrático estão sendo desfeitos.41 41 BROWN, Undoing the demos, 151.

A forma-jurídica neoliberal não supera o mecanismo que produz a ilusão de transparência do espaço estatal. Os projetos de territorialização do estado obliteram e neutralizam os conflitos e as diferenças que os constituem de forma a perpetuar a lógica em que o crescimento econômico, a criação de novos mercados e a contínua mercantilização da vida não podem ser contraditados. As técnicas de despacialização do direito convivem em ambiente onde as armadilhas territoriais modernas continuam a operar como ferramentas atuais e, ainda, manifestam-se de forma pervasiva à razão neoliberal. O espaço estatal justapõe diferentes técnicas de abstração que dissimulam a presença do espaço, dos corpos, das diferenças, agindo de forma a destruir, negar e a interditar a reafirmação do político.42 42 Político aqui assume o sentido de resgate da democracia – contraposto à política institucional – na forma defendida Wendy Brown em Undoing the demos, num diálogo com Rancière, na sua diferenciação entre política e polícia em: RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento politica e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.

A despacialização do direito é, portanto, um projeto – histórico – de territorialização de imaginários e de práticas. A forma-jurídica moderna justapõe-se a novos formatos e aparições do direito vestido, por vezes mais flexível e negociado, aparentemente mais plural e difuso. A convivência de formas-jurídicas que traduzem diferentes condições materiais de produzir espaço, direito, modos de vida, tem correspondido à possível produção de novas “funções” à juridicidade. Além de dar forma ao econômico, na visão materialista clássica, a forma-jurídica atuaria também na “economicização” de todas as esferas da vida e de suas práticas, a partir de determinada visão do espaço.

Como evitar, contudo, que grandes explicações teóricas transformem dinâmicas vivas em fatos estáticos e transparentes? Apostamos que a estratégia está em reconhecer as consequências de se levar a sério que o espaço é produzido e que essa condição integra a (re)produção do direito, nos enredar a elas, abrir e fazer outros caminhos. Sem trair o compromisso pedestre de caminhar enquanto comemos as galimatias do direito vestido, trazemos, nesse pacto, sendas abertas pela teoria materialista do direito atrelada à virada espacial.

2.2. Giro espacial no direito

Discutir o giro espacial na teoria jurídica busca reconectar o direito à sua materialidade e aos mecanismos de dominação e de subordinação, em processo de desmistificação teórica e prática – atacar os engenhos de “ilusão de transparência” e de “ocultação da espacialidade”. Este processo, contudo, não pode ser só um ‘flerte interdisciplinar’: levar a sério o espaço na sua relação com o direito é também buscar meios para que este não fuja daquele, de forma que o giro não fica apenas no namoro da ciência jurídica com os conceitos da geografia, como a escala, a paisagem e as fronteiras43 43 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. “Law’s Spatial Turn: Geography, Justice and a Certain Fear of Space”, Law, Culture and the Humanities 7, no 2 (1o de junho de 2011): 2, https://doi.org/10.1177/1743872109355578. . A união entre espaço e juridicidade não fala necessariamente de harmonia, mas de uma composição inelutável e complexa: o giro espacial no direito não constitui algo, não enuncia uma realidade posterior, mas trabalha algo que está aí – não há direito fora da matéria. Como ferramenta teórica para desbravar situações e produzir conhecimento jurídico espaço-temporalmente orientado, esse giro será trabalhado (i) do ponto de vista do debate corrente na teoria do direito ‘espacializada’ e (ii) no desenvolvimento de aportes para uma teoria do direito “sem vestes”.

Onde, por que e como está o direito são questionamentos que minoram o viés protagonista que a pergunta o que é o direito determina. Falar sobre “o” direito tem se tornado cada vez mais difícil.44 44 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Spatial justice: body, lawscape, atmosphere. Space, materiality, and the normative. Milton Park, Abingdon, Oxon [UK] ; New York, NY: Routledge, 2015, 15. Colocado em perspectiva com outros acontecimentos, o direito é espacializado em devir com, em produção conjunta e situada com as coisas e com os corpos, menos sujeito e mais relação. A aparente estabilidade da forma-jurídica prende o direito em contornos que mascaram sua contingência, o que não significa dizer que o direito é totalmente relativo. O giro espacial articulado com a teoria jurídica traz a dimensão da espacialidade como princípio organizativo do pensamento e, como consequência, a virada materialista é operada de forma a compreender a co-constituição entre os fenômenos jurídicos e os espaciais. Do que se trata essa virada para a espacialidade na produção de saber?

Inspirada nos trabalhos de Henri Lefebvre e Michel Foucault45 45 Ver, sobretudo, FOUCAULT, Michel. “Des Espace Autres”. Architecture /Mouvement/ Continuité, 1984 e Lefebvre, Henri. La production de l’espace. , debates da teoria política e social, sobretudo a partir da década de noventa, tem se reafirmado amplamente por meio da perspectiva espacial. Combinando pesquisas sobre teoria crítica em diferentes campos, como as relações internacionais, a antropologia cultural, a geografia e a ciência política,46 46 Destacam-se aqui os trabalhos de Immanuel Wallerstein, Edward Soja, Doreen Massey, David Harvey, Antony Guiddens, dentre outros. diversos autores têm questionado o irrefletido territorialismo metodológico levado a cabo ao se analisar o ‘mundo político’ e o espaço estatal moderno. A contrario sensu, o pensamento ‘espacial’ busca enfatizar a especificidade histórica e geográfica do nexo entre soberania e território, trabalhando-o mais como um modo geopolítico e geoeconômico de organização.47 47 BRENNER et al., State / Space, 14. E, ainda, a inconsciência geográfica moderna é combatida a partir de uma produção de conhecimento cada vez mais situada e ‘corporealizada’.

Essa virada metodológica também deu origem a um novo vocabulário, conceitualmente espacializado, desenvolvido de forma a compreender questões como os novos tipos de mobilização social, as identidades sociais mutantes e os fenômenos transescalares que escapam a uma lógica direta de territorialização e de arenas geográficas autocontidas. Mais ainda, as humanidades e as ciências sociais voltando-se para as interações entre humanos e as demais as entidades no mundo físico, intentam, com o giro espacial, compreender e trabalhar a conexão entre matéria e sentido – ou como os sistemas de sentido usados em situações humanas são produzidos, em parte, pela relação dos seres humanos com um mundo de matéria.48 48 DAVIS, Margaret. Asking the Law Question.

A reinserção da perspectiva espacial também se deu na teoria jurídica, muito influenciada pelo movimento da Critical Legal Studies.49 49 BLOMLEY, Nicholas K.; DELANEY, David e FORD, Richard T., orgs., The legal geographies reader: law, power, and space (Oxford, UK; Malden, Mass: Blackwell Publishers, 2001), Introdução. Ecoado sobretudo pela Critical Legal Geography, essa corrente teórica interroga o que pode acontecer quando se começa a trabalhar o direito a partir da perspectiva espacial crítica, dado que geografia e direito compartem preocupações com representação, discurso, texto, lugar, paisagem, mundo físico e distribuição. A geografia jurídica se desenvolveu como campo junto a extensas investigações empírica, o quê, em muitos aspectos, rendeu o lado teórico inovador dessas abordagens.50 50 DAVIES, Margaret. Asking the Law Question. O giro espacial no direito, contudo, não tem uma origem exata, ou apenas um tipo de representação. Caso assim formulado, implicaria o tratamento essencialista da relação entre direito e espaço, estabelecendo um momento e uma forma determinada da virada espacial. Para evitar esse ardil, mais do que sua genealogia, as vantagens teóricas – não hierarquizadas – trazidas pelo giro espacial é que devem ser debatidas.51 51 HILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 16.

A fuga das insularidades científicas dá lugar, na CLG, à interdisciplinaridade na produção do conhecimento. As lições trazidas pelo giro linguístico e pelo pós-estruturalismo na teoria jurídica são reafirmadas no ponto de partida epistêmico desse movimento: o direito é conflitivo e contestado na sua concepção e na sua aplicação. E, portanto, há uma conexão intrínseca entre representação simbólica, discurso normativo, e as formas de exercício do poder.52 52 BLOMLEY, DELANEY, e FORD, The legal geographies reader, XVII. A sociologia jurídica, as teorias feministas, os estudos pós-coloniais, as investigações sobre raça e a teoria jurídica crítica, de forma geral, estão atreladas à virada espacial no direito, problematizando as marcas sexual, racial e de gênero nos corpos, nos lugares e nos territórios e as correlações entre direito, política e propriedade privada.

De alguma maneira, o direito é sempre mundano e, do mesmo modo, os espaços sociais, os lugares vividos e as paisagens estão inscritos em significados jurídicos.53 53 BRAVERMAN, Irus et al., orgs., The expanding spaces of law. Introduction-I. A CLG irá permitir a captura, no contexto social, de aspectos que podem ser analiticamente identificados ao mesmo tempo como jurídicos e como espaciais. Considerando espaço e direito como fenômenos que se interpenetram, as questões voltam-se, sobretudo, para as correlações entre poder, discurso e relações sociais. Dessa forma, a fusão entre significado jurídico e espacialidade deixa de ser considerada como algo natural ou uma necessidade lógica. Essa composição entre direito e espaço é trabalhada nos seus acontecimentos reais de forma contingente e situada. “A preocupação com o espaço, portanto, não é simplesmente uma preocupação com o mundo material “fora” da lei, ou com uma superfície em que o sentido jurídico é “inscrito””.54 54 BLOMLEY, DELANEY, e FORD, The legal geographies reader, XIX. Tradução nossa. Ao contrário, o interesse pelas espacialidades da lei e pelas juridicidades do espaço são também preocupações com os mecanismos ideológicos fundamentais para análise das práticas.

O direito universal e abstrato pode ter alcançado – formalmente – a igualdade de gênero e a proteção contra a discriminação racial, por exemplo. O direito localizado e corporificado, contudo, está longe de ter atingido algo parecido.55 55 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 21. A problematização sobre “onde está o direito” diz sobre como ele se realiza e acontece, demarcando e compreendendo as implicações dos processos de co-fundação entre o jurídico e o espacial e, ainda, encarando a seletividade como condição da necessária territorialização do fenômeno jurídico. Trabalhar com e pelo espaço é reconhecer que a experiência jurídica, além de localizada e corpórea, pode ser irrepetível e única. Afinal, são processos e são direitos. Essa convergência da análise jurídico-espacial pode produzir algumas vantagens que têm sido destacadas na literatura como: (i) compreensão mútua de conceitos jurídicos e espaciais como cidade, escala, paisagem, território, propriedade, identidade; (ii) maior engajamento com questões atinentes à produção, manutenção e transformação do espaço social (quais são os instrumentos mobilizados? quais os projetos políticos envolvidos?); 3) novas leituras sobre a produção e reprodução da vida, ampliando as questões sobre as condições e as consequências da transformação social.56 56 BRAVERMAN et al., The expanding spaces of law, Introdução. Esses autores mapearam três modos de preponderantes de pesquisa CLG: (i) o cruzamento de disciplinas, (ii) os engajamentos interdisciplinares, construindo as pontes entre espaço e direito; (iii) os estudos pós-disciplinares, antropologia cultural; pós-humanismo, pluralismo jurídico e pensamento descolonial.

Do ponto de vista da estratégia tropicalista de devoração, duas questões impõem-se: onde tem sido produzido esse campo de conhecimento? E para onde o giro espacial ‘vira’ o direito? Quanto à primeira questão, sabe-se que as pesquisas relativas à CLG têm sido realizadas, sobretudo, em lugares e por investigadores anglo-saxões.57 57 KEDAR, Alexander. “Expanding legal geographies. A Call for a Critical Comparative Approach.”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 96. Segundo o autor, campo de pesquisa da CGL tem se concentrado nos países anglo-saxões, de matriz de common law. O que justifica, por si só, problematizar, reconstruir e reposicionar suas vantagens e suas ferramentas. Quanto a segunda, além de um avanço teórico, importa o que o giro espacial produz aqui e agora, nos espaços atuais onde a vida tem sido produzida. Mais do que construir precisão conceitual em torno da CLG, tecendo e determinando seus conteúdos, esta investigação a trata como movimento teórico – como a teoria pode se mover, com o quê e para onde. Apostamos, com a virada espacial, nas abordagens sobre o direito que se viram/giram ou, como queremos, despendem-se da roupagem iludida da forma-jurídica para trabalhar questões relativas à contingência dos acontecimentos jurídico-espaciais, sua geo-biopolítica e a simultaneidade de diferentes dimensões temporais inscritas na pragmática de se fazer mundos58 58 Trabalhei, de forma situada, a rentabilidade teórica da virada espacial no direito, a partir das dimensões da contingência/multiplicidade, geo-biopolítica e temporalidades, na tese citada “O direito & o direito”, dialogando, sobretudo, com autores aqui referenciados: Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos, Doreen Massey, Sarah Keenan e Mariana Valverde. .

A espacialidade traz consigo a inescapável pluralidade e diferença que a juridicidade tende a reduzir, etiquetar e unificar – a virada espacial permite que as abordagens sobre o fenômeno jurídico incorporem as contingências. Com, pelo e no espaço, o direito depara-se com sua condição situada e fragmentária. Ao mesmo tempo que o título de propriedade é capaz de terminar uma relação jurídica e social direta entre o suposto dono e seu imóvel, a execução de uma liminar de reintegração de posse depende de inúmeras circunstâncias que vão além de sua áurea mandamental estabelecida pela lei – efetivo policial para realizar a operação, recurso orçamentário, acordos políticos, cálculos eleitorais e pressão pública, por exemplo.

As questões trazidas pela materialidade espacial causam desconforto e abalam as certezas jurídicas. Contudo, dizer que o direito pode ser criado, contestado ou negociado em múltiplas instâncias e lugares não significa presumir sua infinita plasticidade ou sua indeterminação.59 59 AZUELA, Antonio e MENSES-REYES, Rodrigo. “The everyday formation of the urban space. Law and Poverty in Mexico City”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 167. O território da propriedade tende a se reproduzir e perpetuar jurídica e espacialmente, muitas vezes de forma determinada e inflexível. Há que se abraçar a contingência como condição de levar a sério a co-constituição entre direito e espaço, entendendo que a simultaneidade, a repetição, a desorientação e a corporealidade trazidas espacialmente, não têm valor em si: elas importam do ponto de vista de quem afetam e como o fazem; interessam na sua biopolítica.

A preocupação com o direito e o espaço pode refazer os limites e as nuances do nexo entre juridicidade, materialidade e poder. As formas em que o direito tende a vincular os espaços e os corpos não refletem as maneiras pelas quais as pessoas estão realmente conectadas aos lugares onde vivem, trabalham e (re)produzem. Por meio da imposição de seu regime próprio de conexão espaço-corpo (via cidadania, domicílio, propriedade e outros instrumentos), a forma-jurídica produz espaços em que alguns corpos pertencem e outros não.60 60 KEENAN, Sarah. Subversive Property. Law and the production of spaces of belonging. 1o ed. Social Justice. New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2015. p. 34. Ao invés de poder ‘sobre’ as coisas e os corpos, há que se problematizar o poder ‘com’ as coisas e os corpos, em um giro espacial que questione os padrões jurídicos de espaço e de sujeito. “A sobreposição da governança biopolítica (controle sobre a vida) e da geopolítica (controle sobre o território), oferece, assim, novas perspectivas sobre uma série de questões sociojurídicas”.61 61 KEENAN, 6.

Pensemos sobre a concepção de estado. Entendido não mais como um poder e uma instituição acima ou separada da sociedade, mas “como produto de uma miríade de interações localizadas”,62 62 AZUELA e MENSES-REYES, “The everyday formation of the urban space.”, 169. a forma estatal ganha aderência à sua ínsita materialidade. Essa perspectiva abre a possibilidade de se trabalhar a ação estatal em vários contextos, capturando as diferenças de escala, como a esfera do município e a da federação (mas também do corpo e da casa) e, ainda, a pluralidade de interesses envolvidos, como a necessidade de efetivar políticas sociais e manter o desenvolvimento econômico. Essas questões são importantes para analisar as situações do tempo de agora, de inflexão neoliberal conservadora. Ademais, conforme esse entendimento, o direito não é encarado apenas como algo dado pelo estado, mas como uma prática complexa inserida no espaço estatal, com sua lógica específica e também indeterminada. Caso contrário, tanto o espaço quanto o tempo do direito estariam sendo reificados; aquele tratado como apenas como representação e este como progresso.63 63 FRANZONI, “O direito & o direito”, capítulo “Cacofonias jurídico-espaciais”. A diferença e a simultaneidade importam, aqui e agora, para discutir o presente e as chances de futuro.

Dessa ponderação, vem segunda dimensão importante do esforço da virada espacial: como diferentes tempos jurídicos criam ou moldam espaços legais e como a localização espacial e sua dinâmica processual, por sua vez, moldam os tempos do direito?64 64 VALVERDE, Mariana. “‘Time thickens, takes on flesh’. Spatiotemporal Dynamics in Law”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 69. Pela porta de traz, a literatura atrelada à geografia jurídica crítica, pode estar trazendo de volta a falácia responsável por tratar tempo e espaço como entidades separadas. Segundo Mariana Valverde, a crítica de Kant relativa à metafísica objetiva do espaço e do tempo pode ser reavivada como antídoto contra tendência de objetificar e isolar o espaço: problema de capturar apenas um espaço da temporalidade, tratando tempo como histórica empírica. O espaço é inerente, não inevitável, no campo que mescla geografia e direito, p. 53. Essa questão nos auxilia a permear, por exemplo, a complexidade relativa aos diversos tempos envolvidos em situações jurídico-espaciais relativas a conflitos fundiários: o momento da decisão judicial de despejo e o ritmo das respostas das ocupações urbanas e sua rede de resistência; o período de negociação do conflito e o desenvolvimento e amadurecimento das comunidades; os desenhos do projeto imobiliário e urbanístico previsto para área ocupada e o ritmo das atividades econômicas no entorno; a correlação entre os tempos de ameaça real de desocupação forçada, as táticas de enfrentamento e as ações de cuidado e reprodução da vida no território – enquanto aquelas parecem seguir o lampejo do perigo, estas se fazem mais contínuas e perenes.

As várias temporalidades legais estão ligadas também aos diferentes modos de espacialização.65 65 VALVERDE, 63. As representações jurídicas sobre o tempo tendem a retratá-lo como dimensão unidimensional, confundindo-o com progresso. O lugar informal, como o território irregular das ocupações, é representado como um espaço atrasado, que deve ser integrado à temporalidade da cidade-legal. E, da mesma forma, as pessoas que ali vivem têm sua cidadania contida e limitada pelo espaço-tempo da espera por regularização e por integração. São essas figuras que, por exemplo, condicionam o direito de se ter acesso a benefícios sociais ou diferenciam legitimidades de uso da terra, distinguindo posse nova e posse velha das ocupações urbanas, de forma a atribuir direitos e garantias à população que vive no território a depender do período que ali levam. Também é essa representação que impõe uma dinâmica linear às negociações do conflito, não diferenciando ritmos e procedimentos a depender dos acontecimentos vivenciados no território, como a morte de pessoas e companheiros de luta e as celebrações comunitárias.

As abordagens atentas ao giro espacial no direito podem recompreender as situações jurídico-espaciais em suas distintas temporalidades: o tempo dos negócios do Estado-capital; os atalhos das resistências e os tempos abertos pelas novas táticas de enfrentamento; o desenvolvimento cotidiano das ocupações urbanas, o ritmo do trabalho reprodutivo de cuidado e manutenção do território; o tempo da memória e das redes insurgentes de mobilização e de comunicação; o não tempo das mortes, a imobilidade do sofrimento e a duração incalculável dos tempos espirituais e das vitórias momentâneas. Os diferentes tempos são também distintos espaços. A espacialidade existe, embora ela não esteja disponível para descrever ou teorizar em si, e tudo o que podemos fazer é documentar várias práticas de governança que funcionam sobre pessoas e problemas governando, organizando, ou mudando os espaços.66 66 VALVERDE, 61.

2.3 Por uma teoria do direito sem vestes

No ambiente jurídico crítico, o giro espacial representa esforço epistêmico para se encontrar equilíbrio entre o mundo do discurso e o mundo da matéria. Por essa razão, além de rejeitar o caráter “despacializado” da dogmática analítica tradicional, essa aposta teórica pode ser um corretivo para a ênfase excessivamente discursiva e culturalista de determinadas abordagens sobre o direito, que acabam reiterando mecanismos de “ilusão de transparência” do espaço estatal e do direito. Por reposicionarem os fenômenos jurídicos em um ambiente geográfico e social expansivo, o materialismo-espacial explora extensiva e intensivamente o horizonte dessas críticas para dimensões concretas que foram negligenciados por abordagens orientadas ao discurso: os corpos, o espaço físico-geográfico, as edificações e entidades humanas e não-humanas. Não se trata de uma rejeição às abordagens ditas pós-estruturalistas: a compreensão dos ingredientes socioculturais do conhecimento, as críticas da subjetividade e da identidade e o ceticismo em relação às grandes narrativas continuam tão importantes como sempre.67 67 DAVIES, Margaret. Asking the Law Question.

Trabalhar com materialismo jurídico-espacial problematiza tanto a compreensão de que o direito teria uma base interna de fundamentação e legitimação, como o fazem as teorias de inspiração neokantiana do contrato social, quanto a noção de que o direito seria um fato social outro que poderia ser analisado por outras disciplinas, nas linhas traçadas pela sociologia crítica. Apostamos que direito e teoria do direito se co-constituem, trabalhando as abordagens jurídico-espaciais nos intervalos entre os saberes sociojurídicos tradicionais (ênfase nas análises empíricas) e os oriundos da teoria crítica (ênfase na dimensão teórica). A divisão entre abordagens internas ao direito e abordagens externas deve ser suspensa, a despeito de suas vantagens analíticas, para trabalharmos outros direcionamentos teórico-práticos que busquem compreender as emergências dos fenômenos jurídicos por meio dos corpos e das coisas que o produzem.

O direito que busca ser mais e tenta ser outra coisa68 68 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 57–58. responde a uma moralidade que não se encontra nas situações em que ele está inscrito – fala de uma moral transcendente e unitária que empurra desde fora. Quem é o homem médio, o que significa reputação ilibada e como se mede a posse de boa fé? Esses conceitos jurídicos tendem a antecipar juízos morais, anteriores à realidade vivida. Da mesma forma, a teoria jurídica presa ao ‘dever-ser’ envolve e orienta a racionalidade do direito moralmente, como se houvesse um compromisso maior que o direito devesse cumprir, a despeito dos acontecimentos cotidianos. Ainda, as abordagens que enredam os eventos jurídicos, acertadamente, no ambiente simbólico da linguagem, problematizando as circunstâncias “totais” que tornam possíveis determinados saberes e práticas, podem, por vezes, contar histórias que parecem muito grandes, em razão do emaranhado discursivo das teorias, mas que invisibilizam, justamente, as coisas e os corpos que produzem e perfomam o direito.

Para trabalhar da perspectiva situada, levando em conta a experiência histórica, há que se apostar em uma teoria do direito “sem vestes”, uma teoria menor.69 69 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mil Platôs - Volume 2, Edição: 2 (São Paulo: Editora 34, 1995), 43. Adota-se aqui a noção de “menor” desenvolvida no trabalho desses autores. “A maioria, na medida em que é analiticamente compreendida no padrão abstrato, não é nunca alguém, é sempre Ninguém, ao passo que a minoria é o devir de todo o mundo, seu devir potencial por desviar do modelo. Há um "fato" majoritário, mas é o fato analítico de Ninguém que se opõe ao devir-minoritário de todo o mundo. É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado, criativo”. Menos, minoria, minorado e minoritário, um direito que não quer transcender a si mesmo, que se acha no mesmo plano das situações em que se inscreve, pode ser teorizado nas linhas dos seus próprios desdobramentos espaciais. E, ainda, uma teoria menor pode agarrar o comprometimento com as circunstâncias de opressão, as minorias situadas, abrindo espaço para o devir-menor potencial e criativo daqueles que se desviam dos saberes e das práticas hegemônicas. A teoria “sem vestes”, desavergonhadamente, abandona as roupagens normativas moralizantes, bem como as fardas do rigor analítico, sem renunciar à disputa pela produção do conhecimento objetivo crítico. As abordagens do materialismo jurídico-espacial aqui defendidas, disputam a produção de verdade, reconhecendo que o caráter mais ou menos objetivo dos saberes e das práticas no âmbito do direito dependem da força de suas conexões com os corpos e as ideias.

O direito é e produz status, julgamento e fronteiras, mas é também movimento, distâncias e sentidos – ao se dar com o espaço, a juridicidade é simultaneamente corpo e matéria, ideia e conceito. A aposta minoritária da teoria deve encarar a coextensão entre materialidade e imaterialidade dos acontecimentos jurídico-espaciais, porque direito e espaço são ambos coisas e símbolos a se criarem mutuamente. “O que o espaço traz para o direito não é apenas os benefícios específicos da concretude e da geografização. É isso também, mas ele traz ainda o imaterial – o que não implica uma metáfora, mas o sentido em que a materialidade do ato é entendida, normalmente como uma ideia”.70 70 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 34. As imaginações espaciais e seus conceitos, o lugar informal, o posseiro, a prisão, a fronteira, a cidade, são ideias que fazem direitos no presente, corporificam-se e condicionam as formas de vida.

O giro espacial nos permite compreender as vicissitudes do processo de despacialização do direito e avaliar suas virtudes e necessidades. Uma teoria do direito menor, sem vestes, pensa sobre os mecanismos de invisibilização da materialidade jurídica em um esforço posicionado: como, onde e porque a despacialização do direito ocorre, quem e o que são afetados? 71 71 O processo de afetação é aqui entendido nas linhas traçadas por Andreas, como um fluxo sensorial, emocional e simbólico circulando entre os corpos. Como conexões entre o corpo e o mundo, os afetos podem ser explorados e dirigidos numa direção determinada. Nesse sentido, ver: PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 109 e 117. E, ainda, o que o espaço traz para o direito? Aceitar que o direito é corporificado e espacial significa que os corpos participam de sua emergência e a existência de outros espaços, dentro e além do alcance jurídico, devem ser levados em conta. Afinal, “a materialidade do direito não se resume às Cortes e às perucas, mas à maneira como o jurídico localiza a si mesmo, suas medidas, seus comandos e proibições que determinam a afinidade e a distância entre os corpos que o constituem”.72 72 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 55. Sendo parte do processo, o direito é afetado por esses corpos e suas relações até certo ponto que o direito mesmo se move, transformando suas qualidades e sua localização espacial.73 73 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 35. Caso contrário, as dinâmicas da vida intermediada juridicamente seriam como um jogo de soma zero – os reveses da concretude não seriam capazes de alterar os resultados sociais formulados pela forma-jurídica.

Sem vestes, a teoria escreve-se mais com as coisas e com as ideias, do que sobre elas, aproximando-se, em distintos graus, dos corpos e das matérias que produzem o direito. Ao se dar conta de seus movimentos, as mudanças de posição no tempo e no espaço das matérias, a teoria pode abordar, perceber e analisar alterações que esses fenômenos trazem aos acontecimentos estudados. Quando os corpos se movem, é possível que as mudanças de posição afetem o registro dos conflitos e das situações jurídicas, podendo provocar arranjos que não estavam lá antes e serem capazes de produzir significados e experiências com chance de futuros melhores.

Compreender direito e espaço em uma co-constituição é também reconhecer que os acontecimentos jurídico-espaciais emergem dos corpos que os constituem – e não de uma transcendência. São os atos de tomada de território e início das ocupações urbanas de moradia, bem como a resposta judicial dos supostos donos da área que fazem emergir a relação jurídico-espacial entre proprietários, posseiros e estado – e não o mecanismo de subsunção da regra do artigo 554 e seguintes do Código de Processo Civil, que ditam sobre as ações possessórias. E, os vai-e-vem dos conflitos, compondo táticas legais e extralegais dos envolvidos, alteram tanto o conteúdo, a consequência e o lugar do direito e dos corpos. Direito e espaço são constantemente reorientados e renegociados na pragmática de se fazer mundos – num contexto estruturado por injustiças e desigualdades.

Seguindo as principais apostas da virada espacial, a teoria do direito sem vestes enreda-se com a contingência, a biopolítica e a temporalidade própria dos acontecimentos jurídico-espaciais, para experimentar imaginações teóricas – rentabilidades possíveis para abordagens críticas do direito. Para trabalhar essas questões, em prática antropofágica, agarramos e emprestamos, sobretudo, conceituações e ferramentas de discussão de Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos sobre justiça espacial, as combinamos com as direções dadas por Antonio Negri e Michael Hardt quando tratam da necessária virada para os corpos74 74 Os autores constroem essa critica em diálogo franco com as teóricas feministas. Para aprofundamento da discussão, ver FRANZONI, “O direito & o direito”, cap. A polifonia jurídico-espacial. a ser enfrentada pelos marxismos e nos atentamos para os alertas de Mariana Valverde sobre o risco de as teorias fetichizarem o espaço.

Já se disse que a forma-jurídica é uma abstração-concreta e que tanto o direito quanto o espaço devem ser trabalhados do ponto de vista material e imaterial. E isso importa? Não fetichizar a materialidade do direito, fazendo dele com o espaço, algo menor, importa para compreender a co-constituição entre o jurídico e o espacial, explorando as multifacetadas possibilidades e as diversas temporalidades envolvidas nos acontecimentos como um continuum, na terminologia usada por Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos. O modo ‘informal’ de vida das ocupações de moradia não está além, nem tampouco é incólume à cidade capitalista, o modelo hegemônico de cidade-empresa. Não há dentro e fora, mas uma continuidade que se desenrola por rupturas e suas ilusões – como trabalhado nos exemplos das armadilhas territoriais do espaço estatal. “O continuum é um ainda que muitos e, não raro, sobrepostos”75 75 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial Justice, 9. Tradução nossa. – o que não significa negar que há arranjos jurídico-espaciais, aqui e agora, melhores do que outros.

Como afirmam Hardt e Negri, a relação entre capital e direito define uma estrutura de poder paradoxal que é ao mesmo tempo extraordinariamente abstrata e totalmente concreta. Por um lado, as estruturas jurídicas são representações abstratas da realidade social, relativamente indiferentes aos conteúdos sociais e, por outro, a propriedade capitalista vem definindo as condições concretas da exploração do trabalho76 76 HARDT, Michael, e NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Mass: Belknap Press of Harvard Univ. Press, 2009. p. 22. e dos corpos de forma geral. Não se trata de buscar saída, de insistir em superação ou em um direito (mesmo espacializado) que queira ser algo maior. O devir-minoritário da teoria orienta-se aqui para discussão das escalas e das condições de invisibilização da materialidade no direito, porque (i) são elas que dizem sobre as formas de violência atuais e, ainda, (ii) seu enfrentamento, via rupturas e suspensões, rearranjam os aparatos de negação da vida, reposicionando os corpos e suas situações de produção e reprodução.

Relativismo, fluxos e nomadismos são palavras da moda, como alertaram Donna Haraway e Doreen Massey77 77 HARAWAY, Donna. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies 14 (1988): 575–99 e MASSEY, Doreen. “‘Some Times of Space.’” In Olafur Eliasson: The Weather Project., 107-118. London: Tate Publishing, 2003. . Portanto, ao trabalhar as abstrações-concretas, aqui e agora, importa quem se move e como. A propriedade privada, em sua forma capitalista, produz uma relação de exploração em seu sentido mais completo – a produção do ser humano como mercadoria – e exclui de vista a materialidade das necessidades humanas e a materialidade vivida da pobreza78 78 HARDT e NEGRI, 23. . Não é equivalente destruir milhares de casas autoconstruídas pela população pobre e majoritariamente negra de ocupações urbanas, para construir milhares de unidades habitacionais por um programa de governo, ou oferecer aos afetados ‘vaucher-moradia’ do aluguel social. Mais do que falar do controle biopolítico, é para o funcionamento do direito que o giro espacial aponta: afinal, “o direito só pode controlar dentro da matéria”.79 79 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 66. Tradução nossa. O devir-menor da teoria deve mover-se em direção a uma perspectiva que, como diagnosticam Hardt e Negri, tinha sido difícil de reconhecer na tradição marxista: o ponto de vista dos corpos – aqueles que sofrem, que lutam, que cuidam e que compartilham o continuum em posições arriscadamente desiguais.

Não basta se opor à ideologia(s) do direito(s), desiludir-se quanto às “ilusões de transparência” do espaço estatal e enfrentar a causalidade dialética das teorias – a perspectiva dos corpos exige que essas batalhas sejam “organizadas politicamente”.80 80 HARDT e NEGRI, 25. Do ponto de vista das lutas urbanas das ocupações de moradia, a luta pela defesa do território não se resume ao apelo ao morar, mas a possibilidade legítima de ocupar a cidade, de manter diferentes modos de vida, de mulheres trabalhadoras, negras ou queers disputarem a produção do espaço e desafiarem a lógica do já planejado. As referências à produção e reprodução econômicas não podem esquecer a centralidade dos corpos – não só o trabalhador tem seu corpo mercantilizado, mas também são violentados corpos marcados pelo lugar, pela raça, pelo gênero, pela sexualidade. A perspectiva dos corpos e de seu poder pode desafiar a disciplina e o controle exercidos pela república proprietária – “a crítica à propriedade deve transformar-se na crítica dos corpos”.81 81 HARDT e NEGRI, 27. O compromisso com a experiência vivida, imergindo no ser concreto e determinado corresponde a epistemologia fundamentada no terreno da luta que não só desencadeia a crítica da atual realidade de dominação, mas também anima a constituição de outra realidade.82 82 HARDT e NEGRI, 121.

A posição da aposta na teoria do direito menor coincide com o lugar – incomensurável – onde a potência dos corpos emerge em luta contra as situações de opressão e, desde aí, pode-se enxergar rastros em que os acontecimentos jurídico-espaciais dizem sobre experiência com mais chance de futuro. Os instrumentos de navegação no itinerário aberto pelas situações são também rupturas que por meio da quebra do continuum podem permitir a reorganização do que está adentro – as suspensões emergem e rompem daí, permitindo a manifestação da singularidade e da agência material dos corpos.83 83 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 40. Para Andreas, as rupturas e as suspensões (withdrawal) permitem a emergência de um espaço de renegociação e de reorientação dos corpos no continuum, sendo multidirecional e não previamente orientadas. A despeito de o autor trabalhar essa ferramenta também como uma condição ontológica de todos os corpos – todo corpo suspende e rompe –, estou interessada em discutir as suspensões/rupturas como movimentos de fuga das atmosferas juridicamente engenhadas e seu potencial para emergência de arranjos mais potentes aqui e agora.

Vimos trabalhando como a tendência à despacialização do direito opera para perpetuar seus mitos de universalidade e unidade, em menoscabo às dimensões da espacialidade que entoam a diferença e a simultaneidade das experiências de vida. A despacialização constrói a ilusão de transparência do jurídico e permite o controle sobre os corpos e os territórios. Esses mitos servem para eternizar a identidade fixa, os mecanismo institucionais de representação que afastam as pessoas dos processos reais de decisão e a propriedade privada, construindo uma “distinção aparente entre exterior e interior”, uma atmosfera que aparece como emergente e não construída.84 84 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 129. O espaço-estatal, operando pelas armadilhas territoriais que eclipsam as diferenças trazidas pela materialidade, é atmosférico, no sentido de aparentar-se espontâneo, necessário, inevitável e, ainda, agir de forma sensorial e emocionalmente compreensiva.

Pensemos uma situação. Quando o atual prefeito da cidade de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em atos de campanha eleitoral entoou “a Izidora [ocupações urbanas de moradia] também é BH, também tem que funcionar”85 85 MOTTA, Felipe. “Kalil quer regularizar Isidora e João Leite diz que manterá 25% em saúde”. Jornal Hoje em Dia, 10 de dezembro de 2016. http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/kalil-quer-regularizar-isidora-e-jo%C3%A3o-leite-diz-que-manter%C3%A1-25-em-sa%C3%BAde-1.419853. , além de indicar uma falsa ausência de estado nas ocupações, (i) afirma que só funciona lugar que existe como cidade formal e (ii) transforma BH num território uniforme, terreno idílico onde ‘tudo funciona’. A invisibilização do espaço é condizente com um discurso que se orienta para cidade-mercado e criminaliza as ocupações urbanas como lugar violento e precário onde as coisas não funcionam. A fala do prefeito opera atmosfericamente, compondo um regime de visualização em que o estado – ele, prefeito – aparece como salvador. Um olhar crítico, contudo, reconhece que as carências e os problemas no território da Izidora, como a falta de infraestrutura urbana técnica e social, são ações – omissivas ou comissivas – do estado. E, ainda, a suposta ausência estatal é dissimulada em enredo que tende a esconder e a negar a vida na Izidora que insiste em funcionar.

Da forma como trabalhado por Philippopoulos-Mihalopoulos, o regime de in/visibilização entre direito e espaço dá-se em graus e escalas – da lawscape, uma espécie de paisagem ativa constituída mutuamente pela presença do direito e do espaço em dinâmicas de dissimulação, à atmosfera, momento em que o disfarce da despacialização atinge o grau máximo da aderência repetitiva dos corpos, bem como da sua imperceptibilidade cotidiana.86 86 Mariana Valverde, referindo-se ao trabalho de David Delaney e seu emprego do termo “nomosfera” para trabalhar a co-constituição entre direito e espaço, critica o uso de neologismos filosóficos. Essa mesma crítica poderia ser dirigida ao trabalho de Andreas e aos termos lawscape e atmosfera. Segundo a autora, ao utilizarem a forma gramatical de substantivos, esses termos correm o constante risco de reificarem as relações sociais e reduzirem o tempo à empiria dos fatos. A existência da materialidade em todas as formas de governança não passa a posicionar-se pela utilização dos conceitos. Contudo, mesmo atenta às ponderações da autora, considero relevante a utilização da terminologia como um guia e um reforço do cruzamento necessário entre direito e espaço e da criação uma linguagem mais aberta à análise das relações sociais de forma situada. Nesse sentido, ver: Mariana Valverde. “‘Time thickens, takes on flesh’. Spatiotemporal Dynamics in Law”. In The expanding spaces of law: a timely legal geography, 53–76. Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014. Os corpos que apresentam a si mesmos em posições diferentes das que eles realmente ocupam, dissimulam. Para dizer o mesmo, os mecanismos de ilusão de transparência do espaço estatal não são apenas imagéticos, escondem algo que está aí. A dissimulação opera no sentido marxista da inversão que contém (e reduz) contradições por meio da geração de distância entre essência e aparência, nas paisagens jurídico-espaciais. Esse processo de invisibilização entre direito e espaço, portanto, mais do que um conceito fenomenológico, refere-se ao movimento ontológico da lawscape, como rupturas no continuum em que o jurídico e o espacial, dimensões co-constitutivas, auto-dissimulam-se.87 87 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 90.

Esse processo de interação jurídico-espacial em dinâmicas onde um esconde e guarda a presença do outro é “a forma como o espaço e o direito compõem a sua tautologia como diferença”:88 88 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 39. a lawscape não conforma uma conexão dialética, mas um enredamento excessivo, não-causal, que permite direito e espaço emergirem dependendo das condições. Como corpo e também como instrumento, a lawscape autoperpetua-se em um movimento autopoiético, mas também pode ser usada estrategicamente,89 89 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 76. Para Andreas, a lawscape é imanente, fractal – perpetuando-se como rupturas no continuum – e pós-humanista, afetando-se pelos corpos numa perspectiva não antropocêntrica. sendo esta característica um importante meio de entrada para o mapeamento de situações jurídico-espaciais de conflito.

Descrita como uma ontologia de afetos difusa que não pode ser controlada centralmente90 90 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 74. , a lawscape não é, para nada, um instrumento a serviço de uma elite. Contudo, porque não responde a um comando central e determinado, os processos de invisibilização entre direito e espaço não são menos hierárquicos e violentos. Conversando com Hardt e Negri, a passagem para um modelo de soberania imperial, compressiva, aderente e também difusa não nega a existência atual de mecanismos verticais de poder negadores da vida – como a conjugação de forças entre determinados países, organizações internacionais e multinacionais.91 91 NEGRI e HARDT, Império, itens 2.4 a 2.6. Em um mundo estruturado por desigualdades perigosas, interessa mais que arranjos compõem que tipo de paisagem jurídico-espacial e como essa lawscape pode, ainda que virtualmente, desenvolver e abrigar experiências menos ameaçadoras da vida.

As situações de conflito jurídico-espaciais contam sobre a contínua suspensão e refazimento das dinâmicas de invisibilização entre direito e espaço que reposicionam, a todo tempo e com muito custo, a posição dos corpos nesse contexto. A tendência de despacialização do jurídico é a constante a sufocar e neutralizar os corpos e os afetos resistentes, de forma que, em situações variadas, impõe-se a atmosfera do Estado-capital, em que as diferentes dimensões da vida são cercadas por afetos intermediados pela propriedade privada. Como demarca Philippopoulos-Mihalopoulos, a atmosfera é construída por uma engenharia que mobiliza a despacialização do direito, emergindo em todos os corpos que integram sua constituição – nós fazemos parte, como coatores e cúmplices. Ao criar uma miragem do interior e do exterior, a exemplo da “Izidora que tem que funcionar como BH”, a atmosfera promove ainda uma ilusão de síntese que é aliada das estratégias de unidade da forma-jurídica.92 92 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 141–43. Todos podem integrar-se em porções dessa cidade, bastando, apenas, adquiri-las.

Por essa razão, a atmosfera também pode abrigar relações de conflito e de ambientes de resistência como um continuum que se apresenta na forma do dentro versus o fora: a existência do lugar informal em disputa não nega a atmosfera da cidade-empresa como o espaço que funciona. Muitas vezes, é a existência dos contrários e dos corpos em luta que sustenta e mantém o envolvimento atmosférico – os outros desviantes estariam em estado de transformação no Mesmo, em prática de igualar-se e de incluir-se. Contudo, a engenharia por detrás dos processos de dissimulação do espaço no direito não precisa funcionar por meio de uma intencionalidade determinada, ou por um desenho consciente. A atmosfera é algo construído, mas também emergente93 93 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 137. Os afetos que produzem a atmosfera não têm uma origem – o corpo ou o mundo – mas são materializados na perspectiva de um corpo. Essa perspectiva conecta o corpo com o mundo e envolve os sentidos num significado sinestésico de sentidos misturados, p. 118. – respondendo mais à imprevisibilidade dos eventos do que ao planejamento dos agentes. O excesso de afetos e a impossibilidade de capturá-los totalmente são as características mantenedoras dessa implicação atmosférica entre os corpos. E, ao mesmo tempo, a condição que permite a contingência e a abertura de espaços usados em sentidos diversos de quando a atmosfera foi construída.94 94 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 138.

Os posicionamentos no espaço – a luta por ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo – são controlados potencial ou atualmente pelo direito e é aí que a questão da justiça espacial se faz importar.95 95 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 175. A suspensão e a ruptura do continuum relacionam-se como um movimento a partir do qual os corpos podem reorientar as dobras jurídico-espaciais e negociar os regimes de invisibilização entre espaço e direito, reposicionando-se em situações mais ou menos favoráveis à sua reprodução. Nesse contexto, a temporalidade não responde a uma dada cronologia dos eventos ou à mera empiria do aqui e agora, mas às transformações que renegociam os aspectos e resultados das dinâmicas de invisibilização. Para Philippopoulos-Mihalopoulos, a justiça espacial, para além das discussões sobre consenso racional e distribuição equitativa, emerge da necessidade de os corpos romperem e suspenderem as posições fixas de uma dada atmosfera, retornando ao espaço de manobra da lawscape.

Essa justiça não fala sobre a existência de outros mundos, mas trata de reorientar o mundo atual para permitir que diferentes lawscape insurjam.96 96 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 197–98. E, portanto, a tarefa - tanto epistêmica quanto política - não é a de compreender e de interpretar os acontecimentos jurídico-espaciais, mas a de multiplicar o mundo que já está aí. Essa conceituação de justiça, materialista e situada, pode articular-se com as apostas por uma teoria do direito menor. As disputas por posições espaciais são também lutas por direitos como processos de tomada de controle dos usos, símbolos e coisas projetadas nas situações jurídico-espaciais, movimentando e recriando os arranjos dos corpos e suas condições de produção da vida em um devir-minoritário, que não se reconhece nas mediações transcendentes da forma-jurídica convencional.

Os muros epistêmicos que prendem a teoria jurídica nos dualismos entre público e privado, lícito e ilícito, estado e sociedade, devem ser derrubados por uma teoria do direito menor que torne imprecisas as fronteiras e os binarismos da forma-jurídica. A proposta que se aproxima da radicalidade do materialismo espacial salta da alcova atmosférica da auto-reflexividade identitária (o sujeito de direitos proprietário), para apostar na “proliferação de multiplicidades”.97 97 CASTRO, Metafísicas canibais. O devir-menor da teoria perfaz o giro espacial abraçando as variações contínuas dos acontecimentos, entendendo a contingência espaço-temporal ao mesmo tempo que se compromete com as posições minoritárias – as situações e os corpos oprimidos no presente.

3. Só não há determinismo onde há mistério: agendas de pesquisa

Nosso norte é o sul, como entoa o Manifesto Antropofágico, traduzido aqui na imersão nas lutas dos subalternos e explorados, consideradas como a “matriz de todas as relações institucionais e todas as figuras da organização social”.98 98 HARDT e NEGRI, Commonwealth, 24. A teoria sem vestes, justamente porque vestida de algo, é também exercício de ficção jurídica – uma especulação fabulativa do direito, lembrando Donna Haraway99 99 HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. First Edition edition. Durham: Duke University Press Books, 2016. . O esforço não é mera barroquice acadêmica (mas é também, convenhamos). No que as discussões objetivo-críticas com e sobre a base real da reprodução da vida altera nossas imaginações teóricas, ao ponto de rediscutir categorias e ideias? Tomando emprestada a expressão de Viveiros de Castro, propomos “experimentar uma imaginação”,100 100 CASTRO, 27–28. em que o plano pré-conceitual de onde emerge o ‘devir-sem roupa’ da teoria jurídica parte do esforço imaginativo enraizado na própria realidade que se estuda e se trabalha. “Não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão”101 101 CASTRO, 218. – as abordagens do materialismo jurídico-espacial em que apostamos, desenvolvem eixos provisórios de verdade que multiplicam este mundo, fazendo ver e falar outros mundos possíveis.

As rupturas e as suspensões com a ilusão de transparência do estado e do direito, a atmosfera que pela afetação dos corpos envolvidos neutraliza ao máximo a presença da materialidade no direito, são relevantes e importam na medida em que desafiam as situações de violência e de opressão. Importa, no projeto insistente do pensar, desdobrar e denunciar tanto as engenharias por traz das dinâmicas de invisibilização, como as suspensões e rupturas que, ao romperem a redoma atmosférica – ilusória e real, renegociam e reorientam as imbricações entre espaço e direito, reposicionando os corpos e o registro dos conflitos. Como operações jurídico-espaciais, as rupturas não se tratam só de resistência, mas também de reorientação espacial:102 102 PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 211. mudam a posição e a situação dos corpos, renegociam onde e o que está em jogo, alterando a afetação do direito e sua materialidade.

A promessa inicial de atravessar as sendas da virada espacial no direito com compromisso pedestre, esbarra na impossibilidade de trazer, neste texto, experiências situadas em abordagens atuais do materialismo jurídico-espacial. O que estamos convidando a teorizar, já é esforço presente construído por diferentes abordagens de pesquisadores que compartilham enredos entre direito, espaço/corpo e política. Algumas agendas teóricas têm sido debatidas e construídas neste movimento, em ao menos três frontes: (i) métodos especulativos na teoria jurídica; (ii) as formas-jurídicas do Estado-Capital e (iii) direitos e a perspectiva dos corpos103 103 A divisão proposta para apresentar, brevemente, investigações atuais no campo do materialismo jurídico-espacial no Brasil, é recortada a partir das três linhas de pesquisa do Labá – Direito, Espaço & Política. Este laboratório de investigação teórico-prática de experiências e de saberes que enredam direito e espaço na sua constituição, tem sede na FND-UFRJ. As apostas discutidas neste ensaio são fruto de debates travados ao longo dos últimos anos entre os(as) pesquisadores(as) do Labá, Julia Ávila Franzoni (professora da FND-UFRJ); Giovanna Bonilha Milano (professora do Instituto das Cidades - UNIFESP); Leandro Frankling Gosdorf (professor do Direito-UFPR); Rosângela Marina Luft (professora do IPPUR-UFRJ); Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino (doutorando do PPGD-UFPR) e Álvaro Pereira (professor do Direito-UNIFESP). Evidentemente, esse recorte é meramente ilustrativo e não tem nenhuma pretensão de dar conta do campo mais amplo que vem discutindo “novos materialismos” e a “virada especulativa” na teoria jurídica. . Evidentemente, essas linhas se cruzam, se sobrepõe e se afastam a depender dos compromissos e agenciamentos das pesquisas.

A virada espacial na teoria do direito traz consigo preocupações epistêmicas e metodológicas. Problemas relativos à forma e ao conteúdo das abordagens são também centrais para agarrar os compromissos materialistas na sua radicalidade. Diferentes investigações têm se debruçado sobre este tema, experimentando fazer teoria questionando os formatos analíticos e textuais tradicionais. O diálogo constante com as teorias feministas, levando em conta os deslocamentos provocados pela teoria da reprodução social, bem como os ensinamentos da perspectiva situada, produz outras apostas de método e de apresentação das investigações jurídico-espaciais: etnografias combinadas à contação de estórias para discutir direito à cidade, conflitos fundiários e planejamento urbano, ou, ainda, para debater atravessamentos classistas, racializados e generificados do sistema de justiça.104 104 Ver os trabalhos: FRANZONI, Julia Ávila. “O direito & o direito: estórias da Izidora contadas por uma fabulação jurídico-espacial”. Tese. Faculdade de Direito e Ciências do Estado. UFMG. Belo Horizonte, 2018. ISAÍAS, Thaís Lopes Santana. “Mulheres em luta: feminismos e Direito nas ocupações da Izidora”. Dissertação, Direito - Universidade Federal de Minas Gerais, 2017. ALBURQUEQUE, Mariana Imbelloni Braga. “De quantos caminhos se faz um direito? Mobilidade e gênero nos quadros de cidade”. Dissertação. PUC do Rio de Janeiro, 2019. Essas apostas conversam também com as abordagens que se constroem como cosmopolíticas, questionando os apelos científicos que insistem em separar natureza e cultura, saber e política, na disputa pela produção de verdades. Ao abrirem caminhos teóricos a partir de mapas etnográficos, investigações jurídicas desse campo buscam multiplicar mundos que já estão aqui: enredos que contam dos direitos dos povos de terreiro para problematizar noções fundantes do pensamento jurídico moderno, como nomos e apropriação, amarrando “ebós epistemológicos” às tramas tradicionais e provocando “transes” nas categorias jurídicas da propriedade105 105 Neste sentido, ver os diferentes trabalhos do pesquisador Thiago Hoshino, atrelados ao “direito achado na encruza”: HEIM, Bruno Barbosa; ARAÚJO, Maurício Azevedo; HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro (org). Direito dos Povos de Terreiro. Salvador: EDUNEB, 2018 (ver prefácio) e HOSHINO, Thiago A. P. Axé como nonos da terra: uma teoria nativa da potência constituinte. Paper apresentando no encontro de grupos de direito constitucional. São Paulo: USP, Faculdade de Direito, 2018. .

A virada espacial na teoria do direito, como foi dito, problematiza também as continuidades presentes nas roupagens atuais da forma-jurídica. Quem é o Estado-Capital que se atualiza entre demandas de estabilidade (disciplina e normalização) e flexibilidade (governança regulatória e empresarial)? A convivência com distintas vestes de alienação na forma-jurídica impulsiona investigações que desafiam os limites das representações tradicionais do estado para problematizá-lo como relação, processo e escala. “Espacializar” o Estado-Capital é, estes casos, compreender a economia política dos problemas radicais do cotidiano – as políticas de austeridade, as agendas de financeirização impostas às políticas públicas ou a mercantilização dos direitos – com e sobre as redes de agentes, de interesses, de objetos e de territórios que os constituem. Discutir desafios jurídico-políticos ínsitos à urbanização periférica nas grandes cidades brasileiras, atinentes à regularização fundiária, à (in)segurança da posse, às capturas das instituições públicas, como o fazem pesquisas no campo do materialismo jurídico-espacial, é também compreender que a “ausência” de estado nos lugares ditos informais deve ser matizada, bem como deve se problematizar que os poderes territoriais das igrejas, do tráfico e de milícias aderem e/ou disputam os interesses do capital e do estado.106 106 Neste sentido, ver a (i) pesquisa-CNPq coordenada pela Professora Giovanna Milano, IC-UNIFESP, intitulada “Conflitos fundiários e violação de direitos na produção do espaço de Vila Bela, Zona Leste de São Paulo: propriedade como estrutura da urbanização periférica no século XXI” e (ii) a pesquisa e o projeto de extensão coordenados pela Professora Julia Franzoni, FND-UFRJ, intitulados “Cartografias jurídicas: mapeando conflitos fundiários urbanos”. Neste campo, podemos mencionar ainda investigações que apostam no conflito como método para recompreender o estado, no caso, o sistema de justiça, como mais um elemento jurídico-espacial de produção de violência e de exploração. Pesquisas recentes analisando decisões jurisdicionais em conflitos fundiários urbanos, em uma estratégia de investigação atrelada ao giro espacial, exploram as análises qualitativas e quantitativas de decisões sem reiterar o Poder Judiciário como lugar anterior aos conflitos107 107 MILANO, Giovanna Bonilha. Conflitos Fundiários Urbanos e Poder Judiciário. Curitiba: Editora Íthala, 2018. . A partir daí, a investigação pode penetrar nas estratégias jurídicas mobilizadas pelos operadores do sistema, denunciando as roupagens da forma-jurídica do despejo – a estética indiciária das ações possessórias ou a construção do “invasor-inimigo” nas decisões – como engenharia jurídica que invisibiliza a espacialidade própria dos conflitos e reitera a atmosfera da propriedade privada.

Do ponto de vista da produção de subjetividade, o giro espacial na teoria jurídica é também perspectiva dos corpos.108 108 Silêncio eloquente deste texto diz respeito aos cruzamentos entre a virada espacial no direito, a produção de subjetividades e a ecologia política em pesquisas relacionadas, sobretudo, aos novos materialismos, à mudança climática e ao pós-humanismo. Neste sentido, ver: DAVIS, Margaret. Law Unlimited. Materialism, Pluralism and Legal Theory. New York: Routledge, 2017. As metanarrativas normativistas e moralistas no direito parecem tão paralisantes quanto às atreladas ao pessimismo das teorias críticas. Quem pode dizer quando é tarde de mais para mudar algo? A tendência de despacialização do direito pode ser denunciada por investigações que desafiam as engenharias que constroem as ilusões de transparência do Estado-Capital. Contudo, este processo deve levar a sério que esses processos violentos de ocultação da matéria na forma-jurídica são produzidos justamente por corpos que ocupam posições marcadamente distintas nessas dinâmicas. São as posições desses corpos e sua (im)possibilidade de deslocamentos que podem alterar o registro dos conflitos e, nessa recomposição, construir arranjos para vidas melhores. Nessa toada, diferentes pesquisas têm se debruçado na tarefa de compreender os mecanismos de dominação e de exploração atrelados à forma-jurídica como acontecimentos jurídico-espaciais que co-constituem opressões de raça, sexualidade, gênero, classe, ou seja, que interseccionam não como mero efeitos diferenciais nos corpos, mas como razões que dão origem às dinâmicas de violência. Ainda, investigações que articulam o papel do direito e da arte nas lutas sociais com intervalos de situações em que grupos se mobilizam por expressão e performance (e não representação), para fazer valer seus direitos aqui e agora – um direito menor.109 109 Ver o trabalho de Leandro Franklin Gosdorf. “Arte e política a partir de "militantes" e "bichas": da resistência teatral à criação de direitos” Tese. Universidade Federal do Paraná, 2016. Debate-se, também, os limites da compreensão das lutas dos subalternados e dos explorados por direitos e por melhores políticas nas chaves da “superexploração” e da “reiteração da dominação”, uma vez que essas análises tendem a invisibilizar as potências (re)produtivas inscritas nas práticas e que se desenvolvem de maneira assimétrica e não equivalente aos processos do Estado-Capital. Nessas lutas, o universal do direito é trazido de volta de forma polêmica110 110 RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Edição: 1a. Boitempo, 2014. Como fala Rancière, há que se trazer de volta ao jogo o universal em forma polêmica, reinventar formas de subjetivação e de casos de verificação que contrariam a perpétua privatização da vida política, uma vez que a democracia está sempre aquém e além de sua completa identificação com uma forma jurídico-política (p. 72 e 81). , reinventando-se formas de subjetivação e de pertencimento que contrariam a perpétua privatização da vida.

Essas abordagens, como assentamentos de mundos, convidam a pensar que os futuros não estão dados e que podemos nos apropriar deles, proliferando as surpresas que já estão aqui e produzindo outras. Sem romantismo ilusório, mas encarnado, esse dimensionamento materialista-espacial invoca a necessidade de pensarmos e de agirmos neste mundo, abraçando os pontos de vista que cruzam cultura, ecologia e política. Em espécie de romantismo-tropicalista, unidos pela antropofagia – “contra as elites vegetaes, em comunicação com o solo”.111 111 ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofágico e outros textos.

  • 1
    Este artigo retoma reflexões desenvolvidas nas especulações fabulativa da minha tese de doutorado, defendida em março de 2018, sobretudo no que diz respeito às apostas epistêmicas atreladas à virada espacial no trabalho teórico-prático com o direito e suas repercussões de forma e de conteúdo para pesquisa jurídica. Ver: FRANZONI, Julia ÁvilaFRANZONI, Julia Ávila. “O direito & o direito: estórias da Izidora contadas por uma fabulação jurídico espacial.” Tese, Universidade Federal de Minas Gerais, 2018.. “O direito & o direito: estórias da Izidora contadas por uma fabulação jurídico espacial.” Tese, Universidade Federal de Minas Gerais, 2018. Agradeço à Giovanna Milano e ao Victor Marques pela leitura atenta da versão preliminar deste texto, interlocução crítica e sugestões que contribuíram definitivamente para o amadurecimento de algumas ideias e para continuação do debate em relação a tantas outras.
  • 2
    ANDRADE, Oswald deANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e outros textos (Grandes Ideias). São Paulo, SP: Penguin-Companhia, 2017.. Manifesto antropófago e outros textos (Grandes Ideias). São Paulo, SP: Penguin-Companhia, 2017.
  • 3
    Como exemplo e como referência, tomamos os trabalhos de estudos jurídicos críticos desenvolvidos nas diferentes fases do movimento atrelado à Critical Legal Studies nos EUA, sobretudo entre os anos 70 e 90. A título de exemplo, apontamos alguns textos clássicos: KENNEDY, Duncan. Form and Substance in Private Law Adjudication. Harvard Law Review, vol. 88, 1976, 647. TUSHNET, Mark. An Essay on Rights. Texas Law Review, v. 62, n. 8, 1984, 1363-1403. KELMAN, Mark. Trashing. Stanford Law Review, v. 36, 1984, 293-348. BELL, Derrick. Who's Afraid of Critical Race Theory. University of Illinois Law Review, 1995, 893-910. MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method, and the State: Toward Feminist Jurisprudence. Signs, v. 8, n. 4, 1982, 635-658.
  • 4
    Sobre o tema, ver: PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, AndreasPHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. “Quem tem medo do espaço? Direito, geografia e justiça espacial”. Traduzido por Maria Fernanda REPOLÊS, Julia Ávila FRANZONI, e Thiago HOSHINO. Revista da Faculdade de Direito da UFMG 70 (15 de fevereiro de 2018). https://doi.org/10.12818/P.0304-2340.2017V70P635.
    https://doi.org/10.12818/P.0304-2340.201...
    . “Quem tem medo do espaço? Direito, geografia e justiça espacial”. Traduzido por Maria Fernanda REPOLÊS, Julia Ávila FRANZONI, e Thiago HOSHINOFRANZONI, Julia Ávila e HOSHINO, Thiago de Azevendo P., “Direito à cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana”, Le Monde Diplomatique, Brasil, 8 de julho de 2016, seç. Direito à cidade em tempos de crise, http://diplomatique.org.br/direito-a-cidade-sa-a-casa-de-maquinas-da-financeirizacao-urbana/.
    http://diplomatique.org.br/direito-a-cid...
    . Revista da Faculdade de Direito da UFMG 70 (15 de fevereiro de 2018). https://doi.org/10.12818/P.0304-2340.2017V70P635.
  • 5
    BLOMLEY, NicholasBLOMLEY, Nicholas. “The Territory of Property”. Progress in Human Geography 40, no 5 (outubro de 2016): 593–609. https://doi.org/10.1177/0309132515596380.
    https://doi.org/10.1177/0309132515596380...
    . “The Territory of Property”. Progress in Human Geography 40, no 5 (outubro de 2016): 593–609. https://doi.org/10.1177/0309132515596380.
  • 6
    BRAVERMAN, Irus, Nicholas K. BLOMLEY, David DELANEY, e Alexandre KEDARBRAVERMAN, Irus, Nicholas K. BLOMLEY, David DELANEY, e Alexandre KEDAR, orgs. The expanding spaces of law: a timely legal geography. Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014., orgs. The expanding spaces of law: a timely legal geography. Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014. Introdução.
  • 7
    DAVIS, MargaretDAVIS, Margaret. Asking the Law Question; the Dissolutin of Legal Theory. Second Edition edition. Pyrmont, NSW: Lawbook Co., 2002.. Asking the Law Question; the Dissolutin of Legal Theory. Second Edition edition. Pyrmont, NSW: Lawbook Co., 2002. p. 97.
  • 8
    DELANEY, DavidDELANEY, David. The Spatial, the Legal and the Pragmatics of World-Making: Nomospheric Investigations, 1 edition (New York; Abingdon, Oxfordshire: Routledge-Cavendish, 2011.. The Spatial, the Legal and the Pragmatics of World-Making: Nomospheric Investigations, 1 edition (New York; Abingdon, Oxfordshire: Routledge-Cavendish, 2011), 4–5.
  • 9
    CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros deCASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (São Paulo: CosacNaify : n-1 Edições, 2015.. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (São Paulo: CosacNaify: n-1 Edições, 2015), 132.
  • 10
    Henri LefebvreLEFEBVRE, Henri. La production de l’espace, 4. éd, Ethnosociologie (Paris: Éd. Anthropos, 2000). fundamenta-se na crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria, comparando-a ao espaço tratado de forma inocente e ilusória. Dessa forma, a “ilusão de transparência” do espaço abstrato é uma forma induzida de consciência; uma abstração concreta.
  • 11
    DELANEY, David. The Spatial, the Legal and the Pragmatics of World-Making.
  • 12
    As apostas do materialismo feminista que influenciam nosso compromisso epistêmico (Donna Haraway, Doreen Massey, Chandra Monhaty, Lélia Gonzales, dentre outras), partem da perspectiva situada não para implicar relativismo casuísta na disputa pela produção de verdade. O saber situado produz conhecimento objetivo e crítico de forma atrelada à experiência histórica (THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981) na medida em que refaz o universal da ciência de forma polêmica, pela preeminência da perspectiva dos corpos, das singularidades e das diferenças – o que o torna capaz de produzir conhecimento novo e não prática de espelhamento. Para desenvolvimento dessa argumentação, ver capítulo “Polifonia espacial” da tese citada “O direito & o direito”.
  • 13
    LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace, 4. éd, Ethnosociologie (Paris: Éd. Anthropos, 2000), cap. IV. As preocupações de Lefebvre com a comoditização da vida cotidiana, o processo de urbanização e as políticas do espaço orientam sua crítica da economia política. O papel do estado na produção da espacialidade capitalista assume centralidade nas suas discussões, oferecendo sugestivas observações ainda relevantes para o debate contemporâneo.
  • 14
    LEFEBVRE, 333. Tradução nossa.
  • 15
    BRENNER, Neil e ELDEN, StuartBRENNER, Neil e ELDEN, Stuart, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, International Political Sociology 3, no 4 (dezembro de 2009): 373, https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2009.00081.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2009...
    , “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, International Political Sociology 3, no 4 (dezembro de 2009): 373, https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2009.00081.x.
  • 16
    BRENNER e ELDEN, 367.
  • 17
    SANTOS, MiltonSANTOS, Milton. O espaço do cidadão (São Paulo: EDUSP, 2007).. O espaço do cidadão (São Paulo: EDUSP, 2007), 18.
  • 18
    BRENNER e ELDEN, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, 358.
  • 19
    BRENNER e ELDEN, 372.
  • 20
    SANTOS, O espaço do cidadão, 18.
  • 21
    WEBER, Max; GERTH, Hans Heinrich e MILLS, C. Wright (Charles Wright), From Max WeberWEBER, Max; GERTH, Hans Heinrich e MILLS, C. Wright (Charles Wright), From Max Weber: Essays in Sociology (New York : Oxford university press, 1946), http://archive.org/details/frommaxweberessa00webe
    http://archive.org/details/frommaxwebere...
    : Essays in Sociology
    (New York : Oxford university press, 1946), http://archive.org/details/frommaxweberessa00webe. Não por acaso, essa imagem do espaço estatal como algo dado, naturalizado e constitutivo dos processos sociais (e não mutuamente constituinte) é o “tipo ideal” de Estado liberal moderno, reproduzido na popular e amplamente reproduzida construção weberiana: "a human community that (successfully) claims the monopoly of the legitimate use of physical force within a given territory" p. 78.
  • 22
    LEFEBVRE, La production de l’espace, 36. Tradução nossa.
  • 23
    AGNEW, JohnAGNEW, John. “The Territorial Trap: The Geographical Assumptions of International Relations Theory”, Review of International Political Economy 1, no 1 (março de 1994): 53–80, https://doi.org/10.1080/09692299408434268.
    https://doi.org/10.1080/0969229940843426...
    . “The Territorial Trap: The Geographical Assumptions of International Relations Theory”, Review of International Political Economy 1, no 1 (março de 1994): 53–80, https://doi.org/10.1080/09692299408434268. “The first assumption, and the one that is most fundamental theoretically, is the reification of state territorial spaces as fixed units of secure sovereign space. The second is the division of the domestic from the foreign. The third geographical assumption is of the territorial state as existing prior to and as a container of society. Each of these assumptions is problematic, and increasingly so. Social, economic, and political life cannot be ontologically contained within the territorial boundaries of states through the methodological assumption of 'timeless space'. Complex population movements, the growing mobility of capital, increased ecological interdependence, the expanding information economy, and the 'chronopolitics' of new military technologies challenge the geographical basis of conventional international relations theory”., p. 76-77. Os pontos aqui apresentados e redefinidos encontram-se detalhados no texto de introdução à obra State/Space: A Reader. Edited by Neil Brenner, Bob Jessop, Martin Jones and Gordon MacLeodBRENNER, Neil, Bob JESSOP, Martin JONES, e Gordon MACLEOD, orgs. State / Space: A Reader. 1 edition. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2003.. Oxford: Blackwell. 2003.
  • 24
    BRENNER e ELDEN, “Henri Lefebvre on State, Space, Territory”, 359.
  • 25
    LEFEBVRE, La production de l’espace, 330.
  • 26
    LEFEBVRE, cap. II.
  • 27
    HARVEY, DavidHARVEY, David, Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, Dialética (Martins Fontes, 2014)., Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, Dialética (Martins Fontes, 2014).
  • 28
    É o que já postulava Marcel Mauss ao afirmar que não há naturalidade nas trocas econômicas – elas foram criadas e, portanto, dizem sobre um processo histórico. “O homo oeconomicus não está atrás, está adiante de nós; assim como o homem da moral e do dever; assim como o homem da ciência e da razão. O homem foi por muito tempo outra coisa e não faz muito tempo que é uma máquina, com uma máquina de calcular que a complica”. In: MAUSS, MarcelMAUSS, Marcel. Ensaio Sobre A Dadiva - Coleção Portátil 25, Edição: 1a (Cosac & Naify, 2013).. Ensaio Sobre A Dadiva - Coleção Portátil 25, Edição: 1a (Cosac & Naify, 2013), 129.
  • 29
    BROWN, WendyBROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. First Edition. New York: Zone Books, 2015.. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. First Edition. New York: Zone Books, 2015. p. 9.
  • 30
    LAVAL, Christian e DARDOT, PierreLAVAL, Christian e DARDOT, Pierre, A Nova Razão Do Mundo: Ensaios Sobre A Sociedade Neoliberal, Edição: 1 (Editora Boitempo, 2016)., A Nova Razão Do Mundo: Ensaios Sobre A Sociedade Neoliberal, Edição: 1 (Editora Boitempo, 2016).
  • 31
    NEGRI, Antonio, e HARDT, MichaelHARDT, Michael, e NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Mass: Belknap Press of Harvard Univ. Press, 2009. Império. Barcelona: Paidós, 2000HARDT, Michael, e NEGRI, Antonio. Império. Barcelona: Paidós, 2000..
  • 32
    Nesse sentido: ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 1a̲ edição (São Paulo, SP: Boitempo, 2015).; NEGRI e HARDT, Império.; e HARVEY, David. The Ways of the World. London: Profile Books Ltd, 2016.
  • 33
    BRENNER, Neil. et al., orgs., State / Space: A Reader, 1 edition (Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2003), 25.
  • 34
    LAVAL e DARDOT, A Nova Razão Do Mundo, 277.
  • 35
    LAVAL e DARDOT, 192.
  • 36
    NEGRI e HARDT, Império, 12. Nessa nova arquitetura supranacional do poder no Império, no topo estariam os organismos internacionais e o organismo nacional norte americano; no meio as redes de empresas transnacionais e os organismos nacionais subordinados ao poder destas empresas; e na base a Mídia, a Igreja, os organismos nacionais e, principalmente, as ONGs que representariam os interesses da multidão. Embora os autores remarquem a existência desses três estratos de poder, a soberania imperial descrita na pirâmide não implica uma hierarquia estática entre os níveis, nem um equilíbrio funcional de poder. O que há é uma hibridização entre os poderes, o que, por vezes, abre caminho para multidão provocar abalos estruturais mediante lutas políticas contra o Império.
  • 37
    LAVAL e DARDOT, A Nova Razão Do Mundo, 182–85.
  • 38
    LAVAL e DARDOT, 17.
  • 39
    LAVAL e DARDOT, 151–55.
  • 40
    FRANZONI, Julia Ávila e HOSHINO, Thiago de Azevendo P., “Direito à cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana”, Le Monde Diplomatique, Brasil, 8 de julho de 2016, seç. Direito à cidade em tempos de crise, http://diplomatique.org.br/direito-a-cidade-sa-a-casa-de-maquinas-da-financeirizacao-urbana/.
  • 41
    BROWN, Undoing the demos, 151.
  • 42
    Político aqui assume o sentido de resgate da democracia – contraposto à política institucional – na forma defendida Wendy Brown em Undoing the demos, num diálogo com Rancière, na sua diferenciação entre política e polícia em: RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento politica e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
  • 43
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, AndreasPHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. “Law’s Spatial Turn: Geography, Justice and a Certain Fear of Space”, Law, Culture and the Humanities 7, no 2 (1o de junho de 2011): 2, https://doi.org/10.1177/1743872109355578.
    https://doi.org/10.1177/1743872109355578...
    . “Law’s Spatial Turn: Geography, Justice and a Certain Fear of Space”, Law, Culture and the Humanities 7, no 2 (1o de junho de 2011): 2, https://doi.org/10.1177/1743872109355578.
  • 44
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, AndreasPHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Spatial justice: body, lawscape, atmosphere. Space, materiality, and the normative. Milton Park, Abingdon, Oxon [UK]; New York, NY: Routledge, 2015.. Spatial justice: body, lawscape, atmosphere. Space, materiality, and the normative. Milton Park, Abingdon, Oxon [UK] ; New York, NY: Routledge, 2015, 15.
  • 45
    Ver, sobretudo, FOUCAULT, MichelFOUCAULT, Michel. “Des Espace Autres”. Architecture /Mouvement/ Continuité, 1984.. “Des Espace Autres”. Architecture /Mouvement/ Continuité, 1984 e Lefebvre, Henri. La production de l’espace.
  • 46
    Destacam-se aqui os trabalhos de Immanuel Wallerstein, Edward Soja, Doreen Massey, David Harvey, Antony Guiddens, dentre outros.
  • 47
    BRENNER et al., State / Space, 14.
  • 48
    DAVIS, Margaret. Asking the Law Question.
  • 49
    BLOMLEY, Nicholas K.; DELANEY, David e FORD, Richard T.BLOMLEY, Nicholas K.; DELANEY, David e FORD, Richard T., orgs., The legal geographies reader: law, power, and space (Oxford, UK; Malden, Mass: Blackwell Publishers, 2001)., orgs., The legal geographies reader: law, power, and space (Oxford, UK; Malden, Mass: Blackwell Publishers, 2001), Introdução.
  • 50
    DAVIES, Margaret. Asking the Law Question.
  • 51
    HILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 16.
  • 52
    BLOMLEY, DELANEY, e FORD, The legal geographies reader, XVII.
  • 53
    BRAVERMAN, Irus et al., orgs., The expanding spaces of law. Introduction-I.
  • 54
    BLOMLEY, DELANEY, e FORD, The legal geographies reader, XIX. Tradução nossa.
  • 55
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 21.
  • 56
    BRAVERMAN et al., The expanding spaces of law, Introdução. Esses autores mapearam três modos de preponderantes de pesquisa CLG: (i) o cruzamento de disciplinas, (ii) os engajamentos interdisciplinares, construindo as pontes entre espaço e direito; (iii) os estudos pós-disciplinares, antropologia cultural; pós-humanismo, pluralismo jurídico e pensamento descolonial.
  • 57
    KEDAR, AlexanderKEDAR, Alexander. “Expanding legal geographies. A Call for a Critical Comparative Approach.”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014.. “Expanding legal geographies. A Call for a Critical Comparative Approach.”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 96. Segundo o autor, campo de pesquisa da CGL tem se concentrado nos países anglo-saxões, de matriz de common law.
  • 58
    Trabalhei, de forma situada, a rentabilidade teórica da virada espacial no direito, a partir das dimensões da contingência/multiplicidade, geo-biopolítica e temporalidades, na tese citada “O direito & o direito”, dialogando, sobretudo, com autores aqui referenciados: Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos, Doreen Massey, Sarah Keenan e Mariana Valverde.
  • 59
    AZUELA, Antonio e MENSES-REYES, RodrigoAZUELA, Antonio e MENSES-REYES, Rodrigo. “The everyday formation of the urban space. Law and Poverty in Mexico City”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014).. “The everyday formation of the urban space. Law and Poverty in Mexico City”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 167.
  • 60
    KEENAN, SarahKEENAN, Sarah. Subversive Property. Law and the production of spaces of belonging. 1o ed. Social Justice. New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2015.. Subversive Property. Law and the production of spaces of belonging. 1o ed. Social Justice. New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2015. p. 34.
  • 61
    KEENAN, 6.
  • 62
    AZUELA e MENSES-REYES, “The everyday formation of the urban space.”, 169.
  • 63
    FRANZONI, “O direito & o direito”, capítulo “Cacofonias jurídico-espaciais”.
  • 64
    VALVERDE, MarianaVALVERDE, Mariana. “‘Time thickens, takes on flesh’. Spatiotemporal Dynamics in Law”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014).. “‘Time thickens, takes on flesh’. Spatiotemporal Dynamics in Law”, in The expanding spaces of law: a timely legal geography (Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014), 69. Pela porta de traz, a literatura atrelada à geografia jurídica crítica, pode estar trazendo de volta a falácia responsável por tratar tempo e espaço como entidades separadas. Segundo Mariana Valverde, a crítica de Kant relativa à metafísica objetiva do espaço e do tempo pode ser reavivada como antídoto contra tendência de objetificar e isolar o espaço: problema de capturar apenas um espaço da temporalidade, tratando tempo como histórica empírica. O espaço é inerente, não inevitável, no campo que mescla geografia e direito, p. 53.
  • 65
    VALVERDE, 63.
  • 66
    VALVERDE, 61.
  • 67
    DAVIES, Margaret. Asking the Law Question.
  • 68
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 57–58.
  • 69
    DELEUZE, Gilles e GUATTARI, FélixDELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mil Platôs - Volume 2, Edição: 2 (São Paulo: Editora 34, 1995), 43., Mil Platôs - Volume 2, Edição: 2 (São Paulo: Editora 34, 1995), 43. Adota-se aqui a noção de “menor” desenvolvida no trabalho desses autores. “A maioria, na medida em que é analiticamente compreendida no padrão abstrato, não é nunca alguém, é sempre Ninguém, ao passo que a minoria é o devir de todo o mundo, seu devir potencial por desviar do modelo. Há um "fato" majoritário, mas é o fato analítico de Ninguém que se opõe ao devir-minoritário de todo o mundo. É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado, criativo”.
  • 70
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 34.
  • 71
    O processo de afetação é aqui entendido nas linhas traçadas por Andreas, como um fluxo sensorial, emocional e simbólico circulando entre os corpos. Como conexões entre o corpo e o mundo, os afetos podem ser explorados e dirigidos numa direção determinada. Nesse sentido, ver: PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 109 e 117.
  • 72
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 55.
  • 73
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 35.
  • 74
    Os autores constroem essa critica em diálogo franco com as teóricas feministas. Para aprofundamento da discussão, ver FRANZONI, “O direito & o direito”, cap. A polifonia jurídico-espacial.
  • 75
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial Justice, 9. Tradução nossa.
  • 76
    HARDT, Michael, e NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Mass: Belknap Press of Harvard Univ. Press, 2009. p. 22.
  • 77
    HARAWAY, DonnaHARAWAY, Donna. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies 14 (1988): 575–99. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies 14 (1988): 575–99 e MASSEY, DoreenMASSEY, Doreen. “‘Some Times of Space.’” In Olafur Eliasson: The Weather Project., 107-118. London: Tate Publishing, 2003.. “‘Some Times of Space.’” In Olafur Eliasson: The Weather Project., 107-118. London: Tate Publishing, 2003.
  • 78
    HARDT e NEGRI, 23.
  • 79
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 66. Tradução nossa.
  • 80
    HARDT e NEGRI, 25.
  • 81
    HARDT e NEGRI, 27.
  • 82
    HARDT e NEGRI, 121.
  • 83
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 40. Para Andreas, as rupturas e as suspensões (withdrawal) permitem a emergência de um espaço de renegociação e de reorientação dos corpos no continuum, sendo multidirecional e não previamente orientadas. A despeito de o autor trabalhar essa ferramenta também como uma condição ontológica de todos os corpos – todo corpo suspende e rompe –, estou interessada em discutir as suspensões/rupturas como movimentos de fuga das atmosferas juridicamente engenhadas e seu potencial para emergência de arranjos mais potentes aqui e agora.
  • 84
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 129.
  • 85
    MOTTA, Felipe. “Kalil quer regularizar Isidora e João Leite diz que manterá 25% em saúde”. Jornal Hoje em Dia, 10 de dezembro de 2016. http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/kalil-quer-regularizar-isidora-e-jo%C3%A3o-leite-diz-que-manter%C3%A1-25-em-sa%C3%BAde-1.419853.
  • 86
    Mariana Valverde, referindo-se ao trabalho de David Delaney e seu emprego do termo “nomosfera” para trabalhar a co-constituição entre direito e espaço, critica o uso de neologismos filosóficos. Essa mesma crítica poderia ser dirigida ao trabalho de Andreas e aos termos lawscape e atmosfera. Segundo a autora, ao utilizarem a forma gramatical de substantivos, esses termos correm o constante risco de reificarem as relações sociais e reduzirem o tempo à empiria dos fatos. A existência da materialidade em todas as formas de governança não passa a posicionar-se pela utilização dos conceitos. Contudo, mesmo atenta às ponderações da autora, considero relevante a utilização da terminologia como um guia e um reforço do cruzamento necessário entre direito e espaço e da criação uma linguagem mais aberta à análise das relações sociais de forma situada. Nesse sentido, ver: Mariana Valverde. “‘Time thickens, takes on flesh’. Spatiotemporal Dynamics in Law”. In The expanding spaces of law: a timely legal geography, 53–76. Stanford, California: Stanford Law Books, an imprint of Stanford University Press, 2014.
  • 87
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 90.
  • 88
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 39.
  • 89
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 76. Para Andreas, a lawscape é imanente, fractal – perpetuando-se como rupturas no continuum – e pós-humanista, afetando-se pelos corpos numa perspectiva não antropocêntrica.
  • 90
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 74.
  • 91
    NEGRI e HARDT, Império, itens 2.4 a 2.6.
  • 92
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 141–43.
  • 93
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 137. Os afetos que produzem a atmosfera não têm uma origem – o corpo ou o mundo – mas são materializados na perspectiva de um corpo. Essa perspectiva conecta o corpo com o mundo e envolve os sentidos num significado sinestésico de sentidos misturados, p. 118.
  • 94
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 138.
  • 95
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 175.
  • 96
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 197–98.
  • 97
    CASTRO, Metafísicas canibais.
  • 98
    HARDT e NEGRI, Commonwealth, 24.
  • 99
    HARAWAY, DonnaHARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. First Edition edition. Durham: Duke University Press Books, 2016.. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. First Edition edition. Durham: Duke University Press Books, 2016.
  • 100
    CASTRO, 27–28.
  • 101
    CASTRO, 218.
  • 102
    PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Spatial justice, 211.
  • 103
    A divisão proposta para apresentar, brevemente, investigações atuais no campo do materialismo jurídico-espacial no Brasil, é recortada a partir das três linhas de pesquisa do Labá – Direito, Espaço & Política. Este laboratório de investigação teórico-prática de experiências e de saberes que enredam direito e espaço na sua constituição, tem sede na FND-UFRJ. As apostas discutidas neste ensaio são fruto de debates travados ao longo dos últimos anos entre os(as) pesquisadores(as) do Labá, Julia Ávila Franzoni (professora da FND-UFRJ); Giovanna Bonilha Milano (professora do Instituto das Cidades - UNIFESP); Leandro Frankling Gosdorf (professor do Direito-UFPR); Rosângela Marina Luft (professora do IPPUR-UFRJ); Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino (doutorando do PPGD-UFPR) e Álvaro Pereira (professor do Direito-UNIFESP). Evidentemente, esse recorte é meramente ilustrativo e não tem nenhuma pretensão de dar conta do campo mais amplo que vem discutindo “novos materialismos” e a “virada especulativa” na teoria jurídica.
  • 104
    Ver os trabalhos: FRANZONI, Julia Ávila. “O direito & o direito: estórias da Izidora contadas por uma fabulação jurídico-espacial”. Tese. Faculdade de Direito e Ciências do Estado. UFMG. Belo Horizonte, 2018. ISAÍAS, Thaís Lopes Santana. “Mulheres em luta: feminismos e Direito nas ocupações da Izidora”. Dissertação, Direito - Universidade Federal de Minas Gerais, 2017. ALBURQUEQUE, Mariana Imbelloni Braga. “De quantos caminhos se faz um direito? Mobilidade e gênero nos quadros de cidade”. Dissertação. PUC do Rio de Janeiro, 2019.
  • 105
    Neste sentido, ver os diferentes trabalhos do pesquisador Thiago Hoshino, atrelados ao “direito achado na encruza”: HEIM, Bruno Barbosa; ARAÚJO, Maurício Azevedo; HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro (org). Direito dos Povos de Terreiro. Salvador: EDUNEB, 2018 (ver prefácio) e HOSHINO, Thiago A. P. Axé como nonos da terra: uma teoria nativa da potência constituinte. Paper apresentando no encontro de grupos de direito constitucional. São Paulo: USP, Faculdade de Direito, 2018.
  • 106
    Neste sentido, ver a (i) pesquisa-CNPq coordenada pela Professora Giovanna Milano, IC-UNIFESP, intitulada “Conflitos fundiários e violação de direitos na produção do espaço de Vila Bela, Zona Leste de São Paulo: propriedade como estrutura da urbanização periférica no século XXI” e (ii) a pesquisa e o projeto de extensão coordenados pela Professora Julia Franzoni, FND-UFRJ, intitulados “Cartografias jurídicas: mapeando conflitos fundiários urbanos”.
  • 107
    MILANO, Giovanna Bonilha. Conflitos Fundiários Urbanos e Poder Judiciário. Curitiba: Editora Íthala, 2018.
  • 108
    Silêncio eloquente deste texto diz respeito aos cruzamentos entre a virada espacial no direito, a produção de subjetividades e a ecologia política em pesquisas relacionadas, sobretudo, aos novos materialismos, à mudança climática e ao pós-humanismo. Neste sentido, ver: DAVIS, Margaret. Law Unlimited. Materialism, Pluralism and Legal Theory. New York: Routledge, 2017.
  • 109
    Ver o trabalho de Leandro Franklin Gosdorf. “Arte e política a partir de "militantes" e "bichas": da resistência teatral à criação de direitos” Tese. Universidade Federal do Paraná, 2016.
  • 110
    RANCIÈRE, JacquesRANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Edição: 1a. Boitempo, 2014.. O Ódio à Democracia. Edição: 1a. Boitempo, 2014. Como fala Rancière, há que se trazer de volta ao jogo o universal em forma polêmica, reinventar formas de subjetivação e de casos de verificação que contrariam a perpétua privatização da vida política, uma vez que a democracia está sempre aquém e além de sua completa identificação com uma forma jurídico-política (p. 72 e 81).
  • 111
    ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofágico e outros textos.

Referências bibliográficas

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    » https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2009.00081.x
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2019
  • Aceito
    01 Out 2019
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