Resumo
As pesquisas e produções bibliográficas sobre o sistema de justiça juvenil criminal no Brasil têm se debruçado aos aspectos jurídicos e garantias de direitos específicos dos procedimentos relacionados à apreensão de adolescentes em flagrante, sem darem destaque às questões ligadas aos entraves para apuração de violências cometidas no momento das apreensões. Já em relação ao sistema de justiça criminal, a criação e as disputas relacionadas às audiências de custódia têm lançado luz aos primeiros momentos imediatamente após a prisão em flagrante de adultos e a importância da estruturação de uma rede de apoio do Estado para a coleta e o registro de eventuais violências cometidas no momento da prisão. Neste artigo, busca-se compreender em que medida a diferença entre os dois procedimentos cria uma dicotomia entre mecanismos de apuração de violências, quais seriam possíveis motivos para a resistência da incorporação das audiências de custódia para o sistema de justiça juvenil, e quais os caminhos possíveis para aprofundar o debate sobre violência policial e a apresentação a autoridades dos sistemas de justiças.
Palavras-Chave:
Oitivas informais; Sistema de justiça juvenil; Audiências de custódia; Violência policial; flagrante
Abstract
Research and literature on the juvenile criminal justice system in Brazil has focused on the specific legal aspects and rights guarantees of the procedures related to the apprehension of adolescents in flagrante delicto, without highlighting the issues related to the obstacles to the investigation of violence committed at the time of apprehension. As for the criminal justice system, the creation and disputes related to pre-trial hearings have shed light on the first moments immediately after the arrest of adults in flagrante delicto and the importance of structuring a state support network for the collection and recording of any violence committed at the time of arrest. In this article, we seek to understand to what extent the difference between the two procedures creates a dichotomy between mechanisms for determining violence, what are possible reasons for resistance to incorporating pre-trial hearings into the juvenile justice system, and what are the possible ways to deepen the debate on police violence and the presentation to authorities of the justice systems.
Keywords:
Informal hearings; Juvenile justice system; Pre-trial hearings; Police violence; Flagrante arrest
Introdução
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implementou as audiências de custódia (ACs), que têm a prerrogativa de analisar a necessidade da prisão, a sua legalidade e a ocorrência de violência policial. Com a edição da Resolução CNJ 213/20151 1 Resolução CNJ 213/15 disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_213_15122015_22032019145102.pdf. Acesso em julho de 2022. , os diferentes Tribunais de Justiça passaram a publicar atos normativos regulamentando as audiências de custódia, sob o argumento primordial de adequação ao texto do Pacto de San José da Costa Rica, conforme posteriormente reafirmado pelo STF no julgamento da ADI 5.240/SP, que questionava a legalidade desses atos institucionais promulgados pelo Judiciário2 2 Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240/SP, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 20/08/2015, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333. Acesso em julho de 2022. . O novo parâmetro de legalidade relacionado à apresentação de uma pessoa custodiada se reflete hoje, por exemplo, com Manuais e Protocolos relacionados ao compromisso de verificação e combate à tortura dedicados ao momento imprescindível da custódia policial nas primeiras 24 horas após a prisão3 3 Note-se, por exemplo, que o “Programa Fazendo Justiça” do Conselho Nacional de Justiça vem publicando, desde 2019, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, diversos materiais às autoridades responsáveis pela audiência de custódia sobre a qualificação do procedimento e fortalecimento dos mecanismos de verificação de tortura. Publicações disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/fazendo-justica/publicacoes/. Acesso em julho de 2022. .
Posteriormente, as audiências foram inseridas no ordenamento processual penal pela aprovação da Lei 13.964/2019, sendo aplicáveis apenas aos adultos, não tendo sido estendidas para o sistema de justiça juvenil. Este cenário gera uma dicotomia jurídica sobre a prisão/apreensão em flagrante, o que tem dividido doutrinadores, estudiosos e operadores do sistema de justiça, principalmente quanto a uma possível equiparação das ACs ao instituto das oitivas informais, realizadas pelo Ministério Público nos casos de atos infracionais.
As apurações de atos infracionais e medidas socioeducativas ainda não foram questionadas quanto ao novo parâmetro de legalidade inaugurado pelas audiências de custódia, nem sob o aspecto jurídico de verificação de legalidade por uma autoridade judicial (e não apenas por um membro do Ministério Público), e muito menos sob o requisito de verificação de maus tratos ou tortura. Outro questionamento é o de que a pessoa adolescente acaba por receber tratamento mais gravoso do que a adulta numa situação de apreensão em flagrante.
Vejamos: a pessoa adulta presa em flagrante tem o direito de ser apresentada, em 24 horas, a um juiz, que decidirá sobre a legalidade da segregação, apuração de possível ocorrência de violações de direitos por parte das autoridades policiais e a avaliação da continuidade ou não da prisão, seguindo a Resolução nº 213/2015 do CNJ. Essa audiência é acompanhada pelo Ministério Público e por advogado de defesa ou defensor público. É vedada a formulação de perguntas cuja finalidade seja a de produzir provas para a investigação ou ação penal. Já o/a adolescente é apresentado ao representante do Ministério Público, órgão responsável pela sua persecução socioeducativa, com fim de ser ouvido informalmente sobre os fatos, sem a garantia de assistência jurídica e sujeito a ser conduzido a confessar o ato do qual é acusado (CATAFESTA; DIAS 2021CATAFESTA, Claudia; DIAS, Rodrigo Rodrigue. A (in)constitucionalidade da oitiva informal de adolescentes em conflito com a lei: uma proposta de reflexão. Boletim de Direitos da Criança e do Adolescente (IBDCRIA-ABMP). EDIÇÃO N.º 12 - MAIO/JUNHO 2021., EDIÇÃO N.º 12 - MAIO/JUNHO 2021.).
Nosso objetivo é analisar os debates sobre as oitivas informais e a questão da possibilidade de aplicação da audiência de custódia no sistema de justiça juvenil, destacando os principais argumentos mobilizados nesse campo, suas fundamentações normativas e empíricas, e o quanto isso reverbera ou não na inserção de dispositivos de prevenção e combate à tortura, como o caso das audiências de custódia, no âmbito da justiça juvenil.
Trata-se de uma revisão bibliográfica de trabalhos relacionados aos temas da justiça juvenil, oitivas informais, audiências de custódia e tortura, além de revisão de jurisprudência e doutrina sobre a temática das oitivas, no sentido de entender como o campo jurídico tem considerado esse dispositivo. Pretende-se compreender, a partir de pesquisas empíricas já desenvolvidas no campo, o funcionamento das oitivas informais, conforme vem sendo aplicado na justiça juvenil e seus limites para exercerem papel equivalente ao das audiências de custódia. Serão também discutidos os objetivos de criação das audiências de custódia e de que forma a normatividade sobre elas têm avançado na discussão sobre a necessidade dos exames cautelares de violência e a criação de fluxos de atendimento às pessoas custodiadas para além da audiência em si.
O artigo está organizado em cinco partes. Na primeira, nós descrevemos o cenário de violência contra adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional relatado pelas pesquisas. Em seguida, apresentamos um panorama das discussões sobre a aplicação das oitivas informais e os problemas apontados pela literatura com relação ao seu efetivo funcionamento. Na terceira seção, descreve-se o objetivo de verificação de casos de tortura como justificativa para a criação das audiências de custódia e como oportunidade para a inserção em outros serviços do Estado. Na quarta, nós trazemos o debate sobre a implementação da audiência de custódia na esfera da justiça juvenil e os principais pontos levantados. Na quinta e última parte, apresentamos algumas reflexões sobre a disparidade de tratamento para apuração de casos de tortura no Brasil.
1. Violência policial contra adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional
Apesar de o Estatuto garantir em seu art. 18, que é “dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (BRASIL, 1990, n.p.), pesquisas mostram que adolescentes representam o público mais vulnerável à violência policial4 4 Ver: Baggio et al. (2019), Almeida (2019); Carneiro (2021), Teixeira (2012), Malvasi (2012), Neri (2012), Sinhoretto et al. (2016); Galdeano e Almeida (2018), Ribeiro e Da Silva (2020), Sá e Neto (2011), Waiselfisz (2015), somente para citar alguns desses estudos. . Destacam que no Brasil a violação aos direitos de adolescentes é algo recorrente, seja antes (momento em que sofrem abordagens constantes, invasões de duas residências por parte da polícia sem autorização judicial), durante (quando sofrem violência na viatura, na delegacia, na unidade provisória) ou depois de entrar para o sistema de justiça juvenil e socioeducativo (já no cumprimento da medida, sendo agredido, ofendido ou estigmatizado). O perfil desses adolescentes é idêntico: em grande maioria, adolescentes negros e moradores de regiões periféricas, cujo foco de ação estatal é via incursões policiais (BAGGIO et al., 2019BAGGIO, Roberta Camineiro, RESADORI, Alice Hertozog; GONÇALVES, Vanessa Chiari. Raça e Biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N.03, 2019, p. 1834- 1862.). Não por acaso existe uma predominância da cor parda e preta entre adolescentes no sistema socioeducativo (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; CARNEIRO, 2021CARNEIRO, Larissa Maria Magalhães Vieira. Vieses Raciais na aplicação de Medidas Socioeducativas: Levantamento no estado da Bahia. Salvador, dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, 2021.), algo que é possível constatar apesar da precariedade dos dados produzidos no campo da justiça juvenil sobre esse tema (GISI; VINUTO, 2020GISI, Bruna; VINUTO, Juliana. Transparência e garantia de direitos no sistema socioeducativo: a produção de dados sobre medidas socioeducativas. Boletim do IBCCRIM, ano 28, nº 337, 2020.).
A violência contra adolescentes também pode ser identificada por pesquisas sobre homicídios e letalidade policial. Os dados do Atlas da Violência publicado em 2021 mostram que, entre os anos de 2009 e 2019, 53% do total de vítimas fatais eram adolescentes e jovens entre 15 e 29 anos (IPEA; FBSP, 2021). Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, houve um aumento de 0,3% no número de mortos em intervenções policiais entre 2019 e 2020, sendo que 76,2% das vítimas eram adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos e 78,9% eram pretos e pardos. Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também de 2021, revela que entre os anos de 2016 e 2020, na faixa etária entre os 10 e 19 anos, 91% das vítimas eram do gênero masculino, 80% negros e 83% foram vítimas de arma de fogo (UNICEF; FBSP, 2021).
A violência também ocorre no contato entre os sistemas de segurança pública e justiça juvenil e adolescentes. Eles narram uma série de violências sofridas durante abordagem policial, desde ofensas, xingamentos, humilhações, até agressões físicas, tapas e socos, todo tipo de violência (TEIXEIRA, 2012TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.; MALVASI, 2011SÁ, Leonardo; NETO, João Pedro de Santiago. Entre tapas e chutes: um estudo antropológico do baculejo como exercício de poder policial no cotidiano da cidade. Fortaleza: Rev. O público e o privado, nº 18, Julho/Dezembro, 2011.; SÁ, 2011; WAISELFISZ, 2015; COELHO et al. 2017COELHO, J.; PESSOA, A.; BOTTRELL, D. (2017). Perceptions of young offenders about the police: a qualitative study conducted in Brazil. Pesquisas e Práticas Psicossociais, v. 12, n. 4, São João del Rei, Edição Especial., GALDEANO; ALMEIDA, 2018GALDEANO, Ana Paula; ALMEIDA, Ronaldo (coord.) Tráfico de drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados, famílias e rede de proteção social. São Paulo: CEBRAP, 2018.). Apesar de serem apresentados nas oitivas informais e terem contato com representante do Ministério Público, as pesquisas evidenciam que esse espaço não contempla um dispositivo efetivo de prevenção e combate à tortura referente à esfera juvenil. Podemos destacar o estudo realizado por Marina de O. Ribeiro e Luana Barbosa, em que são analisados procedimentos administrativos de apuração de violência contra adolescentes da Promotoria de Justiça Cível de Campinas, do Ministério Público do Estado de São Paulo. De acordo com a pesquisa, a maior parte das apreensões é realizada por policiais militares (80,28%) e suas narrativas são predominantes em relação as dos/as adolescentes nos Boletins de Ocorrência (90%) (RIBEIRO & DA SILVA, 2020RIBEIRO, M. de O., & SILVA, L. B. da. A condição estatística da violência policial em Campinas contra jovens acusados de atos infracionais. Conversas & Controvérsias, 7(1), e35636, 2020. DOI: https://doi.org/10.15448/2178-5694.2020.1.35636.
https://doi.org/10.15448/2178-5694.2020....
). A autoras concluem que os relatos dos/as adolescentes sobre a abordagem policial são silenciadas desde o momento da elaboração dos registros policiais até o contato com os atores do sistema de justiça juvenil, que tendem a privilegiar as versões dos policiais militares, assim como demonstrado por outras pesquisas realizadas com o público adulto (JESUS, 2020JESUS, Maria Gorete. Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de Justiça. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 35, n. 102, 2020.; SCHLITTLER, 2016; SINHORETTO et al., 2016SINHORETTO, J.; SCHLITTLER, M.C.; SILVESTRE, G. Juventude e violência policial no município de São Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 10, p. 10-35, 2016.). De acordo com Carmem Craidy, apesar do ECA, da Constituição Federal e dos tratados internacionais ratificados pelo país, ainda há uma tendência em não se dar escuta ao/à adolescente, impedindo-o/a, portanto, de ser efetivamente reconhecido/a como sujeito de direito (CRAIDY, 2017CRAIDY, Carmem Maria. Medidas Socioeducativas e Educação. In: CRAIDY, Carmem Maria; SZUCHMAN, Karine (orgs). Socioeducação: fundamentos e práticas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017, p.85-102.).
Diante do cenário descrito pelas pesquisas acima citadas, parece ser de extrema importância a apresentação dos/as adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante às autoridades, sobretudo ao Poder Judiciário, para apuração de possíveis violações e práticas de torturas cometidas por policiais ou outros agentes, no sentido de que seja possível tomar as devidas providências. Um dos procedimentos de maior importância para a apuração dos casos de tortura enunciados pelo Protocolo de Istambul é a necessidade da escuta qualificada e atenta, de acolhimento da vítima, e a promoção de um espaço seguro (BRASIL, 2022).
Por essa e outras razões, criou-se um debate sobre a possibilidade de implementação de audiências de custódia para adolescentes, ou mecanismo similar, no sentido de garantir que esse público seja apresentado à autoridade judicial em até 24 horas, assim como acontece aos adultos no âmbito da justiça criminal. Veremos a seguir, de forma detalhada, quais questões se levantam com relação a essa temática e o que mais se ressalta sobre a aplicação de audiências de custódia no âmbito da justiça juvenil.
2. Oitivas informais: debates nos campos jurídico e empírico
Segundo o artigo 179 do ECA, após a apresentação do adolescente nos casos de ato infracional a ele imputado, o representante do Ministério Público “[...] procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas”. Nesse sentido, a oitiva informal consiste em procedimento de natureza administrativa, em que o/a adolescente é apresentado/a ao promotor para que seja ouvido/a informalmente e para que o representante do MP colha informações a fim de subsidiar sua decisão, que pode ser de arquivamento, remissão ou acusação (Art. 180 do ECA).
De acordo com Becker (2014BECKER, C. A. V. A oitiva ministerial (informal) e a implicação da confissão do adolescente nessa etapa do processo. 2014. (Apresentação de Trabalho/Outra).), o caráter informal da oitiva teria sido pensado pelo legislador para evitar que a escuta do/a adolescente fosse já um procedimento de imputação de culpa. Imaginava-se que, caso fosse um procedimento oficial e formalizado, isto poderia consistir em um tipo de produção de prova pelo Ministério Público, e por isso seria importante manter este procedimento direcionado apenas a buscar o convencimento exclusivo do promotor de justiça sobre a decisão com relação ao adolescente apresentado, permanecendo-se este contato fora dos autos do processo. Portanto, a “informalidade” tipificada no Estatuto da Criança e do Adolescente visava limitar a extensão das declarações do/a adolescente, impedindo que elas fizessem parte do processo e não podendo o juiz ter acesso a ele (BECKER, 2014BECKER, C. A. V. A oitiva ministerial (informal) e a implicação da confissão do adolescente nessa etapa do processo. 2014. (Apresentação de Trabalho/Outra).). No entanto, pesquisas mostram que tais oitivas têm sido reduzidas a termo e inseridas nos processos, desvirtuando aquilo que havia sido pensado pelo legislador.
No campo jurídico, a jurisprudência diverge em relação a alguns aspectos da oitiva informal, incluindo a própria necessidade de sua realização. Conforme retratado por Ishida (2015), uma primeira corrente considera a oitiva um direito do adolescente, eis que permite a obtenção de arquivamento ou remissão. Já a segunda entende que a oitiva é dispensável “[...] já que, a contrário sensu, o menor poderia evadir-se e assim afastar eventual representação ministerial” (ISHIDA, 2015, p. 453).
Além disso, ao contrário do que ocorre na audiência de custódia, que determina a participação de defesa do custodiado, há posicionamentos na doutrina e jurisprudência no sentido de que a participação de advogado em oitava informal é dispensável (ISHIDA, 2015; NUCCI, 2018). O argumento para a ausência de defesa nessas oitivas é de falta de previsão legal expressa e inexistência de processo judicial, sendo elas caracterizadas como mero procedimento administrativo (BECKER, 2014BECKER, C. A. V. A oitiva ministerial (informal) e a implicação da confissão do adolescente nessa etapa do processo. 2014. (Apresentação de Trabalho/Outra).). Contudo, o ECA apresenta dois artigos (206 e 207) que garantem que nenhum adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional pode ser processado sem defensor, prevendo-se, inclusive, a prestação de assistência judiciária integral e gratuita àqueles que dela necessitarem (BECKER, 2014). Além disso, as Regras da Organização das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing), de 29 de novembro de 1985, estabelecem, no item 7.1, que serão respeitadas “as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores” (ONU, 1985).
Em contrapartida, alguns autores entendem que justamente em razão da oitiva informal ser um momento primordial para a tomada de decisão do membro do Ministério Público, haveria, portanto, a necessidade da participação de advogado, que poderia “[...] intervir, à semelhança do que ocorre no interrogatório de réus adultos, especialmente se a oitiva for reduzida a termo.” (FULLEN; DEZEM; NUNES JÚNIOR, 2012, p. 144).
Além dos aspectos jurídicos, pesquisas de campo destacam que o procedimento das oitivas informais apresenta uma série de problemas e brechas para violações de garantias e direitos de adolescente. A pesquisa de Becker (2014BECKER, C. A. V. A oitiva ministerial (informal) e a implicação da confissão do adolescente nessa etapa do processo. 2014. (Apresentação de Trabalho/Outra).) procurou justamente investigar o cumprimento dos direitos dos/as adolescentes durante a oitiva ministerial. O autor realizou inicialmente uma análise da estrutura da oitiva preconizada na legislação e, posteriormente, apresentou uma pesquisa quantitativa e qualitativa de 53 processos da justiça juvenil na cidade de Porto Alegre. Os resultados mostram que em 50,9% das oitivas informais o/a adolescente confessou expressamente a conduta pelo qual foi apreendido/a e em apenas duas oitivas (3,7%) houve a presença de defesa particular, sem casos com defesa realizada por representante da Defensoria Pública. Em oito oitivas (15,09%) o/a adolescente permaneceu em silêncio e em todos os casos o autor identificou que a oitiva ministerial foi reduzida a termo e anexada aos autos, ou seja, o juiz teve acesso ao teor do que foi produzido nessa fase pelo promotor de justiça, contrariando, com isso, a própria informalidade do instituto da oitiva e ferindo o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
Conforme Becker, a redução a termo da oitiva representa uma inversão do que foi estabelecido pelo ECA, na medida em que acaba por formalizar este ato, uma vez que ele é inserido no processo, com pleno acesso aos julgadores (BECKER, 2014BECKER, C. A. V. A oitiva ministerial (informal) e a implicação da confissão do adolescente nessa etapa do processo. 2014. (Apresentação de Trabalho/Outra).). Além disso, o autor identificou na leitura das oitivas que alguns adolescentes narraram os fatos com muitos detalhes e precisão, quase que conduzidos por alguém que busca construir uma narrativa de culpa.
Já a pesquisa de Thiago Oliveira (2016OLIVEIRA, Thiago Rodrigues. OITIVAS CERIMONIAIS: relatos descritivos do sistema de justiça juvenil paulistano. CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 3, 2016. pp. 44-64.) mostrou que as oitivas informais acontecem cerimonialmente, sem que o/a adolescente seja efetivamente ouvido, sobretudo porque as decisões já são aprioristicamente tomadas pelo representante ministerial. O autor analisou o funcionamento do sistema de justiça juvenil a partir de observações diretas no Fórum responsável em julgar adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional no município de São Paulo, durante quatro meses de 2014. Ainda segundo a pesquisa, em muitos casos o representante do MP nem mesmo lê a representação, já que o escrivão elabora e encaminha ao juízo essa documentação diretamente (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, Thiago Rodrigues. OITIVAS CERIMONIAIS: relatos descritivos do sistema de justiça juvenil paulistano. CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 3, 2016. pp. 44-64.). O estudo conclui que:
(...) é possível afirmar que há um mito de uma justiça juvenil individualizadora e participativa. E as oitivas informais, nesse sentido, são parte central desse mito, já que consistem no momento em que os adolescentes mais têm participação no processo - participação essa supostamente caracterizada pela informalidade, diferentemente das audiências, quando o jovem já é encaminhado como réu e tem menor oportunidades de fala. No entanto, as descrições apresentadas acima evidenciam que, na verdade, as oitivas informais não promovem essa participação mitificada do adolescente na justiça, tampouco são centrais para o processo de tomadas de decisões do Promotor de Justiça; ao contrário, em uma parcela dos casos observados as decisões já estavam tomadas e as representações já estavam escritas antes do início das oitivas informais. (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, Thiago Rodrigues. OITIVAS CERIMONIAIS: relatos descritivos do sistema de justiça juvenil paulistano. CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 3, 2016. pp. 44-64., p.58)
Nesse sentido, o que poderia significar um dispositivo avançado de protagonismo do/a adolescente e de escuta qualificada para a tomada de decisão mais contextualizada à sua realidade, acaba por se transformar em mero ato cerimonial “para sustentar o mito de uma justiça para adolescentes que leve em consideração sua condição de ‘pessoa em desenvolvimento’” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, Thiago Rodrigues. OITIVAS CERIMONIAIS: relatos descritivos do sistema de justiça juvenil paulistano. CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 3, 2016. pp. 44-64., p. 60), quando, na verdade, não garante tal princípio.
Tais questões também apareceram na pesquisa de Malacarne e Azevedo (2022MALACARNE, Emília Klein e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A justiça (penal) juvenil entre a teoria e a prática: Um estudo comparado das práticas judiciais fluminense e gaúcha. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [online]. 2022, v. 15, n. 01 [Acessado 31 Agosto 2022], pp. 153-178. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772>. Epub 11 Fev 2022. ISSN 2178-2792. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772.
https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38...
). Os autores fizeram uma análise comparativa entre as justiças juvenis dos fóruns do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, incluindo as fases de oitiva informal. Dos processos observados, identificou-se que o maior número de adolescentes que passou pelo sistema foi apreendido/a em flagrante: 68,3% (POA) e 83,8% (RJ). Os dados mostraram, contudo, que em ambas as capitais o índice de violações aos direitos dos adolescentes é significativo na fase policial. Apontam que o interrogatório frequentemente acontece sem a presença dos pais ou de defensor. Na fase da oitiva informal, os autores identificaram que, na imensa maioria dos casos, não houve a presença de defesa durante essa etapa. Informalmente, um defensor público gaúcho teria afirmado aos autores que a Defensoria não acompanha tal procedimento por não o reconhecer como constitucional.
Com relação às confissões, a pesquisa identificou que 45,6% dos casos do RJ os/as adolescentes confessaram, e em Porto Alegre o número foi de 18,8%. Esse dado pode ter relação com o fato de alguns adolescentes terem sido acompanhados por advogados constituídos. Desse modo, a pesquisa reafirma alguns dos achados da pesquisa de Costa (2014) a respeito das confissões nessas oitivas. Apesar de ser um procedimento administrativo e informal, o que é produzido nessa fase acaba impactando, em alguma medida, a sua defesa posterior. Contudo, Malacarne e Azevedo indicam que a oitiva informal do adolescente parece ser um procedimento dispensável, sobretudo porque, além dessas situações em que ele é prejudicado, suas declarações, quando feitas para se defender, em nada alteram a decisão do promotor em apresentar a representação e dar início ao processo (MALACARNE; AZEVEDO, 2022MALACARNE, Emília Klein e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A justiça (penal) juvenil entre a teoria e a prática: Um estudo comparado das práticas judiciais fluminense e gaúcha. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [online]. 2022, v. 15, n. 01 [Acessado 31 Agosto 2022], pp. 153-178. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772>. Epub 11 Fev 2022. ISSN 2178-2792. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772.
https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38...
).
A revisão do que vem sendo discutido no campo jurídico e dos dados produzidos em pesquisas acadêmicas sobre as oitivas informais nos indicam um dado muito relevante. Todos discutem elementos processuais da justiça juvenil e as “falhas” que produzem violações de direitos, como a falta de assistência judiciária, a formalização dessas oitivas reduzidas a termo e a mera formalidade desse procedimento, que acaba exercendo um papel mais cerimonial do que efetivo. Ou seja, o foco parece estar voltado para o procedimento e questões processuais, e não no tema desse mecanismo como uma possibilidade de ser um dispositivo de prevenção à tortura e violência policial direcionados a esse público. Nesse sentido, é importante descrevermos como a audiência de custódia surge como um mecanismo de prevenção e apuração à tortura.
3. Apuração de tortura e encaminhamentos da audiência de custódia
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) foi internalizada no ordenamento brasileiro promulgada pelo Governo brasileiro por meio do Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. Dentre os direitos reconhecidos pela Convenção, o Art. 8º, que trata das garantias judiciais, determina no item 1 que: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial […]”. Cabe notar que o dispositivo adota o termo “pessoa”, ou seja, não faz qualquer distinção entre adultos e adolescentes.
Conforme mencionado anteriormente, a criação das audiências de custódia no ordenamento brasileiro, realizada primordialmente através da atuação ativa do Conselho Nacional de Justiça em articulação com os Tribunais de Justiça estaduais (TJs) e com a publicação da Resolução CNJ 213/2015, teve como uma de suas principais justificativas a necessidade de que houvesse um controle judicial da legalidade da prisão sob o ponto de vista da preservação da dignidade da pessoa presa. Por motivos políticos relacionados à Presidência do CNJ em 2015, o texto do Pacto foi mobilizado como força normativa supralegal que obrigava a adaptação do Estado brasileiro à criação desse instituto que serviria como nova etapa pré-processual capaz de filtrar a prisão provisória e permitir a identificação de casos de tortura policial (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, Ana Luiza Villela de Viana. A desnecessária descrição do fato criminoso: as audiências de custódia e a palavra da polícia. In: V ENADIR, Anais, GT 04: Processo, construção da verdade jurídica e decisão judicial. 2017.).
Para além do prazo de apresentação em si, que foi definido pela Lei 13.964/2019 como sendo de 24 horas, o que o objetivo de verificação de tortura e maus tratos impõe também é a criação de uma estrutura institucional que seja capaz de produzir essa eventual materialidade, ou seja, a existência de médicos legistas que possam realizar o exame de corpo de delito e que esse registro seja incorporado ao procedimento de alguma forma. A lei não disciplinou e nem regulamentou esse fluxo e nem os encaminhamentos dos relatos de tortura coletados em audiência, e mais uma vez é o CNJ que vem criando normativas instrutivas para os TJs sobre o assunto, como por exemplo com o Anexo 2 da própria Resolução CNJ 213/2015, mas mais detidamente com a publicação do Manual de Prevenção e Combate à Tortura (BRASIL, 2020) com a edição da recente Resolução CNJ 414/20215 5 Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 414, de 2 de setembro de 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original125834202109086138b37ad4cf0.pdf. Acesso em set. 2022. , dedicada especificamente às obrigações do Judiciário sobre essa articulação com o IML e os procedimentos de investigação de violência.
Uma das conquistas que essas normativas atingiram e que está estritamente prevista na Resolução 414/2021 é que esses exames cautelares da pessoa custodiada possam ser realizados antes das audiências de custódia, para que a autoridade judicial tenha em mãos informações relevantes que podem impactar a decisão sobre a legalidade da prisão. Ainda que não se saiba com certeza quantos dos casos de violência constatada por laudos levam de fato ao relaxamento da prisão, o fato de que este fluxo foi estabelecido dessa forma em alguns estados e que a preocupação de incorporação de normativas internacionais específicas, como o Protocolo de Istambul, esteja no horizonte das discussões sobre o aprimoramento do papel da audiência de custódia, são avanços importantes no campo da prevenção à violência policial.
Nesse sentido, os desafios para as adequações são inúmeros e as especificidades de cada local impactam sobremaneira a forma como as instituições têm incorporado e respondido às normativas do CNJ. Interessante notar, por exemplo, que a suspensão temporária das audiências durante a pandemia de Covid-19 foi capaz de desarticular alguns fluxos que já haviam sido estabelecidos e que ainda não foram retomados na sua integralidade, como por exemplo o relatado na pesquisa publicada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo quanto à inexistência de exame de corpo de delito de todas as pessoas presas em flagrante na capital durante quase um ano, já que essa etapa não foi considerada serviço essencial durante o período mais severo da pandemia (DPESP, 2022).
Nos casos dos TJs que ainda não retomaram as audiências de custódia presenciais e passaram a realizá-las de forma virtual, a logística para a realização do exame cautelar entra no bojo das preocupações atreladas à necessidade da apresentação física da pessoa custodiada diante da autoridade judicial e também como oportunidade para o acesso da pessoa custodiada a outros serviços do Estado. Compreende-se que a supressão desse momento causa um grande impacto, porque retira o acesso a outros direitos: a custódia segura, o espaço de espera como momento para obtenção de itens de higiene e alimentação, os exames cautelares de violência, a conversa presencial com a defesa, a audiência como momento e espaço de escuta, e os possíveis encaminhamentos às equipes de proteção social que fazem os atendimentos de saúde e de assistência aos que recebem decisão de liberdade.
E, neste ponto, quando refletimos sobre a forma com que as oitivas informais são realizadas, aparece a seguinte pergunta: qual é a relevância de que a apresentação inicial de um adolescente apreendido inclua outras instituições, para além do Ministério Público? Afinal, se os avanços nas articulações para a criação das audiências de custódia já incluem o reconhecimento da importância desse momento como uma oportunidade de acesso a outros serviços do Estado aos adultos, com especial destaque para as articulações para os exames cautelares, quais os argumentos presentes no debate sobre a incompatibilidade desse instrumento para o sistema juvenil?
4. A incompatibilidade do procedimento em justiça juvenil e a criação das audiências de custódia
No campo do debate sobre audiência de custódia ou dispositivo similar para a justiça juvenil há duas posições: aqueles que discordam da aplicação da audiência de custódia no âmbito da justiça juvenil porque entendem que a oitiva informal já cumpre o papel desempenhado pelo instituto, a partir da avaliação dos quesitos da apreensão do/a adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional e da possibilidade de decisão pela sua liberação, por uma remissão ou outra medida; e aqueles que entendem a audiência de custódia para adolescentes como essencial para que se efetivem as garantias processuais, como contraditório e ampla defesa, com a presença de um advogado ou defensor público, sobretudo afirmando a obediência aos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115.).
O juiz Márcio da Silva Alexandre (TJDFT), por exemplo, faz parte daqueles que são contrários à audiência de custódia aplicada aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apreendidos em flagrante. Segundo o magistrado, o ECA estabelece um controle triplo dessas situações: o primeiro pela autoridade policial, que pode liberá-lo caso entenda que o caso não é grave e não houve violência, o segundo pelo promotor de justiça, que na oitiva informal pode conceder a remissão extrajudicial, e o terceiro pela autoridade judicial, que pode também decidir com relação à restrição de liberdade (art. 184, ECA). Sendo assim, ele entende que a oitiva informal já exerceria o papel da audiência de custódia de garantir direitos aos adolescentes apreendidos em flagrante (SILVA, 2018SILVA, Andréa Sterque da. Sobre a possibilidade de extensão da audiência de custódia ao procedimento de apuração de atos infracionais. Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. 2018.).
Na mesma direção se posiciona o promotor de justiça Murillo José Digiácomo (MPPR), que acredita ser de “pouca utilidade” a extensão das audiências de custódia a adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional, reafirmando que a oitiva informal exerceria o mesmo papel da audiência de custódia. Segundo ele, seria possível que audiência de apresentação (prevista no art. 184) pudesse ser realizada imediatamente após a oitiva informal, seguindo a prerrogativa da custódia de ser apresentado, o quanto antes, a uma autoridade judicial (SILVA, 2018SILVA, Andréa Sterque da. Sobre a possibilidade de extensão da audiência de custódia ao procedimento de apuração de atos infracionais. Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. 2018.). Dentre os argumentos mobilizados por quem se coloca contra a aplicação da audiência de custódia está o que reivindica a necessidade de manter a justiça juvenil fora de qualquer “contaminação da justiça penal”, como se a adoção da audiência de custódia no âmbito da infância e juventude maculasse as conquistas estabelecidas no ECA, de proteção integral e de garantia de direitos.
A Comissão Permanente da Infância e Juventude do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (Copeij) também se manifestou contrária à extensão da audiência de custódia para a justiça juvenil e lançou a Nota Técnica6 6 Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/notas/copeij/nota_tecnica_02_2016_copeij_audiencia_de_custodia.pdf. Acesso em 5 de setembro de 2022. nº 02/2016, defendendo que a oitiva informal estaria em harmonia com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Dentre os argumentos, cabe citar o de que já existia um rito sumário para liberação do adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional, seja pela autoridade policial, seja pelo próprio promotor de justiça, em que o/a adolescente apreendido/a em flagrante é conduzido/a para referidas autoridades imediatamente e, posteriormente, ao magistrado, na forma dos artigos 184 e 186 do ECA (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115.).
Outros autores manifestam argumentos favoráveis à aplicação da audiência de custódia no âmbito da justiça juvenil, como é o caso do defensor público Giovani Brocardo (2018BROCARDO, G. F. Audiência de custódia para adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional: uma análise à luz do direito internacional dos direitos humanos, do neoconstitucionalismo e da doutrina da proteção integral. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 20, p. 148-162, 2018. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/153. Acesso em: 31 ago. 2022.
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), que propõe avaliar a aplicabilidade da audiência de custódia nos casos de apreensão de adolescentes em flagrante de ato infracional, com base no direito internacional dos direitos humanos, no neoconstitucionalismo e na doutrina da proteção integral. O primeiro ponto destacado pelo autor é que o direito internacional deixa evidente a necessidade da apresentação de qualquer pessoa presa, sem restrições, a uma autoridade judicial, para apreciação da legalidade da ação e necessidade da privação de liberdade, bem como a apuração de “excesso” na forma como a apreensão foi realizada, citando previsão no sistema normativo americano (artigo 7.5, da Convenção Americana de Direitos Humanos) e no sistema normativo global (art. 9.3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) (BROCARDO, 2018BROCARDO, G. F. Audiência de custódia para adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional: uma análise à luz do direito internacional dos direitos humanos, do neoconstitucionalismo e da doutrina da proteção integral. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 20, p. 148-162, 2018. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/153. Acesso em: 31 ago. 2022.
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). Destaca também que, por essa razão, não haveria problemas em se adotar medida similar à audiência de custódia para adolescentes, porque esse dispositivo contempla os princípios de proteção integral e garantia de direitos presentes no ECA.
O argumento de quem defende a audiência de custódia ou instituto similar na justiça juvenil é o de que a garantia estabelecida pelo Art. 8º do Pacto é atualmente aplicada apenas nessas audiências, e não nas oitivas informais. No ECA, prevalece esse procedimento, que não conta com a participação de juiz competente, independente e imparcial, nem com a presença da defesa. Outro argumento é o de que o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), em seu artigo 35, I, estabelece a vedação de tratamento mais gravoso do que aquele conferido ao adulto em situação semelhante, tornando possível a aplicação de garantias processuais penais mais benéficas no processo de apuração do ato infracional (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115.).
Outro argumento é o de que a oitiva informal não se confundiria com a audiência de custódia por duas razões: a primeira é de que ela acontece sem a presença de autoridade judicial, a segunda é que a atividade do MP neste procedimento se mostraria insuficiente para apurar qualquer tipo de ilegalidade na apreensão do/a adolescente ou fazer cessá-la ante sua desnecessidade, ou, ainda, de custodiar o adolescente vítima em caso de eventual violência ou maus tratos (PAIVA, 2017PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017., p. 44). Além disso, há um destaque para o fato de que a ausência de efetivação de audiência de custódia na justiça juvenil representa uma “relativização de direitos ao adolescente como um resquício do tratamento ‘menorista’ aos adolescentes em conflito com lei, do Código de Menores de 1979” (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115., p.113).
Apesar de haver esse debate ainda polêmico sobre a possibilidade de aplicação do instituto da audiência de custódia na justiça juvenil, alguns estados passaram a adotar expediente similar a essas audiências nas varas da infância e da juventude, com relação aos processos de apuração de ato infracional e aplicação de medida socioeducativa aos adolescentes a quem se atribui prática de ato infracional (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115.)7 7 Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos de lei para adequação do procedimento de garantias propostas pela audiência de custódia para justiça juvenil: O Projeto de Lei nº 5.876/2013, que propõe o acréscimo de um parágrafo ao art. 179 do ECA, para determinar que a oitiva informal contasse com “presença do advogado constituído ou defensor nomeado previamente pelo Juiz de Infância e da Juventude, ou pelo juiz que exerça essa função, na forma da Lei de Organização". O outro Projeto de Lei nº 7.908/17, insere que os adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante seja apresentado em até 24 horas à autoridade judicial competente, apresentando apenas a alteração do artigo 172 do ECA (COSTA, 2019). .
O Conselho Nacional de Justiça lançou em 2021 o Manual Recomendação nº 87/2021 Atendimento Inicial e Integrado a adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional8 8 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/06/manual-recomendacao-87-2021-1.pdf. , em que o Conselho recomenda aos Tribunais de Justiça que viabilizem a apresentação imediata do/a adolescente a quem se atribui prática de ato infracional ao juiz competente, acompanhado de sua defesa e com a presença do representante do Ministério Pública. Traz algumas experiências desse fluxo, as chamadas “audiências preliminares”, que já acontecem em algumas cidades brasileiras, como São Luís no Maranhão (Portaria Conjunta nº 1/2017), no Mato Grosso do Sul (Provimento nº 360, de 1º de março de 2016), e em Belo Horizonte, Minas Gerais9 9 De acordo com o Manual da Resolução 87 do CNJ (2022): “No CIA de Belo Horizonte são realizadas audiências preliminares, durante as quais ocorre a oitiva informal. Elas acontecem em até 24h depois que o(a) adolescente foi apreendido(a). Diferentemente da oitiva feita apenas com o Ministério Público, essa audiência tem a presença do(a) promotor(a), juiz(a), defensor(a) público(a) ou advogado(a). Esse é o momento da acolhida, da família e do(a) próprio(a) adolescente, depois de ter passado pela polícia. São avaliados, então, possíveis encaminhamentos: se há denúncia de tortura a ser encaminhada, se há risco para o(a) adolescente e/ou sua família e necessidade de acionar o PPCAAM, bem como alguma necessidade de saúde, seja mental ou não. A audiência preliminar também permite que a autoridade judicial decida sobre a internação provisória, quando houver representação com pedido de internação provisória, depois de ouvir o adolescente, evitando-se um tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto” (CNJ, 2022, p.71). (as audiências acontecem no CIA de Belo Horizonte).
Ainda que haja locais que apliquem o modelo de audiência de custódia na justiça juvenil, a revisão dos debates evidencia que, sejam os argumentos favoráveis ou desfavoráveis à sua aplicação, a discussão está centralizada nas dimensões processuais e na necessidade de que os/as adolescentes gozem dos mesmos direitos e garantias que os adultos. Vê-se à margem e de forma secundária o tema da tortura e da existência de um espaço em que seja possível a recepção de denúncias de violências das quais adolescentes tenham sido vítimas.
5. Reflexões sobre a disparidade de tratamento para apuração de casos de tortura no Brasil
Como pudemos observar na revisão que realizamos nos debates no campo jurídico e das pesquisas no campo empírico, nos parece que a questão da tortura (de modo específico) e da violência institucional (de modo geral) não são o ponto focal do debate sobre a aplicação de audiência de custódia na justiça juvenil, inclusive nos estudos apontando a recorrência de violência policial contra adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. Esse ponto, quando aparece, vem de maneira secundária a uma discussão mais focada em direitos processuais, como o direito ao devido processo legal e a questão dos/as adolescentes não serem submetidos a tratamento mais gravoso do que adultos em análogas condições.
Aqueles que defendem que a justiça juvenil já apresenta institutos que cumprem o papel das audiências de custódia revelam uma crença de que o Estatuto da Criança e do Adolescente está sendo de fato aplicado nos tribunais. No entanto, percebeu-se que o sistema de justiça juvenil, da forma que tem funcionado, não confere maiores garantias aos adolescentes. De acordo com Malacarne e Azevedo (2022MALACARNE, Emília Klein e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A justiça (penal) juvenil entre a teoria e a prática: Um estudo comparado das práticas judiciais fluminense e gaúcha. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [online]. 2022, v. 15, n. 01 [Acessado 31 Agosto 2022], pp. 153-178. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772>. Epub 11 Fev 2022. ISSN 2178-2792. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772.
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), há uma permanência da lógica tutelar ainda presente nas conduções realizadas pelos atores do sistema de justiça juvenil e que contrariam conquistas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a prioridade absoluta e o melhor interesse do adolescente. Esse cenário revela um paradoxo importante, pois a defesa do Estatuto e de suas prerrogativas impedem que seja inserido no sistema de justiça juvenil um mecanismo que vise não apenas garantir direitos, como prevenir a tortura e violência policial a esse público.
Conforme Amaral e Silva (2006AMARAL E SILVA, Antonio Fernando do. “O Estatuto da Criança e do Adolescente e sistema de responsabilidade penal juvenil ou o mito da inimputabilidade penal”. In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (orgs). Justiça, adolescentes e ato infracional: Socioeducação e responsabilização. São Paulo: Ilanud, 2006, pp. 49-59.), o discurso da inimputabilidade é frequentemente mobilizado como forma de legitimar o controle social da pobreza, com pretexto de “proteger”, quando, na verdade, segrega adolescentes sem ter que percorrer o procedimento fundado em garantias constitucionais e limites do direito penal. Malacarne e Azevedo pontuam que algumas práticas remontam a doutrina de situação irregular minorista. Contudo, não somente as práticas, mas alguns pontos do ECA mantiveram previsões que remetem a ideias como controle, tratamento e prevenção (MALACARNE; AZEVEDO, 2022MALACARNE, Emília Klein e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A justiça (penal) juvenil entre a teoria e a prática: Um estudo comparado das práticas judiciais fluminense e gaúcha. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [online]. 2022, v. 15, n. 01 [Acessado 31 Agosto 2022], pp. 153-178. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772>. Epub 11 Fev 2022. ISSN 2178-2792. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772.
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):
Todas essas constatações evidenciam que, mesmo com uma legislação de vanguarda no que diz respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes, ainda há espaços de discricionariedade em que impera a lógica tutelar, de origem positivista, presente nos códigos de menores de 1927 e 1979. Conclui-se, por fim, na linha do que já alertou Emílio García Mendez (2011): negar o caráter punitivo das medidas socioeducativas, no intuito de afastar o sistema de justiça juvenil da justiça criminal, constitui um desserviço aos adolescentes e permite que se violem direitos, se relativizem garantias e se flexibilizem procedimentos, tudo em seu benefício - quando, na realidade, o braço punitivo do Estado está a exercer a sua força, quase sem freios ou contrapesos. (...) Será necessário extirpar-se a cultura menorista, tutelar e patriarcal do sistema de justiça juvenil e das interpretações que se dão aos dispositivos do ECA (MALACARNE; AZEVEDO, 2022MALACARNE, Emília Klein e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A justiça (penal) juvenil entre a teoria e a prática: Um estudo comparado das práticas judiciais fluminense e gaúcha. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [online]. 2022, v. 15, n. 01 [Acessado 31 Agosto 2022], pp. 153-178. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772>. Epub 11 Fev 2022. ISSN 2178-2792. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38772.
https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n1.38... , p. 172-173).
Nesse contexto, o debate sobre a implementação de audiência de custódia no âmbito da justiça juvenil torna-se um campo minado, porque não se pode aproximar essa justiça à justiça criminal, com riscos para retrocessos e “invasão” de uma narrativa punitivista, fundamentada em uma racionalidade conservadora, mas, ao mesmo tempo, afastar esse instituto significa negar aos adolescentes, a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante, a possibilidade de denunciar violência policial, além das demais garantias já previstas para os adultos. Tem-se, portanto, uma série de disputas em torno da própria definição da justiça juvenil (CIFALI, 2019CIFALI, A. C. (2019). As disputas pela definição da justiça juvenil no Brasil. Porto Alegre, tese de doutorado em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.; CIFALI et al. 2020; CIFALI e CHIES-SANTOS, 2022).
Há uma certa interdição em se pensar para o/a adolescente garantias previstas no sistema adulto, em que é preciso afastar qualquer tipo de aproximação com o direito penal, mesmo quando isso possa representar uma maior defesa e proteção ao/à adolescente, sobretudo aqueles/as vítimas de violência. Isso gera como consequência não apenas tratamento mais gravoso aos adolescentes, a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante, como lhe nega a proteção que poderia ter com os procedimentos adotados pela audiência de custódia, como a obrigação do juiz formular perguntas sobre violência durante a apreensão, encaminhamento do caso, possibilidade de liberar o/a adolescente com algum encaminhamento social e protetivo (como para o Programa de Proteção ao Adolescente Ameaçado de Morte - PPCAAM, em caso de risco de morte), entre outros.
Como mencionado anteriormente, a estruturação do espaço das audiências de custódia como oportunidade para acesso a outros serviços do Estado poderia funcionar como justificativa para pensarmos nesse momento de apresentação não como algo exclusivo do procedimento de justiça criminal adulto sob o ponto de vista da prisão, mas sim como momento de garantia de direitos, principalmente tendo em vista a vulnerabilidade dos/as adolescentes no momento da sua apreensão (BRASIL, 2022). Nesse sentido, a construção institucional que tem na audiência o rito processual em si, é resultado de um conjunto de articulações de instituições com diferentes papéis, com destaque, por exemplo, para os exames cautelares capazes de identificar violência, e a possibilidade de encontro presencial com a defesa.
O Manual da Resolução 87 do Conselho Nacional de Justiça já orienta os juízes a adotarem procedimentos da audiência de custódia, bem como encaminhamentos necessários para a devida apuração de denúncia de violência contra adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante, porém a normativa resta isolada diante de uma percepção estritamente processual das oitivas informais e a falta de acesso a informações sobre como os procedimentos e fluxos dos atendimentos iniciais dos adolescentes ocorrem.
Importante ressaltar que de forma alguma compreende-se de forma ingênua que as audiências de custódia funcionem sem problemas e que de fato os exames cautelares realizados sejam capazes de alterar as decisões sobre prisões provisórias emitidas pelos juízes, mas aponta-se que há dois elementos importantes a serem considerados sobre o estado da arte das ACs no país hoje: i) o debate público sobre a importância da apresentação presencial e sem demora da pessoa presa para a legalidade do procedimento, principalmente com os desdobramentos causados pela pandemia; e ii) a preocupação com um fluxo capaz de promover a materialidade de casos de tortura e maus tratos. Nesse sentido, ainda que em constante aprimoramento, considera-se que as ACs já partem de um reconhecimento desse momento como crucial para a identificação de tortura, debate ainda incipiente quando se questionam as oitivas informais de adolescentes.
Conclusões parciais
O ECA estabelece que sejam garantidos todos os direitos aos/às adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional logo no atendimento inicial. No entanto, estudos empíricos destacam que são ocultadas informações sobre possíveis violências sofridas no momento da apreensão em procedimentos de apuração (RIBEIRO & DA SILVA, 2020RIBEIRO, M. de O., & SILVA, L. B. da. A condição estatística da violência policial em Campinas contra jovens acusados de atos infracionais. Conversas & Controvérsias, 7(1), e35636, 2020. DOI: https://doi.org/10.15448/2178-5694.2020.1.35636.
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) e a literatura destaca que a oitiva informal tem um papel muito mais cerimonial do que efetivo na garantia de direitos (OLIVEIRA, 2017), visto que o representante do Ministério Público não apura casos de violência. O receio de contaminação processual do sistema de justiça criminal ao sistema de justiça juvenil tem impedido que as audiências de custódia sejam vistas como oportunidades para a apuração de tortura e maus tratos, o que acaba por criar uma situação desigual quanto ao acesso a direitos dos adolescentes apreendidos em flagrante quando comparados aos adultos presos em flagrante.
A revisão bibliográfica no campo jurídico/normativo e empírico nos mostra que o tema da tortura no campo da justiça juvenil aparece de maneira secundária nos debates sobre a existência ou não de mecanismos preventivos no âmbito da justiça juvenil. Quando analisamos o debate sobre a possibilidade de aplicação das audiências de custódia para adolescentes a quem se atribui prática de ato infracional apreendido em flagrante, percebemos que a discussão está concentrada mais em aspectos de garantia de direitos no nível mais processual e procedimental, do que em se pensar na construção de um sistema que permita identificar situações de violência contra esses adolescentes, o que vem sendo feito com relação à justiça dos adultos.
Um outro ponto interessante diz respeito a uma certa interdição no âmbito da justiça juvenil em se pensar dispositivos similares aos da justiça penal, como se isso contaminasse princípios do ECA, como os de proteção integral, de se conceber os/as adolescentes como sujeitos de direito e prioridade absoluta. No entanto, a própria literatura vem mostrando que mais do que sujeito, o/a adolescente continua sendo concebido/a como objeto do sistema de justiça juvenil, em que não se vislumbra efetivamente o exercício de escuta prometido pelo Estatuto, nem mesmo a sua proteção no que se refere a situações de violência policial.
Referências bibliográficas
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» https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2016-1/ilegalidade-daaudiencia-de-custodia-para-adolescentes-juiz-marcio-da-silva-alexandre - ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
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1
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2
Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240/SP, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 20/08/2015, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333. Acesso em julho de 2022.
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3
Note-se, por exemplo, que o “Programa Fazendo Justiça” do Conselho Nacional de Justiça vem publicando, desde 2019, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, diversos materiais às autoridades responsáveis pela audiência de custódia sobre a qualificação do procedimento e fortalecimento dos mecanismos de verificação de tortura. Publicações disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/fazendo-justica/publicacoes/. Acesso em julho de 2022.
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4
Ver: Baggio et al. (2019BAGGIO, Roberta Camineiro, RESADORI, Alice Hertozog; GONÇALVES, Vanessa Chiari. Raça e Biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N.03, 2019, p. 1834- 1862.), Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.); Carneiro (2021CARNEIRO, Larissa Maria Magalhães Vieira. Vieses Raciais na aplicação de Medidas Socioeducativas: Levantamento no estado da Bahia. Salvador, dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, 2021.), Teixeira (2012TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.), Malvasi (2012), Neri (2012), Sinhoretto et al. (2016SINHORETTO, J.; SCHLITTLER, M.C.; SILVESTRE, G. Juventude e violência policial no município de São Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 10, p. 10-35, 2016.); Galdeano e Almeida (2018GALDEANO, Ana Paula; ALMEIDA, Ronaldo (coord.) Tráfico de drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados, famílias e rede de proteção social. São Paulo: CEBRAP, 2018.), Ribeiro e Da Silva (2020RIBEIRO, M. de O., & SILVA, L. B. da. A condição estatística da violência policial em Campinas contra jovens acusados de atos infracionais. Conversas & Controvérsias, 7(1), e35636, 2020. DOI: https://doi.org/10.15448/2178-5694.2020.1.35636.
https://doi.org/10.15448/2178-5694.2020.... ), Sá e Neto (2011), Waiselfisz (2015), somente para citar alguns desses estudos. -
5
Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 414, de 2 de setembro de 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original125834202109086138b37ad4cf0.pdf. Acesso em set. 2022.
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6
Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/notas/copeij/nota_tecnica_02_2016_copeij_audiencia_de_custodia.pdf. Acesso em 5 de setembro de 2022.
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Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos de lei para adequação do procedimento de garantias propostas pela audiência de custódia para justiça juvenil: O Projeto de Lei nº 5.876/2013, que propõe o acréscimo de um parágrafo ao art. 179 do ECA, para determinar que a oitiva informal contasse com “presença do advogado constituído ou defensor nomeado previamente pelo Juiz de Infância e da Juventude, ou pelo juiz que exerça essa função, na forma da Lei de Organização". O outro Projeto de Lei nº 7.908/17, insere que os adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apreendido em flagrante seja apresentado em até 24 horas à autoridade judicial competente, apresentando apenas a alteração do artigo 172 do ECA (COSTA, 2019COSTA, Anna Gabriella Pinto da. Aplicação da audiência de custódia nas varas da infância e da juventude. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 1, n. 3, dez. 2019, p.99/115.).
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De acordo com o Manual da Resolução 87 do CNJ (2022): “No CIA de Belo Horizonte são realizadas audiências preliminares, durante as quais ocorre a oitiva informal. Elas acontecem em até 24h depois que o(a) adolescente foi apreendido(a). Diferentemente da oitiva feita apenas com o Ministério Público, essa audiência tem a presença do(a) promotor(a), juiz(a), defensor(a) público(a) ou advogado(a). Esse é o momento da acolhida, da família e do(a) próprio(a) adolescente, depois de ter passado pela polícia. São avaliados, então, possíveis encaminhamentos: se há denúncia de tortura a ser encaminhada, se há risco para o(a) adolescente e/ou sua família e necessidade de acionar o PPCAAM, bem como alguma necessidade de saúde, seja mental ou não. A audiência preliminar também permite que a autoridade judicial decida sobre a internação provisória, quando houver representação com pedido de internação provisória, depois de ouvir o adolescente, evitando-se um tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto” (CNJ, 2022, p.71).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2024
Histórico
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Recebido
21 Dez 2022 -
Aceito
21 Abr 2023