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A profecia da violência sem trauma aparente: justiça de transição, memória e a exceção brasileira

The prophecy of violence without appearing trauma: transitional justice, memory and the Brazilian exception

Resumo

Este artigo tem em seu escopo três principais objetivos: apresentar os mecanismos da justiça de transição, reconstruir a história do regime, da legalidade de exceção e dos expedientes de violência utilizados ao longo da última ditadura (1964-1985) vivida pelo país e refletir criticamente o espúrio processo de transição pelo qual o Brasil passou, fato que acarretou diversas consequências negativas, as quais serão devidamente assinaladas e criticadas ao longo deste ensaio. Para realizar estes objetivos, o artigo foi dividido em quatro diferentes partes: primeiro, apresenta as principais características da justiça transicional; em segundo lugar, promove a reconstrução e exposição de três fases críticas da justiça transicional, tendo por base a genealogia delineada por Ruti Teitel; em um terceiro movimento, utilizando-se do fio deixado por Teitel, especialmente no que tange à difícil relação existente entre verdade, memória e justiça, é feita uma reconstituição do último período ditatorial vivido no Brasil, no desiderato de demonstrar como houve no país o perfeito cumprimento da profecia da violência sem trauma aparente, ou seja, a ocorrência de uma transição negociada, que teve por objetivo promover o esquecimento dos crimes, violência e opressão do regime ilegal; para, por fim, promover também uma crítica da legalidade de exceção utilizada pela ditadura civil-militar brasileira para implementar e justificar sua extrema violência e eliminação da dissidência, demonstrando, além disso, como a adoção de mecanismos de justiça transicional poderiam ter colaborado positivamente para o processo de transição brasileiro e na eliminação dos restos da ditadura, os quais continuam produzindo efeitos altamente deletérios no tecido social brasileiro.

Palavras-chave:
Direito; Justiça de transição; Direito à memória e à verdade; Ditadura civil-militar; Exceção brasileira

Abstract

This article has in its scope three main objectives: to present the mechanisms of transitional justice, to reconstruct the history of the regime, the legality of exception and the expedients of violence used during the last dictatorship (1964-1985) lived by the country and to critically reflect the spurious transitional process that Brazil underwent, a fact that had several negative consequences, which will be duly highlighted and criticized throughout this essay. To accomplish these goals, the paper was divided into four different parts: first, it presents the main characteristics of transitional justice; secondly, it promotes the reconstruction and exposition of three critical phases of transitional justice, based on the genealogy outlined by Ruti Teitel; in a third movement, using the thread left by Teitel, especially regarding the difficult relationship between truth, memory and justice, a reconstruction of the last dictatorial period lived in Brazil is made, in order to demonstrate how there was in the country the perfect fulfillment of the prophecy of violence without apparent trauma, that is, the occurrence of a negotiated transition, which aimed to promote the forgetting of crimes, violence and oppression of the illegal regime; lastly, it is also promoted a critique of the legality of exception used by the Brazilian civil-military dictatorship to implement and justify its extreme violence and elimination of dissent, further demonstrating how the adoption of transitional justice mechanisms could have contributed positively to the Brazilian transitional process and on the elimination of whats remains of the dictatorship, which continues to produce highly deleterious effects on the Brazilian social fabric.

Keywords:
Law; Transitional justice; Right to memory and truth; Civil-military dictatorship; Brazilian exception

Introdução

Este artigo tem em seu escopo três principais objetivos: apresentar os mecanismos da justiça de transição, reconstruir a história do regime, da legalidade de exceção e dos expedientes de violência utilizados ao longo da última ditadura (1964-1985) vivida pelo país e refletir criticamente o espúrio processo de transição pelo qual passamos, quase que inteiramente elidido de mecanismos de justiça transicional, fato que acarretou diversas consequências negativas, as quais serão devidamente assinaladas e criticadas ao longo deste ensaio.

Para realizar estes objetivos, o artigo foi dividido em quatro diferentes partes: primeiramente, busca descrever e demonstrar do que se trata, em que consiste e quais são as principais características, mecanismos e estratégias do que se convencionou chamar de justiça de transição; em segundo lugar, promove a reconstrução e exposição de três fases críticas da justiça transicional, tendo por base a genealogia delineada por Ruti Teitel; em um terceiro movimento, utilizando-se do fio deixado por Teitel, especialmente no que tange à difícil relação existente entre verdade, memória e justiça, é feita uma reconstituição do último período ditatorial vivido no Brasil, no desiderato de demonstrar como houve no país o perfeito cumprimento da profecia da violência sem trauma aparente, ou seja, a ocorrência de uma transição negociada, que teve por objetivo promover o esquecimento dos crimes, violência e opressão do regime ilegal; por fim, é promovida também uma crítica da legalidade de exceção utilizada pela ditadura civil-militar brasileira para implementar e justificar sua extrema violência e eliminação da dissidência, demonstrando, além disso, como a adoção de mecanismos de justiça transicional poderiam ter colaborado positivamente para o processo de transição brasileiro.

No Brasil, a Lei de Anistia foi o mecanismo utilizado para concretizar e assegurar a prevalência do esquecimento dos crimes sistematicamente cometidos por um Estado ilegal contra sua própria população, por meio do qual se impossibilitou continuamente, inclusive nos dias atuais, o enfrentamento dos restos da ditadura, os quais insistem em prosseguir produzindo efeitos altamente deletérios em nosso tecido social, como a normalização e manutenção, no regime democrático, da violência, da administração do desaparecimento e do direito de matar, isto é, da continuidade do exercício do governo lastreado na prerrogativa secular do poder soberano do direito de fazer morrer ou deixar viver.

Em nossa análise e argumentação, vivemos as consequências de uma anistia extorquida, de uma transição negociada, de uma falsa, incompleta e outorgada reconciliação. Isto tudo promovido principalmente para evitar que mecanismos de justiça transicional pudessem ter sido adotados, os quais poderiam ter colaborado para uma transição mais adequada e, desta maneira, propiciado a possibilidade de uma verdadeira, duradoura e mais e justa reconciliação nacional. Pensar o futuro da democracia no país exige, portanto, rever o passado autoritário e a reabilitação da memória coletiva do país, objetivos para o quais a justiça de transição pode sobremaneira colaborar.

1. A Justiça transicional: conceito, objetivos e instrumentos

Seguindo a indagação de Glenda Mezarobba (2012MEZAROBBA, Glenda. De que se fala, quando se diz justiça de transição? In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 245), “De que se fala, quando se diz justiça de transição?”, algumas primeiras impressões e possibilidades de resposta automaticamente irrompem: para a autora, fala-se da África do Sul, Nigéria, Timor Leste, Afeganistão, de vários países do Leste Europeu, da Argentina, do Brasil, do Chile, Iraque, Israel e Palestina; fala-se das atrocidades do apartheid, de guerras civis, governos e ocupações militares, de diversos conflitos internos, da reconfiguração que se seguiu à queda do Muro de Berlim e a derrocada do comunismo, do fim de governos autoritários e de golpes de Estado; mas fala-se, sobretudo, de um enorme legado de abusos em massa, de violações a inúmeros direitos e da necessidade de justiça que emerge em períodos de passagem de retorno à democracia ou ao término de conflitos.

A chamada justiça de transição, ou justiça transicional, pode ser definida, de acordo com Ruti Teitel (2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., p. 135), “como a concepção de justiça associada com períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico, que têm o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”. Especificamente sobre o campo da justiça de transição, é oportuno ressaltar o que escreve Paige Arthur (2011ARTHUR, Paige. Como as “Transições” Reconfiguraram os Direitos Humanos: Uma História Conceitual da Justiça de Transição”. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., p. 76):

O campo da “justiça de transição” – uma rede internacional de indivíduos de instituições, cuja coerência interna é mantida por conceitos comuns, objetivos práticos e distintos pedidos de legitimidades – começou a emergir como uma resposta a estes novos dilemas práticos e como uma tentativa de sistematizar os conhecimentos considerados úteis para desenvolvê-los. O campo da justiça de transição, então definido, surgiu diretamente de um conjunto de interações de ativistas de direitos humanos, advogados, juristas, políticos, jornalistas, financiadores e especialistas em política comparada, preocupados com os direitos humanos e as dinâmicas das “transições para a democracia” iniciadas no final dos anos 80.

A origem do termo,1 1 Para uma história completa da origem, usos e implicações da justiça de transição, consultar o artigo How “Transitions” Reshaped Human Rights: A Conceptual History of Transitional Justice, de Paige Arthur (2009), publicado na Human Rights Quarterly, vol. 31, n. 2. como se pode notar, remete às “transições para a democracia” ocorridas principalmente na América Latina e na Europa do Leste durante a década de 80, sendo que foi apenas na década de 90 que o termo “justiça transicional” foi reconhecido e consagrado na política mundial, incorporando-se plenamente ao campo prático e teórico dos direitos humanos, do direito humanitário e dos diversos conflitos armados que marcaram a época (GÓMEZ, 2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 261). Mas a sua criação e aceitação é também, em si, uma resposta a um conjunto de novos problemas e um meio de legitimar as práticas, como os processos judiciais, as comissões de inquérito, os expurgos e as políticas de reparação, que foram utilizadas como forma de resposta a estes problemas (ARTHUR, 2011ARTHUR, Paige. Como as “Transições” Reconfiguraram os Direitos Humanos: Uma História Conceitual da Justiça de Transição”. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., p. 82).

Como ressalta José María Gómez (2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 261), desde então o termo ganhou grande difusão e aceitação no meio acadêmico e internacional, designando com o seu uso as diversas respostas políticas e jurídicas (principalmente as de justiça penal, de busca da verdade, de políticas de reparação e memória e reformas das instituições) dadas por sociedades que se encontram em uma situação de transição de contextos de guerra para situações de paz, ou de regimes altamente repressivos para democracias liberais, no desiderato de enfrentar as consequências e evitar a repetição das atrocidades em massa de um passado violento, por exemplo, na presença de atos como genocídio, tortura, execuções sumárias, desaparecimento forçado, estupro, escravidão e outros crimes internacionais e crimes contra a humanidade.

O que está em jogo no campo de atividade da justiça transicional é, de acordo com Louis Bickford (2005BICKFORD, Louis. Verbete “Transitional Justice”. In: Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. 3 vol. Edited by Dinah L. Shelton. Detroit, MI: Macmillan Reference, 2005., p. 1045), o enfrentamento da questão de como sociedades podem lidar com legados de abusos massivos de direitos humanos, de atrocidades em massa, ou de quaisquer outras formas de trauma social, incluindo o genocídio ou a guerra civil, de modo a procurar construir um futuro mais democrático, justo e pacífico. O conceito da justiça de transição é entendido comumente como uma estrutura para se confrontar abusos prévios como um componente no contexto de uma maior transformação política. Isso envolve, geralmente, a combinação de estratégias complementares, de mecanismos judiciais e não-judiciais, como: processar os perpetradores; estabelecer comissões da verdade e outras formas de investigação do passado; forjar esforços direcionados à reconciliação em sociedades fraturadas; desenvolver programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência ou abusos; iniciativas de memória e lembrança das vítimas; a promoção de reformas de amplo espectro das instituições estatais responsáveis pelos abusos, como os serviços de segurança, a polícia e as forças armadas, na tentativa de se prevenir contra futuras violações.

Ainda de acordo com Bickford (2005BICKFORD, Louis. Verbete “Transitional Justice”. In: Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. 3 vol. Edited by Dinah L. Shelton. Detroit, MI: Macmillan Reference, 2005., p. 1045), a justiça transicional se vale de duas fontes primárias para fazer um argumento normativo a favor do confronto com o passado, assumindo-se que as condições locais suportem estas iniciativas: em primeiro lugar, o movimento de direitos humanos, o qual influenciou fortemente no campo da justiça de transição, tornando-o autoconscientemente centrado nas vítimas, de forma que os praticantes da justiça transicional tendem a buscar estratégias que se acreditam ser consistentes com os direitos e preocupações das vítimas, dos sobreviventes e dos familiares das vítimas; em segundo lugar, uma fonte adicional de legitimidade deriva do direito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário. A justiça transicional se vale do direito internacional para defender o argumento de que estados que se encontram em estado de transição devem encarar certas obrigações legais,2 2 Quanto a isto, as observações de Ruti Teitel (2002, p. 20): “In the contemporary moment, international law is frequently invoked as a way to bridge shifting understandings of legality”; e, também, o seguinte: “Whereas international law preserves that ordinary understanding of the rule of law as settled law, it also enables transformation. In so doing, it mediates the transition. International law principles serve to reconcile the threshold dilemma of law in periods of political transformation” (TEITEL, 2002, p. 21). incluindo a interrupção de abusos de direitos humanos, a investigação de crimes do passado, a identificação dos responsáveis por violações de direitos humanos, a imposição de sanções aos responsáveis, a providência de reparações às vítimas, a prevenção de futuros abusos, a promoção e a preservação da paz e a busca pela reconciliação individual e nacional.

É importante perceber o foco da justiça de transição, o qual se situa precisamente na “transição”, ou, ainda, mais especificamente, na “transição para a democracia”, e as consequências que surgem desta característica. Conforme aponta Paige Arthur (2011ARTHUR, Paige. Como as “Transições” Reconfiguraram os Direitos Humanos: Uma História Conceitual da Justiça de Transição”. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., p. 78),

“Transição” – e, mais especificamente, “transição para a democracia” – foram as lentes normativas dominantes através das quais a mudança política foi vista naquele momento e, por conseguinte, prestar atenção ao seu conteúdo característico pode trazer alguma luz a respeito do surgimento deste campo. De fato, entender o que se compreendeu por “transição” auxilia a esclarecer o que foi considerado ser uma medida de justiça apropriada. Explica porque as medidas de processo judicial, busca da verdade, restituição e reforma das instituições estatais abusivas – e não outras medidas de justiça, como aquelas associadas a reivindicações por justiça retributiva – foram reconhecidas como as iniciativas legítimas de justiça durante um período de mudanças políticas.

Pode-se perceber, a partir das considerações até aqui promovidas, que a estrutura geral da justiça transicional tem como objetivos primordiais, a partir da mobilização advinda de um sentido de justiça que os abusos promovidos por regimes ditatoriais violentos e ilegais suscitam, e moldados em grande medida por uma abordagem internacional altamente normatizada e difundida que aspira a ser holística e equilibrada (por meio de mecanismos que se complementam e se reforçam mutuamente), alcançar a pacificação e a reconciliação de povos e comunidades dilacerados por conflitos violentos e regimes repressivos. E, no sentido de alcançar estes objetivos, procura-se, dentre outras coisas, criar ou recriar a confiança cívica entre vítimas, cidadãos e instituições públicas, por meio de um amplo conjunto de ações e condições (como o Estado de Direito, democracia liberal, ajuda humanitária, cooperação ao desenvolvimento, missões de paz, intervenções humanitárias, reconstrução do Estado, etc), as quais são consideradas indispensáveis tanto para a proteção e promoção dos direitos humanos, quanto para a prevenção da reedição de futuras violações e massacres em massa (GÓMEZ, 2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., ps. 262-263).3 3 Isso não significa, contudo, que importantes críticas não possam ser feitas sobre a natureza e os limites da justiça transicional. Não é este o foco desta pesquisa. Porém, para uma análise prenhe e rigorosa sobre estas questões, verificar Gómez (2012, ps. 277-284).

Trata-se, portanto, a justiça de transição, de uma busca pela reconciliação. Mas uma reconciliação verdadeira, a qual não se confunde com a mera impunidade, razão pela qual ela é indissociável dos mecanismos de justiça, verdade e reparação. Estes, por sua vez, serão em seguida devidamente explicitados e detalhados, de acordo com os momentos e contextos de seu desenvolvimento e aparecimento.

2. As três fases da justiça transicional

Em seu artigo “Transitional Justice Genealogy”, publicado na Harvard Human Rights Journal, em 2003, Ruti Teitel promoveu uma interessante genealogia da justiça transicional. De acordo com a autora, a sua genealogia estrutura-se a partir de ciclos críticos que podem ser separados em três fases, cada qual com características próprias, as quais serão em seguida delineadas. Deve-se se notar, desta forma, que a autora fornece desde logo qual será seu método de análise, sendo que este consiste no método genealógico. Sua análise estaria estruturada, então, ao longo dos limites e situada dentro de uma história intelectual, a qual seria precisamente a da matriz genealógica foucaultiana.4 4 Não será empreendido aqui um julgamento sobre a adequabilidade da apropriação feita pela autora a respeito da genealogia foucaultiana. Nos interessa, nesse momento, apenas seguir a sua proposição, a qual Teitel denomina genealógica, pois ajuda sobremaneira no entendimento das principais características e momentos da justiça transicional. De qualquer forma, a autora faz referência direta, sobre a matriz intelectual da sua genealogia, ao texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, de Foucault, que pode ser encontrado entre nós na coletânea Microfísica do Poder (2016). Sobre a noção de genealogia em Foucault, para Edgardo Castro (2009, p.185), “[...] a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de investigação para incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e, sobretudo, a relação não discursividade/discursividade. Em outras palavras, para analisar o saber em termos de estratégia e táticas de poder. Nesse sentido, trata-se de situar o saber no âmbito das lutas. Uma apreciação correta do trabalho genealógico de Foucault requer seguir detalhadamente sua concepção das relações de poder. As lutas não são concebidas, finalmente, como uma oposição termo a termo que as bloqueia, como um antagonismo essencial, mas como um agonismo, uma relação, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e reversível. Nessa perspectiva, se poderia falar de uma genealogia dos saberes no âmbito do que Foucault chama governamentalidade”.

A primeira fase seria, para Teitel (2011, ps. 136-137), a fase da justiça transicional do pós-guerra (2ª GM): de acordo com a autora, as origens da justiça transicional remontam à Primeira Guerra Mundial. Mas a justiça de transição, porém, começa a ser entendida como extraordinária e internacional apenas no período pós-guerra de 1945, data que efetivamente registra o seu início. Ela tem como principal símbolo o Tribunal de Nuremberg,5 5 É interessante notar, contudo, que esta proposição de Teitel não é unânime. Paige Arthur é uma grande crítica desta inclusão. Criticando a posição tanto de Teitel quanto a de Jon Elster, escreve Arthur (2011, p. 80): “Assim, para Ruti Teitel, o Tribunal de Nuremberg é um importante momento para a primeira ‘fase’ da justiça de transição, mesmo que nenhum dos atores envolvidos o tivesse descrito desta forma. Tampouco teriam esses atores, necessariamente, atribuído os mesmos significados para o que eles estavam fazendo da maneira como Teitel e Elster fizeram”. No que tange a Jon Elster (2004), Arthur (2011, p. 81) o acusa de cometer um forte anacronismo no que tange à sua caracterização da justiça de transição como uma questão perene, atemporal, em seu livro “Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective”, no qual o autor remonta a presença da justiça de transição já na Grécia antiga. Em seguida, adiciona que o método genealógico de Teitel se sai melhor em termos de anacronismo, porém, comete ainda o erro de imputar ideias de “justiça de transição” a atores que muito provavelmente não as tiveram, particularmente nas suas discussões logo após a Segunda Guerra Mundial. e refletiu o triunfo da justiça transicional no plano do Direito Internacional.6 6 O Tribunal de Nuremberg, apesar das suas limitações, seletividades e irregularidades inerentes a uma espécie de “justiça dos vencedores”, indubitavelmente representou um ponto de inflexão no Direito Internacional. Ele abriu caminho para a tensão-enfraquecimento do princípio clássico de soberania e ao surgimento de uma jurisdição de pretensão universal, identificando-se, assim, como um dos vetores e principais fontes da “revolução dos direitos humanos” que marcou a ordem normativa internacional pós-1945 (GÓMEZ, 2012, p. 265). Esse desenvolvimento, no entanto, não perdurou, devido às excepcionais condições políticas do período pós-guerra. Como consequência, esta fase, que estava associada à cooperação entre os Estados, com processos por crimes de guerra e sanções penais, terminou pouco depois do fim da guerra. Com o início da Guerra Fria, chegou-se a um impasse no que tange à justiça transicional. Importa ressaltar, contudo, que esta fase deixou legados que vieram a formar a base do direito moderno dos Direitos Humanos - cujas principais características, e também otimismo, encontram-se bem ilustrados em A era dos direitos de Norberto Bobbio (2004)BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. -, especialmente tendo em vista a atuação dos tribunais pós-guerra que penalizaram os crimes de Estado como parte de um projeto de direitos universais. Esta fase termina com o fim da Guerra Fria, a qual acaba com seu o internacionalismo.

Em relação à primeira fase, pode-se dizer que o objetivo central da justiça no período entre as duas guerras estava focado em delinear a guerra injusta e demarcar os parâmetros de uma punição justificável imposta pela comunidade internacional, especialmente em relação à Alemanha; envolviam também as perguntas se e em que extensão deveria ser a Alemanha punida por sua agressão, e qual forma a justiça deveria assumir: nacional ou internacional, coletiva ou individual; e, ainda, o alcance pelo qual esta concepção anterior influenciou a reação crítica da justiça do pós-Segunda Guerra (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 139-140).

Como consequência, pelo menos duas reações críticas podem ser identificadas com relação à justiça transicional da Segunda Guerra Mundial: primeiro, a substituição da justiça nacional em favor da justiça internacional;7 7 Como bem observou Gómez (2012, ps. 264-265), uma justiça internacionalizada que estava inicialmente, ao fim da segunda guerra, sob o forte impacto moral na opinião pública das imagens e relatos dos sobreviventes dos campos de concentração alemães. Nesse contexto, seguiu-se a instalação não apenas do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, mas também o de Tóquio, que tinham como objetivo julgar os membros do alto comando político-militar das potências vencidas, pela perpetração de crimes de guerra, crimes contra a paz e “crimes contra a humanidade”, este último uma figura nova do Direito Internacional, que definia uma forma específica de criminalidade de Estado, dissociada do contexto estrito de guerra, em relação ao qual os responsáveis não poderiam alegar o princípio da legalidade prévia, nem o de obediência devida, menos ainda o de não ingerência nos assuntos internos do Estado. a segunda, refere-se às sanções impostas à Alemanha a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, que foram reconhecidas como medidas que fracassaram em evitar novos conflitos – ela causou uma reação no sentido de passar a se orientar em julgamentos individuais com base em responsabilidades individuais, o que levou à grande inovação da época, que foi o uso do Direito Penal Internacional e o alcance de sua aplicação, que para além do Estado, atingiu também o indivíduo (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 140-141). Afinal, como ressalta Gómez (2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 265), esta foi a primeira vez na história que um tribunal internacional veio a julgar e condenar as mais altas autoridades políticas e militares de um Estado por crimes contra a humanidade, estabelecendo desta maneira um conjunto de princípios de justiça internacional e deixando um registro judicial crível dos massacres e abusos dos direitos humanos.

O período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, por sua vez, é considerado o apogeu da justiça internacional. Houve aqui a consideração do importante abandono das medidas transicionais nacionalistas prévias e a proximidade de uma política internacionalista como sendo garantias para o Estado de Direito. E o legado desta fase internacionalista foi misto: por um lado, a força do seu precedente se refletiu escassamente em outras instâncias da justiça internacional, ainda que isto provavelmente esteja mudando com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI); por outro, pode-se notar uma contínua presença do seu legado no desenvolvimento do Direito Internacional, em que aspectos do precedente estabelecido para a responsabilização internacional por abusos de guerra foram incorporados em convenções internacionais, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, a exemplo da Convenção contra o Genocídio, de 1948 (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 141-143).

A segunda fase da justiça transicional é a justiça transicional do pós-Guerra Fria: esta fase associa-se às ondas das transições para democracia e modernização iniciadas em 1989, fase que, para a autora, é caracterizada por uma aceleração na resolução de conflitos e um persistente discurso por justiça no mundo do direito e da sociedade.8 8 Teitel toma aqui como principal referência a obra do historiador americano Samuel P. Huntington (1991), com o livro “The Third Wave: Democratization in The Late Twentieth Century”. A ideia da “terceira onda” diz respeito aos movimentos de democratização nos países do leste europeu, tendo em vista a dissolução da União Soviética, e da América Latina, após décadas de interrupções constitucionais e golpes militares. A justiça transicional está associada nesta fase com o crescimento da ideia de reconstrução nacional. Ao invés de entender o Estado de Direito no sentido de fazer valer a responsabilidade de um reduzido grupo de líderes, este modelo tende a se sustentar em compreensões diferentes do Estado de Direito, ligadas a comunidades políticas particulares e suas condições locais (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 137-139).

O começo desta fase liga-se às últimas décadas do século XX, na qual se verificou uma grande onda de transições políticas, devido ao colapso da União Soviética e as suas consequências, como o fim do balanço bipolar de poder no mundo e a concomitante proliferação de processos de democratização política e modernização. Seu precedente, que dá propriamente origem ao termo de “justiça transicional” (ou de “justiça de transição”), está ligado aos chamados “processos de transição para a democracia” que tiveram lugar entre meados dos anos 70 e o início da década de 1990, a partir da Europa do Sul, tendo continuado na América do Sul, culminando na Europa do Leste e na América Central, para se estender depois a países da África e da Ásia (GÓMEZ, 2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 266).

Nesse contexto, a dúvida que se colocava nas transições políticas dos anos 80 era se os regimes sucessores deveriam aderir ou não ao modelo de justiça da Fase I, ou até que ponto deveriam fazê-lo. No caso das novas democracias emergentes na América do Sul, após o colapso dos regimes militares, não se tinha clareza se o ajuizamento de ações contra os responsáveis, no estilo de Nuremberg, seria seguido de êxito. Esta questão se apresentou primeiro na Argentina, depois da Guerra das Malvinas/Falklands (a qual culminou com a derrota total da junta militar do país e permitiu que a transição avançasse), onde o regime sucessor fez o possível para fazer distinção entre o contexto nacional e o de justiça internacional do pós-guerra, e convocou julgamentos no âmbito nacional. Na segunda fase, ao contrário da internacionalização verificada a fase I, a modernização e o Estado de Direito foram equiparados a julgamentos por parte do Estado-nação, como meio de legitimar o novo regime e avançar na reconstrução da nação (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 143-145). Nesse sentido, durante esta fase

[...] os novos governos que decidiram enfrentar a questão das violações maciças dos direitos humanos pelos regimes autoritários anteriores não seguiram o modelo internacionalizado e punitivo de Nuremberg, que o contexto da Guerra Fria havia tornado inviável. O que eles procuravam, ao contrário, eram respostas nacionais que alargasse o leque dos mecanismos e das opções: processos criminais, comissões da verdade, expurgos administrativos, reparação às vítimas, reformas institucionais, abertura dos arquivos dos aparelhos repressivos, restituição de propriedades e bens confiscados, anistia ou anulação de anistia dos antigos regimes etc (GÓMEZ, 2011, p. 266).

Verifica-se, portanto, nesta fase, uma premente virada para os problemas especificamente locais e dos contextos dos países em fase de transição. Entende-se, nesse momento, que as deliberações sobre justiça nas transições são mais bem entendidas quando situadas nas verdadeiras realidades políticas e no contexto político da transição, o que inclui as características do regime predecessor e as suas contextuais contingências políticas, jurídicas e sociais.

Desta forma, apareceram vários dilemas quanto à viabilidade de buscar a aplicação da justiça e sua capacidade de contribuir com o Estado de Direito transicional, a qual dependeu da escala dos crimes cometidos anteriormente, bem como do grau em que estes crimes se converteram em sistemáticos ou foram patrocinados pelos aparatos do Estado. Assim, o intento de fazer valer a responsabilidade dos fatos por meio do direito penal, com frequência gerou dilemas próprios ao Estado de Direito, incluindo a retroatividade da lei, a alteração e manipulação de leis existentes, um alto grau de seletividade na submissão de processos e um poder judicial sem suficiente autonomia. Então, na medida em que a imposição da justiça penal incorreu em tais irregularidades, em muitos países optou-se por renunciar aos processos penais em favor de métodos alternativos para o estabelecimento da verdade e para a responsabilização pelos fatos (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 146-147).

Esta fase, a partir das contradições e tensões próprias advindas da administração da justiça transicional, produziu uma reação crítica ao projeto de justiça pós-guerra da Fase I, procurando ir além da justiça retributiva, sendo que seus dilemas transicionais estruturaram-se em termos mais abrangentes que a simples prática de confrontar e demandar responsabilidades ao regime anterior, incluindo questões sobre como curar feridas de uma sociedade inteira e incorporar diversos valores em um Estado de Direito, como a paz e a reconciliação (o que antes era tratado como algo externo ao projeto de justiça transicional).9 9 Um excelente exemplo para ilustrar esta situação são os chamados “Tribunais Gacaca”, voltados muito mais para um paradigma restaurativo que retributivo, no âmbito do projeto de reconciliação nacional da Ruanda, após o genocídio ocorrido em 1994. Seu principal objetivo, conforme Kubai (2007, p. 57), “[...] is to promote reconciliation by providing a platform for victims to express themselves, encouraging acknowledgments and apologies from the perpetrators, and facilitate the coming together for victims and perpetrators ‘on the grass’”. Para uma completa revisão da experiência Ruandesa, ver Anne Kubai (2007). De modo geral, pode-se dizer que enquanto na Fase I a justiça transicional pareceu assumir inicialmente o potencial ilimitado e universal do direito, a segunda foi reconhecidamente mais contextual, limitada e provisória. Esse modelo, porém, não será mais apropriado para responder ao contexto seguinte de posterior globalização política, no qual os fatores nacionais e internacionais tornaram-se contribuintes interdependentes da mudança política (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 147-148).

Por fim, a terceira fase, na leitura de Teitel (2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., p. 139), é a fase do estado estável (steady-state) da justiça transicional: esta fase está associada ao fenômeno da aceleração da justiça transicional do final do século e às condições contemporâneas de globalização, de marcada violência e instabilidade política. Neste momento, a justiça de transição deixa de ser uma exceção à norma e converte-se em um paradigma do Estado de Direito. Há aqui a normalização do discurso ampliado de justiça humanitária por meio da jurisprudência transicional, de forma que se constrói para o direito uma organicidade associada a conflitos universais, contribuindo assim para o estabelecimento das fundações do emergente direito sobre terrorismo, o que é extremamente problemático, pois isso deu azo a um discurso de guerra permanente, retórica que continuamente esvazia a distinção entre guerra e paz, a lei e a sua exceção, levando a uma grande perda do vocabulário e a uma forte descaracterização da justiça transicional.10 10 Problemático, pois, como escreve Teitel (2011, ps. 167-168): “A expansão da justiça transicional para incluir o problema do terrorismo, torna-se problemática pelo uso inadequado de analogias entre terrorismo e guerra ou crises políticas. A justiça transicional tende a olhar o passado para responder ao último conflito e, como consequência, não se adapta facilmente para ser usada como modelo para garantir segurança no futuro. Qualquer intenção de generalizar a partir de situações excepcionais pós-conflito, a fim de orientar uma política, é extremamente problemática”.

Estabelecidos estes três momentos da justiça transicional, a partir do trabalho de Ruti Teitel, avança-se em um próximo movimento para a discussão de dois dos maiores problemas existentes no âmbito da justiça de transição, que é o fato de ter de enfrentar e conciliar sempre, no interior do seu campo de atuação, duas dicotomias: a dicotomia verdade vs. justiça e a dicotomia justiça vs. paz, as quais constituem algumas das mais difíceis aporias e problemas concernentes à justiça transicional. Isso será analisado, no entanto, tendo em vista principalmente o processo transicional ocorrido no Brasil, país no qual prevalece, mesmo sob a democracia, segundo Paulo Arantes (2010ARANTES, Paulo E. 1964, o ano que não terminou. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 214), “um sistema de práticas autoritária herdadas, seja por legado histórico de longa duração ou sobrevivência socialmente implantada no período anterior e não elimináveis por mera vontade política”.

3. A difícil relação entre memória, verdade e justiça: o caso brasileiro

Segundo a formulação de Teitel (2011, ps. 148-149), no âmbito da segunda fase da justiça transicional, o modelo de justiça que se destacou, como visto, foi o modelo restaurativo. Neste, o propósito principal da justiça transicional foi o de construir uma história alternativa para os abusos do passado. Surgiu, assim, uma dicotomia entre verdade e justiça. Esse paradigma majoritariamente evitou julgamentos para, em troca, concentrar-se em um novo mecanismo institucional: as comissões da verdade, que são organismos oficiais, normalmente criados por governos nacionais para investigar, documentar e divulgar abusos aos direitos humanos ocorridos em um país durante um período de tempo específico. Vale observar que este mecanismo institucional foi utilizado pela primeira vez na Argentina, ao menos no seu sentido moderno (trata-se da investigação realizada pela Comissão “Nunca Más”, que foi a primeira fase da justiça argentina posterior ao colapso do regime militar), embora ele esteja atualmente mais associado à resposta adotada pela África do Sul pós-apartheid nos anos 1990.

De acordo com Teitel (2011, ps. 149-152), este mecanismo é especialmente preferível onde regimes autoritários fizeram desaparecer pessoas ou ocultaram informações sobre perseguições, como no caso da América Latina, pois buscam oferecer uma perspectiva histórica mais ampla, ao invés de meros julgamentos isolados. Isto se dá pelo fato de que esta fase transcendeu o foco na responsabilização individual em favor de uma concepção mais comunitária.11 11 Talvez o maior exemplo desta situação seja a África do Sul, onde o foco se deu mais na reconciliação, com a Comissão de Reconciliação e Verdade. A Comissão optou pelo entrelaçamento entre a busca pela verdade e o perdão pela anistia, com a apuração das violações de direitos humanos do regime racista do apartheid por meio da narrativa das vítimas e, também, por meio da confissão dos responsáveis pelos crimes, cujas punições seriam trocadas pela anistia diante da confissão completa e verdadeira. Para Edson Teles, tem-se aí, paradoxalmente, talvez o maior limite e, ao mesmo tempo, o maior triunfo da experiência sul-africana: “[...] ao trocar o ilícito, os crimes contra a humanidade, pelo lícito, o amparo da anistia, sob a condição da verdade, a nova nação sul-africana iniciou a reconciliação, ao mesmo tempo em que deixou de punir os responsáveis pelos crimes do passado. Foi o momento inaugural das novas relações democráticas pela suspensão dos atos de justiça” (TELES, 2010, p. 314). Os propósitos da justiça transicional nesta fase mudam do objetivo anterior de estabelecer o Estado de Direito por meio da responsabilização, para o objetivo de preservar a paz. Desta forma, o dilema central associado a esta fase foi marcado por questões de direitos humanos, tais como o direito da vítima a conhecer a verdade e se o Estado tem o dever de investigar para revelar esta verdade. Dentro deste marco, surge a dinâmica central da “verdade versus justiça”, sugerindo que necessariamente existem conflitos entre justiça, história e memória.

Eis aí, em verdade, uma das mais controversas e, simultaneamente, mais importantes questões que envolvem a justiça de transição, especialmente em se tratando de países nos quais se verificam casos de extrema opressão, violência e sistemáticas violações de direitos humanos: a necessidade de equilibrar, por um lado, o interesse das vítimas, no sentido de buscar o direito à verdade, pela exposição e desnudamento do que factualmente aconteceu e em fornecer as devidas reparações, e de buscar a justiça, a partir da persecução penal dos violadores de direitos humanos, enquanto se tenta ainda alcançar, em alguma medida, alguma espécie de reconciliação.

Com efeito, na presença de crimes contra a humanidade, três obrigações se impõem, em relação a pessoas individuais ou coletivas, que são: 1) o direito da vítima de ver a justiça ser cumprida; 2) o direito à verdade; 3) o direito à compensação e, também, à formas não monetárias de restituição; mas, além destas, surge também um direito que não se direciona apenas às vítimas, mas à toda a sociedade, que é o direito à novas e reorganizadas instituições, as quais devem possuir accountability, isto é, podem ser responsabilizadas por suas ações (MENDEZ, 1997MENDEZ, Juan E. Accountability for Past Abuses, Human Rights Quarterly, Vol. 19, No. 2, pp. 255-282, May, 1997. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/762577>. Acesso em: 27 out. 2019.
https://www.jstor.org/stable/762577...
, p. 261).

Não há dúvida de que sempre haverá problemas na equalização de todas estas questões, mas o fato que aqui se salienta é que para uma reconciliação bem-sucedida são necessárias a promoção das medidas sugeridas pela justiça transicional, que, de acordo com Juan Mendez (1997MENDEZ, Juan E. Accountability for Past Abuses, Human Rights Quarterly, Vol. 19, No. 2, pp. 255-282, May, 1997. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/762577>. Acesso em: 27 out. 2019.
https://www.jstor.org/stable/762577...
, p. 261), são pelo menos quatro:

1. To investigate, prosecute, and punish the perpetrators; 2. to disclose to the victims, their families, and society all that can be reliably established about those events; 3. To offer the victims adequate reparations; and 4. to separate known perpetrators from law enforcement bodies and other positions of authority.

Para a justiça transicional, portanto, pode-se perceber como há uma complicada tensão na justaposição entre “justiça” e “reconciliação”. A nosso ver, porém, a lição mais importante a se retirar das experiências já ocorridas no âmbito da justiça de transição é que, a despeito da dicotomia “justiça” vs. “reconciliação”, parece ser mais apropriado pensar que é precisamente por meio da justiça que se pode alcançar uma verdadeira reconciliação.12 12 Isso fica claro, sobretudo, a partir do relato de Juan Mendez: “Nesse sentido, tudo o que fazemos – justiça, verdade, medidas de reparação – tem de estar inspirado pela reconciliação, mas a reconciliação verdadeira, não a falsa reconciliação que na América Latina se pretendeu como desculpa para a impunidade” (MEZAROBBA, 2007, p. 171). As medidas transicionais existem justamente para que uma reconciliação verdadeira possa ter lugar, em detrimento de uma reconciliação falsa, outorgada, a qual somente pode continuar produzindo no tecido social efeitos altamente deletérios, como a manutenção e continuidade das diversas formas de desigualdade, opressão e violências existentes no regime opressor. Isso significa, por um lado, que é realmente necessário ponderar quais medidas são mais adequadas em cada caso, de acordo com os específicos contextos regionais; contudo, por outro lado, isso significa também que de nenhuma maneira as medidas adotadas na busca da reconciliação podem significar apenas esquecimento, como no caso de autoanistias.13 13 Pois, como será demonstrado ao longo do ensaio, no caso brasileiro a anistia “[...] igualou as violações de direitos humanos praticadas pelo Estado através de seus agentes aos atos cometidos por cidadãos ou grupos de cidadãos contra a ditadura militar. Vale dizer, a intenção dos militares era a promoção pelo Estado de uma autoanistia. Ela autorizaria o esquecimento dos crimes cometidos pelos cidadãos contra o Estado, como também dos crimes cometidos pelo Estado contra seus cidadãos, não importando se estes violaram os direitos humanos. Anistia de mão dupla. Anistia que possibilitou ao Estado o autojulgamento, princípio este rejeitado pelo direito” (CHUEIRI; CÂMARA, 2015, p. 281, grifo nosso). E, quanto a isto, o caso brasileiro é extremamente paradigmático.

A este respeito, pode-se lembrar como a Argentina passou por uma extensa justiça de transição. Da mesma maneira, também o Chile, que condenou carrascos como Manuel Contreras (chefe da polícia secreta chilena durante a ditadura de Pinochet) à prisão perpétua, e as Forças Armadas, que se viram obrigadas a fazer um mea-culpa pela implementação de uma ditadura militar, dentre outros possíveis exemplos (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., p. 64). Nesse sentido, diz Vladimir Safatle (2018, p. 64, grifo nosso) que o “único país que realizou de maneira bem-sucedida esta profecia foi o Brasil: a profecia da violência sem trauma aparente”, pois a constituição da “Nova República” foi baseado na tese que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso, porém necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática, eliminando o trauma da violência do Estado.

Esquecimento, sim, o qual se deu entre nós por meio da Lei nº 6.683/79, a Lei de Anistia. Seguindo no caminho da “abertura lenta, gradual e segura” de Geisel, João Figueiredo tirou da oposição uma de suas principais bandeiras, a luta pela anistia. Assim, a lei aprovada pelo Congresso continha restrições e fazia importantes concessões à linha dura do regime militar, abrangendo inclusive os responsáveis pela prática de tortura. Desta maneira, de um lado, a lei possibilitou o retorno dos exilados políticos e consistiu em um importante passo para a ampliação das liberdades públicas (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 280). Porém, de outro, segundo Glenda Mezarobba (2003, ps. 142-143),

Embora de grande significado no processo de democratização do país, a lei 6.683 se deu basicamente nos termos que o governo queria, mostrou-se mais eficaz aos integrantes do aparato de repressão do que aos perseguidos políticos e não foi capaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o golpe de 1964. Em outras palavras, a Lei da Anistia ficou restrita aos limites estabelecidos pelo regime militar e às circunstâncias de sua época. [...] Dessa forma, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a ideia de apaziguamento de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime democrático.

No caso do Brasil, como se sabe, em 1º de abril de 1964 os militares deram um golpe de estado, depondo o então presidente João Goulart, pondo fim à experiência democrática do período de 1945-1964.14 14 Um excelente relato sobre a conjuntura político-social da época pode ser encontrado no ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, presente na obra O pai de família e outros estudos, de Roberto Schwarz (2008). Conforme escreve o autor, “O povo, na ocasião, mobilizado, mas sem armas e organização própria, assistiu passivamente a troca de governos. Em seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução de organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc” (SCHWARZ, 2008, p. 71). Embora o intervencionismo das Forças Armadas não fosse novidade na história do país pré-1964, pela primeira vez na história do Brasil os militares se viram em condições de assumir o poder com a perspectiva de aí permanecer (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 255), instaurando um regime autoritário que duraria 21 anos. E que, contrariamente a muitas das vociferações contemporâneas quanto “à descarada alegação de brandura”, segundo escreve Paulo Arantes (2010ARANTES, Paulo E. 1964, o ano que não terminou. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 205), “[...] só nos primeiros meses de comedimento foram 50 mil presos. Em julho de 1964, ‘os cárceres já gritavam’”.

As condições contextuais que se seguiram, especialmente após a posse do primeiro presidente militar, o general Humberto de Alencar Castello Branco, mostrou-se ser o prelúdio de uma mudança completa no sistema político, a qual foi moldada por meio da colaboração ativa entre militares e setores civis interessados em implantar um projeto de modernização impulsionado pela industrialização e pelo crescimento econômico, sendo que tudo isto seria sustentado por um formato abertamente ditatorial. A interferência foi profunda: exigiu a configuração de um arcabouço jurídico, a implantação de um modelo de desenvolvimento econômico, a montagem de um aparato de repressão e informação política, e a utilização da censura como ferramenta de desmobilização e supressão do dissenso (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., ps. 448-449).

Como nos lembra Fausto (2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 257), o movimento golpista de 31 de março de 1964 foi lançado, aparentemente, para livrar o país da corrupção e do comunismo e para restaurar a democracia. Nesse sentido, é preciso se lembrar do contexto mundial à época: o cenário mundial vinha sendo alimentado pela radicalização das lutas populares, com algumas de suas revoluções sendo vitoriosas, da hegemonia mundial da esquerda no campo cultural das ideias, do constante abalo do sistema de formas tradicionais de vida pela continuidade das experiências artísticas de vanguarda e das fortes relações de associação entre intelectuais e classes populares. Assim, além de suas próprias questões internas, houve no Brasil uma dinâmica que não poderia aceitar de forma alguma estes abalos, como o ocorrido no Chile, com o governo Salvador Allende e a sua combinação inovadora de socialismo e democracia (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., ps. 50-51).

Foi neste espírito que uma grande parcela da sociedade civil, pelo lado da direita,15 15 Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2017, p. 155): “Pelo lado da direita, o golpismo não era novidade. Desde 1945, liberais e conservadores vinham tentando eliminar da política nacional Vargas e sua herança. O liberalismo brasileiro não conseguiu assimilar a entrada do povo na política. O máximo que podia aceitar era a competitividade entre setores oligárquicos. O povo, representado na época pela prática populista e sindicalista, era considerada pura massa de manobra de políticos corruptos e demagogos e de comunistas liberticidas. O povo perturbava o funcionamento da democracia dos liberais. Para eles, o governo do país não podia sair do controle de suas elites esclarecidas”. se uniu inescrupulosamente aos militares, seguindo seus interesses oligárquicos para possibilitar o golpe, conforme escreve Safatle (2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., p. 51, grifo nosso):

Foi contra a realização possível desse horizonte de transformação que as oligarquias se associaram aos militares para impor uma ditadura civil-militar. Durante vinte anos, o Brasil foi submetido a uma política econômica de alta concentração de renda, de crescimento da desigualdade, e a um regime corrupto, no qual a classe empresarial financiava aparelhos de tortura e terrorismo de Estado e cargos públicos eram distribuídos a banqueiros e empresários [...]. Ou seja, a ditadura militar brasileira não era exatamente uma ditadura militar, mas uma associação civil-militar para o retorno do sistema de coronelato e oligarquias locais.

Tendo assumido de forma inconstitucional o governo, os militares conferiram a si mesmos poderes de exceção. A área sensível do novo sistema político se localizava no controle, pelas Forças Armadas, da presidência da república, sendo que passaram e se alternaram no comando do Executivo cinco generais do Exército: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85), além do curto período de mando de uma Junta Militar, composta pelos ministros das três forças, entre agosto e outubro de 1969 (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 449).

Como escreve o historiador Boris Fausto (ps. 257-258), rogando para si o “exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as Revoluções”,16 16 Este é o motivo pelo qual até hoje as Forças Armadas empregam o termo “revolução” para se referir ao golpe. Isso decorre do primeiro ato institucional, que na sua “Introdução” dizia: “A revolução vitoriosa [...] é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte”. Desta maneira, eles procuraram dar legitimidade ao sistema e institucionalizar a repressão (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 456). o novo regime autoritário começou a mudar as instituições por meio dos chamados atos institucionais (AI). O primeiro ato institucional (AI-1) foi redigido em segredo e promulgado em 9 de abril de 1964, oito dias após o golpe. Ele manteve formalmente a Constituição de 1946, com várias modificações, e também o funcionamento do Congresso. O AI, no entanto, teve por objetivo reforçar o poder do Executivo e reduzir o campo de ação do Congresso: suspendeu as imunidades parlamentares, autorizando o Comando Supremo da Revolução a cassar mandatos e a suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos; suspendeu as garantias de vitaliciedade e de estabilidade dos demais servidores públicos por seis meses, para facilitar o expurgo no serviço público; criou as bases para a instalação dos inquéritos policial-militares (IPMs), a que ficaram sujeitos os responsáveis “pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio, contra a ordem pública e social, ou por atos de guerra revolucionária”.

Todos estes mecanismos, então, desencadearam perseguições aos adversários do regime, envolvendo expurgos (que atingiram funcionários públicos, o Congresso Nacional, governadores, juízes e os próprios militares),17 17 Conforme expõem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, ps. 456-457), era de repressão que se tratava, e o AI-1 facilitou as condições para o expurgo no serviço público, o que se deu mormente por meio das Comissões Especiais de Inquérito, de natureza administrativa, em todos os níveis de governo, e dos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), para investigar as atividades de funcionários na administração pública. De acordo com as autoras, entre 1964 e 1973 milhares de brasileiros foram atingidos pelos expurgos, sendo que estima-se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura (apenas o AI-1 teve como alvo 2990 cidadãos), e nos quartéis os expurgos atingiram as três Forças e remeteram 1313 militares para a reserva. prisões e torturas, que atingiram de maneira exacerbada principalmente os estudantes (que tinham tido um papel relevante no período de Goulart e, por isso, foram visados pela repressão) e o campo, especialmente no Nordeste, sobretudo as pessoas ligadas às Ligas Camponesas. Vale lembrar, ainda, que foi nesse contexto que o regime militar deu outro passo importante no seu aparato de censura e repressão, que foi a criação, em junho de 1964, com idealização e chefia do general Golbery do Couto e Silva, do Serviço Nacional de Informações (SNI),18 18 Sobre o SNI, diz ainda Fausto (2018, p. 259): “Na prática, transformou-se em um centro de poder quase tão importante quanto o Executivo, agindo por conta própria na ‘luta contra o inimigo interno’. O general Golbery chegou mesmo a tentar justificar-se, anos mais tarde, dizendo que sem querer tinha criado um monstro”. que visava “[...] coletar e analisar informações pertinentes à Segurança Nacional, à contrainformação e à informação sobre questões de segurança interna” (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., ps. 258-259).

O AI-1, contudo, tinha prazo de validade, devendo terminar em 31 de janeiro de 1966, data final do mandato de João Goulart, o que no início deu a impressão para muitos de que o regime militar seria de fato temporário. Porém, em outubro de 1965, Castello Branco liquidou estas ilusões, prorrogando o próprio mandato por meio do AI-2. O AI-2, além de determinar medidas que fortaleceriam ainda mais o Executivo, mudou as regras da representação política: suprimiu as eleições por voto popular direto para presidente da República e extinguiu todos os partidos políticos então existentes (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 457). Além disso, o AI-2 reforçou ainda mais os poderes do presidente ao estabelecer que ele poderia baixar decretos-leis em matéria de segurança nacional, permitindo-o, desta maneira, mediante este mecanismo, ampliar até onde quisesse o conceito de segurança nacional (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 262).

Em seguida, veio o AI-3, assinado por Castello Branco em fevereiro de 1966, que se encarregaria de acabar com as eleições diretas para governadores. Além disso, foi acompanhado também de um Ato Complementar, que serviria para alterar a correlação das forças políticas no Congresso e nas Assembleias Estaduais, ao estabelecer normas para a criação de apenas dois partidos (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 458). Quanto a isto, a legislação partidária forçou na prática a organização de apenas dois partidos: o partido que reuniu os membros ligados ao governo, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), e o partido que reuniu a oposição (controlada), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., ps. 262-263).

Além de todas estas questões, o governo Castello Branco completou sua mudança institucional fazendo o Congresso aprovar uma nova Constituição em 1967. Tendo submetido o Congresso a novas cassações, o Congresso foi fechado por cerca de um mês em outubro de 1966 e reconvocado em uma reunião extraordinária apenas para aprovar o novo texto Constitucional. Esta Constituição, de 1967, incorporou a legislação que ampliara os poderes conferidos ao Executivo, especialmente no que tange à segurança nacional (FAUSTO, 2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., ps. 262-263). Conforme escreve José Afonso da Silva (2014SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014., p. 88), após novas crises vieram ainda os atos institucionais 3 e 4, este regulando o procedimento a ser obedecido pelo Congresso Nacional, para votar nova Constituição, cujo projeto foi apresentado pelo governo. A Constituição foi outorgada, então, em 24 de janeiro de 1967, de forma que, após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso Nacional, o impacto de quatro atos institucionais e trinta e sente atos complementares, era o fim da Constituição de 1946.

No entanto, esta Constituição teria uma vida muito curta. Diferentemente do que os militares pensaram, as crises não cessaram. Desta forma, em seguida, veio o ato institucional nº 5 (AI-5), o qual rompeu definitivamente com a ordem constitucional, e em relação ao qual se seguiram mais uma dezena e muitos outros atos complementares e decretos-leis. A seguir, porém, após Costa e Silva (que havia sucedido Castello Branco em 1967) ficar gravemente doente e estar impossibilitado de continuar governando, é declarado pelo AI-12 o exercício do Poder Executivo a uma junta militar formada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, os quais completaram o preparo de um novo texto constitucional, promulgado em 17 de janeiro de 1969, como Emenda Constitucional n.1 à Constituição de 1967, para entrar em vigor em 30 de outubro de 1969. Teórica e tecnicamente, contudo, não se tratou de uma emenda, mas de uma nova constituição. O formalismo da emenda foi apenas um mecanismo de outorga, visto que se tratou da promulgação de um texto constitucional integralmente reformulado. Esta, por sua vez, perdurou até a EC-26 (a qual, tecnicamente, também não se tratou de emenda constitucional, mas de ato político), responsável por convocar a Assembleia Nacional Constituinte para elaborar a nova Constituição que substituiria a anterior (SILVA, 2014SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014., p. 89), já no contexto da redemocratização.

Retornando ao tema dos Atos Institucionais, algo muito emblemático aconteceu em 14 de dezembro de 1968, quando o Jornal do Brasil, um dos mais importantes jornais da época, foi às bancas com uma edição planejada cuidadosamente para causar estranheza. Entre várias bizarrices, o jornal estampou o seguinte aviso: “Ontem foi o Dia dos Cegos”, juntamente com a previsão meteorológica, na primeira página. Também anunciou: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país sendo varrido por fortes ventos”. O dia, no entanto, era de sol forte e um céu escandalosamente azul. A edição, acontece, estava falando sério. Estava tentando alertar o leitor de censores na redação, pois, naquela madrugada, entrara em funcionamento uma grande operação militar de censura em toda a imprensa nacional.19 19 Sobre isto, as palavras de Eduardo Bittar (2017, p. 390, grifo nosso): “Se a formação de uma esfera pública midiática é de fundamental importância para a vida política dos cidadãos, e se a cultura política que possui passa de modo volumoso pelos instrumentos de comunicação populares à disposição, percebe-se o quanto era nevrálgico para o regime, em função de sua sustentabilidade, controlar o exercício da cidadania pelo controle do poder comunicativo dos profissionais letrados e que a exerciam, especialmente, a função de jornalistas. Assim, a censura fazia parte da arquitetura do regime autoritário”. O jornal avisava ainda que aquilo que já era ruim havia piorado: na noite anterior, Gama e Silva, ministro da Justiça, havia apresentado ao país o texto do Ato Institucional nº 5 (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 455).

O AI-5, o pior e mais radical de todos os atos institucionais, possuía doze artigos e vinha acompanhado do Ato Complementar nº 38, que fechava o Congresso Nacional por tempo indeterminado. Entre as suas medidas, estavam as seguintes: suspendia a concessão de habeas corpus e as garantias constitucionais de liberdade de expressão e reunião, permitia demissões sumárias, cassações de mandatos e de direitos de cidadania, e determinava que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem direito a recurso. Tratava-se, numa conjuntura de inquietação política e movimentação oposicionista, de uma ferramenta de intimidação pelo medo, a qual não tinha prazo de vigência e seria empregada pela ditadura contra a oposição e a dissidência (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 455).

Nesse sentido, de forma a ressaltar a excepcionalidade dos atos institucionais, em especial o AI-5 e o AI- 14, as palavras de Edson Teles (2010TELES, Edson. Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 304):

Figura anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional nº 5, assinado em 13 de dezembro de 1968. Esse decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de presidente ao estender-lhe o direito de decretar Estado de sítio e fechar o Congresso Nacional (artigos 1º, 2º e 7º), concedendo o domínio absoluto sobre os Estados da Federação (artigos 3º e 6º) e extinguindo vários direitos civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo 10º). O Ato Institucional nº 14, de 14 de outubro de 1969, instituiu a pena de morte. De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos e, portanto, da vida dos cidadãos.

A partir de então, juntamente com a censura política, jornalística, artística, cultural e moral, e a instalação da tortura como prática normal de governo, uma verdadeira máquina letal se instituiu, a qual tinha como principais órgãos: o Sistema Nacional de Informações (SNI); a Divisão de Segurança e Informações (DSI); o Centro de Informações do Exterior (CIEX); os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops); o Centro de Informações do Exército (CIE), da Marinha (Cenimar) e da Aeronáutica (Cisa); a nível interno, a Operação Bandeirante (Oban), os Centros de Operação e Defesa Interna (Codi) e os Destacamentos de Operação Interna (DOI); e, a nível internacional, com foco sobretudo na América, a Operação Condor.20 20 Sobre isto, merece citação a obra Como eles agiam, de Carlos Fico (2001), na qual se pode encontrar, mediante detalhada documentação, a reconstituição do processo de formação e a explicitação destas estruturas, burocrático-policiais e totalitárias, em seu modo de funcionamento.

4. A exceção brasileira e as consequências do perfeito cumprimento da profecia da violência sem trauma aparente

Como observa Edson Teles (2010, ps. 299-300), os militares instauraram, desde o início, um regime que optou por reprimir brutalmente os opositores e praticar violações de direitos humanos. Para tanto, milhares de pessoas tiveram seus direitos políticos e civis cassados, uma nova Constituição foi outorgada (1967) e a censura foi estabelecida. A democracia, que havia durado apenas dezenove anos, substituída por um Estado autoritário fundado sob a Doutrina de Segurança Nacional,21 21 Como explica Glenda Mezarobba (2010, p. 7), “Assim como outros países da região, na segunda metade do século passado o Brasil também foi governado por militares que usurparam o poder e operavam dentro de uma estrutura ideológica compartilhada, da doutrina de ‘Segurança Nacional’, no cenário internacional da Guerra Fria. Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a ‘ordem’ em seu território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas ideias”. proclamando um regime de exceção legitimado em uma situação de emergência e dotado de “força de lei” revolucionária.

Tratou-se, com efeito, de um corte radical, o qual mudaria de vez a lógica da exceção. Pois, a partir do golpe, entrou em cena uma nova “fúria”: conforme a formulação de Pilar Calveiro, entrou em cena o exercício do “poder desaparecedor”, poder este responsável por mandar prender e mandar desaparecer enquanto política de Estado, o qual exigia, por sua vez, esquadrões, casas e voos da morte. Esta transformação “furiosa” do poder e da política, que possui como principal figura o desaparecimento forçado de pessoas, desde o início desnorteou – e continua desnorteando - os primeiros observadores. Nesse sentido, ainda no início dos anos 1980, podia-se encontrar um perplexo Paul Virilio, referindo-se às ditaduras do Cone Sul como o laboratório de um novo tipo de sociedade, isto é, como “sociedades do desaparecimento”,22 22 Nas palavras de Virilio (1984, p. 85, grifo nosso): “Este fenômeno entretanto esclarece práticas terroristas bem como o terrorismo estatal que se desenvolveu na América do Sul com a técnica dos desaparecimentos. Não mais a prática dos campos de concentração, cercos de estilo alemão, mas sim o desaparecimento de pessoas. Prestidigitação. Mágica social. É a sociedade do desaparecimento”. “[...] onde os corpos agora, além do mais – e sabemos tudo o que este ‘mais’ significa’ -, precisam desaparecer” (ARANTES, 2010ARANTES, Paulo E. 1964, o ano que não terminou. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 207).

Portanto, em uma espécie de apropriação inversa da “Vontade Geral” democrática (pois, para os militares, a “Vontade Geral” foi representada sob o signo da “Segurança Nacional”), foi impossibilitado o exercício da política, e a tortura e o aniquilamento físico do adversário tornadas práticas preferenciais. Além disso, do terror, utilizaram três recursos: a destituição pública de lideranças e grupos políticos próximos à população, a delação secreta para a intimidação social como um todo e a substituição da política pela polícia. Deste modo, por meio de uma mescla de terror estatal, fascismo e monarquia medieval, os militares produziram uma inversão ideológica sobre a representação, de forma que “não é por ser representante que alguém governa, mas, ao contrário, é porque governa que é representante” (CHAUI, 2017CHAUI, Marilena. A tortura como impossibilidade da política. In: CHAUI, Marilena. Sobre a violência. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017., p. 132). E, para Marilena Chaui (2017CHAUI, Marilena. A tortura como impossibilidade da política. In: CHAUI, Marilena. Sobre a violência. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017., p. 132), esta concepção de representação é relevante para se compreender o porquê de a tortura ter sido institucionalizada, como efetivamente foi, durante o regime civil-militar:

Se governar transforma alguém em representante, então é preciso saber o que esse alguém representa. Representa o Estado e, por meio dele, o governo, o qual, representando-se a si mesmo, identifica-se com a Vontade Geral, isto é, com a nação sob o signo da Segurança Nacional. Uma vez que representam a Segurança Nacional, os membros do governo consideram-se investidos do direito e do dever de defende-la e, para essa defesa, institucionalizaram a tortura. Dessa maneira, recuperam do terror, do fascismo e da monarquia por direito divino o poder de vida e morte sobre toda sociedade. Consagram, assim, a impossibilidade da política.

Desta forma, com o objetivo declarado de “livrar o país da ameaça comunista e da corrupção”, a ditadura valeu-se, entre outros expedientes, dos Atos Institucionais (AI) para exercer o poder. Foram expedientes que ora se deram de forma institucional, ora se impuseram apenas pela força, pois, conforme dizem Safatle e Teles (2010SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. Apresentação. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 11), uma “das características mais decisivas da ditadura brasileira era sua legalidade aparente23 23 Uma característica comum e necessária em se tratando de regimes ilegais e de exceção, como escreve Hannah Arendt (1999, p. 167), sobre a Alemanha Nazista: “Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada no tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade”. ou, para ser mais preciso, a sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência24 24 Em oposição a outras ditaduras latino-americanas, as quais não tiveram esta preocupação, como na Argentina, na qual não houve praticamente participação do judiciário no regime opressivo. Na Argentina os tribunais apareciam apenas para negar habeas corpus e para dar cobertura para o terror estatal, sendo que o modus operandi das forças de segurança para eliminar a dissidência se deu quase que inteiramente de forma extrajudicial. Pode-se dizer, nesse sentido, em comparação com o Brasil e o Chile, que a ditadura Argentina foi a mais radical entre as três ditaduras, a que mais desdenhou das tradicionais restrições jurídicas ao Poder Executivo (PEREIRA, 2009, ps. 205-206). Isso não significa, no entanto, que o autor esteja fazendo alguma concessão ao regime, pois, conforme escreveu em outro lugar, “To compare Brazil’s military regime with the more violent and less judicialized regimes in the southern cone is not to attempt to rehabilitate it. By no stretch of the imagination was it a genuinely constitutional regime with anything approaching a rule of law. It was clearly a dictatorship. A high degree of arbitrariness governed the treatment of political prisoners, and there was little separation of powers, allowing the executive to change the rules of the game at will” (PEREIRA, 2005, p. 156). : manteve em um primeiro momento a Constituição, embora esta estivesse de fato suspendida, tendo em vista que atos de força ilegais se impunham rotineiramente;25 25 Por exemplo, o que relatam Safatle e Teles (2010, p. 11, grifo nosso): “Tínhamos eleições com direito a partido de oposição, editoras que publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto, governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo, sabíamos que era tudo isto que estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico. Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros apreendidos, as músicas censuradas, alguém desaparecia. Em suma, a lei era suspensa”. mas estava suspendida também formalmente, embora não completamente, pois os atos institucionais impostos pelos militares encontravam-se, juridicamente e hierarquicamente, acima dela.26 26 Vera Karam de Chueri e Heloísa Fernandes Câmara (2015, p. 265) demonstram bem essa situação de, para usar a expressão das autoras, “(des)ordem constitucional”. Conforme argumentam, “Essa relação dúbia entre Constituição e atos institucionais gerou uma curiosa resposta teórica, a de que os atos institucionais eram considerados leis superiores à própria Constituição, na medida em que poderiam alterá-la. [...] os atos institucionais tiveram ciclos distintos, o que expressa que a legalidade autoritária seguiu um padrão de distensão e recrudescimento, assim como o regime, ou seja, a legalidade autoritária foi ad hoc”. Além disso, dentro da relação, às vezes conflitiva, entre os atos institucionais e Constituição, o STF foi muitas vezes chamado a decidir, mas em nenhum momento discutiu sobre a validade dos atos institucionais ou de suas prescrições, atendo-se a decidir com base em critérios interpretativos qual deveria prevalecer, se Constituição ou AI. Havia, dentro do STF, ideólogos da ditadura, a exemplo do Ministro Carlos Medeiros Silva, o qual defendia a hierarquia do ato institucional como lei constitucional temporária, o qual, em caso de conflito com a Constituição de 1946, deveria sobre ela prevalecer.

Governando principalmente por meio dos Atos Institucionais e dos decretos-leis, no âmbito ideológico da Doutrina de Segurança Nacional, o regime funcionou de forma anômala e (des)ordenada. Sobre o decreto-lei, pode-se dizer que ele é a norma mais representativa do estado de exceção. Conforme Giorgio Agamben (2005, ps. 60-61), no sentido técnico, o sintagma “força de lei” não se refere à lei, mas justamente àqueles decretos que têm, como se diz, força de lei, decretos que o poder executivo pode, em algumas hipóteses, particularmente no estado de exceção, promulgar. É por meio dele que decretos e outras disposições que não são formalmente leis adquirem, no entanto, sua “força”. Como diz o autor, o estado de exceção “[...] define um ‘estado da lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos que não tem valor de lei adquirem sua ‘força’”. Entende-se, assim, como atos de força e violência podem ser cometidos corriqueiramente no estado de exceção, pois ele é fundamentalmente um espaço anômico, no qual o que está em jogo é uma força de lei sem lei (e que deveria ser escrita, portanto, força de lei).

O estado de exceção, para Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 15), não é um direito especial (como o direito da guerra), mas sim a suspensão da própria ordem jurídica, o que define seu próprio patamar ou conceito limite. Para o autor, a história do instituto reside, a partir da sua criação, na sua progressiva emancipação a respeito de contextos e situações de guerra, para se converter em um instrumento extraordinário da função de polícia que exercem os governos, inclusive nas democracias contemporâneas. Nesse sentido, tinha-se, inicialmente, dois paradigmas, o do estado de sítio (que funcionava inicialmente pela extensão em âmbito civil dos poderes que são da esfera da autoridade militar em tempos de guerra) e o da suspensão da constituição (ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais). Todavia, com o tempo, ambos os institutos acabaram convergindo para um único fenômeno jurídico, este que chamamos de estado de exceção (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 16-17).

Assim, não há dúvidas de que o regime civil-militar brasileiro funcionou eminentemente no âmbito do estado de exceção, mas que, entretanto, peculiarmente, atuou por meio do entrelaçamento de mecanismos advindos dos dois paradigmas.27 27 Poder-se-ia objetar a essa leitura, em oposição à ideia do estado de exceção, aproximando mais o regime brasileiro e os atos institucionais no âmbito das leis de “plenos poderes” (que deriva da noção de plenitudo potestatis, do direito canônico), mediante as quais se ampliam os poderes governamentais e, particularmente, ao fato de se atribuir ao executivo o poder de promulgar decretos com força de lei. Para Agamben (2005, p. 17), isto é um erro, o qual deriva do mitologema, análogo à ideia de estado de natureza, de que o estado de exceção implicaria um retorno a um estado original “pleromatico” (no qual não há ainda a distinção entre os diversos poderes, executivo, legislativo, etc). Como demonstra o autor, “o estado de exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico do direito, mas, sim, como um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito” (AGAMBEN, 2005, p. 75). A expressão “plenos poderes” define, portanto, apenas uma das possíveis modalidades de ação do poder executivo durante o estado de exceção, mas com ele não coincide. Com efeito, na história do Brasil, conforme observa Edson Teles (2010, p. 303, grifo nosso), o “Estado de exceção surgiu como estrutura política fundamental, prevalecendo enquanto norma quando a ditadura transformou o topos indecidível em localização sombria e permanente nas salas de tortura”. O “ilocalizável” e indecidível topos da exceção, que opera simultaneamente dentro e fora do ordenamento jurídico, materializou-se, portanto, perfeitamente, tanto na sala de tortura, quanto no não-lugar absoluto do desaparecimento forçado; estes, os dois pilares de uma sociedade do desaparecimento (ARANTES, 2010ARANTES, Paulo E. 1964, o ano que não terminou. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 208).

Isto é verdadeiro levando-se em consideração tanto o período no qual estava formalmente vigente ainda a Constituição de 1945, quanto após a Constituição de 1967, e, em seguida, após também a sua abolição pela Emenda n. 1. Contudo, essa situação fica evidente, em absoluto, após

[...] o AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, o golpe mais certeiro e cruel do regime militar; a ordem mais violenta produzida e imposta pela ditadura. O princípio da supremacia da Constituição que já estava bastante fragilizado e relativizado foi, finalmente, aniquilado. Assim, nem formalmente (já que atos institucionais poderiam alterar a Constituição, por exemplo), e nem materialmente (pois na prática não havia nem separação de poderes e nem proteção aos direitos fundamentais, marcas fundamentais do constitucionalismo moderno) havia prevalência da Constituição (CHUEIRI; CÂMARA, 2015CHUEIRI, Vera Karam de; CAMARA, Heloísa Fernandes. (Des)ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64. Lua Nova, São Paulo, n. 95, p. 259-288, Aug. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452015000200259&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25 Nov. 2019.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 273).28 28 É oportuno observar, contudo, que as autoras discordam da interpretação de que o regime brasileiro estivesse sob um estado de exceção ao modo da definição agambeniana. Conforme escrevem: “Vale dizer, Estado de Direito apenas nominal, sem democracia, não nos exime de situações excepcionais que na sua radicalidade conduzem a um verdadeiro Estado de Exceção. Não no sentido de que nos fala Agamben, mas sim um Estado no qual a Constituição não mais se aplica (ou mal se aplica) e os governantes da hora invocam regras específicas para combater o ‘inimigo’ interno e externo” (CHUEIRI; CÂMARA, 2015, ps. 273-274).

O que se pode chamar de exceção brasileira consistiu, portanto, em uma ditadura que se serviu da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores, em, no mínimo, um arbítrio absolutamente traumático. Nesse tipo de situação, cumprindo as observações de Agamben sobre o estado de exceção – quando diz que “a exceção é o dispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio da própria suspensão” (AGAMBEN, 2005, p. 12) -, nunca se pode dizer quando se está fora da lei, tendo em vista que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer tempo, direito e ausência de direito, dentro e fora da lei. Nesse sentido, é lícito dizer que a verdadeira função da ditadura brasileira foi a de gerir a generalização de uma situação de anomia que foi por ela mesma alimentada (SAFATLE, 2010, p. 251).

Desta maneira, além da legalidade de exceção, o regime fez uso também de diversos outros métodos para punir e perseguir aqueles que eram considerados seus opositores, por meio de instrumentos excepcionais que reduziram ou suprimiram o direito de defesa dos acusados de crimes mediante a doutrina de segurança nacional, os quais tiveram com mais frequência as penas de exílio, a suspensão de direitos políticos, a perda do mandato político ou de cargo público, a demissão ou perda de mandato sindical, a perda da vaga em escola pública ou a expulsão em escola particular e a prisão. Mas, além das detenções arbitrárias, o regime de exceção imposto no país se utilizou também correntemente de toda uma gama de expedientes altamente violentos e insólitos, como a tortura, os sequestros, os estupros e os assassinatos. A pena de morte chegou inclusive a ser formalmente instituída pelo AI-14, embora nunca tenha sido efetivamente utilizada. Não houve a necessidade, pois, para eliminar seus adversários, o governo optou claramente, afinal, por execuções sumárias e a tortura, a qual ocorria sempre às escuras (MEZAROBBA, 2010, ps. 7-8).

Vista por estas lentes, e tendo em mente o plano de fundo ideológico da Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura brasileira parece se encaixar perfeitamente na definição fornecida por Agamben,29 29 Ainda que ele aponte nesta passagem também para um outro problema, que é a presença de mecanismos de exceção mesmo em Estados ditos democráticos. Nesse sentido, escreve Agamben (2005, p. 13) na continuação desta passagem: “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nesta perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. Vale observar que é desta mesma problemática que trata Ruti Teitel (2010, ps. 166-167), quando escreve sobre a terceira fase da justiça transicional, chamada de “estado estável da justiça transicional”, na qual se verifica um esvaziamento da distinção entre guerra e paz, a lei e a sua exceção, por meio da expansão do Direito de Guerra e do incremento na importância do Direito Humanitário. em relação ao que o autor denomina de totalitarismo moderno:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN, 2005, p. 13, grifo nosso).

Foi justamente todo este passado inescrupuloso que, mediante uma transição negociada e extorquida, elidida de mecanismos de justiça transicional, buscou-se apagar da memória nacional. A Lei de Anistia surgiu, com efeito, precisamente para confirmar e reafirmar este esquecimento. Como apontou Safatle (2010, ps. 240-241), contra a vexatória tese de que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso, porém necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática, tese esta que consiste apenas no discreto sintoma de uma profunda tendência totalitária da qual nossa sociedade nunca conseguiu se despir, trata-se de falar, mais apropriadamente, no caso brasileiro, em “amnésia sistemática em relação a crimes de um Estado ilegal”.

Assim, é importante para nossos fins ressaltar, conforme argumenta Teitel (2011, ps. 159-160), que, no âmbito da justiça transicional, o interesse na busca da justiça não declina com o transcurso do tempo. Um dos motivos para isto é que a justiça transicional se relaciona com condições políticas excepcionais (como no caso brasileiro, acima exposto), no qual o próprio Estado está envolvido nos crimes, e a busca da justiça necessariamente aguarda uma mudança de regime (a exemplo do chamado “Efeito Scilingo”, 30 30 Nome que vem de Adolfo Scilingo, ex-capitão da Marinha, condenado a cumprir pena de 640 anos por crimes contra a humanidade durante a ditadura argentina. que faz alusão à reabertura de discussões sobre a justiça a partir da confissão de perpetradores de crimes durantes os regimes militares).

A justiça transicional implica, portanto, um tratamento não-linear da dimensão temporal, pois, como se viu, existe uma complicada relação entre justiça transicional, verdade e história. No discurso transicional, voltar ao passado é entendido como o modo de avançar para o futuro. Há, normalmente, uma noção implícita de uma história progressiva, a qual tem sido contestada pela perspectiva da historiografia intelectual e pela auto-compreensão humana. Contudo, ressalta Teitel, as transições são períodos de ruptura que oferecem uma escolha entre narrativas contestadas. O objetivo paradoxal da transição é, precisamente, o de desfazer a história. A finalidade é reconceber o significado social dos conflitos passados, particularmente o das derrotas, numa tentativa de reconstruir seus efeitos presentes e futuros, motivo pelo qual se pode dizer que as transições apresentam uma escolha de limiar. São, portanto, ocasiões de disputas em torno de narrativas históricas, e, enquanto tal, apresentam o potencial para a criação de contra-histórias (TEITEL, 2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 160-161). O esquecimento, logo, vai diretamente contra todas, das mais modestas até as mais ambiciosas, pretensões da justiça transicional.

Não é por acaso que, neste ponto, a autora faça referência tanto a Foucault, na medida em que a genealogia permite uma leitura não linear e não progressiva da história, quanto também a Walter Benjamin. Em Benjamin, especialmente nas teses Sobre o conceito de história, encontra-se uma das mais potentes críticas a esta historiografia positivista, chamada historicista (do pretenso historiador “neutro”, que narra o passado “tal como ele propriamente foi”), a qual tende a ver a história como um continuum temporal, vazio e homogêneo.31 31 O qual, ao assim se portar, se identifica sempre com os vencedores do turno, como escreve Jeanne Marie Gagnebin (2018, p. 66, grifos da autora): “O autor historicista, para Benjamin, se identifica sempre com o vencedor, na medida em que, ‘pela força das coisas’, é sobre este que existe o maior número de testemunhos e documentos. Essa marcha de vitória a vitória, de triunfo a triunfo, é assimilada ao desenvolvimento necessário da história, como se necessidade histórica e realização efetiva fossem sinônimos”. Para Benjamin, trata-se realmente de não entender o passado como algo completo, fechado e inacessível. Assim, a tarefa do historiador é, na verdade, a de “saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história, uma história a ‘contrapelo’, como diz, ou ainda a história da barbárie, sobre a qual se impõe a da cultura triunfante” (GAGNEBIN, 2018GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. Traduzido por Sônia Sazstein. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 66), ou seja, a sua tarefa é a de redimir o passado, buscando-o, abrindo-o, salvando-o, em uma descoberta que possibilite a redenção dos humilhados, dos desaparecidos, dos mortos, dos torturados, dos esquecidos.

Como escreve Benjamin na Tese VII, o historiador deve “escovar a história a contrapelo”,32 32 Pois, como diz Benjamin (2005, p. 70), sobre a continuidade da opressão no presente, “Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra”. não aderindo ao triunfalismo do presente, pois, sendo os bens culturais do presente o resultado de uma opressão e de uma dominação plenamente realizadas no passado, “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das teses por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 70). Trata-se, portanto, de se voltar à história em prol da verdade e da memória. Assim, contra a violência e a injustiça do esquecimento, as palavras de Jeanne Marie Gagnebin (2010, ps. 185-186, grifo nosso):

Esse passado que insiste em perdurar de maneira não reconciliada no presente, que se mantém como dor e tormento, esse passado não passa. Ele ressuscita de maneira infame nos inúmeros corpos torturados e mortos, mortos muitas vezes anônimos, jogados nos terrenos baldios ou nas caçambas de lixo, como foi o caso dos três jovens do morro da Providência no Rio, em julho de 2008. O silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da ditadura, acostuma a silenciar sobre os mortos e torturados de hoje. Todos encarnam, mesmo que sob formas diversas, a figura sinistra “daquele que é reduzido à vida nua, isto é, de um homem que não é mais homem’ – ou melhor, que pode ser morto sem que seu assassinato seja castigado”, assim a definição do Homo sacer por Giorgio Agamben. O não saber sobre os mortos do passado instaura na memória um lugar de indeterminação cuja transposição atual se encontra nesses espaços indeterminados de exceção, situados no próprio seio do corpo social – e cuja existência nem sequer é percebida. Podemos citar Guantánamo, mas também lugares ditos mais ‘normais’ como os campos de refugiados, as salas de espera para os clandestinos nos aeroportos e, quem sabe, as assim chamadas periferias das grandes cidades.

As considerações sobre a história em Foucault e Benjamin, mas também a partir de uma reflexão sobre a política contemporânea em Giorgio Agamben, parecem, desta maneira, se coadunar inteiramente com os propósitos da justiça de transição, na medida em que promovem uma volta redentora ao passado, não de maneira inócua e inerte, mas de modo a resgatar a memória do esquecimento e, assim, contribuir para o enfrentamento das lutas, necessidades e crises do presente.

Mas, no que tange à transição brasileira, como diz Glenda Mezarobba (2010, p. 12), está claro de que ela foi promovida justamente para evitar que o que hoje se convencionou chamar de mecanismos de justiça de transição pudessem ter tido lugar no início da gestão civil. Esquecimento este que, como se viu, se deu principalmente por meio da Lei de Anistia, a qual, produto do estado de exceção então vigente, foi considerada “recíproca” (referindo-se não somente às vítimas do regime opressor, mas também aos próprios opressores). Desta forma, apesar da lei não ter anistiado os crimes dos torturadores e de seus mandantes, na prática acabou impedindo que eles fossem levados a julgamento, devido a uma redação ambígua e uma conveniente interpretação, mediante a qual considerou-se a tortura como um crime conexo aos crimes políticos cometidos pelos dissidentes, de tal forma que lhes foram garantidas a impunidade (TELES, 2011TELES, Janaína de Almeida. Os trabalhos da memória: Os testemunhos dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In: Psicologia, violência e direitos humanos. Conselho Regional de Psicologia da 6ª região, Karen Meira Dotto, Paulo Cesar Endo, et al (Orgs.). São Paulo: CRP SP, 2011., p. 114).

A Lei da Anistia ficou, portanto, radicalmente distante de se associar aos objetivos que envolviam o seu movimento reivindicatório e sequer atendeu as principais reclamações dos perseguidos políticos, frustrando uma verdadeira luta, a qual começou a ser travada quinze anos antes da promulgação da lei e que paulatinamente passou a envolver e mobilizar grande parte da sociedade brasileira. Ficaram excluídas do escopo da legislação determinadas manifestações de oposição ao regime, classificadas como terrorismo e práticas enquadradas em atos de exceção, como os chamados crimes de sangue [novamente, que atingiram apenas a oposição, mas não os próprios agentes criminosos de Estado], e foram contemplados apenas aqueles indivíduos que não haviam sido condenados previamente pela ditadura, a qual duraria ainda mais seis anos (MEZAROBBA, 2010, p. 10).

Desta forma, ao invés de uma verdadeira justiça de transição, o que ocorreu no Brasil foi apenas uma lenta transição democrática negociada, uma espécie de “acordo” entre elites, que

[...] pode ser resumido como um compromisso dos militares de se retirarem gradualmente da política, retraindo-se até o ponto de seu papel político do início da República: a de garantidores, em última instância, de ordem pública, ou seja, da estabilidade das instituições políticas republicanas. Por sua vez, as elites civis aceitariam os termos da avaliação feita pelos militares a respeito do período pós-64: tratou-se de um período excepcional, em que os militares intervieram na política para “salvar” as instituições republicanas, no qual houve ações “excessivas” cometidas de parte a parte (leia-se dos militares e dos militantes de esquerda). Para o encerramento desse período, deveria haver o “perdão recíproco”, sem a apuração das violações, nem mesmo com o objetivo humanitário de fornecer às vítimas e seus familiares relatos para que pudessem conhecer e elaborar a memória daqueles acontecimentos ou para recuperar os corpos das pessoas mortas ou desaparecidas. Esse limite tinha o evidente objetivo de evitar que fossem levantadas informações sobre os agentes das violações (IBCCRIM; SABADELL; ESPINOZA MAVILLA, apud MEZAROBBA 2010, p. 11).

Claramente, o acordo nacional em torno de uma pacificação em direção à democracia não passou de uma imposição do governo militar, no desiderato de deixar impunes os agentes públicos responsáveis por crimes como tortura, assassinatos, desaparecimentos forçados, dentre outros. O único pré-compromisso aqui vislumbrado, pode-se dizer, é aquele que garante aos torturadores a anistia irrestrita, um acordo entre a “linha dura” dos militares e o governo para impor um silêncio sobre o passado, uma verdadeira regra-mordaça, a qual continuaria a surtir seus efeitos amnésicos anos a fio33 33 Opção, vale lembrar, escolhida e reforçada novamente pelo judiciário brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, convocado a analisar sobre uma possível revisão da Lei da Anistia, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, em 2010, acabou optando mais uma vez pela tese do esquecimento. Mas, por outro lado, como se sabe, “[...] a Corte Interamericana não só não reconheceu os efeitos jurídicos da lei [de Anistia] como condenou o Estado brasileiro por não ter investigado nem punido os responsáveis pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado durante a repressão a um foco de guerrilha rural no período 1972-1974” (GÓMEZ, 2012, p. 272). (CHUERI; CÂMARA, 2015, p. 278).

Isso não significa, no entanto, que não existiram esforços que sucederam em conseguir, em alguma medida, reparações para as vítimas e seus familiares, ao longo do fim da ditadura até a contemporaneidade. Importantes iniciativas existiram, especialmente em tempos mais recentes, e merecem ser aqui citadas: a Lei da Anistia (que, apesar de todos os seus problemas, permitiu o retorno daqueles que estavam vivos e, assim, puderam retornar do exílio); a Comissão de Mortos e Desaparecidos (1995); a edição da Lei n. 10.559/2002, que deu início a várias atividades ligadas à memória e à verdade; a Comissão de Anistia (2001-2009); e, por fim, os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que, após dois anos e sete meses intensos de trabalho, entregou seu relatório final. O relatório final tem três volumes, sendo que o primeiro relaciona-se às atividades da Comissão, versando sobre as graves violações de direitos humanos e recomendações; o segundo é dedicado aos textos dos grupos de trabalho e comissões internas da CNV (tratam sobre diferentes temas: militares, trabalhadores, indígenas, mulheres, homossexuais, universidades, igrejas, dentre outros); e o terceiro volume, por sua vez, concerne às 434 vítimas reconhecidas, de acordo com os estudos atuais, da repressão do Estado. Sabe-se, no entanto, que este número é muito inferior ao número real de vítimas, especialmente levando em consideração os desaparecidos no período da ditadura (BITTAR, 2017BITTAR, Eduardo C. B. A ditadura militar e as violações de direitos humanos. In: BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017., ps. 399-401).

A existência da CNV foi extremamente importante por ter consolidado um mecanismo de justiça de transição, um efetivo e significativo mecanismo, pois inscreve na história institucional do país uma parte da memória da repressão ocorrida. O Relatório Final trouxe também Conclusões e Recomendações, no qual se pode ler que durante o regime civil-militar brasileiro foram inegavelmente cometidos: a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias, a tortura, o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro; a repressão e eliminação de opositores políticos, convertidos em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas pela presidência da República e dos ministérios militares, logo, uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro; condutas ilícitas que se enquadram como crimes contra a humanidade, os quais se configuram por serem atos desumanos, cometidos em contexto de ataque contra a população civil, de forma sistemática ou generalizada e com o conhecimento dessa abrangência por parte de seus autores, como as detenções ilegais e arbitrárias, a tortura, as execuções, os desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres, os quais atingiram homens, mulheres, crianças, adolescentes e idosos, vinculados aos mais diferentes grupos sociais, como trabalhadores urbanos, camponeses, estudantes, clérigos, dentre tantos outros; graves violações de direitos humanos, portanto, as quais persistem sistematicamente até os dias atuais, e que resultam, em grande medida, do fato de que as imensas violações cometidas no passado não foram verificadas, nem adequadamente denunciadas, nem seus autores responsabilizados, criando, assim, condições para sua perpetuação (BRASIL, 2014BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014., ps. 962-964).

Mas - e esta é a petitio principii deste ensaio, a qual espera-se ter sido confirmada -, apesar de todos os avanços, considera-se que, de modo geral, a justiça transicional no país foi altamente insuficiente e deficitária.34 34 Nesse sentido, José Maria Goméz (2012, p. 272): “De todo modo, após 26 anos de iniciada a redemocratização do sistema político, e em razão de um conjunto de características singulares (transição pactuada sob forte tutela militar, continuísmo e nula vontade política das elites dominantes de revisar o passado, resistência ostensiva das Forças Armadas, isolamento social e político dos organismos de direitos humanos, estendida cultura do esquecimento, etc.), o Brasil continua a ser, sobretudo quando comparado a outros países do Cone sul, o processo mais impune e amnésico da região”. O eco da voz dos mortos e desaparecidos que nunca serão encontrados, a injustiça da impunidade dos criminosos do regime ilegal, a indevida reparação das vítimas e seus familiares, em suma, a insidiosa violência da amnésia coletiva, permite que toda a opressão do passado continue ressoando no presente. Porém, o problema não é apenas este, pois, segundo Safatle (2018, ps. 59-60), o Brasil é antes de tudo uma forma de violência, um país fundado por um tipo de violência que funciona na base da administração do desaparecimento e do direito de matar. Esta é a sua verdadeira forma de governo, uma atualização do secular poder soberano e seu direito de vida e morte. Conforme diz o autor, essa lógica encontrou sua forma mais bem-acabada no governo na ditadura militar, mas não se restringe apenas a ela:

Pois a ditadura militar brasileira foi a consolidação de um modelo de gestão sempre presente na história nacional, mas que a partir de então ganharia estruturas e aparatos institucionais que se mostraram invulneráveis, mesmo em tempos de “redemocratização”. Este é um dos pontos mais impressionantes dos últimos trinta anos no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas de desaparecimento permaneceram intocadas, seja nos governos FHC, seja nos governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica de “segurança nacional” que ficou imune a toda revisão. Foi a natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e morte sobre a população que pairou para além das modificações político-eleitorais. Os governos passaram, mas a gestão do desaparecimento ficou (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., ps. 60-61).

A nosso ver, uma das principais causas desta continuidade da violência relaciona-se precisamente com o obsoleto processo transicional pelo qual o país passou, isto é, pela quase inexistente adoção e aplicação das medidas propostas pela justiça de transição no país após a redemocratização. O que fica comprovado, por sua vez, sobretudo pelo fato de que, como aponta Safatle, (2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., p. 65), o Brasil foi o único país da América Latina no qual os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar,35 35 Em relação a isto, é especialmente importante os estudos da cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da universidade de Minnesota. De acordo com a sua pesquisa, realizada em diversos países, dentre eles o Brasil, contrariamente ao corrente argumento de que a retomada dos crimes do passado cometidos por regimes ditatoriais poderiam ser danosos às instituições democráticas, diz a autora que “Our research shows that holding human rights trials has not undermined democracy or led to an increase in human rights violations or conflict in Latin America” (SIKKINK; WALLING, 2007, p. 428). E, mais especificamente, de maneira a corroborar nosso argumento quanto a localização da manutenção e aumento da violência no Brasil tendo como uma de suas mais eminentes e prováveis causas nosso deficitário e virtualmente inexistente processo transicional, escreveu a autora o seguinte, em The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics: “In Brazil, for example, the lack of any punishment for past state officials for violations during the dictatorship may have contributed to an atmosphere of impunity that feeds continuing high levels of violations there today. Brazil is one of the few democratic countries in the region that receives worse human rights scores today than it did during the military government” (SIKKINK, 2011. p. 158). o que, para ele, serve como “Prova maior da generalização de um modus operandi de exceção agora aplicado de maneira ostensiva à gestão social da população” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2018., p. 65).

Pois, se a justiça de transição poderia sobremaneira ter colaborado com nosso processo transicional, isto se dá porque, como visto, dentre as tarefas da justiça de transição, a qual se instaura sempre após situações de conflito e de violações em massa de direitos humanos, encontram-se: a instauração de políticas de verdade, formação e informação; políticas de julgamento e responsabilização; políticas de reparação e memória; políticas, em suma, que são fundamentais para a construção de um processo de “não retorno” e de uma cultura política contrária à possibilidade de lesões irreparáveis tornarem-se mera expressão do arbítrio do governo, o qual possui a desproporcional força do aparato do Estado e o monopólio da “violência legítima”. Afinal, mais que um dever do Estado Democrático, é um direito da sociedade conhecer sua própria história36 36 Especialmente tendo em vista que, conforme salienta Cláudia Perrone-Moisés (2012, p. 82), “O conhecimento de sua história pertence ao patrimônio comum de cada povo e, a memória coletiva, sendo socialmente construída, deve ser garantida e protegida por essa mesma sociedade. A memória é um bem comum, um dever jurídico, moral e político”. e, desta maneira, com o conhecimento dos arquivos, a visibilização dos fatos ocorridos, a restauração dos resistentes e de seus familiares, a incriminação dos atos e a reparação dos danos, parcelas significativas do processo de convívio com a verdade podem surgir efetivamente uma educação para o não retorno (BITTAR, 2017BITTAR, Eduardo C. B. A ditadura militar e as violações de direitos humanos. In: BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017., ps. 397-398).

Talvez não haja, de fato, em termos de necessidade programática, nenhum imperativo mais necessário que este, o de uma educação para o não retorno, uma educação eminentemente crítica, avessa à continuidade da violência e da barbárie. Pois, conforme assinala Eduardo Bittar (2014, ps. 13-14), diante deste complexo caldo histórico, permeado de autoritarismo, desigualdade e violência, não bastam a pura postura do cultivo da impessoalidade da legislação e a universalidade dos valores liberais. Pensar o desafio democrático exige, necessariamente, o cultivo de valores que permitam a potencialização de novos patamares de socialização, o que implica uma dimensão central para esta educação, na medida que, ao afirmar a importância da consciência crítica e histórica, plena de memória da ausência de cidadania, representa uma reação ao modelo de sociedade que consente com a cotidianidade da barbárie.37 37 Barbárie que está sempre presente; seja aquela verificada nos lagers nazistas, seja aquela dos porões da ditadura, mas que, de toda forma, ecoa no relato de Theodor Adorno (1995, p. 119): “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. [...] Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geraram esta regressão. É isto que apavora”.

Assim, e somente assim, poderemos nos encaminhar para uma efetiva e verdadeira reconciliação, possibilitando que identifiquemos as mais diferentes manifestações negativas de toda uma detestável herança para, desta forma, frustrar a profecia da violência sem trauma e conseguir também, quem sabe, definitivamente, nos livrar do que resta da ditadura.

5. Considerações finais

A justiça transicional refere-se à concepção de justiça associada a períodos de grande mudança política, mais especificamente à transição de regimes violentos e opressores, como regimes ditatoriais, nos quais se verificam sistemáticos abusos de direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social, como o genocídio e a guerra civil, para regimes democráticos, e às respostas que podem e devem ser dadas no âmbito jurídico para enfrentar os crimes cometidos por estes regimes.

Com essa finalidade, foi desenvolvida pela teoria e prática internacional, segundo uma divisão genealógica de diferentes ciclos e etapas críticas, uma série de estratégias que os Estados devem adotar no sentido de promover uma transição bem-sucedida, isto é, de uma maneira na qual certos requisitos de justiça sejam cumpridos, para que se alcance uma possível pacificação e reconciliação. Dentre estas estratégias, encontram-se, entre as principais: a identificação e julgamento dos perpetradores de abusos de direitos humanos; o estabelecimento de formas de investigação do passado, como as comissões da verdade; o desenvolvimento de programas de reparação para as vítimas e os familiares das vítimas de abusos; iniciativas de memória e lembrança das vítimas; a promoção de reformas e expurgos nas instituições públicas responsáveis pelos abusos, como a polícia e as forças armadas; dentre outros, sempre com o foco na reparação das injustiças do passado e na tentativa de prevenção contra futuras violações.

No âmbito da justiça transicional, uma característica fica imediatamente latente: para uma transição adequada, o que não pode ocorrer de maneira alguma são processos que impliquem no mero esquecimento. Nesse sentido, o caso brasileiro se mostra paradigmático, tendo em vista que o Brasil foi o Estado que realizou de maneira mais profícua a profecia da violência sem trauma aparente: após 21 anos de atuação de uma ditadura civil-militar instalada após um golpe de Estado, a qual, utilizando-se de uma legalidade e diversos mecanismos de exceção, promoveu um assalto altamente violento e sistemático contra a própria população, com o cometimento de diversos crimes, como a censura, o exílio, o sequestro, a tortura, o estupro, a execução sumária, o desaparecimento forçado e a ocultação de cadáver, ao invés de se buscar meios de reparação das vítimas, de persecução dos agentes de estado criminosos e da reconstituição da verdade e da memória... Silêncio. Apenas uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, para opressores e oprimidos, e uma absoluta amnésia coletiva.

Por meio da tese de que o esquecimento seria o doloroso preço a pagar por uma reconciliação possível e para o retorno à democracia, uma transição negociada e extorquida foi promovida, a qual se deu por meio da Lei da Anistia, uma verdadeira autoanistia promovida pelo regime ilegal antes deste deixar o poder. Desta forma, o caminho escolhido pelo país contrariou todas as ambições, das mais modestas até as mais ambiciosas, da justiça de transição. Como resultado, verifica-se um saldo de históricas e irreparadas injustiças, da impossibilidade de exorcismo de um sempiterno autoritarismo nas relações sociais no Brasil, da normalização da violência e dos expedientes da ditadura, a exemplo da tortura, no cotidiano da democracia brasileira.

Importantes avanços foram promovidos nos últimos anos, porém, perpetua-se ainda um resto altamente insidioso e perigoso da ditadura, o qual necessita ser inteiramente abolido, para que novos caminhos no sentido da democracia, do respeito da alteridade e de maiores níveis de justiça social sejam, finalmente, alcançados. Isto, todavia, somente poderá ser alcançado se a memória dos abusos do passado forem devidamente reparadas, se as vozes dos humilhados e oprimidos saltarem da escuridão dos porões da ditadura para a claridade da memória e da verdade, se uma educação para o não retorno for efetivamente imposta, a partir da valorização da democracia e do respeito aos direitos humanos. E, nesse desiderato, conforme o exposto neste ensaio, parece que a justiça transicional tem muito a oferecer.

  • 1
    Para uma história completa da origem, usos e implicações da justiça de transição, consultar o artigo How “Transitions” Reshaped Human Rights: A Conceptual History of Transitional Justice, de Paige Arthur (2009), publicado na Human Rights Quarterly, vol. 31, n. 2.
  • 2
    Quanto a isto, as observações de Ruti Teitel (2002, p. 20): “In the contemporary moment, international law is frequently invoked as a way to bridge shifting understandings of legality”; e, também, o seguinte: “Whereas international law preserves that ordinary understanding of the rule of law as settled law, it also enables transformation. In so doing, it mediates the transition. International law principles serve to reconcile the threshold dilemma of law in periods of political transformation” (TEITEL, 2002, p. 21).
  • 3
    Isso não significa, contudo, que importantes críticas não possam ser feitas sobre a natureza e os limites da justiça transicional. Não é este o foco desta pesquisa. Porém, para uma análise prenhe e rigorosa sobre estas questões, verificar Gómez (2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., ps. 277-284).
  • 4
    Não será empreendido aqui um julgamento sobre a adequabilidade da apropriação feita pela autora a respeito da genealogia foucaultiana. Nos interessa, nesse momento, apenas seguir a sua proposição, a qual Teitel denomina genealógica, pois ajuda sobremaneira no entendimento das principais características e momentos da justiça transicional. De qualquer forma, a autora faz referência direta, sobre a matriz intelectual da sua genealogia, ao texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, de Foucault, que pode ser encontrado entre nós na coletânea Microfísica do Poder (2016). Sobre a noção de genealogia em Foucault, para Edgardo Castro (2009CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: Um percurso pelos seus ternas, conceitos e autores. Tradução de lngrid Müller Xavier. Revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009., p.185), “[...] a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de investigação para incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e, sobretudo, a relação não discursividade/discursividade. Em outras palavras, para analisar o saber em termos de estratégia e táticas de poder. Nesse sentido, trata-se de situar o saber no âmbito das lutas. Uma apreciação correta do trabalho genealógico de Foucault requer seguir detalhadamente sua concepção das relações de poder. As lutas não são concebidas, finalmente, como uma oposição termo a termo que as bloqueia, como um antagonismo essencial, mas como um agonismo, uma relação, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e reversível. Nessa perspectiva, se poderia falar de uma genealogia dos saberes no âmbito do que Foucault chama governamentalidade”.
  • 5
    É interessante notar, contudo, que esta proposição de Teitel não é unânime. Paige Arthur é uma grande crítica desta inclusão. Criticando a posição tanto de Teitel quanto a de Jon Elster, escreve Arthur (2011, p. 80): “Assim, para Ruti Teitel, o Tribunal de Nuremberg é um importante momento para a primeira ‘fase’ da justiça de transição, mesmo que nenhum dos atores envolvidos o tivesse descrito desta forma. Tampouco teriam esses atores, necessariamente, atribuído os mesmos significados para o que eles estavam fazendo da maneira como Teitel e Elster fizeram”. No que tange a Jon Elster (2004)ELSTER, Jon. Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., Arthur (2011, p. 81) o acusa de cometer um forte anacronismo no que tange à sua caracterização da justiça de transição como uma questão perene, atemporal, em seu livro “Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective”, no qual o autor remonta a presença da justiça de transição já na Grécia antiga. Em seguida, adiciona que o método genealógico de Teitel se sai melhor em termos de anacronismo, porém, comete ainda o erro de imputar ideias de “justiça de transição” a atores que muito provavelmente não as tiveram, particularmente nas suas discussões logo após a Segunda Guerra Mundial.
  • 6
    O Tribunal de Nuremberg, apesar das suas limitações, seletividades e irregularidades inerentes a uma espécie de “justiça dos vencedores”, indubitavelmente representou um ponto de inflexão no Direito Internacional. Ele abriu caminho para a tensão-enfraquecimento do princípio clássico de soberania e ao surgimento de uma jurisdição de pretensão universal, identificando-se, assim, como um dos vetores e principais fontes da “revolução dos direitos humanos” que marcou a ordem normativa internacional pós-1945 (GÓMEZ, 2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 265).
  • 7
    Como bem observou Gómez (2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., ps. 264-265), uma justiça internacionalizada que estava inicialmente, ao fim da segunda guerra, sob o forte impacto moral na opinião pública das imagens e relatos dos sobreviventes dos campos de concentração alemães. Nesse contexto, seguiu-se a instalação não apenas do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, mas também o de Tóquio, que tinham como objetivo julgar os membros do alto comando político-militar das potências vencidas, pela perpetração de crimes de guerra, crimes contra a paz e “crimes contra a humanidade”, este último uma figura nova do Direito Internacional, que definia uma forma específica de criminalidade de Estado, dissociada do contexto estrito de guerra, em relação ao qual os responsáveis não poderiam alegar o princípio da legalidade prévia, nem o de obediência devida, menos ainda o de não ingerência nos assuntos internos do Estado.
  • 8
    Teitel toma aqui como principal referência a obra do historiador americano Samuel P. Huntington (1991)HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman, OK and London: University of Oklahoma Press, 1991., com o livro “The Third Wave: Democratization in The Late Twentieth Century”. A ideia da “terceira onda” diz respeito aos movimentos de democratização nos países do leste europeu, tendo em vista a dissolução da União Soviética, e da América Latina, após décadas de interrupções constitucionais e golpes militares.
  • 9
    Um excelente exemplo para ilustrar esta situação são os chamados “Tribunais Gacaca”, voltados muito mais para um paradigma restaurativo que retributivo, no âmbito do projeto de reconciliação nacional da Ruanda, após o genocídio ocorrido em 1994. Seu principal objetivo, conforme Kubai (2007KUBAI, Anne. Between justice and reconciliation: The survivors of Rwanda, African Security Review, v.16, pp. 53-66, 2007. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10246029.2007.9627634>. Acesso em: 26 out. 2020.
    https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
    , p. 57), “[...] is to promote reconciliation by providing a platform for victims to express themselves, encouraging acknowledgments and apologies from the perpetrators, and facilitate the coming together for victims and perpetrators ‘on the grass’”. Para uma completa revisão da experiência Ruandesa, ver Anne Kubai (2007)KUBAI, Anne. Between justice and reconciliation: The survivors of Rwanda, African Security Review, v.16, pp. 53-66, 2007. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10246029.2007.9627634>. Acesso em: 26 out. 2020.
    https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
    .
  • 10
    Problemático, pois, como escreve Teitel (2011TEITEL, Ruti. Genealogia da Justiça Transicional. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011., ps. 167-168): “A expansão da justiça transicional para incluir o problema do terrorismo, torna-se problemática pelo uso inadequado de analogias entre terrorismo e guerra ou crises políticas. A justiça transicional tende a olhar o passado para responder ao último conflito e, como consequência, não se adapta facilmente para ser usada como modelo para garantir segurança no futuro. Qualquer intenção de generalizar a partir de situações excepcionais pós-conflito, a fim de orientar uma política, é extremamente problemática”.
  • 11
    Talvez o maior exemplo desta situação seja a África do Sul, onde o foco se deu mais na reconciliação, com a Comissão de Reconciliação e Verdade. A Comissão optou pelo entrelaçamento entre a busca pela verdade e o perdão pela anistia, com a apuração das violações de direitos humanos do regime racista do apartheid por meio da narrativa das vítimas e, também, por meio da confissão dos responsáveis pelos crimes, cujas punições seriam trocadas pela anistia diante da confissão completa e verdadeira. Para Edson Teles, tem-se aí, paradoxalmente, talvez o maior limite e, ao mesmo tempo, o maior triunfo da experiência sul-africana: “[...] ao trocar o ilícito, os crimes contra a humanidade, pelo lícito, o amparo da anistia, sob a condição da verdade, a nova nação sul-africana iniciou a reconciliação, ao mesmo tempo em que deixou de punir os responsáveis pelos crimes do passado. Foi o momento inaugural das novas relações democráticas pela suspensão dos atos de justiça” (TELES, 2010TELES, Edson. Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 314).
  • 12
    Isso fica claro, sobretudo, a partir do relato de Juan Mendez: “Nesse sentido, tudo o que fazemos – justiça, verdade, medidas de reparação – tem de estar inspirado pela reconciliação, mas a reconciliação verdadeira, não a falsa reconciliação que na América Latina se pretendeu como desculpa para a impunidade” (MEZAROBBA, 2007, p. 171).
  • 13
    Pois, como será demonstrado ao longo do ensaio, no caso brasileiro a anistia “[...] igualou as violações de direitos humanos praticadas pelo Estado através de seus agentes aos atos cometidos por cidadãos ou grupos de cidadãos contra a ditadura militar. Vale dizer, a intenção dos militares era a promoção pelo Estado de uma autoanistia. Ela autorizaria o esquecimento dos crimes cometidos pelos cidadãos contra o Estado, como também dos crimes cometidos pelo Estado contra seus cidadãos, não importando se estes violaram os direitos humanos. Anistia de mão dupla. Anistia que possibilitou ao Estado o autojulgamento, princípio este rejeitado pelo direito(CHUEIRI; CÂMARA, 2015CHUEIRI, Vera Karam de; CAMARA, Heloísa Fernandes. (Des)ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64. Lua Nova, São Paulo, n. 95, p. 259-288, Aug. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452015000200259&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25 Nov. 2019.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    , p. 281, grifo nosso).
  • 14
    Um excelente relato sobre a conjuntura político-social da época pode ser encontrado no ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, presente na obra O pai de família e outros estudos, de Roberto Schwarz (2008)SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.. Conforme escreve o autor, “O povo, na ocasião, mobilizado, mas sem armas e organização própria, assistiu passivamente a troca de governos. Em seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução de organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc” (SCHWARZ, 2008SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 71).
  • 15
    Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2017CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 23 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 155): “Pelo lado da direita, o golpismo não era novidade. Desde 1945, liberais e conservadores vinham tentando eliminar da política nacional Vargas e sua herança. O liberalismo brasileiro não conseguiu assimilar a entrada do povo na política. O máximo que podia aceitar era a competitividade entre setores oligárquicos. O povo, representado na época pela prática populista e sindicalista, era considerada pura massa de manobra de políticos corruptos e demagogos e de comunistas liberticidas. O povo perturbava o funcionamento da democracia dos liberais. Para eles, o governo do país não podia sair do controle de suas elites esclarecidas”.
  • 16
    Este é o motivo pelo qual até hoje as Forças Armadas empregam o termo “revolução” para se referir ao golpe. Isso decorre do primeiro ato institucional, que na sua “Introdução” dizia: “A revolução vitoriosa [...] é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte”. Desta maneira, eles procuraram dar legitimidade ao sistema e institucionalizar a repressão (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 456).
  • 17
    Conforme expõem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, ps. 456-457), era de repressão que se tratava, e o AI-1 facilitou as condições para o expurgo no serviço público, o que se deu mormente por meio das Comissões Especiais de Inquérito, de natureza administrativa, em todos os níveis de governo, e dos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), para investigar as atividades de funcionários na administração pública. De acordo com as autoras, entre 1964 e 1973 milhares de brasileiros foram atingidos pelos expurgos, sendo que estima-se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura (apenas o AI-1 teve como alvo 2990 cidadãos), e nos quartéis os expurgos atingiram as três Forças e remeteram 1313 militares para a reserva.
  • 18
    Sobre o SNI, diz ainda Fausto (2018FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 3. ed. atual. e ampl. 1 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 259): “Na prática, transformou-se em um centro de poder quase tão importante quanto o Executivo, agindo por conta própria na ‘luta contra o inimigo interno’. O general Golbery chegou mesmo a tentar justificar-se, anos mais tarde, dizendo que sem querer tinha criado um monstro”.
  • 19
    Sobre isto, as palavras de Eduardo Bittar (2017BITTAR, Eduardo C. B. A ditadura militar e as violações de direitos humanos. In: BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017., p. 390, grifo nosso): “Se a formação de uma esfera pública midiática é de fundamental importância para a vida política dos cidadãos, e se a cultura política que possui passa de modo volumoso pelos instrumentos de comunicação populares à disposição, percebe-se o quanto era nevrálgico para o regime, em função de sua sustentabilidade, controlar o exercício da cidadania pelo controle do poder comunicativo dos profissionais letrados e que a exerciam, especialmente, a função de jornalistas. Assim, a censura fazia parte da arquitetura do regime autoritário”.
  • 20
    Sobre isto, merece citação a obra Como eles agiam, de Carlos Fico (2001)FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001., na qual se pode encontrar, mediante detalhada documentação, a reconstituição do processo de formação e a explicitação destas estruturas, burocrático-policiais e totalitárias, em seu modo de funcionamento.
  • 21
    Como explica Glenda Mezarobba (2010, p. 7), “Assim como outros países da região, na segunda metade do século passado o Brasil também foi governado por militares que usurparam o poder e operavam dentro de uma estrutura ideológica compartilhada, da doutrina de ‘Segurança Nacional’, no cenário internacional da Guerra Fria. Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a ‘ordem’ em seu território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas ideias”.
  • 22
    Nas palavras de Virilio (1984, p. 85, grifo nosso): “Este fenômeno entretanto esclarece práticas terroristas bem como o terrorismo estatal que se desenvolveu na América do Sul com a técnica dos desaparecimentos. Não mais a prática dos campos de concentração, cercos de estilo alemão, mas sim o desaparecimento de pessoas. Prestidigitação. Mágica social. É a sociedade do desaparecimento”.
  • 23
    Uma característica comum e necessária em se tratando de regimes ilegais e de exceção, como escreve Hannah Arendt (1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 167), sobre a Alemanha Nazista: “Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada no tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade”.
  • 24
    Em oposição a outras ditaduras latino-americanas, as quais não tiveram esta preocupação, como na Argentina, na qual não houve praticamente participação do judiciário no regime opressivo. Na Argentina os tribunais apareciam apenas para negar habeas corpus e para dar cobertura para o terror estatal, sendo que o modus operandi das forças de segurança para eliminar a dissidência se deu quase que inteiramente de forma extrajudicial. Pode-se dizer, nesse sentido, em comparação com o Brasil e o Chile, que a ditadura Argentina foi a mais radical entre as três ditaduras, a que mais desdenhou das tradicionais restrições jurídicas ao Poder Executivo (PEREIRA, 2009PEREIRA, Anthony W. Sistemas judiciais e repressão política no Brasil, Chile e Argentina. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009, Vol.1., ps. 205-206). Isso não significa, no entanto, que o autor esteja fazendo alguma concessão ao regime, pois, conforme escreveu em outro lugar, “To compare Brazil’s military regime with the more violent and less judicialized regimes in the southern cone is not to attempt to rehabilitate it. By no stretch of the imagination was it a genuinely constitutional regime with anything approaching a rule of law. It was clearly a dictatorship. A high degree of arbitrariness governed the treatment of political prisoners, and there was little separation of powers, allowing the executive to change the rules of the game at will” (PEREIRA, 2005, p. 156).
  • 25
    Por exemplo, o que relatam Safatle e Teles (2010SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. Apresentação. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 11, grifo nosso): “Tínhamos eleições com direito a partido de oposição, editoras que publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto, governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo, sabíamos que era tudo isto que estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico. Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros apreendidos, as músicas censuradas, alguém desaparecia. Em suma, a lei era suspensa”.
  • 26
    Vera Karam de Chueri e Heloísa Fernandes Câmara (2015, p. 265) demonstram bem essa situação de, para usar a expressão das autoras, “(des)ordem constitucional”. Conforme argumentam, “Essa relação dúbia entre Constituição e atos institucionais gerou uma curiosa resposta teórica, a de que os atos institucionais eram considerados leis superiores à própria Constituição, na medida em que poderiam alterá-la. [...] os atos institucionais tiveram ciclos distintos, o que expressa que a legalidade autoritária seguiu um padrão de distensão e recrudescimento, assim como o regime, ou seja, a legalidade autoritária foi ad hoc”. Além disso, dentro da relação, às vezes conflitiva, entre os atos institucionais e Constituição, o STF foi muitas vezes chamado a decidir, mas em nenhum momento discutiu sobre a validade dos atos institucionais ou de suas prescrições, atendo-se a decidir com base em critérios interpretativos qual deveria prevalecer, se Constituição ou AI. Havia, dentro do STF, ideólogos da ditadura, a exemplo do Ministro Carlos Medeiros Silva, o qual defendia a hierarquia do ato institucional como lei constitucional temporária, o qual, em caso de conflito com a Constituição de 1946, deveria sobre ela prevalecer.
  • 27
    Poder-se-ia objetar a essa leitura, em oposição à ideia do estado de exceção, aproximando mais o regime brasileiro e os atos institucionais no âmbito das leis de “plenos poderes” (que deriva da noção de plenitudo potestatis, do direito canônico), mediante as quais se ampliam os poderes governamentais e, particularmente, ao fato de se atribuir ao executivo o poder de promulgar decretos com força de lei. Para Agamben (2005, p. 17), isto é um erro, o qual deriva do mitologema, análogo à ideia de estado de natureza, de que o estado de exceção implicaria um retorno a um estado original “pleromatico” (no qual não há ainda a distinção entre os diversos poderes, executivo, legislativo, etc). Como demonstra o autor, “o estado de exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico do direito, mas, sim, como um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito” (AGAMBEN, 2005, p. 75). A expressão “plenos poderes” define, portanto, apenas uma das possíveis modalidades de ação do poder executivo durante o estado de exceção, mas com ele não coincide.
  • 28
    É oportuno observar, contudo, que as autoras discordam da interpretação de que o regime brasileiro estivesse sob um estado de exceção ao modo da definição agambeniana. Conforme escrevem: “Vale dizer, Estado de Direito apenas nominal, sem democracia, não nos exime de situações excepcionais que na sua radicalidade conduzem a um verdadeiro Estado de Exceção. Não no sentido de que nos fala Agamben, mas sim um Estado no qual a Constituição não mais se aplica (ou mal se aplica) e os governantes da hora invocam regras específicas para combater o ‘inimigo’ interno e externo” (CHUEIRI; CÂMARA, 2015CHUEIRI, Vera Karam de; CAMARA, Heloísa Fernandes. (Des)ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64. Lua Nova, São Paulo, n. 95, p. 259-288, Aug. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452015000200259&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25 Nov. 2019.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    , ps. 273-274).
  • 29
    Ainda que ele aponte nesta passagem também para um outro problema, que é a presença de mecanismos de exceção mesmo em Estados ditos democráticos. Nesse sentido, escreve Agamben (2005, p. 13) na continuação desta passagem: “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nesta perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. Vale observar que é desta mesma problemática que trata Ruti Teitel (2010, ps. 166-167), quando escreve sobre a terceira fase da justiça transicional, chamada de “estado estável da justiça transicional”, na qual se verifica um esvaziamento da distinção entre guerra e paz, a lei e a sua exceção, por meio da expansão do Direito de Guerra e do incremento na importância do Direito Humanitário.
  • 30
    Nome que vem de Adolfo Scilingo, ex-capitão da Marinha, condenado a cumprir pena de 640 anos por crimes contra a humanidade durante a ditadura argentina.
  • 31
    O qual, ao assim se portar, se identifica sempre com os vencedores do turno, como escreve Jeanne Marie Gagnebin (2018GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. Traduzido por Sônia Sazstein. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 66, grifos da autora): “O autor historicista, para Benjamin, se identifica sempre com o vencedor, na medida em que, ‘pela força das coisas’, é sobre este que existe o maior número de testemunhos e documentos. Essa marcha de vitória a vitória, de triunfo a triunfo, é assimilada ao desenvolvimento necessário da história, como se necessidade histórica e realização efetiva fossem sinônimos”.
  • 32
    Pois, como diz Benjamin (2005BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das teses por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 70), sobre a continuidade da opressão no presente, “Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra”.
  • 33
    Opção, vale lembrar, escolhida e reforçada novamente pelo judiciário brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, convocado a analisar sobre uma possível revisão da Lei da Anistia, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, em 2010, acabou optando mais uma vez pela tese do esquecimento. Mas, por outro lado, como se sabe, “[...] a Corte Interamericana não só não reconheceu os efeitos jurídicos da lei [de Anistia] como condenou o Estado brasileiro por não ter investigado nem punido os responsáveis pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado durante a repressão a um foco de guerrilha rural no período 1972-1974” (GÓMEZ, 2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 272).
  • 34
    Nesse sentido, José Maria Goméz (2012GÓMEZ, José Maria. Justiça transicional, humanitarismo compassivo e ordem global liberal pós-guerra fria. In: Direitos Humanos – Justiça, Verdade e Memória. Bethânia Assy, Carolina de Campos Melo, João Ricardo Dornelles e José Maria Gómez (coord.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012., p. 272): “De todo modo, após 26 anos de iniciada a redemocratização do sistema político, e em razão de um conjunto de características singulares (transição pactuada sob forte tutela militar, continuísmo e nula vontade política das elites dominantes de revisar o passado, resistência ostensiva das Forças Armadas, isolamento social e político dos organismos de direitos humanos, estendida cultura do esquecimento, etc.), o Brasil continua a ser, sobretudo quando comparado a outros países do Cone sul, o processo mais impune e amnésico da região”.
  • 35
    Em relação a isto, é especialmente importante os estudos da cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da universidade de Minnesota. De acordo com a sua pesquisa, realizada em diversos países, dentre eles o Brasil, contrariamente ao corrente argumento de que a retomada dos crimes do passado cometidos por regimes ditatoriais poderiam ser danosos às instituições democráticas, diz a autora que “Our research shows that holding human rights trials has not undermined democracy or led to an increase in human rights violations or conflict in Latin America” (SIKKINK; WALLING, 2007SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. “The Impact of Human Rights Trials in Latin America”, in Journal of Peace Research, vol. 44, no. 4, 2007, pp. 427–445. JSTOR, www.jstor.org/stable/27640539. Accessed 10 Mar. 2020., p. 428). E, mais especificamente, de maneira a corroborar nosso argumento quanto a localização da manutenção e aumento da violência no Brasil tendo como uma de suas mais eminentes e prováveis causas nosso deficitário e virtualmente inexistente processo transicional, escreveu a autora o seguinte, em The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics: “In Brazil, for example, the lack of any punishment for past state officials for violations during the dictatorship may have contributed to an atmosphere of impunity that feeds continuing high levels of violations there today. Brazil is one of the few democratic countries in the region that receives worse human rights scores today than it did during the military government” (SIKKINK, 2011SIKKINK, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics. Nova York: W. W. Norton, 2011.. p. 158).
  • 36
    Especialmente tendo em vista que, conforme salienta Cláudia Perrone-Moisés (2012, p. 82), “O conhecimento de sua história pertence ao patrimônio comum de cada povo e, a memória coletiva, sendo socialmente construída, deve ser garantida e protegida por essa mesma sociedade. A memória é um bem comum, um dever jurídico, moral e político”.
  • 37
    Barbárie que está sempre presente; seja aquela verificada nos lagers nazistas, seja aquela dos porões da ditadura, mas que, de toda forma, ecoa no relato de Theodor Adorno (1995ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Léo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995., p. 119): “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. [...] Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geraram esta regressão. É isto que apavora”.
  • A construção histórica é dedicada à memória dos sem nome. Walter Benjamin

6. Referências Bibliográficas

  • ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Léo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
  • AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
  • ARANTES, Paulo E. 1964, o ano que não terminou. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • ARTHUR, Paige. Como as “Transições” Reconfiguraram os Direitos Humanos: Uma História Conceitual da Justiça de Transição”. In: Justiça de transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (coord.). Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011.
  • ________. How “Transitions” Reshaped Human Rights: A Conceptual History of Transitional Justice. Human Rights Quarterly, Volume 31, Number 2, May 2009, pp. 321-367. Disponível em: <http://www.qub.ac.uk/Research/GRI/mitchell-institute/FileStore/Filetoupload,697309,en.pdf>. Acesso em: 21 out. 19.
    » http://www.qub.ac.uk/Research/GRI/mitchell-institute/FileStore/Filetoupload,697309,en.pdf
  • BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das teses por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • BICKFORD, Louis. Verbete “Transitional Justice”. In: Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. 3 vol. Edited by Dinah L. Shelton. Detroit, MI: Macmillan Reference, 2005.
  • BITTAR, Eduardo C. B. A ditadura militar e as violações de direitos humanos. In: BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
  • ________. Decreto no. 8.243/2014 e os desafios da consolidação democrática brasileira, in Revista de Informação Legislativa, ano 51, Número 203, Brasília, Senado Federal, Secretaria de Editoração e Publicações, Julho/Setembro, 2014, ps. 07-38.
  • BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
  • BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014.
  • CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 23 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2020
  • Aceito
    30 Out 2020
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