Acessibilidade / Reportar erro

Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana

From the right to the city to the urban commons: contributions to a lefebvrian approach

Resumo

As abordagens disponíveis sobre o comum urbano apenas localizam o comum na cidade, sem, entretanto, discutirem o que há de especificamente urbano no comum. Além disso, não articulam a dimensão dos recursos comuns existentes na cidade com a ideia da própria cidade como comum, como formulado pelos movimentos que lutam pelo direito à cidade. Para fazer frente aos desafios teóricos de se conceber o comum em sua dimensão urbana, ensaio aqui uma elaboração ancorada no pensamento de Henri Lefebvre. Argumento que o comum urbano é produzido no âmbito da vida cotidiana através de práticas de fazer-comum baseados no uso, apropriação e autogestão da cidade como obra coletiva. Dessa forma, o urbano, caracterizado pelo seu caráter de centralidade, mediação e diferença, e acrescido da promessa emancipatória da cidade, passa a ser entendido como espaço contraditório de cercamento e produção do comum. De modo mais amplo, concluo que a própria produção do espaço, tornada central no mundo contemporâneo à reprodução das relações sociais capitalistas, implica cada vez mais a disputa pela apropriação do próprio espaço (urbano) como comum, e as lutas pelo direito à cidade como lutas pela cidade como comum.

Palavras-chave:
Comum urbano; Comuns urbanos; Direito à cidade; Henri Lefebvre

Abstract

The available approaches on urban commons locate the commons in the city, without discussing what is specifically urban about them. In addition, they do not articulate the dimension of the commons existing in the city with the idea of the city itself as a commons, as formulated by movements that fight for the right to the city. To face the theoretical challenges of conceiving the commons in its urban dimension, I rehearse here an elaboration anchored in the thought of Henri Lefebvre. I argue that the urban commons are produced within the scope of everyday life through commoning practices based on the use, appropriation, and self-management of the city as a collective work. In this way, the urban, characterized by its character of centrality, mediation, and difference, and added to the emancipatory promise of the city, comes to be understood as a contradictory space for the enclosure and production of the commons. More broadly, I conclude that the very production of space, which has become central in the contemporary world to the reproduction of the capitalist social relations, increasingly implies the disputes over the appropriation of the (urban) space itself as commons and the struggles for the right to the city as struggles for the city as a commons.

Keywords:
Urban commons; Urban common; Right to the city; Henri Lefebvre

1. Introdução 1 1 Parte deste texto tem origem na tese de doutorado “Comum urbano: a cidade além do público e do privado” (Tonucci Filho, 2017), defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. O autor agradece à orientação encorajadora da profa. Heloisa Costa, aos diálogos estimulantes no Grupo de Estudos em Henri Lefebvre (GEHL/UFMG), à interlocução privilegiada com a profa. Rita Velloso e ao CNPq e à CAPES pelo auxílio financeiro à pesquisa.

A ideia do comum ocupa, cada vez mais, um espaço de destaque na gramática e no imaginário político de movimentos anticapitalistas e democráticos que recusam a subordinação de todas as esferas da vida social e natural à lógica da mercadoria, da competição e da propriedade; nos termos de Dardot e Laval (2015DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.), trata-se de um princípio político antagônico à racionalidade neoliberal. A maior difusão do comum como slogan político teve início com os movimentos ambientalistas e altermundialistas na década de 1990, ganhando força com o novo ciclo de protestos globais que, desde 2011, questionam a hegemonia neoliberal, as políticas de austeridade e os regimes não democráticos.

A ênfase nos princípios de autonomia, democracia direta, horizontalidade e autogestão, a organização em redes digitais, a rejeição à tutela do Estado e a ocupação de espaços públicos são características que conectam esses novos movimentos a mobilizações variadas (Dellenbaugh et al., 2015DELLENBAUGH, Mary; KIP, Markus; BIENIOK, Majken; MULLER, Agnes Katharina; SCHWEGMANN, Martin (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015. [Seizing the (every)day: welcome to the urban commons!]; Kip, 2015KIP, Markus. Moving beyond the city: conceptualizing urban commons from a critical urban studies perspective. In: DELLENBAUGH, M.; KIP, M.; BIENIOK, M.; MULLER, A. K.; SCHWEGMANN, M. (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015.). Ao evocar um porvir não capitalista para além da antinomia moderna Estado versus mercado, propriedade pública versus propriedade privada, a noção de comum aproxima-se de um campo de práticas mais autônomas e coletivas de produção e reprodução social (De Angelis, 2007; Hardt; Negri, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.).

De modo mais restrito, os comuns (ou recursos comuns) podem ser definidos como bens que são coletivamente usados e geridos por uma dada comunidade por meio do fazer-comum [commoning], isto é, um conjunto de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade (Linebaugh, 2014LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.), para além do âmbito do Estado e do mercado e das suas respectivas formas de propriedade, pública e privada. As abordagens teóricas e os estudos históricos e empíricos disponíveis sobre o comum, seja em sua vertente liberal institucionalista, seja nas suas formulações mais críticas2 2 Para uma revisão das abordagens críticas sobre o comum, ver Tonucci Filho (2019). , abarcam majoritariamente tanto os recursos naturais e terras comunais (bens materiais) quanto o comum imaterial, cultural e informacional, em geral passando ao largo da realidade urbana.

Ao mesmo tempo que a urbanização da sociedade se afirma como tendência irreversível (Lefebvre, 1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), os teóricos do comum não se propuseram, salvo raras exceções, a discutir mais detidamente como seria olhar para a urbanização a partir do comum, a fim de interrogar sobre os modos pelos quais são produzidos e apropriados recursos e espaços comuns na cidade, ou de pensar a própria cidade como comum. As abordagens disponíveis3 3 Para uma revisão da literatura sobre o comum urbano, ver Tonucci Filho e Cruz (2019). sobre o comum urbano - seja em sua vertente liberal, institucionalista ou mesmo crítica - apenas localizam o comum na cidade, sem, entretanto, discutirem o que há de especificamente urbano no comum. Além disso, não articulam a dimensão dos recursos comuns existentes na cidade - hortas comunitárias, ocupações por moradia, espaços culturais autogeridos, infraestruturas autoproduzidas etc. - com a ideia da própria cidade como comum, como formulado pelos movimentos que lutam pelo direito à cidade.

Apesar do silêncio teórico, em diferentes cidades ao redor do mundo, a ideia do comum urbano tem sido invocada por movimentos, manifestantes, coletivos, pesquisadores, ativistas e até por formuladores de política pública para reivindicar e proteger, contra privatizações e cercamentos, um conjunto de recursos e bens urbanos que poderiam ser mais amplamente compartilhados entre os cidadãos. Esses movimentos vêm crescentemente olhando para além do Estado, ou seja, na direção de formas de cooperação e de reivindicação dos recursos urbanos e da própria cidade como comum (Foster, Iaione, 2016FOSTER, Sheila; IAIONE, Christian. The city as a commons. Yale Law & Policy Review, v. 34: 281, 2016.). Ademais, práticas e espaços tidos como “prémodernos”, “arcaicos”, “populares” e “informais”, nas favelas, periferias e outros territórios populares urbanos, começam a ser reconhecidos pelas suas potências de comunalidade, compartilhamento e cooperação.

Concomitantemente, assistimos à difusão da noção de direito à cidade, formulada originalmente ainda em 1968 pelo filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991), e hoje apropriada e difundida - outros diriam banalizada - por um amplo espectro de sujeitos políticos: de movimentos urbanos radicais a entidades internacionais, como o Banco Mundial e a UN-Habitat. A existência de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade, elaborada entre 2004 e 2005 ao longo do Fórum Social das Américas, do Fórum Social Urbano e do V Fórum Social Mundial, atesta a atualidade global da ideia4 4 O direito à cidade é um momento marcante da obra lefebvriana. Em outro texto (Tonucci Filho, 2014), explorei mais detidamente a formulação do conceito de direito à cidade e os seus desdobramentos posteriores, principalmente as discussões tardias que Lefebvre vai realizar sobre direitos e cidadania. .

Para fazer frente aos desafios teóricos e conceituais de se conceber o comum em sua dimensão urbana, ensaio aqui uma elaboração ancorada no pensamento de Henri Lefebvre. Uma abordagem teórica formulada a partir das contribuições de Lefebvre em torno da noção de direito à cidade - passando pelas suas discussões sobre a crítica da vida cotidiana, a revolução urbana e a produção do espaço - pode oferecer caminhos para se conceber teoricamente o comum urbano como realidade e conceito crítico que se iluminam mutuamente. Assim, defendo aqui que podemos afirmar, feitas todas as ressalvas e contextualizações históricas necessárias, que existe uma teoria do comum urbano em Lefebvre. Destarte, o objetivo deste texto é explorar tal hipótese, expondo as principais conexões entre o pensamento de Lefebvre e o comum. Espera-se com isso enriquecer as leituras muitas vezes estanques da obra lefebvriana, cujas conexões, continuidades e permanências parecem ser mais presentes que à primeira vista.

Delineia-se ainda uma aposta: a de que a emergência nas últimas décadas do comum contribui para destacar a atualidade do pensamento lefebvriano, e de que tal pensamento tem vigor crítico e robustez teórica para aproximar o comum e o urbano, tal qual sugerido por Kip (2015KIP, Markus. Moving beyond the city: conceptualizing urban commons from a critical urban studies perspective. In: DELLENBAUGH, M.; KIP, M.; BIENIOK, M.; MULLER, A. K.; SCHWEGMANN, M. (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015.). O diálogo estreito com Lefebvre deve-se não apenas por ele haver revigorado o pensamento crítico, assumidamente marxista, pela investigação das temáticas do cotidiano e do espaço, alçadas a um novo patamar de formulação teórica; mas também pela sua recusa ao socialismo real de Estado e à sua degenerescência autoritária e burocrática5 5 Paula (2014) situou a obra de Lefebvre junto àquilo que denominou “marxismo emancipatório”, e destacou a resistência do autor à dominação stalinista, ao “socialismo de caserna” e ao marxismo petrificado em “escolástica positivista”, assim como sua defesa da emancipação pelas promessas do urbano. É sempre bom ressaltar que Lefebvre não se via meramente como seguidor de Marx, mas como verdadeiro continuador (“ir adiante a partir de”, nas suas palavras), movido pelo propósito de reconstrução do marxismo tendo em vista as contradições de seu tempo ea renovação do método dialético. . A utopia concreta e experimental defendida por Lefebvre passa pela autogestão generalizada e por um sentido revolucionário de cidadania calcado na vida cotidiana desalienada, liberta do capital e do Estado, tal qual em muitas das formulações mais críticas sobre o comum.

Assim, o artigo está dividido em cinco seções, afora esta introdução e as conclusões. Na primeira, abordo a vida cotidiana como âmbito de produção do comum. Na segunda, exploro como as ideias de apropriação, uso e autogestão podem constituir uma prática espacial de fazer-comum. Adiante, na terceira seção, discuto a cidade como obra coletiva e o direito à cidade como direito ao comum urbano. Na quarta seção, investigo como o urbano, caracterizado pelo caráter de centralidade, diferença e mediação, acrescido da promessa emancipatória da cidade, pode ser entendido como espaço contraditório de cercamento e produção do comum. Por fim, na quinta seção, discuto como a produção do espaço tornou-se central à reprodução das relações sociais capitalistas (incluso da propriedade privada), implicando cada vez mais a luta pela apropriação do próprio espaço (urbano) como comum, e as lutas pelo direito à cidade como lutas pela cidade como comum.

2. Crítica da vida cotidiana: entre a alienação e o comum

Segundo Martins (2016MARTINS, Sérgio. Prefácio à tradução brasileira. Em: LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o direito à cidade II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016., p. 14), Lefebvre questionou se, [...] “diante das contradições do espaço e de sua centralidade para a reprodução capitalista da riqueza, não seria necessário ao pensamento teórico destroçar a unidade de produção, a indústria propriamente dita, como base da análise e fundamento da reprodução das relações sociais de produção”. Lefebvre descobrira que a indústria deixava de ser o lugar central de formação da riqueza, do mais-valor, e do próprio modo de produção como totalidade: a re-produção das relações sociais de produção passara a se dar pela e na cotidianidade, na urbanização, e na própria produção do espaço. Esse deslocamento do mundo industrial da fábrica - outrora entendido como locus essencial da reprodução capitalista e da luta política - para o espaço urbano estendido, para a própria produção do espaço planetário, revelou-se na emergência dos movimentos sociais urbanos e das questões ligadas mais diretamente à reprodução do que à produção, tais como os problemas da vida cotidiana, o meio-ambiente, a preservação dos valores de uso contra a extensão do mundo da mercadoria e da lógica industrial etc. (Monte-Mór, 2006).

Martins (2016MARTINS, Sérgio. Prefácio à tradução brasileira. Em: LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o direito à cidade II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016.) aponta que o conhecimento da produção do espaço, tal qual proposto por Lefebvre, torna imprescindível o conhecimento da vida cotidiana, na qual [...] “se situa o núcleo racional, o centro real da práxis”. Assim, a Crítica da vida cotidiana pode ser lida como a espinha dorsal de sua extensa obra: ao tema, o autor dedicou uma volumosa trilogia (2014 [1947; 1961; 1981]), dentre outros escritos. A vida cotidiana não é, pois, tão somente o ponto de partida para suas investigações sobre as contradições do mundo moderno, mas também o lugar de crítica e transformação deste mundo.

Observando as transformações sofridas pelo capitalismo fordista no pósguerra, Lefebvre notou a ascensão da sociedade burocrática de consumo dirigido, na qual a vida cotidiana encontra-se subsumida ao capital e à burocracia estatal. Nela, o tempo de não-trabalho subordina-se ao modo de produção, programando o cotidiano como esfera de consumo de novas mercadorias: o lazer, as férias, o turismo, a cultura transformada em indústria etc. Lefebvre (2014) sugere que, nesse período, a colonização desloca-se do colonialismo externo (imperialismo) para uma espécie de colonialismo interno do próprio espaço e da vida cotidiana, cujo resultado é a alienação generalizada, a expropriação do corpo e do vivido. De modo semelhante, Negri (2016) considerou que, sob o capitalismo biopolítico contemporâneo, completa-se a a subsunção real da vida ao capital, levando à indistinção entre tempo de trabalho e de vida e ao extravasamento do processo de produção e valorização do capital para todo o tecido social, para além da fábrica.

Entretanto, contra as teses pessimistas sobre a indústria cultural da teoria crítica de Frankfurt, que previa uma administração totalitária da vida cotidiana pelo capital, Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981).) vai afirmar que não existe jamais controle absoluto, pois há sempre brechas e rachaduras em qualquer totalidade, contraditória e movente. Os processos de alienação/desalienação são também sempre relacionais, jamais absolutos. Trebitsch (Lefebvre, 2014) nota que, na concepção de Lefebvre, mesmo que a alienação leve ao empobrecimento e à espoliação da vida cotidiana, esta não pode ser reduzida ao inautêntico e à banalidade, tal qual em Heidegger e Lukács. É como se a vida cotidiana fosse uma espécie de resíduo resistente, vestígio de uma plenitude perdida. Ademais, o marxismo como conhecimento crítico da vida cotidiana de Lefebvre afasta-o sobremaneira de outras correntes sobre o cotidiano que se popularizaram mais recentemente que tomam a vida cotidiana como filosofia da prática (de Certeau), e não da crítica (Goonewardena, 2008GOONEWARDENA, Kanishka. Marxism and everyday life: on Henri Lefebvre, Guy Debord, and some others. Space, difference, everyday life: reading Henri Lefebvre, p. 117-133, 2008.).

Para Lefebvre, a vida cotidiana é ambivalente e contraditória: ao mesmo tempo que cada vez mais colonizada pelo mundo da mercadoria, e sujeita, portanto, às patologias sociais da mistificação, do fetichismo e da alienação, ela constitui também a única arena possível para mudança radical. O autor se recusa a definir estritamente, a precisar conceitualmente o que entende por vida cotidiana, cotidiano e cotidianidade, termos usados de modo intercalado. Nessa elusiva polissemia vejam-se os movimentos de um pensamento que se debatia com uma questão central: como se aproximar do cotidiano vivido pelo intelecto, apreende-lo teoricamente, sem mutilá-lo pela força da abstração, pelo concebido?

A Crítica da vida cotidiana empreendida por Lefebvre só pode ser compreendida como desdobramento da teoria da alienação de Marx. Mas se em Marx (2010MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010 (1844).) os fenômenos da alienação e do estranhamento tem seu cerne na atividade humana primordial - o trabalho -, e portanto dizem respeito em primeira instância ao trabalhador e à esfera do trabalho, Lefebvre vai estender o estado de alienação para outras esferas. O homem não é apenas estranhado de si enquanto trabalhador, mas também no âmbito do cotidiano, das atividades reprodutivas, das relações com a natureza, com a cidade e o espaço. Na interpretação de Goonewardena (2008GOONEWARDENA, Kanishka. Marxism and everyday life: on Henri Lefebvre, Guy Debord, and some others. Space, difference, everyday life: reading Henri Lefebvre, p. 117-133, 2008.), a alienação para Lefebvre consiste na autonomia e separação (relativos e incompletos) das atividades ‘elevadas’ e ‘especializadas’ em relação à vida cotidiana, este nível da práxis por meio do qual criações genuínas são alcançadas, no qual o humano pode se apropriar de sua própria natureza.

Enquanto a propriedade privada capitalista dos meios de produção garante a reprodução da separação entre a classe trabalhadora e os frutos do seu trabalho comum, fundamento de sua alienação enquanto sujeito produtor, a propriedade privada da terra permite que o espaço seja fragmentado, homogeneizado e hierarquizado instrumentalmente para fins econômicos e políticos (Lefebvre, 2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).), com profundas implicações sobre o cotidiano urbano em termos de isolamento, segregação e alienação espacial. Em ambos casos, o cercamento do comum constitui o mecanismo de cisão entre os trabalhadores e seus meios de produção e reprodução, cujo corolário é o desenraizamento da economia, a dissolução da comunidade e a abstração do valor (Marx, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).; Polanyi, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).).

Para Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981).), o cotidiano ‘vivido’ é duplamente determinado tanto como produto quanto resíduo das múltiplas atividades especializadas e fragmentadas (trabalhar, circular, habitar, pensar, recrear etc.), concatenadas em uma totalidade. A vida cotidiana é o que resta, o meio que preenche o vácuo entre todas as atividades técnicas. O autor a compara a um solo fértil, um chão comum de onde todas essas atividades - e o próprio modo de produção - nascem, mas do qual não se separam. Ademais, ela é um nível da totalidade social onde o homem se apropria não tanto da natureza quanto da sua própria natureza, uma zona onde os bens confrontam-se com as necessidades, transformadas mais ou menos em desejos.

Dentre as principais perspectivas críticas do comum, o cotidiano comparece como tema importante na abordagem autonomista e feminista de Federici (2010FEDERICI, Silvia. Feminism and the politics of the commons. In: Uses of a WorldWind, Movement, Movements, and Contemporary Radical Currents in the United States, edited by Craig Hughes, Stevie Peace and Kevin Van Meter for the Team Colors Collective, Oaskland: AK Press, 2010.) e De Angelis (2007), em oposição à abordagem de Hardt e Negri (2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.) centrada na produção biopolítica. Segundo Federici, a reprodução de seres humanos, uma das atividades humanas mais intensivas em trabalho, tem sido por séculos uma responsabilidade coletiva de mulheres, famílias estendidas e da comunidade, e que somente sob o capitalismo a reprodução foi separada da vida cotidiana, cada vez mais atomizada e privatizada. Na abordagem autonomista, as práticas e atividades da vida cotidiana, englobadas sob a esfera da reprodução - como trabalho não pago, atividades não monetizadas, produção de valores de uso etc. -, são geralmente invisibilizadas e estão “fora” das práticas de valor do capital, orientadas para a acumulação e a competição. Essas práticas alternativas da experiência vivida e cotidiana da reprodução, mantidas por relações de dádiva, reciprocidade, solidariedade e cooperação, constituem um comum continuamente sob risco de expropriação.

No entanto, é preciso ter claro que a vida cotidiana não corresponde a uma estrutura ou superestrutura no âmbito do modo de produção capitalista. Na concepção de Lefebvre, ela é um nível (niveau) específico, ou uma ordem da realidade social: a ordem próxima, do âmbito do cotidiano privado, das relações de proximidade e de vizinhança etc. Entre ela e a ordem distante das instituições, do mercado mundial e do Estado, situa-se o nível intermediário (ou nível mediador) do urbano, da realidade urbana, que tudo congrega.

Ao argumentar que o comum urbano é produzido no âmbito do cotidiano, procuro fugir às dicotomias entre as perspectivas que situam o comum exclusivamente no coração da produção capitalista contemporânea (Hardt, Negri, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.) e aquelas que encontram o comum apenas em práticas de valor que estão fora dos imperativos de cercamento e integração disciplinar do capitalismo (De Angelis, 2007). A rigor, não se trata de dentro ou fora do capitalismo: o cotidiano urbano é um nível da realidade social duplamente determinado como subsumido ao capital e ao mesmo tempo resíduo de resistência, onde convivem contraditoriamente lógicas e relações tanto de competição e apropriação exclusivista quanto de cooperação, solidariedade e apropriação coletiva. O cotidiano é também duplamente atravessado pelas esferas da produção e da reprodução, especialmente hoje quando as fronteiras entre trabalho e vida se tornam cada vez mais porosas.

No “senso comum”, o cotidiano designa o modo como as pessoas vivem, revestindo-se de banalidade, trivialidade, repetitividade. Ele se confunde com o mundano, em oposição ao extraordinário, ao surpreendente. Entretanto, Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981). [1961]) argumenta que nada poderia ser mais profundo, pois ele é a própria existência, é o ‘vivido’, é o que precisa ser mudado e o que se revela o mais árduo de transformar. Ainda que alienado e espoliado, o cotidiano arrasta consigo o que lhe parece incompatível - os momentos de diversão, festa, espontaneidade etc. -, ingredientes essenciais para sua própria transformação.

Muitos dos movimentos de luta pelo comum e pelo direito à cidade tentam mesclar arte e política, ativismo e festa; intencional ou intuitivamente aproximando cotidiano, produção e reprodução. Em experiências diversas, como nas ocupações urbanas, as separações e cisões entre vida cotidiana, festa e política - índices importantes da alienação moderna expressa na separação funcional dos espaços - são também muito menos pronunciadas, notadamente nos seus momentos iniciais de resistência.

Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981). [1981]) fala de uma revolução que deve necessariamente se dar na e através da vida cotidiana, e na concomitante produção de um outro espaço. Portanto a necessidade de conjugar a revolução econômica e política (novas relações de produção, novas formas políticas) com a subversão: changer la vie (tomando a fórmula de Rimbaud), tornar a vida uma festa, lugar de desejo e de imaginação, do espontâneo e da produção e expressão de diferenças, como reclamavam os jovens em 1968.

Segundo Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981).), mesmo as relações de produção - incluso as de propriedade - são reproduzidas na vida cotidiana, não bastando, portanto, alterar as relações econômicas nos espaços produtivos e as formas políticas se o cotidiano permanece inalterado, alienado e preso ao individualismo e à “vida privada” burguesa. Importante afirmação: de que as relações de produção - inclusive as de propriedade - estão envolvidas e são reproduzidas na vida cotidiana: é preciso transformá-las lá também. Assim como defendido na perspectiva autonomista e feminista, existe uma fronteira importante da produção do comum que extravasa a produção e o “econômico”, e diz respeito à reprodução, à vizinhança, ao cotidiano vivido. É também através do cotidiano que se entretecem os laços de obrigações recíprocas e corresponsabilidades políticas que constituem a comunidade (Dardot, Laval, 2015DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.; Esposito, 2010ESPOSITO, Roberto. Communitas: the origin and destiny of community. Stanford, California: Stanford University Press, 2010.). Nesse sentido, a produção do comum exige que se transforme a vida cotidiana, recombinando o que foi separado pela divisão social, sexual e espacial do trabalho sob o capitalismo, redefinindo a reprodução sob moldes mais cooperativos, aproximando o pessoal do político, recriando laços e relações de compartilhamento e reciprocidade.

3. Fazer-comum: uso, apropriação e autogestão

A perspectiva lefebvriana aponta que o comum urbano produzido no âmbito da vida cotidiana só pode ser fruto de uma prática de fazer-comum [commoning] (Linebaugh, 2014LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.), baseada no uso, apropriação e autogestão da cidade e do espaço. Tratando-se de conceitos marxistas de base, faz-se necessário aqui apresentar um breve lineamento teórico acerca de suas definições. Com a ressalva de que não sejam tomados como ideias estanques, ou instrumentos analíticos de mera interpretação do mundo, mas enquanto conceitos críticos que, articulados, apontam para um horizonte de emancipação social.

A distinção entre valor de uso e de troca remonta à economia política clássica e pode ser encontrada em Marx (2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).), para quem o primeiro diz respeito à utilidade material e real que um determinado bem tem para as pessoas, enquanto o segundo diz respeito ao quantum de trabalho socialmente necessário contido na produção de uma mercadoria, o que lhe confere valor. Para Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970)., p. 135), “O valor de uso corresponde à necessidade, à expectativa, à desejabilidade. O valor de troca corresponde à relação dessa coisa com as outras coisas, com todos os objetos e com todas as coisas, no ‘mundo da mercadoria’”.

Lefebvre tem o intuito de restaurar e retornar à teoria do valor de uso, segundo ele obscurecida e mal apreendida desde Marx. Enquanto as ciências sociais seriam ciências da troca, e da comunicação, autor chega a sugerir (2013, p. 400) que a ciência do espaço poderia ser uma ciência do uso, interessada na materialidade, na qualidade sensível e na naturalidade das coisas, desde que enfatizada a segunda natureza (o espaço produzido). Esta ciência daria o merecido relevo à apropriação e ao uso em oposição à troca e à dominação.

Durante muito tempo, a economia política vulgar - cujo objetivo, consciente ou inconsciente, sempre fora o aperfeiçoamento da lei do valor - excluiu de sua consideração os “bens naturais”, os “elementos” (água, ar, luz etc.): sendo abundantes, e não produzidos por nenhum trabalho social, é como se não tivessem valor de troca, e tampouco seu “uso” poderia comportar algum valor (Lefebvre, 2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).). Para a economia neoclássica, tratam-se de bens comuns, de uso finito e rival, não-reproduzíveis e sem restrições de uso e acesso.

Mas Lefebvre entrevê uma transformação contemporânea: os bens outrora escassos passam a ser abundantes, e vice-versa. Assim, o valor de uso, antes depreciado pelo valor de troca, passa a ser de certo modo revalorizado. Dialeticamente, a nova abundância de produtos industriais na sociedade de consumo é acompanhada de novas raridades - expressa na crise ecológica - principalmente daqueles elementos “naturais” que doravante se valorizam, e passam mesmo a ser produzidos. Eles adquirem valor de uso e de troca pois não é mais possível extraí-los da natureza enquanto fonte inesgotável (Lefebvre, 2013, p. 362-363). Assim, a busca por recursos naturais cada vez mais escassos tende ainda a reabilitar (ao menos potencialmente) a importância do uso frente à troca, e a produção do espaço acompanha essa nova ênfase conferida à ‘natureza’ enquanto fonte de valores de uso. O autor se pergunta: “Não se imporá a gestão coletiva das novas raridades?” (Lefebvre, 1999, p. 36)

Assim, com mais clareza do que nos tempos de Marx, a natureza apareceria hoje mais do que somente força produtiva, como uma fonte imensa (mas não inesgotável) de riquezas, fonte de valor de uso (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981)., p. 378-379). Se para Marx a natureza constituía a riqueza autêntica (como dito na Crítica do Programa de Gotha de 1875), Lefebvre vai considerar que o bem supremo entre os bens é o tempoespaço, e que não se deve mais separar de forma arbitrária o espaço produzido (‘segunda natureza) do espaço primeiro da natureza, matéria e matriz de toda produção (Lefebvre, 2013, p. 383).

Lefebvre chama atenção para como a cidade histórica constituía uma espécie de vasta máquina, um autômato capturando energias naturais e consumindo-as produtivamente. Mas a cidade é algo mais e melhor do que uma máquina: é uma máquina apropriada a um certo uso, ao uso de determinado grupo social: “Como segunda naturaleza, como espacio producido, la ciudad ha conservado igualmente (en el curso de su explosión incluso) ciertos rasgos de la naturaleza, en particular la importancia atribuida al uso” (2013, p. 378-379).

Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).) nota ainda que o espaço abstrato - espaço capitalista controlado pelo Estado - é um meio de troca que tende ao homogêneo (daí sua intercambialidade) que tende a absorver o uso. Perguntando-se sobre o suposto desaparecimento completo do valor de uso ante a extensão do valor de troca sobre todos os fragmentos do espaço, e ante a tendência de substituição do valor de uso pela mera troca de signos de prestígio e distinção, ele afirma que o valor de uso subsiste, pois qualquer consumo do espaço é ainda consumo de uma distância, e o espaço envolve o tempo, valor de uso supremo (p. 372-373). Assim como o qualitativo não se deixa absorver pelo quantitativo (atributo do espaço abstrato, mensurável e vendável), o uso também resiste à generalização do valor de troca6 6 Os tradutores de Espaço e política notam uma importante distinção (nem sempre tão clara e óbvia) entre valor de uso e uso na obra de Lefebvre: “Segundo o autor [Lefebvre], a relação dialética entre valor de troca e valor de uso foi magistralmente demonstrada por Marx n’O capital, ao analisar a forma mercadoria. Todavia, o uso não coincide com o valor de uso, pois este corresponde aos termos implicados pela mercadoria, especialmente as relações de propriedade, ao passo que aquele corresponde ao domínio do que é vivido sob os termos da apropriação (na acepção conferida ao termo por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844), portanto fora, e quiçá contra, os pressupostos da valorização”. (N.T. 1 ao Capítulo Reflexões sobre a política do espaço, em: Lefebvre, 2016, p. 164). .

Portanto, Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974)., p. 389) ressalta que a absorção do uso pela troca não se dá sem conflitos, pois o uso implica apropriação e não propriedade. Ademais, a apropriação implica tempos, ritmos, símbolos e uma prática espacial não fragmentada. Daí que espaços extremamente monofuncionais se prestem pouco à apropriação, já que se situam fora do tempo vivido, tempo diversificado e complexo experimento pelos usuários do espaço. É o uso político do espaço, enfatiza, que restitui ao máximo o valor de uso, em termos de recursos, situações espaciais e estratégias. O espaço das atividades cotidianas dos usuários é vivido, concreto e subjetivo (p. 395), e não representado ou concebido (tal qual o espaço dos urbanistas, dos tecnocratas, ou mesmo dos promotores imobiliários).

Lefebvre (2014LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981)., p. 213) observa que, segundo Marx, a apropriação se opõe fortemente à propriedade, mesmo que o conceito não se distinga muito claramente da noção filosófica e antropológica do que é ‘próprio’ à natureza humana. Para Marx, o que era ‘próprio do homem’ era sobretudo o trabalho social, inseparavelmente da linguagem. Pela prática social, o homem apropria-se da natureza, mas também poderia apropriar-se da sua própria natureza (p. 188), desalienando-se. Marx tampouco distinguia claramente entre dominação e apropriação, na medida em que entendia que o trabalho e a tecnologia, ao dominarem a natureza material, a transformavam apropriando-a às necessidades do homem social.

Entretanto, para Lefebvre (2003LEFEBVRE, Henri. Henri Lefebvre - Key writings. ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (ed.). London/New York: Continuum, 2003., p. 181; 2014, p. 213) o conceito de apropriação vai além da sua identificação com a desalienação, pois implica uma crítica radical da propriedade, entendida por ele como não-apropriação, como caricatura, paródia e proibição da apropriação concreta. Quando um grupo se apropria de um espaço natural modificado para servir a suas necessidades, a possessão (propriedade) comparece apenas como condição - e mesmo como desvio - desta atividade ‘apropriativa’ cuja expressão máxima é a obra de arte. Daí que um espaço apropriado pareça uma obra, sem que seja um simulacro.

Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974)., p. 127-132) ressalta a distinção entre obra e produto: enquanto a primeira possui algo de único, irreproduzível e insubstituível, o segundo é reproduzível e resulta de gestos e atos repetitivos. A obra refere-se à criação, à inventividade e à imaginação de um sujeito, enquanto o produto é fruto do trabalho, e desse modo suporte da reprodução das relações sociais de produção. A natureza cria, não produz: o que ela proporciona aos humanos são valores de uso. Já a humanidade, por meio de sua prática social, cria obras e produz coisas, produtos. Mas essas oposições não são tão radicais e estanques: o autor considera que geralmente obra e produto são indissociáveis, a diferença sendo mais relativa do que absoluta. O espaço de uma cidade é um ótimo exemplo dessa complexa imbricação. O que não significa que não se deve reconhecer que, historicamente, o produto tenha dominado a obra, que a repetição e a artificialidade tenham subjugado a autenticidade, a espontaneidade e a naturalidade implicadas na apropriação criadora de obras.

Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974)., p. 378-379) estabelece ainda uma distinção entre dominação e apropriação da natureza. A tendência à destruição da natureza pela dominação não se deve apenas ao emprego de técnicas brutais, mas do fato de impor-se aos lugares certos critérios homogêneos de intercambialidade, suprimindo suas particularidades. Portanto, a dominação, mediante a técnica, tende para a não-apropriação, para a destruição da natureza, contra sua apropriação: esse conflito transcorre entre espaços dominados e apropriados.

Espaços dominados (e dominantes) são transformados e mediados pela técnica, e produzidos conforme os interesses do poder político, do Estado. O espaço dominado introduz formas novas - geralmente geométricas, como uma autoestrada - sobre o espaço pré-existente, sobre a natureza, brutalizando-o, esterilizando-o (Lefebvre, 2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974)., p. 213). Enquanto a dominação da natureza física devasta-a, substituindo-a por produtos, a apropriação não destrói, mas transforma a natureza - assim como o corpo, o tempo e o espaço - em propriedades humanas, afeitas às necessidades da vida social. O autor observa ainda que, sem apropriação, pode haver apenas crescimento econômico e técnico, mas não efetivo desenvolvimento social (Lefebvre, 2003, p. 130).

As próprias cidades antigas e medievais eram espaços “na escala humana” em que se dava uma apropriação espontânea do espaço e do tempo, elevados à condição de obras de arte coletivas. (Lefebvre, 2003LEFEBVRE, Henri. Henri Lefebvre - Key writings. ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (ed.). London/New York: Continuum, 2003., p. 131). Há espaços apropriados (casas camponesas, aldeias, praças, monumentos, ruas etc.), ainda que não seja fácil discernir como, por e para quem eles foram ‘apropriados’. A reapropriação do corpo, do prazer e do cotidiano - funcionalizados e transformados em valor de troca - anda ao lado de qualquer projeto de reapropriação revolucionária do espaço. Lefebvre considera mesmo que o autêntico espaço apropriado seria um espaço do prazer (p. 213). Para o autor (p. 131), a própria rua é um espaço apropriado, “socializado”, aberto ao uso não exclusivo de grupos múltiplos, tal qual um comum.

Numa das suas poucas alusões às cidades dos países ‘subdesenvolvidos’, Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974)., p. 405) sugere que os assentamentos informais latino-americanos (favelas, barrios, ranchos etc.) contêm uma vida social muito mais intensa do que os bairros aburguesados. Para ele, a apropriação alcança níveis muito notáveis nesses espaços, por meio da produção de uma morfologia urbana própria, espontânea, que se revela superior ao espaço concebido dos tecnocratas. Mas o espaço apropriado da periferia não persiste sem lutas, sem se defender das tentativas repressivas de integração por parte dos centros dominantes.

A apropriação espacial não se confunde, nos alerta Lefebvre, com uma prática que lhe é muito próxima: o desvio [détournement], reapropriação de algum espaço existente que possa estar vazio ou suscetível para um uso diferente do que originalmente concebido. O desvio e a reapropriação podem ter grande alcance e serem instrutivos: ainda assim, eles não se confundem com a criação, com a produção de novos espaços (realmente apropriados), que ponham fim à dominação do espaço (2014, p. 215-216).

Lefebvre sugere que parte do fracasso da maior parte de experimentos comunitários, de criação de uma ‘nova vida’ em grupo, possa ser creditada à ausência de invenção morfológica. Esses projetos comunitários experimentais, no máximo desviaram espaços pré-existentes (casas burguesas abandonadas, castelos arruinados, aldeias esvaziadas, chalés suburbanos etc.), perdendo-se em uma morfologia espacial não apropriada. O que não diminui sua importância política, salvo seu caráter elitista, no que diz respeito à busca por um espaço do prazer e do gozo, em recusa ao homogêneo, à massificação, à ética do trabalho (p. 411). Muitos dos espaços comuns que se criaram nos últimos anos, particularmente nos países centrais, podem ser lidos segundo essa análise, principalmente por que sua principal tática espacial é a ocupação (próxima do desvio), e seu público jovens de classe média.

Lefebvre (2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009., p. 150, tradução nossa) considera que a apropriação só se realiza concretamente pela autogestão: “Apenas através da autogestão podem os membros de um associação livre tomar o controle de suas próprias vidas, de modo que elas se tornem sua obra […] Isso também é chamado de apropriação, desalienação”. Inspirado pelo processo de descentralização e gestão operária nas fábricas da Iugoslávia, dentre outras experiências, Lefebvre formulou sua ideia de autogestão como horizonte de desvanecimento do Estado. Segundo ele, “Quando nos nossos escritos afirmamos a verdade da proposição, ‘entre o Estado e o mercado não há nada’, nós colocamos um falso dilema, porque entre os dois já existe burocracia; amanhã poderá haver autogestão” [...] (2003, p. 243, tradução nossa).

Lefebvre (2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009., p. 148) argumenta que o princípio da autogestão revive a contradição entre o valor de uso e valor de troca, restaurando a primazia ao uso contra o mundo da mercadoria, sem, contudo, negar que esse mundo tem suas leis que precisam ser domadas, e não negligenciadas. Colocar limites à lógica da mercadoria não é algo que se faça por passe de mágica, mas por projetos de planejamento democrático, autogeridos, em que se priorizam as necessidades sociais formuladas e controladas por aqueles que nelas tenham alguma participação real. Este é também o princípio que orienta o comum como compromisso prático que vincula todos aqueles que são coparticipantes de uma mesma atividade à coobrigação de elaborarem juntos as regras dessa mesma atividade (Dardot, Laval, 2015DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.).

“É evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se autogestão”, afirma Lefebvre (2008LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968)., p. 104, grifo do autor), ao defender que o direito à cidade não pode ser confundido com a ideologia da participação, simulacro de informação e de atividade social para obter a aquiescência dos interessados. A definição de Lefebvre para “autogestão” inclui uma explícita dimensão espacial (assim como econômica) na realização da democracia:

A autogestão é definida como os saberes e o controle (no limite) por um grupo - uma empresa, uma localidade, uma área ou uma região - sobre as condições da sua existência e da sua sobrevivência em meio à mudança. Por meio da autogestão, esses grupos sociais são capazes de influenciar a sua própria realidade. (...) O crescimento da democracia é assim: ou a democracia entra em declínio - ou o direito à autogestão é trazido à definição da cidadania (Lefebvre, 2003LEFEBVRE, Henri. Henri Lefebvre - Key writings. ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (ed.). London/New York: Continuum, 2003., p. 252, tradução nossa).

Do mesmo modo como o proletariado, sob diversas formas de organização política e conforme distintas orientações do pensamento socialista, lutou pela gestão coletiva dos meios de produção - no limite, tratava-se de uma luta por autogestão industrial -, Lefebvre aponta o momento contemporâneo em que a luta extravasa os muros da fábrica, imiscuindo-se por todo o tecido social. Já não se luta “apenas” pela gestão e apropriação das mercadorias e dos meios de produção da sociedade industrial, mas também pelo próprio espaço (urbano) e pelos “elementos” essenciais da natureza, outrora comuns, hoje cercados e privatizados. O que Lefebvre reclama é que a autogestão, enquanto prática e orientação políticas, estenda-se também do domínio da produção industrial para a autogestão territorial generalizada.

Nos nossos termos, poderíamos que o próprio espaço urbano socialmente produzido possa ser apropriado e autogerido como espaço comum, e que produção do comum é fruto de práticas de fazer-comum, gestadas no âmbito da vida cotidiana e baseadas na apropriação, uso e a autogestão do espaço. Ela implica a primazia do uso sobre a troca, do usuário ativo sobre o consumidor passivo, da apropriação (apropriação social voltada a fins coletivos) sobre a dominação (apropriação exclusivista), da autogestão sobre a tecnoburocracia estatal. Cabe agora acercar essa formulação das preocupações lefebvrianas com a cidade.

4. A cidade como comum: entre o industrial e o urbano

O interesse de Lefebvre pela questão urbana remonta ao livro Introdução à modernidade (1962), no qual o autor discorreu notas críticas acerca de Mourenx, cidade nova planejada nos Pirineus franceses, a poucos quilômetros da cidade histórica de Navarrenx, sua terra natal. Os espaços racionalmente organizados, as vias cartesianamente desenhadas, as máquinas de morar dos grandes conjuntos habitacionais, a criteriosa separação de todas as funções urbanas: esse espaço concebido por tecnocratas a serviço da modernização representava para Lefebvre a negação de tudo o que a cidade tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível (Merrifield, 2006).

N’A proclamação da comuna, de 1965, o pensador apontou o episódio da Comuna de Paris de 1871 como primeira expressão de um urbanismo revolucionário. Mas seria na pequena coletânea de ensaios O direito à cidade, rascunhados ao longo da década de 1960 e lançada no catártico ano de 1968 - pouco antes da irrupção de maio, na qual Lefebvre teve destacado papel -, que ele realizaria sua primeira incursão substantiva em torno da problemática urbana, desdobrada em outras obras fundamentais ao longo da década de 1970 (Do rural ao urbano, 1970; A revolução urbana, 1970; O pensamento marxista e a cidade, 1972; Espaço e política, 1972; A sobrevivência do capitalismo, 1972), e cujo ápice seria a publicação da obra A produção do espaço, em 1974.

Para Lefebvre (2008LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968).), a cidade (la ville) constituiu-se historicamente, dos gregos à Idade Média, como totalidade orgânica, obra máxima da civilização ocidental. Para ele, a cidade consiste numa obra socialmente produzida, diferente de todos os demais produtos: o que lhe dá especificidade é o primado do uso sobre o valor de troca. A cidade se usa por meio das suas ruas, quarteirões, monumentos e espaços públicos: pela festa, momento de consumo improdutivo de energias e recursos em favor tão somente do prestígio e do prazer.

Não pode, portanto, haver cidade sem centralidades, sem um centro dinâmico repleto de urbanidade, momentos vividos, espaços públicos vibrantes, confrontos de diferenças e encontros imprevistos. Ainda segundo Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).), as cidades clássicas, medievais e renascentistas são o ápice do espaço enquanto obra: elas eram obras de arte em si mesmas, que subsumiam uma multidão de obras particulares, não apenas pinturas, esculturas etc., mas também uma arquitetura composta por ruas, monumentos e palácios. Nesse sentido, a própria cidade - obra coletiva e valor de uso - poderia ser considerada um recurso comum, sujeito às mais diversas apropriações, delírios, disputas e partilhas.

Segundo Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), a industrialização desencadeia um processo de ampla envergadura, e que terminará depois por lhe suceder: a urbanização. A produção agrícola, convertida em setor da produção industrial, perde sua autonomia, enquanto a indústria - a não-cidade, a [...] “ausência ou ruptura da realidade urbana” (p. 25) - vai conquistar a cidade. Nesse duplo e indissociável processo de industrializaçãourbanização, a cidade vai perder seus traços anteriores de obra: totalidade orgânica, sentido de pertencimento, espaço demarcado e monumentalismo enaltecedor. Para ilustrar esses processos em termos espaciais, o autor (1999) recorre à metáfora nuclear da “implosão-explosão” da cidade: a enorme concentração (de coisas, pessoas, riquezas, instrumentos, pensamentos) no centro urbano, e a simultânea explosão da mesma em fragmentos múltiplos e disjuntos sob a forma de um extenso tecido urbano (periferias, subúrbios, cidades-satélites) etc.

De acordo com o autor (1999, p. 26), essa metrópole industrial é uma “cidade fantasma, uma sombra de realidade urbana” (p. 43), em cujo espaço várias lógicas se confrontam: da mercadoria, do Estado e da lei, da organização espacial, da vida cotidiana etc. Não obstante, todas essas lógicas se encontram e se subordinam à lógica do mais-valor, já que a cidade, ou o que resta dela, serve [...] “mais que nunca à formação do capital, isto é, à formação, à realização, à distribuição do mais-valor”. A metrópole aparece ainda como conjunto de múltiplos mercados: dos produtos agrícolas, dos produtos industriais, dos capitais, do trabalho, das obras de arte e de pensamento, de signos e símbolos, e ainda da moradia e do solo a edificar (p. 52). É o lugar por excelência do afluxo, circulação e consumo de mercadorias, de todos os tipos, o que estende a lógica imanente da mercadoria - a do dinheiro e do valor de troca - a todos os recantos da metrópole.

Portanto, o capitalismo industrial rompe a realidade urbana, destrói as barreiras e a simbiose entre a cidade e o campo, coloniza e secciona a vida cotidiana. Os trabalhadores, expulsos para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra coletiva. Uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. A segregação parecer ocupar no pensamento de Lefebvre o papel dos cercamentos no âmbito do comum: ela corresponde a múltiplos processos de expropriação e despossessão, tendo como fundamento a alienação espacial da maior parte da população trabalhadora dos frutos e condições da sua produção e reprodução coletiva: a própria cidade, obra coletiva por excelência.

O urbanismo modernista, ideologia e estratégia de classe calcada numa racionalidade fragmentadora, intensifica as segregações ao preconizar a separação funcional das atividades e da sociedade no espaço. Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).) observa que, a despeito do discurso que o apresenta como prática social com caráter técnico-científico, o urbanismo deve ser entendido principalmente como política, já que o seu caráter institucional e ideológico sob o capitalismo prevalece sobre o científico, visando a redução e subordinação da realidade urbana à racionalidade industrial, homogeneizante e fragmentadora.

É contra esse estado contraditório entre a desolação provocada pela crise da cidade e a esperança utópica carregada pela vida urbana que Lefebvre (2008LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968).) formula a ideia iluminadora do direito à cidade. Contrário à segregação e à destruição da cidade pela extensão do valor de troca, o direito à cidade corresponde ao direito à [...] “vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais” (Lefebvre, 2008, p. 138, grifo do autor). Na leitura crítica do autor, a realização plena da vida urbana como reino do uso e do encontro exigem a dominação do econômico pelo social:

(...) O mundo da mercadoria tem sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, só exprime indiferença diante da forma urbana; ela reduz a simultaneidade e os encontros à forma dos trocadores, e o lugar de encontro ao lugar onde se conclui o contrato ou quase contrato de troca equivalente: o reduz ao mercado. A sociedade urbana (...) tem uma lógica diferente da lógica da mercadoria. É um outro mundo. O urbano se baseia no valor de uso. Não se pode evitar o conflito (Lefebvre, 2008LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968)., p. 87).

Esse conflito se expressa no confronto entre a mercantilização do espaço urbano e os movimentos urbanos que não apenas reivindicam um “direito” a este ou aquele recurso particular, mas o direito à cidade como direito à tomada de decisões democráticas sobre o espaço urbano como um todo. A ideia do comum urbano vem sendo empregada hoje não apenas para proteger contra cercamentos e privatizações um conjunto de recursos urbanos que poderiam ser mais amplamente compartilhados entre os habitantes da cidade, mas também para reivindicar que a própria cidade - a produção e apropriação do seu espaço - seja aberta a formas mais radicais de participação que caminhem na direção da autogestão, para além da sua abstração econômica pelo capital e dominação política pelo Estado.

Hardt e Negri (2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.), Harvey (2012HARVEY, David. The creation of the urban commons. In: HARVEY, D. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London, New York: Verso, 2012.), Simone (2014SIMONE, AbdouMaliq. Jakarta: drawing the city near. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2014.) e Foster e Iaione (2016FOSTER, Sheila; IAIONE, Christian. The city as a commons. Yale Law & Policy Review, v. 34: 281, 2016.) valeram-se da noção do comum urbano para se referir não apenas aos bens e recursos tipicamente urbanos, mas à própria dimensão mais ampla da vida urbana, da experiência urbana coletiva, da potência que a cidade tem de provocar encontros e entrelaçar relações de comunalidade, e da própria cidade como recurso comum. Nessa perspectiva, Dellenbaugh et al. (2015DELLENBAUGH, Mary; KIP, Markus; BIENIOK, Majken; MULLER, Agnes Katharina; SCHWEGMANN, Martin (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015. [Seizing the (every)day: welcome to the urban commons!]) e Kip (2015KIP, Markus. Moving beyond the city: conceptualizing urban commons from a critical urban studies perspective. In: DELLENBAUGH, M.; KIP, M.; BIENIOK, M.; MULLER, A. K.; SCHWEGMANN, M. (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015.) acertadamente observam uma estreita proximidade entre a ideia do comum urbano, nessa acepção ampliada, e o direito à cidade formulado por Lefebvre (2008LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968).), que pode também ser entendido como metonímia do direito à vida urbana, direito ao urbano.

5. Urbanizando o comum: mediação, centralidade e diferença

Quão “urbano” é o comum urbano? Na contramão dos esforços de urbanização teórica do comum, a maior parte dos estudos sobre recursos comuns urbanos toma a “cidade” ou o “urbano” como dados, e identifica-os como urbanos simplesmente por estarem localizados em áreas urbano, não respondendo, portanto, à importante questão sobre o que torna esses comuns especificamente urbanos. Mesmo aqueles autores que procuraram encontrar uma qualidade especificamente urbano aos comuns, como Parker e Johansson (2012), ainda veem a cidade como uma entidade territorialmente delimitada, o que os impede de considerar o urbano como conceito e realidade distinto da cidade, tal qual defendido por Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).). Tratar o urbano como uma qualidade intrínseca ao espaço da cidade, entendida enquanto forma de assentamento humano bem delimitada e distinta do campo, do subúrbio etc., é ainda senso comum caro ao campo dos estudos urbanos7 7 Ainda em 1938, o sociólogo norte-americano Louis Wirth advertia que eram arbitrários certos critérios - como densidade, tamanho e heterogeneidade - para distinguir as cidades, e que não deveríamos atar o urbano (o “urbanismo como modo de vida”) à cidade enquanto entidade física. Inspirado por Lefebvre, Monte-Mór (2006) pioneiramente formulou o conceito de “urbanização extensiva” para falar do tecido urbano-industrial que se espraiava a partir das metrópoles no Brasil, levando com ele o germe da politização do espaço para fronteiras e regiões distantes, não consideradas urbanas. Mais recentemente, e nessa mesma linha, Brenner (2013) defendeu a ideia de “urbanização planetária” contra o que ele chama de persistente citadismo na teoria urbana - a ênfase excessiva conferida às cidades como único tipo de espaço e assentamento considerado urbano. .

No entendimento de Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), a realidade urbana, induzida pela industrialização, torna-se a causa indutora dos processos sociais, e a problemática urbana impõe-se à escala mundial. Assim, frente à extensão do fenômeno urbano no bojo da industrialização avançada, Lefebvre ousou formular, ainda em 1970, a hipótese radical da urbanização completa da sociedade, ainda virtual, futuramente real. É para dar conta desta nova realidade que o autor propõe a ideia de “sociedade urbana”, que corresponderia àquela sociedade que nasce do processo descontínuo de industrialização, que domina e absorve a produção agrícola, e da decorrente explosão e implosão das antigas formas urbanas. O autor enumera uma série de denominações para caracterizar esta nova sociedade: sociedade pós-industrial, de abundância, de lazeres, de consumo etc. Ainda que todas digam respeito a aspectos importantes, o autor as considera redutoras do processo determinante: a urbanização. Ele distingue ainda “sociedade urbana” das sociedades que deram origem à cité grega, à cidade oriental, às cidades medieval, comercial ou industrial.

A sociedade urbana, aquela que nasce da industrialização e a sucede, [...] “designa, mais que um fato consumado, a tendência, a orientação, a virtualidade”. Além de um conceito, a sociedade urbana seria uma hipótese teórica, um objeto virtual e possível8 8 Lefebvre (1999) adota uma concepção na qual o objeto se inclui na hipótese, assim como a hipótese refere-se ao próprio objeto. Ao lado dos procedimentos metodológicos de dedução e indução, o autor denomina de transdução esta reflexão sobre o objeto possível,anunciando ainda a possível passagem do pensamento (hipótese teórica) ao concreto, à prática urbana, apreendida e re-apreendida teoricamente. : o urbano, referido como abreviação ora do “fenômeno urbano”, ora da “sociedade urbana”. O urbano se apresenta como virtualidade, horizonte, e não se confunde com a realidade prático-sensível, imediata e material, da cidade: contendo-a, ele a ultrapassa. O urbano [...] “define-se portanto não como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade iluminadora. O urbano é o possível” [...] (Lefebvre, 1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970)., p. 28, grifo do autor). Monte-Mór (2006) interpreta a sociedade urbana de Lefebvre como a síntese dialética (e virtual) da velha dicotomia entre a cidade e o campo, superado pelo urbano, metáfora para compreensão do espaço social redefinido e politizado na expansão do fenômeno urbano. Mas ainda que não se confunda com a realidade imediata da cidade, suprassumindo-a, o urbano carrega os germes da vida urbana historicamente gestados na e associados à cidade.

Em uma leitura arguta da obra lefebvriana, Schmid (2014SCHMID, Christian. Networks, borders, differences: towards a theory of the urban. In: BRENNER, Neil. Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014.) identifica três aspectos da cidade centrais à teoria do urbano elaborada pelo filósofo: o caráter de mediação do urbano; a forma urbana da centralidade; e o urbano como espaço produtor de diferenças. Ademais, não se pode deixar de lado um quarto aspecto central ao pensamento de Lefebvre: o urbano como realidade em formação, parte real parte virtual, aberta à possibilidades.

Conforme já visto, de acordo com Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970)., 2008), o urbano é um nível (niveau) intermediário ou mediador, situado entre o nível macro, global (a ordem distante das instituições, do mercado mundial, do Estado, das ideologias, do saber) e o nível micro, privado (a ordem próxima, o âmbito da vida cotidiana, das relações de proximidade, vizinhança etc.). Em outras palavras, o fenômeno urbano é tomado como um nível mediador entre a economia política dos macroprocessos engendrados pelas maquinações do capital e do Estado e os ritmos e articulações da vida cotidiana mais concreta e imediata.

Se tomarmos que o comum é produzido no âmbito do cotidiano, o urbano constitui um espaço de mediação onde tanto múltiplas experiências e dimensões do comum podem sair do isolamento, se encontrar, se articular e produzir novos comuns. Entretanto, é também através do urbano que a ordem distante se insinua sobre a ordem próxima, colocando o comum sob controle e risco de cercamento. As táticas e estratégias por trás das visibilidades e invisibilidades de experiências do comum relacionam-se com esse caráter de mediação do meio urbano, ponto de encontro de forças e lógicas diversas.

Isso nos traz à questão da centralidade: a cidade é sempre um centro. A forma urbana é abstratamente definida pela centralidade: pela sua capacidade de fomentar encontro, troca, convergência e coleção, ou pela simultaneidade de tudo que pode ser reunido junto em um ponto. “O urbano se define como lugar onde as pessoas tropeçam umas nas outras, encontram-se diante e num amontoado de objetos, entrelaçam-se até não mais reconhecerem os fios de suas atividades, enovelam suas situações de modo a engendrar situações imprevistas” (Lefebvre, 1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970)., p. 46). O centro urbano reúne, portanto, bens e recursos, materiais e imateriais, oriundos das mais diversas eras, das mais distintas atividades produtivas, para fruição pelos mais diferentes grupos sociais e políticos. Toda essa massa de “coisas” acumuladas num centro urbano aparece geralmente sob forma de um imenso conjunto de mercadorias e valores de troca, mas sem com isso perder seu valor de uso, uso que pode ser restituído por via de uma apropriação coletiva (Lefebvre, 1999) e de uma prática que os torne comuns e abertos ao uso coletivo (Dardot, Laval, 2015DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.).

Esse lugar de encontro é onde uma anulação virtual das distâncias espaciais e temporais pode acontecer (Schmid, 2014SCHMID, Christian. Networks, borders, differences: towards a theory of the urban. In: BRENNER, Neil. Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014., p. 71). Outrossim, a centralidade agrega elementos diferentes (Lefebvre, 1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), o que nos leva a uma terceira definição do urbano: lugar de diferenças. Mas as diferenças não são todas as mesmas. Lefebvre distingue entre diferenças mínimas (induzidas) e máximas (produzidas). As mínimas são concebidas como particularidades alienadas (individualismos ou particularidades de grupos) que tendem à “diferença-como-semelhança”, sendo também induzidas pela própria acumulação capitalista, e, portanto, contidas na sua lógica operacional. Por outro lado, as máximas são imprevistas, transgressivas e possivelmente revolucionárias. Elas podem ser encontradas não apenas em meio à sublevações e insurreições, mas nos interstícios da vida cotidiana (Kipfer, 2008KIPFER, Stefan. How Lefebvre urbanized Gramsci: hegemony, everyday life, and difference. Space, Difference, Everyday Life: Reading Henri Lefebvre, p. 193-211, 2008.).

Muitas das perspectivas sobre o comum urbano que reconhecem formas mais coletivas de organização social e da formação de comunidades no meio urbano são ainda intimamente tributárias de filosofias comunalistas que concebem (e idealizam) a comunidade como totalidade encerrada em si mesma, partilhando de um mesmo território e/ou identidade. Colocando em diálogo Lefebvre, Nancy (1991NANCY, Jean-Luc. The inoperative community. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991.) e Esposito (2010ESPOSITO, Roberto. Communitas: the origin and destiny of community. Stanford, California: Stanford University Press, 2010.), a questão seria como passar das diferenças mínimas (que definem comunidades demarcadas por pertencimento, homogeneidade e exclusividade) a diferenças máximas (referentes à experiência ontológica da comunidade enquanto compartilhamento), ou, noutros termos, em como produzir o comum em um mundo crescentemente urbano e fragmentado, globalmente transescalar, e atravessado por uma multiplicidade de modos de viver-em-comum que não conformam identidades unas, mas comunidades diversas que precisam não apenas negociar fronteiras e diferenças “identitárias”, mas ainda transformá-las radicalmente.

Essas dimensões do espaço urbano - mediação, centralidade e diferença - são norteadores importantes para se reconhecer as especificidades do comum urbano, distinguindo-o de outros domínios do comum. Seguindo Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), poderíamos falar de um comum “natural-agrário”, formado pela riqueza da terra e dos bens e recursos da natureza (água, florestas, pastos etc.) que serviram de subsistência à reprodução de grande parte da população mundial - indígenas e camponeses, em sua maioria - durante milênios. Também de um comum “industrial”, que aparece como uma “enorme coleção de mercadorias”, riqueza coletiva apropriada privadamente pelo capital ainda que produzida socialmente pelos trabalhadores. Nessa “linha do tempo”, haveria ainda um comum propriamente “urbano”, riqueza social cuja fonte é a própria vitalidade da vida urbana, a sua potência de reunir, provocar relações, suscitar encontros e produzir diferenças.

Do mesmo modo que temos dificuldade de ver e compreender o urbano, em virtude de o olharmos através do pensamento analítico e fragmentário que herdamos do período industrial, também quanto ao comum vivemos num campo cego: não o reconhecemos hoje, a não ser lamentando a sua histórica dissolução, ou projetando-o idealmente segundo utopias redentoras. Ora, a quem, a quê ideologia convém incriminar tal cegueira do comum? É a racionalidade neoliberal que, estendendo a apropriação privada e a lógica da competição a todas as esferas da sociedade, da cultura e da vida, sufoca e invisibiliza o comum: mas é contra ela também que o comum emerge como contra racionalidade, gestado nas próprias lutas e movimentos lutando por outra via além do Estado e do mercado. Quanto ao reconhecimento, fortalecimento e constituição do comum urbano, envolvem-se duas linhas paralelas de embate: o urbano (encontro, diferença, fruição) contra o industrial (fragmentação, homogeneidade, trabalho e produtivismo); e o comum (compartilhamento, cooperação) contra o neoliberal (apropriação privada, competição generalizada).

O urbano, segundo Lefebvre (1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).), cumpre um duplo e contraditório papel: é tanto espaço por excelência de produção do capital, pela concentração e amplificação das forças produtivas e da força de trabalho, quanto espaço em que o encontro maciço de diferenças produz novas diferenças, em que os mais variados tipos de recursos e espaços comuns podem se articular, se fortalecer. A lógica do urbano (a forma urbana: simultaneidade, encontro) pode se encontrar com a lógica do comum (o compartilhamento) contra a lógica da mercadoria, contra a propriedade privada capitalista. Mas nem todo encontro é um encontro que produza o comum: para tanto, é preciso que haja compartilhamento e cooperação, entrelaçamento de reciprocidades em torno da produção do comum na cidade, da cidade como comum.

Façamos aqui então uma distinção epistemológica, sem com isso querer cair num esquematismo que perca as relações dialéticas entre a parte e o todo: a cidade como espaço diverso de muitos comuns urbanos (bens, recursos e espaços comuns), e a cidade como comum, em sua totalidade de espaços, relações e oportunidades associadas à complexidade e riqueza da vida urbana. Nos termos de Hardt e Negri (2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.), a cidade é tanto fonte quanto receptáculo da produção do comum. Desse modo, considero que a cidade - espaço de centralidade, reunião e encontro; espaço de mediação entre a ordem distante do capital e do Estado e a ordem próxima da vida cotidiana; espaço de produção de diferenças (Lefebvre, 1999LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).) - tanto fomenta a produção de comuns urbanos, quanto é por ela enriquecida, por isso sendo reconhecida e defendida como comum, como cidade comum.

Pode-se mesmo dizer que mais urbano é um recurso ou espaço comum quanto mais ele está implicado pela vida urbana, quanto mais ele bebe do seu fermento e ao mesmo tempo contribui para seu valor de uso coletivo. Daí que muitos movimentos de luta pelo direito à cidade sejam também pautados pelo comum, na medida em que suas reivindicações de cunho mais radical ultrapassem - sem necessariamente negá-las - as reivindicações de acesso ao público (os espaços e serviços públicos, as infraestruturas e bens de consumo coletivo, e os direitos sociais garantidos pelo Estado), na direção de formas mais cooperativas e autônomas de produção do espaço urbano. Ademais, como já enfatizado, estas lutas e resistências não colocam em disputa somente os modos pelos quais são produzidos e geridos determinados recursos ou espaços urbanos, mas de modo mais amplo reivindicam que a própria cidade seja tomada como comum, desmercantilizada e sujeita à gestão democrática e ativa (autogestão) por parte dos seus próprios citadinos. Entretanto, como observado por Lefebvre inúmeras vezes, não é possível aprofundar a democracia urbana e realizar o direito à cidade sem questionar um dos pilares do capitalismo: a propriedade privada da terra e do espaço. O que nos leva do urbano à problemática mais da produção do espaço.

6. A produção do espaço: entre a propriedade e o comum

É n’A produção do espaço, de 1974, que Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).) formula com maior ousadia as suas teses relativas à problemática espacial, sua complexa e abrangente teoria do espaço social. Esse livro encerra também o momento do seu pensamento mais direta e explicitamente voltado à exploração crítica das questões urbanas e espaciais, ao mesmo tempo superando-as pela incorporação das mesmas em uma problemática mais alargada. A partir da economia política, o autor enuncia a produção do espaço como conceito teórico e realidade prática, aspectos esses indissoluvelmente ligados. O autor propõe aí uma modificação profunda na maneira de compreender o espaço como realidade empírica e como categoria de análise. Trata-se de passar dos produtos (descritos, enumerados) à compreensão da produção: o espaço (social) é um produto (social) e não uma coleção de coisas e objetos (espaço físico), ou um receptáculo vazio e inerte a ser preenchido (espaço mental). Cabe à produção do espaço religar e coordenar os aspectos da prática.

Segundo o Lefebvre (2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009.), é recente a emergência da produção do espaço, como conceito e como realidade: principalmente, ela se observa na explosão da cidade histórica, na urbanização da sociedade, nos problemas da organização espacial, principalmente após a II Guerra Mundial nos países capitalistas. Essa passagem da produção de coisas no espaço - industrialização - para a produção social do próprio espaço - urbanização - deve-se ao crescimento das forças produtivas capitalistas, à intervenção direta do conhecimento sobre a produção material, tendo em vista garantir a sobrevivência do capitalismo - a sua capacidade de superar suas contradições internas - através da reprodução das relações sociais de produção no e através da (re)produção do espaço abstrato.

O espaço abstrato, em Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).), corresponde à expressão espacial do trabalho tornado abstrato pela produção capitalista sob o controle do Estado moderno. O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo (o que vai na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eliminá-las por completo), fragmentado (pulverizado pela propriedade privada, funcionalmente segregado) e hierarquizado (organizado em termos de relações centro-periferia de dominação). Ocupado, controlado e orientado para a reprodução das relações sociais de produção, ele consolida uma lógica burocrática de controle e repetição. Lefebvre (2013, p. 383) considera que o capitalismo se consolidou não apenas incorporando o solo, ou integrando-se às formações sociais pré-capitalistas, mas também valendo-se de todas as abstrações, como a ficção jurídica e legal da propriedade estendida a todas aquelas diferenças que que pareciam irredutíveis à apropriação privada (a natureza, a terra, as energias vitais, os desejos e necessidades).

Este espaço socialmente produzido - essencialmente espaço urbanizado no capitalismo avançado - é onde a relações sociais de produção e de propriedade são reproduzidas, para além dos níveis de reprodução bio-fisiológicos e da reprodução da força de trabalho. Elas são reproduzidas através de uma espacialidade concreta crescentemente fragmentada, homogeneizada e hierarquizada pela penetração e globalização do capital, mas que só pode ser alcançada através da atuação do Estado sobre o espaço. Assim, a acumulação de capital e a reprodução das relações de produção sob o capitalismo avançado dependem cada vez mais da produção social e capitalista do espaço, planejado e orquestrado pelo Estado, e expandido para todo o planeta (Soja, 1989SOJA, Edward W. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. London, New York: Verso Books, 1989.).

Assim, todo o espaço entra no capitalismo para produção de mais-valor: o solo, o subsolo e o ar entram duplamente nas forças produtivas e nos produtos. A realidade urbana não pode ser concebida como a simples soma dos espaços de consumo e produção, já que o próprio tecido urbano - com suas vastas redes de comunicações e trocas - torna-se parte das forças produtivas do capital. Mas esse espaço é também consumido: seja produtivamente, seja consumido como produto final (tal qual nos lazeres, no turismo). Ele é usado pelo Estado como instrumento político para exercício do seu controle - administrativo, mas também policiado - sobre os lugares, por meio da garantia da sua estrita hierarquia, homogeneidade e segregação. Destarte, o espaço não se situa no capitalismo como lugar passivo das relações sociais, mas se revela ativo (operatório e instrumental) ao exercício da hegemonia. Ele é um meio de produção e de controle, mas que escapa parcialmente aos que dele se servem. Desse modo, as forças sociais e políticas que o engendram tentam, crescentemente, em vão controlá-lo aos seus propósitos (Lefebvre, 2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009., 2013).

Contrariando as predições dos economistas políticos clássicos quanto ao desaparecimento das questões relativas à terra sob o capitalismo urbano-industrial, Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).) ressaltou a redobrada importância contemporânea conferida à renda da terra, aos recursos naturais, à produção agrícola, à propriedade privada do solo, e, sobretudo, do processo de urbanização para a sobrevivência do capitalismo. Em oposição à abordagem metodológica binária (capital versus trabalho), que marca o início d’O Capital, ele resgatou a concepção de Marx da “fórmula trinitária” do capitalismo, na qual a terra, a classe proprietária e as rendas fundiárias ganham status central. Na urbanização contemporânea, o setor imobiliário assume um papel central tanto na produção do espaço urbano quanto (e por isso mesmo) na economia (da escala local à global), não mais respondendo como setor “secundário” e reativo aos processos desencadeados pela industrialização.

Não se trata de fenômeno conjuntural: para Harvey (1981HARVEY, David. The urban process under capitalism. In: DEAR, M. e SCOTT, A.J . (eds.), Urbanization and urban planning in capitalist societies. NY, Methen and Co., 1981.), a produção do espaço - através de investimentos em capital fixo no ambiente construído - emerge como alternativa para realização de capitais privados, particularmente em momentos de crise estrutural do capitalismo em que se esgotam as possibilidades de acumulação pela produção de mercadorias. Segundo Soja (1989SOJA, Edward W. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. London, New York: Verso Books, 1989.) a proporção de excedente realizado em atividades especulativas e no setor imobiliário supera o montante realizado no setor industrial, revelando a crescente importância da esfera de reprodução das relações sociais de produção numa sociedade urbanizada. Já Rolnik (2015) argumenta que essas transformações expressam mudanças substantivas na economia política do capitalismo contemporâneo, marcado pela hegemonia do capital fictício e do domínio crescente da extração da renda sobre o capital produtivo. Nesse contexto, a propriedade imobiliária em geral e a habitação em particular configuram uma nova fronteira de expansão do capital financeiro.

Essa linha de argumentação destoa daquela oferecida por Hardt (2010HARDT, Michael. The common in communism. In: Douzinas, C.; Zizek, S. (eds.). The idea of communism. London, New York: Verso Books, 2010.), segundo a qual estaria em curso uma passagem da hegemonia da propriedade material para a propriedade imaterial no núcleo do capitalismo biopolítico. Para este autor, nesse contexto a renda torna-se mecanismo de contorno aos conflitos entre o capital e o comum imaterial, na medida em que simultaneamente concede certa autonomia à produção do comum (pelo compartilhamento de recursos e da determinação do modo de cooperação), porém mantendo controle via expropriação da riqueza comum produzida. Hardt e Negri (2009) negligenciaram que a própria produção do espaço (urbano) tornou-se fronteira de acumulação do capital, na qual a renda fundiária opera cada vez mais como mecanismo central de extração de valor possibilitado pela existência da propriedade sobre a terra, por eles considerada como “comum material” relegado à natureza e ao pré-capitalismo.

Assim, do início do século XIX aos dias de hoje, a importância da propriedade imobiliária e da renda fundiária na reprodução social capitalista não se reduziu, mas, muito pelo contrário, entranhou-se de formas cada vez mais complexas e contraditórias nas teias da acumulação capitalista, articulando, enfim, o monopólio da terra ao monopólio do capital. Se, no capitalismo biopolítico a expropriação do comum se dá sob a forma de extração de renda sobre a propriedade imaterial (Hardt, Negri, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.), esse rentismo também se manifesta no processo de urbanização, particularmente na crescente imbricação entre renda fundiária e capital financeiro como canal de expropriação do comum urbano (Harvey, 2012HARVEY, David. The creation of the urban commons. In: HARVEY, D. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London, New York: Verso, 2012.).

Nesse contexto, Lefebvre (2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009.) chama atenção para a importância de novos movimentos sociais urbanos, não mais restritos às demandas em torno do mundo do trabalho, que questionam o uso e a organização capitalista do espaço, atentos às problemáticas da reprodução e da vida cotidiana. Os movimentos pelo direito à cidade mostram que o espaço não é apenas econômico e subordinado ao valor de troca, e que tampouco é meramente um instrumento político homogeneizante. Diversamente, tal qual o tempo, o espaço é um protótipo perpétuo do valor de uso que resiste à generalização do valor de troca e do trabalho sob o capitalismo. Ainda que não tenham o caráter contínuo e institucionalizado do trabalhismo, a pressão desses movimentos aponta para a explosão dos espaços impostos, para a produção de um espaço autogerido pelos "interessados".

Lefebvre (2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009.) vai defender que a reconstrução do espaço social “de baixo para cima” implica na autogestão generalizada e em vários níveis, em complemento à autogestão das unidades de produção. A revolução espacial entrevista por Lefebvre acrescenta uma nova dimensão à socialização da propriedade dos meios de produção: pela supressão de uma forma particularmente perigosa de propriedade privada, a do espaço (do espaço subterrâneo, superficial, aéreo, planetário e mesmo interplanetário). Para o autor, na medida em que as fórmulas de transição não funcionaram - como o controle estatal da terra, as nacionalizações, as municipalizações fundiárias - somente a possessão e gestão coletiva do espaço por parte direta dos “interessados”, mesmo com seus interesses múltiplos e mesmo contraditórios, poderiam superar as dissociações e fragmentações do espaço.

A produção do espaço socialista significa o fim da propriedade privada e da dominação política do espaço pelo Estado, o que implica a passagem da dominação à apropriação e a primazia do uso sobre a troca. / [...] A gestão do espaço social, como a da natureza, só pode ser coletiva e prática, controlada pela base, isto é, democrática. As partes "interessadas", os "interessados", iriam intervir, gerenciá-lo e controlá-lo. (Lefebvre, 2009LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009., p. 192-193, tradução nossa, grifo do autor).

7. Conclusões

Conforme já ressaltado, mesmo que a maior parte dos pesquisadores sobre o comum urbano estabeleça uma clara distinção entre os comuns urbanos e a cidade como comum, poucos ressaltam suas complementaridades. Perspectivas teóricas distintas têm sido mobilizadas de modo seletivo e arbitrário para tratar desses dois “campos” do comum urbano. Enquanto a maior parte dos estudos sobre os chamados recursos comuns urbanos bebe nas referências liberal-institucionalistas de Elinor Ostrom, oferecendo portanto uma leitura institucionalista e apolítica do fenômeno, os autores de linha mais crítica e histórica, próximos da abordagem marxista, ocuparam-se sobremaneira da própria cidade como comum, conferindo atenção às relações dialéticas entre a produção do comum e a urbanização capitalista. Ademais, alguns estudos investigaram experiências singulares do comum informal na periferia ou da vida urbana como comum nas cidades do Sul global.

Neste texto, ensaiei uma abordagem lefebvriana para o comum urbano, procurando associar a dimensão dos espaços e recursos comuns urbanos ao entendimento mais amplo da própria cidade como comum, tendo como norte o direito à cidade. Argumentei que o comum urbano é produzido no âmbito da vida cotidiana através de práticas de fazer-comum baseados no uso, apropriação e autogestão da cidade como obra coletiva. Nestes termos, o comum implica a primazia do uso sobre a troca, do usuário ativo sobre o consumidor passivo, da apropriação (apropriação social voltada a fins coletivos) sobre a dominação (apropriação exclusivista), da autogestão sobre a tecnoburocracia estatal. Dessa forma, o urbano, caracterizado pelo seu caráter de centralidade, mediação e diferença, e acrescido da promessa emancipatória da cidade, passa a ser entendido como espaço contraditório de cercamento e produção do comum. De modo mais amplo, concluí que a própria produção do espaço, tornada central no mundo contemporâneo à reprodução das relações sociais capitalistas, implica cada vez mais a luta pela apropriação do próprio espaço (urbano) como comum, e as lutas pelo direito à cidade como lutas pela cidade como comum.

No texto From the social pact to the contract of citizenship (Lefebvre, 2003LEFEBVRE, Henri. Henri Lefebvre - Key writings. ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (ed.). London/New York: Continuum, 2003.), extraído do livro Du Contract de citoyenneté, originalmente publicado já em 1990, o pensador refletiu sobre a passagem do “contrato social” rousseauniano - fundado no princípio da “vontade geral” da sociedade civil - a uma Nova Cidadania: horizonte de extensão da democracia, desvanecimento do Estado e generalização da autogestão. Em termos organizativos do político, trata-se da superação da tecnoburocracia pela autogestão generalizada, o que implicaria também a passagem do direito formal moderno, associado à ordem distante do Estado, ao direito consuetudinário tecido na prática social da vida cotidiana, no universo da ordem próxima da comunidade - tal qual expresso no direito do comum (Dardot, Laval, 2015DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.). Além disso, a realização desta cidadania radical, adaptada à realidade de urbanização planetária, estaria calcada na superação da propriedade privada por formas mais coletivas e autogestionadas de apropriação e uso desta obra comum que é o espaço (urbano). Nas palavras utópicas do autor: “Um dia, que de fato virá, a propriedade privada da terra, da natureza e dos seus recursos, parecerá tão absurda, tão odiosa, tão ridícula quanto a possessão de um humano por outro (Lefebvre, 2009, p. 194-195, tradução nossa).

Referências bibliográficas

  • BRENNER, Neil. Theses on urbanization. In: Public Culture, 25:1, Duke University Press, 2013.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Común: ensayo sobre la revolución en el siglo XXI. Primera edición. Barcelona: Editorial Gedisa, 2015.
  • DE ANGELIS, Massimo. The beginning of history: value struggles and global capital. London; Ann Arbor, MI: Pluto, 2007.
  • DELLENBAUGH, Mary; KIP, Markus; BIENIOK, Majken; MULLER, Agnes Katharina; SCHWEGMANN, Martin (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015. [Seizing the (every)day: welcome to the urban commons!]
  • DOUZINAS, Costas; ZIZEK, Slavoj (Ed.). The idea of communism. London/New York: Verso, 2010.
  • ESPOSITO, Roberto. Communitas: the origin and destiny of community. Stanford, California: Stanford University Press, 2010.
  • FEDERICI, Silvia. Feminism and the politics of the commons. In: Uses of a WorldWind, Movement, Movements, and Contemporary Radical Currents in the United States, edited by Craig Hughes, Stevie Peace and Kevin Van Meter for the Team Colors Collective, Oaskland: AK Press, 2010.
  • FOSTER, Sheila; IAIONE, Christian. The city as a commons. Yale Law & Policy Review, v. 34: 281, 2016.
  • GOONEWARDENA, Kanishka. Marxism and everyday life: on Henri Lefebvre, Guy Debord, and some others. Space, difference, everyday life: reading Henri Lefebvre, p. 117-133, 2008.
  • HARDT, Michael. The common in communism. In: Douzinas, C.; Zizek, S. (eds.). The idea of communism. London, New York: Verso Books, 2010.
  • HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
  • HARVEY, David. The creation of the urban commons. In: HARVEY, D. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London, New York: Verso, 2012.
  • HARVEY, David. The urban process under capitalism. In: DEAR, M. e SCOTT, A.J . (eds.), Urbanization and urban planning in capitalist societies. NY, Methen and Co., 1981.
  • KIP, Markus. Moving beyond the city: conceptualizing urban commons from a critical urban studies perspective. In: DELLENBAUGH, M.; KIP, M.; BIENIOK, M.; MULLER, A. K.; SCHWEGMANN, M. (eds.). Urban commons: moving beyond state and market. Basel: Birkhäuser Verlag GmbH, 2015.
  • KIPFER, Stefan. How Lefebvre urbanized Gramsci: hegemony, everyday life, and difference. Space, Difference, Everyday Life: Reading Henri Lefebvre, p. 193-211, 2008.
  • LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).
  • LEFEBVRE, Henri. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981).
  • LEFEBVRE, Henri. Henri Lefebvre - Key writings. ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (ed.). London/New York: Continuum, 2003.
  • LEFEBVRE, Henri. La produccíon del espacio. Madrid: Capitán Swing Livros, 2013 (1974).
  • LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008 (1968).
  • LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o direito à cidade II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016.
  • LEFEBVRE, Henri. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009.
  • LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.
  • MARTINS, Sérgio. Prefácio à tradução brasileira. Em: LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o direito à cidade II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016.
  • MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010 (1844).
  • MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).
  • MONTE-MÓR, Roberto Luís. A cidade e o urbano. Em: As cidades da Cidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 185-197, 2006.
  • NANCY, Jean-Luc. The inoperative community. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991.
  • PAULA, João Antonio de. Crítica e emancipação humana: ensaios marxistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
  • POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).
  • SCHMID, Christian. Networks, borders, differences: towards a theory of the urban. In: BRENNER, Neil. Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014.
  • SIMONE, AbdouMaliq. Jakarta: drawing the city near. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2014.
  • SOJA, Edward W. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. London, New York: Verso Books, 1989.
  • TONUCCI FILHO, João B. M.. Além do Estado e do Capital: notas sobre três abordagens críticas do Comum. Crítica Marxista, v. 49, 2019.
  • TONUCCI FILHO, João B. M..; CRUZ, Mariana de M.. O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum? Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 21, n. 3, p. 487-504, 2019.
  • TONUCCI FILHO, João Bosco Moura. O direito à cidade na urbanização planetária, ou: Henri Lefebvre por uma nova cidadania urbana. Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte: C/Arte, p. 215-230, 2015.
  • 1
    Parte deste texto tem origem na tese de doutorado “Comum urbano: a cidade além do público e do privado” (Tonucci Filho, 2017), defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. O autor agradece à orientação encorajadora da profa. Heloisa Costa, aos diálogos estimulantes no Grupo de Estudos em Henri Lefebvre (GEHL/UFMG), à interlocução privilegiada com a profa. Rita Velloso e ao CNPq e à CAPES pelo auxílio financeiro à pesquisa.
  • 2
    Para uma revisão das abordagens críticas sobre o comum, ver Tonucci Filho (2019).
  • 3
    Para uma revisão da literatura sobre o comum urbano, ver Tonucci Filho e Cruz (2019).
  • 4
    O direito à cidade é um momento marcante da obra lefebvriana. Em outro texto (Tonucci Filho, 2014), explorei mais detidamente a formulação do conceito de direito à cidade e os seus desdobramentos posteriores, principalmente as discussões tardias que Lefebvre vai realizar sobre direitos e cidadania.
  • 5
    Paula (2014) situou a obra de Lefebvre junto àquilo que denominou “marxismo emancipatório”, e destacou a resistência do autor à dominação stalinista, ao “socialismo de caserna” e ao marxismo petrificado em “escolástica positivista”, assim como sua defesa da emancipação pelas promessas do urbano. É sempre bom ressaltar que Lefebvre não se via meramente como seguidor de Marx, mas como verdadeiro continuador (“ir adiante a partir de”, nas suas palavras), movido pelo propósito de reconstrução do marxismo tendo em vista as contradições de seu tempo ea renovação do método dialético.
  • 6
    Os tradutores de Espaço e política notam uma importante distinção (nem sempre tão clara e óbvia) entre valor de uso e uso na obra de Lefebvre: “Segundo o autor [Lefebvre], a relação dialética entre valor de troca e valor de uso foi magistralmente demonstrada por Marx n’O capital, ao analisar a forma mercadoria. Todavia, o uso não coincide com o valor de uso, pois este corresponde aos termos implicados pela mercadoria, especialmente as relações de propriedade, ao passo que aquele corresponde ao domínio do que é vivido sob os termos da apropriação (na acepção conferida ao termo por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844), portanto fora, e quiçá contra, os pressupostos da valorização”. (N.T. 1 ao Capítulo Reflexões sobre a política do espaço, em: Lefebvre, 2016, p. 164).
  • 7
    Ainda em 1938, o sociólogo norte-americano Louis Wirth advertia que eram arbitrários certos critérios - como densidade, tamanho e heterogeneidade - para distinguir as cidades, e que não deveríamos atar o urbano (o “urbanismo como modo de vida”) à cidade enquanto entidade física. Inspirado por Lefebvre, Monte-Mór (2006) pioneiramente formulou o conceito de “urbanização extensiva” para falar do tecido urbano-industrial que se espraiava a partir das metrópoles no Brasil, levando com ele o germe da politização do espaço para fronteiras e regiões distantes, não consideradas urbanas. Mais recentemente, e nessa mesma linha, Brenner (2013) defendeu a ideia de “urbanização planetária” contra o que ele chama de persistente citadismo na teoria urbana - a ênfase excessiva conferida às cidades como único tipo de espaço e assentamento considerado urbano.
  • 8
    Lefebvre (1999) adota uma concepção na qual o objeto se inclui na hipótese, assim como a hipótese refere-se ao próprio objeto. Ao lado dos procedimentos metodológicos de dedução e indução, o autor denomina de transdução esta reflexão sobre o objeto possível,anunciando ainda a possível passagem do pensamento (hipótese teórica) ao concreto, à prática urbana, apreendida e re-apreendida teoricamente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2020
  • Aceito
    10 Fev 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com