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Conflitos agrários e acesso à terra em Rondônia

Agrarian conflicts and access to land ownership in Rondônia State

Resumo

Os conflitos agrários compõem a narrativa das desigualdades sociais no Brasil e cristalizam, atualmente, as lutas contemporâneas no estado de Rondônia. Particularmente, analisa-se os fatores que acentuam a luta pela terra realizada pelos movimentos sociais frente à pressão do agronegócio. Articula-se, no debate, o direito à terra e ao território como questões centrais para a reprodução social do campesinato.

Palavras-chave:
Terra; Direitos Humanos; Conflitos agrários

Abstract

The dispute over land constitute the narrative of social inequalities in Brazil and crystallize contemporary struggles in Rondônia state. Particularly, we analyze factors that increase the struggle for land, promoted by the social movements against agribusiness pressure. The right to land ownership and territory as central issues to the social reproduction of peasantry are also articulated in the debate .

Keywords:
Land; Human Rights; Land conflicts

Introdução

Nos últimos anos verifica-se uma intensa propaganda política referente a modernização da agricultura e dos saldos positivos que a atividade agropecuária traz à balança comercial, cuja narrativa apresenta o agronegócio como o único modelo econômico e territorial para o espaço rural brasileiro. Afora a apologia do agronegócio, a narrativa releva uma visão totalitária quando ignora e não aceita outros modos de vida e de uso da terra que não esteja pautado pela racionalidade neoliberal ( ALMEIDA, 2010 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. W. B. Agroestratégias e desterritorialização: direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: Capitalismo globalizado e recursos territoriais. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. p. 101-144 ).

Para além do marketing e da propaganda do agronegócio, o mundo rural está permeado de conflitos agrários e territoriais protagonizados pelos movimentos sociais em seus diversos instrumentos de luta política, normalmente negados ou submetidos às pautas das mídias hegemônicas como simples conflitos singulares. A centralidade dos conflitos nos parece estar no direito à terra e ao território como direto humano, o que significa que a terra assume múltiplas dimensões sociais, debate já reconhecido pela literatura especializa, alargando o sentido social da terra e do território para com o universo do campesinato, povos e comunidades tradicionais ( CHAGAS, 2017 CHAGAS, Afonso Maria das. Direitos territoriais: identidades, pertencimentos e reconhecimento. ABYA-YALA: revista sobre acesso à justiça e direitos nas Américas , v. 1, n. 1, p. 182-201, Brasília, 2017. Acesso: http://periodicos.unb.br/index.php/abya/article/view/25426/18098
http://periodicos.unb.br/index.php/abya...
).

A abrangência dos conflitos agrários assume relevante significado na Amazônia brasileira por ser uma grande região que comporta as variedades de grupos sociais e étnicos, cujo uso da terra e do território estão permeados por lógicas comunitárias que reforçam suas culturas e territorialidades. Portanto, formam um mosaico de territórios que se contrapõem à racionalidade dominante do agronegócio globalizado. Em tal situação eclodem os conflitos agrários, e no limite as chacinas contra os trabalhadores rurais acampados em seus territórios de resistência.

Nessa perspectiva, a análise prioriza os processos agrários no estado de Rondônia, justificando que é a unidade da federação brasileira em que mais a violência e a letalidade dos conflitos agrários e territoriais se fazem presentes. Objetiva-se situar na análise a função que a Amazônia assumiu decorrente da modernização da agricultura brasileira, notadamente em sua condição de fronteira agrícola e nas metamorfoses territoriais relacionadas ao acesso à terra. Assim, a primeira seção perscruta os recursos conceituais utilizados para compreender as transformações e inserção da Amazônia nas dinâmicas geoeconômicas do centro-sul do Brasil, a partir da década de 1960, quando se tem a presença do Estado com políticas públicas que transformaram definitivamente a região em seus aspectos socioeconômicos e territoriais.

Na seção seguinte, analisa-se a formação sócio-espacial de Rondônia, priorizando a política de colonização agrícola implementada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), cujo resultado se concretizou na estrutura fundiária com forte presença das pequenas propriedades e com a agropecuária vinculada aos mercados regional e nacional. Contudo, nas últimas duas décadas a pequena propriedade encontra-se pressionada pelo agronegócio da soja e da pecuária de corte, cujos conflitos agrários ampliam a escala da problemática social. Nesse contexto, a luta pela terra vincula-se à luta pelo território.

A terceira seção problematiza o direito à terra e ao território como expressão social de direitos humanos. Faz-se um debate dos vínculos temáticos considerando que a questão agrária e territorial assume relevo a partir dos conflitos sociais no campo, quando o direito de lutar pela terra e pela reforma agrária vincula-se a dignidade humana. Particularmente para o estado de Rondônia, no qual a colonização agrícola delineou seu território, o acesso à terra como direito humano aos camponeses e suas entidades de luta social encontram sérios obstáculos para sua afirmação.

Revistando o debate sobre fronteira e o acesso à terra na Amazônia

As mudanças socioeconômicas e territoriais ocorridas no Brasil a partir dos governos militares impuseram um olhar estratégico para a Amazônia, sobretudo, nas questões de ordem geopolítica e geoeconômica ( BECKER, 2007 BECKER, Bertha. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. 2 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. ). Particularmente, a agropecuária, migração, colonização agrícola e distribuição de terras impulsionaram as dinâmicas territoriais rurais na região, o que levou a literatura especializada, sob diferentes aspectos teóricos, a conceituar esse fenômeno como expansão interna da fronteira brasileira. Assim, a Amazônia passou a ser compreendida como a fronteira dinâmica da nação, modificando sua função na divisão territorial do trabalho, principalmente em relação aos fatores economias extrativas e mercado de terras.

O fechamento da fronteira, umas das teses mais difundidas, consistiu nos mecanismos de apropriação privada das terras devolutas na Amazônia, operada tanto pelo capital quanto pelo o Estado. Carlos Osório (1978 OSORIO, Carlos. Migrações recentes e desigualdades. ANAIS, I Encontro Nacional da ABEP, p. 600-619, Campos do Jordão, outubro, 1978. Acesso: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1978/T78V01A20.pdf
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, p. 604) distinguiu esse movimento em dois sentidos: o fechamento por fora e o fechamento por dentro. No primeiro caso, refere-se ao processo de apropriação de terras devolutas por grandes proprietários e fazendeiros, antes mesmo da chegada dos camponeses ou pequenos produtores. O fechamento por dentro indica a expropriação dos meios de produção do produtor direto, ou seja, a expropriação dos camponeses nas áreas ocupadas ou inexploradas, configurando ambos os processos na apropriação para o uso produtivo e na terra para reserva de valor.

Aborda o autor que a reprodução do capital levou a modificação dos setores produtivos, intensificando as relações capitalistas de produção. Tais movimentos ensejaram as migrações intra-regionais e inter-regionais, na qual os migrantes direcionaram-se para as áreas urbanas e metropolitanas, ou para áreas de expansão da fronteira agrícola, a exemplo da Amazônia. Na expansão da fronteira se configuram distintas formas: a frente camponesa e a frente capitalista 1 1 O avanço da fronteira distingue em duas frentes: “Frente Camponesa – Caracteriza-se pelo valor de uso da terra e não pelo de troca, pela produção de subsistência e de um excedente comercializável, que, ao ser realizado no mercado como mercadoria, possibilita a aquisição de certos produtos não produzidos nesse tipo de frente. Frente Capitalista - Distingue-se pela propriedade privada da terra, pelo valor de troca da terra, sendo a produção de suas mercadorias integrada plenamente no mercado. A frente capitalista pode ter duas formas: competitiva: caracteriza-se pela predominância da pequena propriedade e pela presença de projetos de colonização privados e oficiais; monopolista: distingue-se pela grande propriedade, em geral para a pecuária, visto que esta é uma atividade cuja acumulação é independente, até certo ponto, de realização do produto, pela baixa absorção de mão-de–obra, pelo caráter especulativo da propriedade e pelas facilidades de obtenção de subsídios e / ou incentivos fiscais e creditícios oferecidos pelo governo” ( OSORIO, 1978 , p. 604). , esta última amparada pelo o Estado, através dos mecanismos de concessão de terras, créditos e incentivos fiscais. O fechamento da fronteira atingiria de modo estratificado as pequenas e médias propriedades, sendo mais conflituoso contra os posseiros e os camponeses sem terra, em função de sua fragilidade social e econômica frente à especulação e pressão da expansão capitalista.

Em A modernização dolorosa, Graziano da Silva (1982) GRAZIANO DA SILVA, José. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil . Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. analisou as transformações na agricultura como expressão do movimento de modernização capitalista no processo produtivo e nas relações de produção no espaço rural. Decorreu disso o aumento da concentração fundiária e a expansão do mercado interno sediado nas cidades e nas metrópoles. Em referência à Amazônia, o autor articulou a região ao conceito de fronteira na ótica do capital, que corresponde a uma relação social de produção, ou seja, uma fronteira agrícola, uma fronteira econômica. Para isso, a tese da modernização agropecuária traz a lógica do fechamento da fronteira, que se refere a redução de “terras livres”, “terras sem donos”, que poderiam ser objeto de apropriação pelos camponeses. Equivale a mudança da terra enquanto valor de uso para valor de troca, na medida em que a terra passa a desempenhar uma reserva de valor. Nesse aspecto, o fechamento se dá de fora para dentro, dado que a terra ao reduzir a função produtiva eleva-se na condição de reserva de valor. Para o autor, a fronteira assumiu diversas significações sociais:

No plano social, [...] a fronteira representa uma orientação dos fluxos migratórios, especialmente das populações rurais. [...] Quando a fronteira se “fecha”, passa a haver uma multiplicação de pequenos fluxos migratórios, muitos sem direção definida [...] No plano econômico, a fronteira era uma espécie de ‘armazém regulador’ dos preços de gêneros alimentícios de primeira necessidade consumidos pela população urbana [...] havia um suprimento do mercado nacional através do escoamento dos ‘excedentes’ da pequena produção, funcionando como estabilizador dos preços. Quando, entretanto, a fronteira se ‘fecha’, esse efeito de amortecimento tem de ser buscado na importação desses gêneros alimentícios e no tabelamento dos seus preços. No plano político, a fronteira tem sido a ‘válvula de escape’ das tensões sociais no campo. ( GRAZIANO DA SILVA, 1982 GRAZIANO DA SILVA, José. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil . Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. , p. 118)

Nessa perspectiva, o fechamento da fronteira representou a instauração das relações capitalista na floresta Amazônia, constituindo-se em um novo processo de cercamento da terra no qual se sucederam inúmeros conflitos agrários, sendo este um indicador do fechamento ao que se poderia qualificar como acesso às terras livres na Amazônia, terras que não estariam sob os impulsos dos centros dinâmicos do capital.

As pesquisas sociológicas, antropológicas e geográficas orientaram suas leituras através dos conceitos de frente de expansão, frente pioneira e fronteira, analisando as rápidas e intensas transformações socioeconômicas e ambiental na Amazônia.

O conceito de frente de expansão expressa os conflitos que atingiram diretamente os grupos sociais que não estavam totalmente integrados à racionalidade do capital, no sentido de se configurar em relações capitalistas (trabalho assalariado, produção de excedentes). A proposições de Otavio Guilherme Velho (1972) VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de Expansão e Estrutura Agrária . Rio de Janeiro: Zahar, 1972. , que estudou o sudoeste do Pará, avaliou esse processo atribuindo significado social à frente de expansão “como sendo constituídas dos segmentos extremos da sociedade brasileira que se internavam em áreas antes não exploradas, e apenas ocupadas por sociedades indígenas” (1972, p. 13). Trata-se de áreas rurais com forte predomínio de povos indígenas, comunidades quilombolas, comunidades ribeirinhas, seringueiros, camponeses, população cabocla da Amazônia, em que a mediação no convívio sociocultural se assentava na posse da terra (terra de trabalho), ainda que de algum modo havia a relação com o capital comercial, pois desenvolviam a economia extrativa (remédios, borracha, castanha, caça, pesca, madeira, frutos e outros produtos da floresta) e a agricultura de subsistência. Na frente de expansão havia limitação referente as trocas e fluxos mercantis, o que configurava certo isolamento do campesinato e dos grupos sociais em relação as dinâmicas socioeconômicas modernas, caracterizando uma situação de intensa marginalização social no âmbito de uma economia de pouco excedentes. Ou seja, a relação com o mercado era distante, marginal, mas que se comunicava de dois modos: “pela absorção do excedente demográfico que não pode ser contido dentro da fronteira econômica e pela produção de excedentes que se realizam como mercadoria na economia de mercado” ( MARTINS, 1975 MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo: estudo sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975. , p. 46).

Os geógrafos franceses e germânicos, que estudaram a Amazônia nas décadas de 1970 e 1980, conduziram suas pesquisas a partir do conceito de frente pioneira . Entendiam que as transformações territoriais operadas na Amazônia representavam a inserção do capital e das relações mediadas pelo capital na hiléia. O foco da análise apontava para as mudanças na paisagem a partir da formação de pequenas cidade e povoados, assentamentos rurais, estradas, fluxo migratório em novas áreas. Indicava que a metamorfose da terra em mercadoria abria o comércio de terras e também estimulava intensa exploração dos recursos da natureza. Portanto, a especificidade estava nas transformações gerais que se alinhava ao que podemos designar como sociabilidade do capital na Amazônia. Costa Silva (2015 COSTA SILVA, R. G. Amazônia globalizada: da fronteira agrícola ao território do agronegócio – o exemplo de Rondônia. Confins (Paris), v. 23, p. 1-30, 2015. Link: http://confins.revues.org/9949
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, p. 6) informa que a propriedade e o uso capitalista da terra na Amazônia, ainda que embrionários nas décadas de 1960/1980, “instituem significados e códigos da sociabilidade capitalista, assegurando a realização do capital em sua expansão espacial”, indicando que “o comércio de terras, até então uma relação social estranha [na Amazônia], emerge como novo instrumento de poder”.

Assim, a leitura da Amazônia pelo conceito de frente pioneira orientava ao entendimento de uma região que se transformava pelos mecanismos da conversão em áreas naturais em áreas de modernização agrária e agrícola, o que representou o deslocamento dos fluxos econômicos das regiões mais dinâmicas do Brasil para a Amazônia. A política de colonização agrícola implantada nos estados de Rondônia, Pará e Mato Grosso nas décadas de 1960, 1970 e 1980, exemplificam esse processo. Do outro lado do processo social cresciam os conflitos agrários e étnico-culturais, atingindo os grupos socais que compunha a chamada frente de expansão (camponeses, ribeirinhos, indígenas, seringueiros, quilombolas e outros grupos), os quais sofreram com o avanço das relações capitalistas, dado que a violência física, étnica e simbólica qualificou e continua a qualificar a Amazônia brasileira em seu processo de modernização.

A modernização do capital na região amazônica, que em termos sócio-espaciais promoveu rápidas mudanças no campo e na cidade, mobilizou outros pesquisadores brasileiros perscrutarem a região a partir do conceito de fronteira. Bertha Becker articulou o conceito de fronteira no âmbito da geografia política contemporânea, entendendo que na Amazônia a fronteira expressava “um espaço ainda não plenamente estruturado, gerador de realidades novas e dotado de elevado potencial político. O dado crucial da fronteira é [sua] virtualidade histórica” ( BECKER, 2007 BECKER, Bertha. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. 2 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. , p. 19-20). Por virtualidade histórica entende-se que a fronteira está aberta aos processos e projeto em disputas, conformando-se como “um campo de forças, espaço onde os projetos políticos dos múltiplos agentes territoriais podem ou não se territorializar”, o que implica a reconhecer os “projetos dos diversos agentes territoriais que imprime na luta política e no território suas visões e ações para com essa Região” ( COSTA SILVA, 2015 COSTA SILVA, R. G. Amazônia globalizada: da fronteira agrícola ao território do agronegócio – o exemplo de Rondônia. Confins (Paris), v. 23, p. 1-30, 2015. Link: http://confins.revues.org/9949
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, p. 7).

A centralidade da análise estava no papel do Estado brasileiro em mobilizar recursos e programas governamentais para impor uma outra lógica de funcionamento da região, agora aberta à exploração dos recursos da natureza e da ocupação humana e econômica voltada a produção da agropecuária. Os grandes projetos hidroelétricos, projetos minerais, projetos agropecuários, projetos de colonização agrícola, construção de redes técnicas (telecomunicação e rodoviária), abriu a região aos fluxos econômicos, o que levou Becker conceituar a Amazônia como “fronteira de recursos”.

As representações da Amazônia, nessas visões, estão centradas na fronteira enquanto espaço social de conflitos entre capital e trabalho, na expropriação e na violência que se instaura com os mecanismos de acumulação primitiva que o capital nacional e transnacional opera na região, com eminente apoio do Estado ( ALMEIDA, 2010 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. W. B. Agroestratégias e desterritorialização: direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: Capitalismo globalizado e recursos territoriais. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. p. 101-144 ).

Em síntese, a modernização da agropecuária brasileira, iniciada a partir da década de 1960, representou a inserção mais concreta da lógica no capital na apropriação dos recursos naturais da Amazônia, na transformação dos territórios culturais dos povos e comunidades tradicionais, o que resultou em grilagens de áreas públicas e na mercantilização da terra, fenômeno social relacionado à violência e aos conflitos agrários.

Acesso à terra e conflitos agrários em Rondônia

O modelo de ocupação agrária em Rondônia, iniciado na década de 1970, efetivou-se a partir da Política de Colonização Agrícola do governo federal, cuja operacionalização coube ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Os principais instrumentos públicos para a distribuição de terras, nos anos iniciais da colonização, foram os Projetos Integrados de Colonização – PICs e os Projetos de Assentamentos Dirigidos – PADs.

No PIC assegurava-se aos colonos a presença de instituições públicas para garantir e orientar todas as fases do processo social e produtivo do assentamento rural. Assim, o acesso ao crédito, assistência técnica e social, produção e armazenagem estavam assistidos, em certa medida, pelo o Estado. O objetivo era territorializar um novo uso da terra voltado à produção agropecuária vinculada ao mercado regional e nacional. O público dos PICs foram os migrantes camponeses oriundo das diversas regiões do Brasil, que em sua maioria se deslocaram do Sul e Sudeste do Brasil. Em função da assistência do poder público aos assentados dos PICs, dado a oferta de terras e o modelo distributivista que “facilitava” o acesso à terra, servindo como efeito multiplicador, o fluxo migratório se intensificou para o então Território Federal de Rondônia, o que obrigou o governo a construir outra estratégia de distribuição de terras: os Projetos de Assentamentos Dirigidos – PADs.

A estratégia governamental nos PADs consistiu em distribuir terras, sem apoio governamental, aos médios e grandes proprietários/fazendeiros (pessoa física) e aos empresários rurais (pessoa jurídica), com lotes que variavam de 250, 500 e 1.000 hectares. O modelo exigiu maior especialidade no trabalho agrícola, recursos financeiros e capacidade/gestão técnica para ter acesso aos financiamentos ( COSTA SILVA, 2012 COSTA SILVA, R. G. Das margens do Madeira ao interior da floresta: percursos da formação sócioespacial de Rondônia (1970-1995). In: ALMEIDA SILVA, A; NASCIMENTO SILVA, M. G. S; SILVA, R. G. C. (Orgs.) Colonização, Território e Meio Ambiente em Rondônia: Reflexões geográficas. 1ed. Curitiba: Editora SK, 2012, v. 1, p. 58-82. e 2014). Normalmente essas terras eram concedidas mediante a afirmação dos Contrato de Alienação de Terras Públicas (CATPs), modalidade utilizada em Rondônia para conceder terras visando o desenvolvimento de projetos agropecuários, para as quais os proprietários beneficiados deveriam cumprir investimentos e pagar em parcelas os títulos das propriedades. Muitos títulos não foram pagos e muitas propriedades foram abandonadas ao longo do período, sendo posteriormente ocupadas por famílias sem terra e pelos movimentos sociais do campo, resultando atualmente em 106 áreas de conflitos em Rondônia, a maioria em terras fruto dos CATPs ( CPT, 2017 CPT. Comissão Pastoral da Terra. Articulação das CPT’s Amazônia (org). Atlas de conflitos na Amazônia. Goiânia: CPT; São Paulo: Editora Entremares, 2017. ).

Durante o período de 1970 a 2007, o INCRA implementou diversas políticas de distribuição de terras em Rondônia, cujo efeito numérico pode assim ser discriminado na tabela abaixo:

Tabela 1
INCRA - assentamentos realizados em Rondônia (1970-2007)

No período de 1970 a 2007 foram implantados 155 projetos de assentamento rural, regularização fundiária e reforma agrária ( Tabela 1 ), assegurando acesso à terra para 77.503 famílias, numa área de 5.809.662 de hectares. Contudo, o período de 1970/1994 corresponde a distribuição de maior quantidade de terras (73%) e de acesso das famílias aos assentamentos (67%), momento também que demonstra maior ação institucional do INCRA na gestão territorial de Rondônia ( COSTA SILVA, 2014 COSTA SILVA, R. G. C. Globalização e fragmentação do espaço agrário em Rondônia. RDE – Revista de Desenvolvimento Econômico , v. XVI, p. 163-174, 2014. Link: http://www.revistas.unifacs.br/index.php/rde/article/view/3610
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).

Deve-se considerar que as pressões dos movimentos sociais no campo e a ação do INCRA permitia tal determinação, visto que somente no período posterior as políticas de orientação neoliberal vão limitar e mesmo destruir o acesso aos bens públicos, numa perspectiva distributivista da terra. Assim, nos períodos subsequentes ocorreram tanto a limitação da área média dos lotes dos assentamentos, quanto o acesso à terra por parte das famílias camponesas. O que vai caracterizar a distribuição pública de terras em Rondônia nos períodos de 1995/2002 (governo FHC) e 2003-207 (governo Lula), foi o deslocamento da pauta da reforma agrária para uma ótica de mercado (reforma agrária de mercado), adicionada com a criminalização dos movimentos sociais (governo FHC), e a necessidade de regularização fundiária e acesso às políticas públicas focadas no PRONAF (governo Lula).

Em termos geoeconômico, a colonização agrícola ensejou um novo uso da terra e do território. Na economia regional o efeito foi suplantar o setor extrativista (castanha, pescado, borracha, mandioca, entre outros) em favor da agropecuária (pecuária, café, milho, arroz, frutas), e, consequentemente, a instituição do mercado de terras. Em termos de uso do território, a pecuária e a extração madeireira causaram o aumento do desmatamento, fazendo pressão em áreas protegidas e/ou que não estavam na órbita dos processos mercantis da modernização agrícola. Somado aos impactos ambientais, tem-se a invasão de terras públicas e sua grilagem, o roubo de madeira, pilhagem ambiental, e os crescentes conflitos agrários envolvendo posseiros, fazendeiros, madeireiros, indígenas, quilombolas, seringueiros, que continuou e continua a qualificar a geografia agrária de Rondônia.

Certamente a estrutura fundiária expressa a intensidade das mudanças no espaço agrário em todo o período. Conforme os dados do Censo Agropecuário do IBGE - 2006, a estrutura fundiária expandiu consideravelmente, crescendo de pouco mais de 7.000 estabelecimentos agropecuários (1970) para 48.365 unidades em 1980, alcançando 76.954 unidades em 1995 e 86.164 estabelecimentos em 2006. Tais métricas correspondem ao crescimento na ordem de 1.130% referente aos estabelecimentos agropecuários. Em termos de área, o crescimento absoluto foi de 1.631.640 hectares (ha) em 1970 para 8.433.868 ha em 2006, correspondendo a incorporação de 6.802.228 ha, o que significa que a área da agropecuária multiplicou por cinco (5) vezes no período citado (IBGE, 2006).

Importa ressaltar que dos 86.164 estabelecimentos agropecuários, cerca de 81% referem-se às unidades com até 100 hectares, estrato fundiário caracterizado como pequena propriedade, em que se encontra a agricultura familiar camponesa, mas representando somente 27% da área dos estabelecimentos de Rondônia. No estrato fundiário de 100 a 1.000 ha, esses dados apresentam as seguintes métricas: representam 18% dos estabelecimentos e 39% da área; no estrato acima de 1.000 ha correspondem a 1% dos estabelecimentos e 35% da área. Quando se verifica as médias das propriedades nos estratos de até 100, de 100 a 1.000, e acima de 1.000 ha, respectivamente tem-se as seguintes correspondências: 32, 217 e 2.627 ha, ou seja, a diferença da grande propriedade é de 82 vezes para a pequena propriedade. Em comparação com os dados da região Norte, pode-se assegurar que os estratos fundiários são mais ajustados em Rondônia, onde a pequena propriedade desempenha função econômica, social e territorial de extrema relevância, participando dos processos produtivos que lhe compete, desde a produção de frutas, pescado, produtos agrícolas, pecuária de corte e leite, e agroindústrias familiares, o que certamente deriva das política de colonização agrícola que atendeu prioritariamente as famílias de posseiros, caracterizando Rondônia como um espaço do campesinato que atualmente passa por uma transição agrária e agrícola (COSTA SILVA, 2016).

As mudanças estruturais na dinâmica territorial agrária ocorreram na segunda metade da década de 1990, com a inauguração da hidrovia Madeira-Amazonas, que permitiu o fluxo de grãos de Rondônia e oeste do Mato Grosso para os portos do Grupos hegemônicos do agronegócio, Amaggi em Itacoatiara (AM) e da Cargill em Santarém (PA), ensejando três processos territoriais em Rondônia. O primeiro sinalizou a soja como primeira monocultura que se expande há duas décadas em Rondônia. O segundo, derivado da expansão da soja, centra-se na elevação do preço da terra agrícola e de pastagem, resultando na recente corrida pela terra em Rondônia. O terceiro processo pôs em questão a necessidade de regularização fundiária rural, considerando que essa foi uma fragilidade da política de colonização agrícola em Rondônia, quando a distribuição de terra não foi acompanhada de sua devida titulação.

Assim, em Rondônia os conflitos agrários estão conexos a esses processos, concentrando-se em duas sub-regiões: sul e norte do estado. No sul rondoniense, também denominada de cone-sul, configura-se na regionalização do agronegócio (soja, milho e arroz), que juntos representam cerca de 70% da produção dos grãos. Trata-se de uma regionalização produzida pelos agentes hegemônicos do agronegócio, onde a concentração de terras, a formação de monoculturas e os conflitos agrários se tornaram mais agudos. A região é composta por sete municípios, sendo que a cidade de Vilhena assume primazia na rede urbana local e centraliza a produção e os fluxos das commodities , tornando-se o que se conceitua como cidade do agronegócio (Costa Silva, 2016). Na região sul rondoniense, no período de 2010 a 2014, o preço médio da terra agrícola (própria para grãos) sofreu variação de 70%, e de terras para pastagem esse indicador alcançou 240%.

Os dados atuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para o ano de 2017 indicam a ocorrência de 191 conflitos agrários em Rondônia com 17.099 famílias atingidas. Destes números, somente em quatro municípios do cone-sul se registrou 41 conflitos, o que corresponde a 21% dos conflitos em Rondônia, atingindo 2.402 famílias (21%), na categoria conflitos por terra ( CPT, 2017 CPT. Comissão Pastoral da Terra. Articulação das CPT’s Amazônia (org). Atlas de conflitos na Amazônia. Goiânia: CPT; São Paulo: Editora Entremares, 2017. ). As áreas em disputa derivam da ocupação por posseiros de fazendas abandonas desde o início da colonização, visto o não cumprimento dos contratos de CATPs. Algumas dessas áreas estão ocupadas há mais de dez anos, sendo atualmente reivindicas no poder judiciário pelos supostos proprietários, sobretudo, em função do elevado preço da terra pressionado pelo agronegócio.

Com o aprofundamento dos conflitos agrários na região sul rondoniense, somado a saturação de áreas disponíveis às commodities e a crescente demanda por terras para a pecuária e soja, ocorreu o deslocamento espacial do capital agropecuário para a região norte/centro-norte, centralizados nos municípios de Ariquemes e Porto Velho (capital de Rondônia). Novamente, os dados coletados pela CPT indicam que em 2017 a região norte (Porto Velho) e centro-norte (Ariquemes) de Rondônia assumiram a cartografia mais conflitante do estado, sendo o espaço dos conflitos agrários mais letais aos posseiros, movimentos sociais e suas lideranças e defensores dos direitos humanos no campo. A métrica da violência indica que nessas regiões ocorreram 87 conflitos agrários (46% do total de conflitos), envolvendo cerca de 10.426 famílias (61% do total de famílias).

No ano de 2016, Rondônia registrou 21 assassinatos por violência no campo, e em 2017 se contabilizou 16 casos de homicídios, considerando que os dados ainda não foram totalmente disponibilizados ( CPT, 2017 CPT. Comissão Pastoral da Terra. Articulação das CPT’s Amazônia (org). Atlas de conflitos na Amazônia. Goiânia: CPT; São Paulo: Editora Entremares, 2017. ). Contudo, quando consideramos os registros dos conflitos no período de 1985 a 2016, observando somente os casos de assassinatos, tem-se a soma de 130 vítimas letais, das quais 85% foram assassinadas no período de 2006/2017, ou seja, 65 homicídios.

A demanda por terras promovida pela economia do agronegócio fez impulsionar os conflitos agrários, somado à grilagem de terras públicas em áreas protegidas. Tal situação se complexificou ainda mais em função da situação jurídica das propriedades rurais, visto que a fragilidade na legalização dos lotes da maioria do assentados e agricultores familiares, principalmente nas áreas que estão em disputas o agronegócio e os movimentos sociais do campo.

Nessa perspectiva, os conflitos agrários em Rondônia cristalizam a luta dos movimentos sociais em dois campos políticos: o acesso à terra como condição de reprodução social, o que significa a luta pelo direito ao trabalho familiar no campo; e a luta contra a reconcentração fundiária provocada pelo agronegócio, que tende a marginalizar as famílias camponesas sem terra, obliterando a reforma agrária e o direito à moradia, que no mundo agrário vincula-se ao direito à terra (ATAÍDE JÚNIOR, 2006 ATAÍDE JÚNIOR, Wilson Rodrigues. Os direitos humanos e a questão agrária no Brasil: a situação do sudeste do Pará . Brasília: Editora da UNB, 2006. ).

Direito à terra e Direito ao território: um debate

Nenhuma outra região brasileira possui tanta área potencialmente disponível quanto a Amazônia. Em Rondônia, onde a economia encontra no setor agropecuário sua maior representação, a terra, nas últimas décadas, vem sendo objeto de disputas entre os diversos setores do agronegócio, especialmente a pecuária de corte e a soja, e os camponeses e povos e comunidades tradicionais da Amazônia.

Sem menosprezo a legislação vigente até então, com destaque para o Estatuto da Terra, parece bastante evidente que foi a Constituição Federal de 1988 que mudou o padrão de cidadania existente no campo brasileiro. A democracia instaurada com a nova ordem constitucional nos permitiu avançar de um modelo de republicanismo autoritário para um republicanismo participativo, tendo nos movimentos sociais sua maior expressão de cidadania.

Com o fortalecimento político e social dos movimentos sociais de luta pela terra (Movimento dos Sem Terra, Ligas Camponesas, Via Campesina, etc.), o ordenamento jurídico passa a desempenhar papel central na disputa pelo direito de acesso desses grupos à terra e ao território, buscando utilizar-se do próprio aparato jurídico para exercer uma maior pressão sobre o Estado. Todavia, não se pode perder de vista que, historicamente, o Brasil é marcado por uma concentração do poder político sob o controle de grandes proprietários de terra, processo que nasce no período colonial e perdura até os tempos atuais ( DE PAULA; GEDIEL, 2017 DE PAULA, Roberto; GEDIEL, José Antônio Peres. Questão agrária: entraves jurídico processuais recorrentes e desigualdade social. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 04, 2017, p. 2819-2842. ).

Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, ilustra bem o poder político e a sua vinculação com a propriedade de terras no período colonial:

Depois de perder o caráter administrativo que lhe fora infundido pelos legisladores de Portugal, para acentuar seu conteúdo dominial, o regime das sesmarias gera, ao contrário de seus propósitos iniciais, a grande propriedade. Para chegar a essas linhas de contorno, muito se deve ao influxo da escravidão e ao aproveitamento extensivo da pecuária, fatores que se aliam ao fato de que, para requerer e obter a sesmaria, era necessário o prévio prestígio político, confiada a terra, não ao cultivador eventual, mas ao senhor de cabedais ou titular de serviços públicos. A propriedade seria, desta sorte, uma afirmação aristocrática, para uma grande empresa ou para o domínio de lavradores e vaqueiros. ( FAORO, 2016 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Biblioteca Azul, 5ª edição, 2016. , p. 464)

A Carta Cidadã de 1988 resgata a esperança de reforma agrária no Brasil, alimentando o sonho de milhões de brasileiros que se veem instrumentalizados jurídica e politicamente com o novo cenário republicano. Não só se afirmou como direito fundamental que a propriedade atenderá a sua função social, rompendo o significado liberal-francês da propriedade, mas se estabeleceu no próprio texto constitucional uma política agrícola e fundiária da reforma agrária, os requisitos da função da social da propriedade e os instrumentos jurídicos de desapropriação, algo impensável nas constituições anteriores.

Passados quase 30 anos da promulgação da Carta Política, mesmo com as conquistas elencadas, o desafio que se põe no atual cenário político brasileiro é a luta para evitar retrocessos, seja na quadra legislativa, como também no campo jurídico. Desiludido com o viés liberal-burguês que orientou a reforma agrária nas últimas três décadas, o campesinato e os povos e comunidades tradicionais tentam sobreviver no contexto de desenvolvimento capitalista que tomou conta da Amazônia nesse período, buscando novas narrativas de resistência frente ao avanço desenfreado do agronegócio.

O direito à terra e ao território ganha uma nova perspectiva de direitos humanos, sobretudo, ante sua fundamentação teórica centrada na dignidade da pessoa humana e na justiça social, bem assim sua interface com a justiça ambiental orientada pela ideia de proibição do retrocesso. Esses temas possuem altíssima relevância quando se pensa na Amazônia brasileira e na sua relação com o agronegócio.

Em artigo que trata do tema Justiça Ambiental e a Violação dos Direitos Humanos Socioambientais, Ricardo Vieira e Roberta Lima VIEIRA, R. S.; LIMA, R. O. Justiça ambiental e a violação dos direitos humanos socioambientais: desafios da sustentabilidade na era do desenvolvimento. In: JUBILUT, L. L.; FERNANDES REI, F. C.; GARCEZ, Gabriela Soldano. (Org.). Direitos humanos e meio ambiente: minorias ambientais. 1 ed. São Paulo: Manole, 2017. p. 39-64. destacam:

“Caso se mantenha o atual ritmo de crescimento, a humanidade precisará de pelo menos dois outros planetas Terra no final do século XXI para manter os padrões correntes de consumo. Para atenuar e reverter esses inúmeros problemas, esperava-se que, na Conferência Rio+20, os líderes globais definissem um caminho para a transição rápida e justa ao desenvolvimento sustentável, que assegurasse um padrão de vida razoável para a população mundial e interrompesse a destruição dos ecossistemas. Daí decorre justamente a ideia de defesa do princípio de não retrocesso em matéria socioambiental. Esse princípio vem da pauta de direitos humanos e terá grande repercussão na pauta do debate jurídico ambiental no nosso país. Da mesma forma que não aceitamos retrocesso das garantias individuais, também não há que se falar em retrocesso nas garantias coletivas e difusas.”

No campo propriamente jurídico, em geral, talvez o maior desafio do campesinato ainda seja o de superar a narrativa positivista-liberal-individualista do direito de propriedade, tornando a função social norma programática. Além de que, especificamente na Amazônia, a insegurança jurídica decorrente da falta de regularização fundiária de boa parte das áreas em conflito leva a discussão para o campo da posse, cuja função social não é aplicada (artigo 5º Lei de Introdução ao Código Civil), o que coloca os camponeses em flagrante desvantagem perante um sistema judicial legalista, de inspiração liberal.

Tal hermenêutica 2 2 "A interpretação jurídica, como tarefa dogmática, ocorre num amplo espectro de possibilidades. Envolve o direito como um fenômeno complexo, na perspectiva da decidibilidade de conflitos. O jurista não interpreta do mesmo modo em que o faz o ser humano, ordinariamente, quando procura entender a mensagem de alguém numa simples conversa. Nesse caso, o que se busca é a entender o que foi comunicado, captando o sentido a partir de um esquema de compreensão próprio de quem ouve, a fim de orientar suas reações e subseqüentes ações. Já o jurista pressupõe que, no discurso normativo, são fornecidas razões para agir de um certo modo e não de outro. Essas razões, portanto, se destinam a uma tomada de posição diante de diferentes possibilidades de ação nem sempre congruentes, ao contrário, em conflito. Pressupõem, assim, que o ser humano age significativamente, isto é, atribui significação à sua ação. Como essa significação conhece variações subjetivas, em termos do que se entende como justo, ou injusto, a possibilidade de conflitos reflexos, isto é, conflito sobre o conflito, pode levar a uma escalada de impasses e intransigências." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Função Pragmática da Justiça na Hermenêutica Jurídica: Lógica do ou no Direito? In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. A Filosofia no Direito e a Filosofia do Direito. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2007. vol. I, n. 5. pp. 273-274) liberal individualista resiste a uma releitura contemporânea da luta pela terra na Amazônia, inspirada nos direitos humanos, e acaba por potencializar os conflitos impedindo uma readequação do direito à terra e ao território em patamares coletivos, com ênfase no princípio da justiça social.

A justiça social deve ser compreendia como a chave hermenêutica para nos debruçarmos sobre as potencialidades interpretativas das questões relacionadas ao direito à terra e ao território, que pode ser levada a efeito por meio da reforma agrária, ou através da garantia do direito de posse coletiva aos camponeses organizados em associações, sindicatos e cooperativas, assim como, a garantia de territórios culturais, a exemplo das áreas indígenas, áreas quilombolas, reservas extrativistas dos seringueiros, dentre outros territórios dos grupos sociais do campo.

O agronegócio tenciona a fronteira agrícola na Amazônia e tenta sufocar a luta camponesa no reconhecimento por seus direitos, historicamente negados ( COSTA SILVA, 2017 COSTA SILVA, R. G. Da apropriação da terra ao domínio do território: as estratégias do agronegócio na Amazônia brasileira. International Journal of Development Research, 7, (12), 17699-17707, 2017. ). Os direitos humanos oferecem uma vasta base teórica para a superação do positivismo legalista que impera no campo jurídico-hermenêutico dos direitos de propriedade e de posse nas terras amazônicas, comprometendo o direito à terra e ao território. De acordo com Bobbio:

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. ( BOBBIO, 1992 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos (trad. de Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro: campus, 1992. p. 25. , p. 25)

Inserir na narrativa dos movimentos sociais de luta pela terra o discurso dos direitos humanos e sua fundamentação filosófica, numa interface com a justiça ambiental orientada pela ideia de proibição do retrocesso, consiste numa das estratégias possíveis para conter o avanço do agronegócio na Amazônia, criando a partir daí um campo de disputa no qual a justiça poderá ser mais favorável às legítimas demandas dos camponeses e dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia.

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    O avanço da fronteira distingue em duas frentes: “Frente Camponesa – Caracteriza-se pelo valor de uso da terra e não pelo de troca, pela produção de subsistência e de um excedente comercializável, que, ao ser realizado no mercado como mercadoria, possibilita a aquisição de certos produtos não produzidos nesse tipo de frente. Frente Capitalista - Distingue-se pela propriedade privada da terra, pelo valor de troca da terra, sendo a produção de suas mercadorias integrada plenamente no mercado. A frente capitalista pode ter duas formas: competitiva: caracteriza-se pela predominância da pequena propriedade e pela presença de projetos de colonização privados e oficiais; monopolista: distingue-se pela grande propriedade, em geral para a pecuária, visto que esta é uma atividade cuja acumulação é independente, até certo ponto, de realização do produto, pela baixa absorção de mão-de–obra, pelo caráter especulativo da propriedade e pelas facilidades de obtenção de subsídios e / ou incentivos fiscais e creditícios oferecidos pelo governo” ( OSORIO, 1978 OSORIO, Carlos. Migrações recentes e desigualdades. ANAIS, I Encontro Nacional da ABEP, p. 600-619, Campos do Jordão, outubro, 1978. Acesso: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1978/T78V01A20.pdf
    http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/an...
    , p. 604).
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    "A interpretação jurídica, como tarefa dogmática, ocorre num amplo espectro de possibilidades. Envolve o direito como um fenômeno complexo, na perspectiva da decidibilidade de conflitos. O jurista não interpreta do mesmo modo em que o faz o ser humano, ordinariamente, quando procura entender a mensagem de alguém numa simples conversa. Nesse caso, o que se busca é a entender o que foi comunicado, captando o sentido a partir de um esquema de compreensão próprio de quem ouve, a fim de orientar suas reações e subseqüentes ações. Já o jurista pressupõe que, no discurso normativo, são fornecidas razões para agir de um certo modo e não de outro. Essas razões, portanto, se destinam a uma tomada de posição diante de diferentes possibilidades de ação nem sempre congruentes, ao contrário, em conflito. Pressupõem, assim, que o ser humano age significativamente, isto é, atribui significação à sua ação. Como essa significação conhece variações subjetivas, em termos do que se entende como justo, ou injusto, a possibilidade de conflitos reflexos, isto é, conflito sobre o conflito, pode levar a uma escalada de impasses e intransigências." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Função Pragmática da Justiça na Hermenêutica Jurídica: Lógica do ou no Direito? In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. A Filosofia no Direito e a Filosofia do Direito. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2007. vol. I, n. 5. pp. 273-274)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2018
  • Aceito
    06 Fev 2018
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