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O governo dos pobres na cidade maravilhosa

VALENTE, Júlia. . UPP’s: governo militarizado e a ideia de pacificaçãoRevan, 2016192p. ISBN: 9788571065635

O livro de Júlia Valente, UPP’s: governo militarizado e a ideia de pacificação, lançado pela editora Revan, possui uma primeira grande vantagem em relação à recente bibliografia sobre o famigerado projeto levado a cabo pelo poder público no Rio de janeiro: trata da pacificação não como mero discurso ou como ideologia, mas como uma estratégia de governo que possui consequências que estão bem longe de poderem ser reduzidas a efeitos retóricos. Publicado pouco tempo depois da Copa do Mundo no Brasil e às vésperas da realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em meio a um período conturbado na a vida do país, o livro toma a política de pacificação não como uma estratégia que tenha caído do céu, ou que tenha sido imposta de maneira imediata pela razão neoliberal de algum governo ou partido perverso. Fugindo de explicações fáceis e imediatas, a pacificação é apresentada como uma forma específica de oferecer resposta a um problema caro às autoridades desde o período colonial: o governo dos subalternos, daquela parcela desprezível da população, sejam eles negros, índios ou pobres. E esta resposta possui uma história que remonta à fundação da cidade, aos processos iniciais de urbanização no século XIX e à introdução do ideal civilizatório nisso que veio a ser a nação brasileira.

A construção de um ambiente “civilizado”, que pudesse abrigar a corte portuguesa, demandava a domesticação de uma massa de bárbaros que se amontoavam nas franjas da capital de ultramar do império. Mais tarde, a destruição dos quilombos, que volta e meia saíam do controle das autoridades locais, a captura dos escravos fugidos, a destruição de tribos indígenas e o extermínio de seus habitantes, a expulsão dos vadios e imprestáveis do centro da cidade, o uso do exército no controle das revoltas separatistas, ou de movimentos que supostamente botavam em cheque a soberania estatal, não possuem ideais tão distantes assim daqueles que vemos hoje serem empregados no controle da população pobre do Rio. Mais do que isso, aparecem como a outra face, simétrica, da construção da civilização, da ordem, do progresso, do Brasil. Estes elementos, civilização, ordem, progresso, se atualizam, se reconfiguram, assumem outros contornos e funcionam em novos projetos, como aquele da construção da imagem de “cidade maravilhosa” do início do século XX, ou mais recentemente, da construção de uma “cidade global”, com a ambição de inserção na rota do capital mundial e de atração de investimentos, com a aparente obsessão de restaurar a autoestima de uma ex-capital que perdeu seu status a partir de meados no século passado.

Se, na França do século XVIII, “as luzes, que descobriram as liberdades, também inventaram as disciplinas1 1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2004, p.183. , no Brasil, a face colonizada retardatária do ideal iluminista, que criou museus, escolas, universidades, bairros, praças, jardins, também implementou um sistema de controle que tinha a guarda como instrumento, o civilizacionismo eurocêntrico como retórica e justificativa política, e o negro revoltado como principal inimigo, como fonte de medo2 2 Sobre a questão do medo Cf. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. . A atualização desse ideal no limiar do século XX, já no interior daquilo que se queria chamar de república – proclamada, como se sabe, pelo exército – se dá sob a forma do positivismo que, fazendo questão de deixar claro à que veio, elege a ordem e o progresso como ideais nacionais. A polícia aparece como a ponta de lança do projeto de construção da ordem, o higienismo como retórica política, o cientificismo como forma de justificação, e o problema passa a ser o vadio, o desocupado, o desempregado, predicados que, não coincidentemente, passam a ser inerentes à condição do negro no Brasil, formas outras, não raciais, de identificá-lo. Sua segunda pele.

Da história que vai, de modo subsequente, do projeto de construção de uma nação civilizada, de um país industrializado, de uma potência regional alinhada, até a ambição de se tornar um global player, permaneceram – além da megalomania nacional – certas técnicas, certas estratégias, mas, sobretudo, certa maneira de formular, por um lado, os problemas políticos centrais que devem ser enfrentados e, por outro, as respostas para tais problemas. Estes problemas aparecem no interstício de três lógicas, a lógica da civilização, a lógica da guerra e a lógica do capital, assumindo a figura clássica do bode expiatório, de uma doença, de um mal que, uma vez extirpado, dará lugar ao mais puro estado de tranquilidade, abrindo um trajeto seguro ao final do qual o Brasil finalmente “chegará lá”.

A reposta também deve aparecer nos mesmos termos da formulação problema. Esta se dá através do controle policial militarizado, que submete a população incivilizada com a finalidade de instaurar a ordem, uma ordem específica, sem a qual o capital não circula senão às escondidas – ou nem tão às escondidas assim – sem a qual as empresas formais não poderão expandir seus negócios, e sem a qual uma sociedade supostamente liberal não poderia florescer. Uma pergunta aparece subentendida: será que esta forma mesma de colocar o problema e de responder a ele não engendraria o problema ele mesmo? Será que, após tantos anos, não seria mais interessante pensar a partir de outras lógicas? Não seria possível tentar conceber a questão da segurança – ou melhor, da construção de uma cidade onde a vida em comum seja possível – fora da chave de compreensão que mistura repressão e civilizacionismo, concentrados, como em uma noz, no lema ordem e progresso?

Trata-se, assim, de mapear as condições de possibilidade de uma forma de governo, que não se resumem aos elementos econômicos, institucionais ou de segurança. Não se trata de desvendar o jogo de interesses submerso, até porque, os interesses implicados são os mais evidentes possíveis, para conhecê-los basta ler jornais, assistir às propagandas do governo do estado e aos pronunciamentos oficiais dos responsáveis e ficar atento para quem são os atores mais entusiasmados com o projeto. Estas fontes são especialmente ricas em explicitar o que “está por trás” do programa (se essa formulação fizer algum sentido), sem que seja necessário um grande esforço interpretativo.

Claro que há as boas e velhas intenções, mas é a lógica dessas “boas intenções”, e não elas mesmas, que se busca. Assim, não se trata tanto de explicitar quais são os interesses envolvidos, mas as lógicas a partir das quais estes interesses são formulados e tentar articulá-las a fim de que se tornem inteligíveis, conectando-as com as suas técnicas de implementação assim como com seus padrões de formulação mais gerais, e, em grande medida, globais. Para entender as fórmulas existentes para a implementação de tais interesses bem explícitos, é necessário voltar a atenção para técnicas de estratégia militar, de implementação de políticas públicas, de gestão urbana, de desenvolvimento local e, obviamente, de marketing e propaganda. É necessário voltar-se para técnicas e táticas policiais e militares e notar como elas atualmente se confundem. Notar como a atividade policial e a atividade militar não são tão diferentes como se imagina; notar que, se a guerra se policializou, o policiamento se militarizou, e que o policiamento de proximidade não está tão distante assim de uma guerra assustadoramente próxima de nós. Além disso, é necessário voltar-se também para as técnicas de gestão urbana, que deixam claro quais são os fatores de valorização e desvalorização dos terrenos urbanos e como é possível “viabilizar economicamente” uma “zona degradada”, facilitando a atração de investimentos e a “capitalização da região”.

O livro apresenta e descreve a permanência e a reconfiguração dessas lógicas ou desses ideais, o modo como eles se construíram, se modificaram e se adaptaram aos novos contornos, às novas tecnologias, aos novos imperativos; mostra como a experiência do exército brasileiro no Haiti, assim como as políticas similares implementadas em países como a Colômbia, as novas técnicas de policiamento e controle de populações desenvolvidas nos Estados Unidos e em Israel, foram importantes para a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora; mostra como a população negra e pobre se vê mais uma vez submetida ao jugo do poder estatal e aos desmandos do capital, tendo suas vidas, destruídas, massacradas a conta-gotas3 3 Sobre a ideia de massacre a conta gotas Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul. La palabra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011. , tendo que conviver com a intromissão cotidiana da força policial, cuja suposta finalidade é a de garantir a segurança dos cidadãos de bem ou dos espectadores de um megaevento qualquer. No entanto, o livro não faz apenas isso, ele se coloca a ambiciosa tarefa de responder uma questão ainda mais intrigante: por quê?

Referência bibliográficas

  • BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Petrópolis: Vozes, 2004.
  • ZAFFARONI, Eugênio Raul. La palabra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.
  • 1
    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2004, p.183.
  • 2
    Sobre a questão do medo Cf. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
  • 3
    Sobre a ideia de massacre a conta gotas Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul. La palabra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017
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