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Liberdade de Expressão: Teorias, Fundamentos e Análise de Casos

Freedom of Expression: Theories, Foundations and Case Analysis

Resumo

O artigo versa sobre o direito fundamental à liberdade de expressão. Busca delimitar sua extensão e aplicação na jurisprudência norte-americana e brasileira. Apresenta as principais teorias desenvolvidas pelos juristas norte-americanos a esse respeito, assim como as críticas e desafios que estas enfrentam. A partir dessa revisão bibliográfica, aponta os argumentos que fundamentam esse direito, assim como as hipóteses que o desafiam, dentre eles, o discurso de ódio, pornografia, fake news, e a obrigatoriedade da exibição de alguns conteúdos. Além de uma abordagem dogmática, é realizada também uma analítica, com o estudo de alguns casos das principais cortes dos Estados Unidos e do Brasil, ao final do que é desenvolvido um estudo comparativo entre as decisões dos dois países. A conclusão obtida é que a proteção concedida pelo Estado brasileiro à liberdade de expressão não é pautada em critérios decisivos claros, estando, portanto, sujeita a um elevado grau de imprecisão e insegurança.

Palavras chave:
Liberdade de expressão; Direitos fundamentais; Direito comparado

Abstract

In this paper, we investigate the fundamental right to free speech, its extension and applicability in the American and Brazilian jurisprudence. To do so, we present a literature review of the main theories developed by American jurists, as well as the critics and challenges that they face. Through these elements, we discuss a set of arguments that support the right to free speech and some opposite hypothesis that challenge its content, such as hate speech, pornography, fake news, and the obligation to exhibit some sensible contents. Following this dogmatic approach, we provide an analysis of some cases of the main courts of the United States and Brazil, developing a comparative study between the decisions taken in these countries. Further, we conclude that the protection granted by the Brazilian state to freedom of expression is not based on clear decisive criteria and is therefore subjected to a high degree of inaccuracy and insecurity.

Keywords:
Free speech; Fundamental rights; Comparative Law

1. Introdução

A liberdade de expressão é um direito complexo. Ela traz em seu âmago as liberdades de manifestação do pensamento, imprensa, reunião e até mesmo a liberdade religiosa. A liberdade de expressão permeia e sustenta a sociedade democrática em todas as suas esferas. Como abordar um tema tão amplo e controverso? Para orientar essa discussão, apresentaremos aqui três teorias que justificam a proteção da liberdade de expressão, com a exposição de seus principais fundamentos e bases históricas. São elas as teorias da verdade, da autonomia individual e, enfim, a democrática.

Nesse percurso, são exploradas as perspectivas de seus defensores, assim como os desafios enfrentados para sua aplicação. Analisadas essas teorias, serão tematizados dois julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América: o caso Whitney v. California, no qual o Justice Louis Brandeis defende de maneira quase idealista o direito à liberdade de expressão, e o caso New York Times Co. v. Sullivan, que toca o problema das fake news e sua relevância para o debate acerca da proteção da liberdade de expressão. Esses julgamentos foram selecionados tendo em vista a sua importância histórica e também as suas consequências teóricas e dogmáticas, que persistem até os dias atuais.

Apresentados os casos, serão tecidos comentários sobre a aplicação das teorias em relação a problemas reais e a proteção conferida pela Suprema Corte à liberdade de expressão. Nesse ponto, foram selecionados dois julgados do Supremo Tribunal Federal brasileiro (ADI’s 4.923 e 4.451), que enfocam o papel do Estado como garantidor do direito de manifestação do pensamento. Analisa-se, neste ponto, se há coesão entre essas decisões, procurando um critério geral que as oriente. Finalmente, será apresentada uma comparação entre o direito brasileiro e o americano no que diz respeito à amplitude da proteção e aos fundamentos teóricos e constitucionais da liberdade de expressão.

2. Teorias da liberdade de expressão

2.1 Teoria da verdade

A liberdade de expressão é tão antiga quanto os direitos fundamentais, mas suas características e fundamentos são relativamente novos. Só no início do século XX essas questões foram amplamente debatidas e tomaram a feição atual. Antes disso, a regulação da liberdade de expressão era comum e a censura, largamente permitida, em especial quando se defendia os interesses governamentais. Prova disso foi a chamada Lei de espionagem (Espionage Act), promulgada em 1917, logo após os Estados Unidos entrarem na Primeira Guerra Mundial. Essa Lei sofreu diversas modificações, sendo que uma das principais ocorreu em 1918, com a aprovação do Ato de Sedição (Seditious Act). O propósito dessa legislação é conhecido: o objetivo da Lei de proibir críticas ao governo e sua participação na guerra.1 1 Esse ponto foi salientado por Garret, para quem: "Qualquer um que por sua vontade, profira, escreva ou publique texto desleal, profano, abusivo ou difamatório sobre o nosso governo, constituição, forças armadas ou seus uniformes ou bandeiras, ou texto que pretenda incitar ou encorajar resistência aos Estados Unidos da América ou promover a causa de seus inimigos ou advogar ou defender qualquer um dos atos acima é denunciado pela emenda da Lei de espionagem” (1919, p. 71).

A criminalização das críticas, como ocorreu com o chamado “seditious libel”, significou uma grande repressão aos direitos fundamentais, e demonstrou que a Primeira Emenda, promulgada no ano de 1791, ainda não era amplamente aplicada em solo norte-americano. A partir da aprovação e aplicação da Lei de espionagem, foi criada uma imunidade do governo às críticas. O povo não tinha mais o direito de questionar e discordar do que era decidido por aqueles no comando do governo. Essa ideia e suas consequências hoje parecem inconcebíveis quando se pensa nos EUA, um país que possui como seu ideal a liberdade e participação do povo em sua governança.

Fato é que, com a aprovação da Lei de espionagem, o governo norte-americano proibiu qualquer manifestação crítica a respeito da guerra ou do recrutamento, não mais importando se havia ou não a intenção de causar dano real aos governantes ou terceiros. Sob essa lógica, equiparou-se a tentativa de causar dano ao discurso e, com isso, proibiu-se a linguagem em si mesma, o que deixou evidente a necessidade de se estabelecer limites ao que o governo poderia fazer em nome do poder e interesse público. Nessa linha, em 1919, por ocasião do julgamento do caso Abrams v. United States, alguns aspectos paradigmáticos da liberdade de expressão foram delineados. Jacob Abrams, juntamente com outros quatro imigrantes russos, foram presos e condenados por violarem o Ato de Sedição de 1918. Seu crime foi distribuir pelas ruas de Nova Iorque panfletos que criticavam os EUA por enviarem tropas para a Rússia, além de incentivarem os trabalhadores da indústria de munições a fazer uma greve em protesto contra a campanha norte-americana na primeira guerra. Após a sua condenação em primeira instância, os réus apelaram, baseando sua defesa na primeira emenda, sob o argumento de que seu direito fundamental à liberdade de expressão havia sido desrespeitado. Alegaram que os atos por eles cometidos seriam irrelevantes, pois sua conduta estaria protegida pelo direito à liberdade de expressão. A própria Lei de sedição, diziam, deveria ser considerada completamente inconstitucional.

Em última instância, sua tese foi negada. Com base nos julgamentos dos casos Schenck v. United States,2 2 No caso Schenck v. United States, julgado em outubro de 1918, membros do partido comunista foram acusados e posteriormente condenados por terem tentado causar insubordinação no exército e marinha, além de obstruírem o recrutamento e alistamento entre os recrutados para o serviço militar. Sua conduta: impressão e circulação de um documento instigando a insubordinação. Mantendo a condenação, a Suprema Corte argumentou que a legalidade do ato depende da situação na qual é realizado, pois, em tempos de paz, não haveria de fato crime, no entanto, em tempos de guerra tais palavras tem a capacidade de criar um perigo claro e iminente, trazendo um mal o qual o Congresso tem o direito de prevenir. Baer v. United States, e Frohwerk v. United States, o juiz Oliver Wendell Holmes entendeu que a proximidade do dano poderia ser equiparada ao crime. A probabilidade de a conduta de Abrams causar dano aos interesses do Estado norte-americano e à campanha da guerra, foi a justificativa para a condenação dos acusados. Porém, tal decisão marcou a origem do famoso teste do perigo claro e iminente, muito mais protetivo à liberdade de expressão se comparado ao seu antecessor, o teste da “bad tendency3 3 Acerca das características e origem histórica deste teste, ver: STONE (2002). , que possibilitava grande cerceamento à liberdade de expressão. Observando a discricionariedade com que estavam aplicando o teste, Holmes logo o alterou, indicando que o perigo além de claro e iminente, deveria ser muito grave.

Diferentemente do que foi decidido em Schenck, ao julgar o caso de Abrams, Holmes foi forçado a avaliar se a primeira emenda permitiria ou não a supressão da liberdade de expressão em um caso de afronta aos interesses do Governo. Não se falava mais, então, em punição de condutas influenciadas por palavras, mas da condenação de ideias e, quanto a esse ponto, a resposta da Suprema Corte foi inequívoca: a Constituição está baseada na igual relevância de todas as ideias, sejam elas contrárias ou favoráveis ao governo, o que exclui a possibilidade de criminalização do simples pensar.

Para resolver tal conflito, Holmes propôs uma teoria para justificar a defesa da liberdade de expressão: a teoria da verdade. A ideia que Holmes propõe está baseada em um experimento social. Um livre mercado de ideias, tal qual imaginado e defendido por John Stuart Mill (2005) e John Milton (2019). Nessa situação de troca livre de ideias e visões de mundo, o valor de verdade de um enunciado deve ser aferido pelo resultado do confronto da ideia nele contida com as ideias que lhe são contrárias. A livre troca de ideias define, assim, o valor da verdade. Para que uma ideia tenha valor e impacto real, ela deve ser o resultado de reflexão coletiva, pois uma verdade autodeclarada nada mais será do que uma falsa verdade.

Post (2000) analisou esse ponto e concluiu que, para essa teoria, a verdade política deve ser determinada pelos cidadãos que participam de uma democracia, por meio da defesa de suas crenças e ações. Não pelo governo ou pelo judiciário. É necessário, por isso, cuidado e discernimento para que não ocorra a censura de ideias minoritárias, pois, mesmo que não aceitas, essas ideias fazem parte do livre mercado e sua censura desvirtuaria o funcionamento do sistema como um todo. A liberdade de expressão e pensamento só existe, sob esse ponto de vista, quando houver a preservação da liberdade daqueles com quem concordamos e também daqueles de quem discordamos. Por isso mesmo, a limitação dessas liberdades, diz Holmes, só deve ocorrer em situações em que esteja comprovada uma ameaça imediata, situação em que a interferência na liberdade se mostra necessária para salvar o país ou o direito de terceiros. Mas existe a dificuldade de se estabelecer quando se verifica um perigo real. A simples intensão de causar dano (bad intention) seria suficiente para justificar a proibição? Isso não equivale a proibir ideias perigosas? Considerando essas questões, Holmes sustentou que havia uma contradição entre o teste do perigo concreto e sua nova teoria para a liberdade de expressão.

Diante da possibilidade de o discurso ser censurado apenas por ter uma potencialidade de causar algum tipo de dano, Holmes percebeu que seria necessária uma maior limitação da regulação estatal à liberdade de expressão. Para ele, mesmo quando verificada uma tentativa da prática de um crime, a punibilidade deveria ser relacionada a situações extremas, não meras perturbações. A defesa de atos criminosos está amparada, portanto, pela liberdade de expressão, desde que o defensor desses atos não incite diretamente a prática dessa conduta. O pensamento de Holmes era complexo e, em alguns pontos, parece até mesmo ser paradoxal. Suas decisões indicam que, a seu ver, além de tentar tornar possível o livre mercado de ideias, o judiciário deveria ter uma preocupação com a proteção dos interesses do Estado, motivo pelo qual, ainda que de forma limitada, ele considerava necessário que o Estado tivesse poder para regular o discurso. Seu pressuposto geral era que o contraste de ideias tem o potencial de revelar a verdade. E todos querem conhecer a verdade, pois ela revela como o mundo funciona. Apesar de ser uma meta válida, ao se especificar quais são as ideias relevantes para definir essa compreensão, muitos pontos de vista são deixados de lado, ocorrendo aqui uma marginalização de discursos, como aqueles que não têm relevância política, ou que assim ainda não tenham sido reconhecidos.

A teoria da verdade abre, portanto, uma brecha, deixando vulneráveis à regulação estatal muitas formas de expressão. Há, como se observa, um juízo de valor sobre quais ideias merecem mais proteção, não se deixando claro quem irá realizar essa seleção. Em meio a essas indagações, é importante questionar: quais são os requisitos sociais da busca pela verdade? Nesse ponto surge uma distância considerável entre os resultados práticos da teoria do livre mercado de ideias e sua formulação abstrata. Nem todos têm igual acesso a esse mercado. E aquele que já tem acesso a ele tem a tendência de silenciar o seu oponente. É errado pensar que o livre mercado de ideias proteja todo o discurso que transmita alguma ideia. Como todo mercado, esse também é seletivo.

Mercados não são neutros, sejam eles de mercadorias ou de ideias. Assim, a proteção pura e simples do mercado de ideias, não só não protege os grupos minoritários, como também não tende a criar um confronto efetivo de visões de mundo, pois nele sempre prevalecerá a visão do grupo dominante.4 4 Nesse sentido, ver: POST, 2000, p. 2366. Cass Sunstein (1993) também vê a aplicação da teoria do livre mercado de ideias como problemática, visto que as condições ideais para a sua aplicação não existem no mundo real. Não há, na realidade, uma distribuição equitativa e clara de informações adequadas para a tomada de decisão. Fora isso, não existe uma garantia de ausência de manipulação da informação, sobretudo quando se considera que a ideia é hoje veiculada por meios eletrônicos que não identificam a sua fonte. Enfim, na realidade da troca de informações eletrônicas, há sempre indivíduos interessados em sustentar o seu próprio ponto de vista, para quem a busca da verdade não passa de um interesse entre outros que devem ser atropelados. No entanto, para Sunstein, ainda que falho, em um sistema em que se valorize o processo deliberativo, os resultados obtidos seriam positivos, pois ao menos parte de um debate seria criado, e a democracia não sobrevive sem debate. A teoria da verdade apresenta, portanto, importantes limitações, mas indica um fundamento claro e direto da liberdade de expressão: ideias são reguladas e combatidas por meio de outras ideias, não com poder ou força. Essa é a origem da liberdade de expressão.

2.2 Teoria da autonomia

Diferentemente da teoria da verdade que entende a liberdade de expressão como um instrumento para maximizar o acesso à verdade, a teoria da autonomia entende que a liberdade de expressão é necessária e valiosa por si só. Também chamada de teoria constitutiva, essa visão foi arduamente defendida por Ronald Dworkin em diversas passagens de sua obra. Para esse autor não é possível existir o respeito da igualdade e da democracia se não há uma participação de todos na formação do juízo moral da sociedade. A liberdade de expressão é, por isso, a única forma de garantir igualdade civil em uma sociedade democrática.

Apesar de não entender as motivações instrumentais (a teoria da verdade, por exemplo) da liberdade de expressão como necessariamente falsas, Dworkin defende que a teoria constitutiva é mais forte, pois é mais ampla e estável. Enquanto as justificativas instrumentais focam o discurso político, a justificativa constitutiva abrange todo o discurso, seja qual for seu conteúdo. Esse contraste de perspectivas pode ser observado ao se analisar a teoria da verdade, que tem como objetivo proteger o discurso capaz de revelar a verdade. Fica, por isso, excluído da proteção o que não se encaixa neste critério. Post, por isso, afirmou que “é impreciso inferir que a teoria do mercado de ideias exige que a Primeira Emenda proteja toda a fala que comunica ideias. Em vez disso, a teoria requer apenas a proteção de discurso que comunique ideias e que esteja embutida nos tipos de práticas sociais que produzam a verdade” (2000, p. 2366).

Ao estender proteção da liberdade de expressão a todo discurso que possibilite a independência moral, a teoria constitutiva abarca também as ideias veiculadas nas artes, em debates sobre questões sociais e pessoais, que de outro jeito ficariam sujeitas a interferência e restrições. Nesse ponto, Dworkin defende que sua teoria é também a mais estável, pois, enquanto a justificativa instrumental protege o discurso pelo resultado da proteção, a teoria constitutiva defende o discurso por si, o que impede qualquer forma de ponderação. Em outros termos, como observou Susan J. Brison (1998BRISON, Susan J.. The autonomy defense of free speech. Etics: The University of Chicago Press, Chicago, v. 108, n. 2, p.312-339, jan. 1998.), a teoria da autonomia é uma teoria “anti-consequencialista”, ao contrário da teoria da verdade e a teoria democrática, já que estas fundamentam a proteção da liberdade de expressão na crença de que a proteção do discurso pode trazer benefícios para a sociedade, enquanto a restrição traz resultados indesejados. Dessa maneira, nas teorias que têm como base a proteção do discurso pelos seus resultados, ou seja, pelas suas consequências positivas ou negativas, o discurso não tem valor próprio, mas um valor reflexo: seu valor depende do resultado que a regulação ou proteção tem para sociedade. Nesse sentido, a ponderação poderia levar a restrição do discurso, caso se entendesse que os resultados dela decorrentes sejam mais benéficos.

Dworkin rejeita essas consequências. Para ele a liberdade de expressão tem um valor próprio, que é crucial para a definição do agir moral inerente à democracia. Não é possível construir a igualdade, muito menos a democracia, se não há a participação de todos na formação da conduta moral. Dessa forma, a liberdade de expressão não se mostra apenas como um instrumento destinado a construir a independência moral dos cidadãos; ela é o fator necessário e constitutivo dessa possibilidade. Existem, portanto, duas condições para que haja uma sociedade democrática: primeiro, os indivíduos devem ser agentes morais independentes; segundo, como decorrência direta da primeira condição, o governo deve tratar os cidadãos como agentes morais independentes. Dessas condições Dworkin retira as seguintes consequências:

Uma comunidade política genuína deve, portanto, ser uma comunidade de agentes morais independentes. Não deve ditar o que seus cidadãos pensam sobre questões de julgamento político, moral ou ético, mas deve, pelo contrário, fornecer circunstâncias que os encorajem a chegar a crenças sobre esses assuntos por meio de sua própria convicção reflexiva e finalmente individual. (DWORKIN, 2005DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral reading of the American Constitution. New York: Oxford University Press, 2005., p. 26)

Ou seja, para que haja autonomia e independência moral as pessoas precisam ser estimuladas a pensar por si mesmas. E o governo não deve interferir nesse processo. Dworkin destaca que, para possibilitar que os cidadãos sejam agentes morais, o governo deve tratar a todos como agentes independentes. O governo não deve censurar o discurso, principalmente no que se trata de questões controversas. É uma escolha individual exercitar esse direito, com independência. Nesse sentido, Levin observou que “depende do indivíduo como, se é que, e até que ponto, ele adota as ideias apresentadas em uma sociedade que protege a liberdade de expressão, e assim, de acordo com o esquema de Dworkin, ao indivíduo cabe definir o quanto ele deseja ser um agente moral” (2009, p.359).

Uma sociedade permanecerá, portanto, democrática mesmo que alguns não exerçam sua liberdade. Mesmo que alguns sejam contrários a essa liberdade. Isso não ocorre quando o governo interfere na liberdade de expressão, já que só é possível a independência moral quando a autonomia é uma opção. Faria, afinal, pouco sentido falar em independência moral sem que houvesse escolhas a serem feitas.

Essa autonomia envolve três esferas distintas: a dos falantes, a dos ouvintes e a dos espectadores involuntários, cada qual com seu interesse. Na primeira esfera, a proteção da liberdade de expressão funciona como obrigação negativa dirigida ao governo. Ela exige que o Estado não interfira no exercício do direito para que, assim, o indivíduo tenha a chance de partilhar com outras pessoas seu ponto de vista. Mas apesar de instintivamente acreditarmos que o foco da liberdade de expressão é o direito de falar, uma faceta importante desse direito foca a autonomia do ouvinte, pois o falante, para que possa falar, deve primeiro poder ouvir e se informar. O direito à livre informação é, portanto, um elemento constitutivo da liberdade de expressão.5 5 Esse aspecto da liberdade de expressão tem sido salientado por diversos Tribunais internacionais, dentre eles, a Corte interamericana de direitos humanos, para quem a liberdade de expressão “não envolve apenas o direito e a liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza” (Caso López Álvarez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Série C N° 141, par. 163). Quando se limita o direito dos ouvintes ao acesso à informação, sua autonomia discursiva fica automaticamente comprometida. Não é possível, portanto, se falar em autonomia enquanto o público não tiver acesso a todos os tipos de ideias. E ocorre uma ofensa à sua autonomia quando o governo restringe o acesso a um discurso, por mais ofensivo ou perigoso que ele seja. Afinal, essa restrição pressupõe que o indivíduo não teria a capacidade de se autodeterminar de acordo com ele. E o governo não pode tirar das pessoas a liberdade de julgar por si mesmas o que consideram bom ou ruim.

Enfim, a terceira esfera - a dos espectadores involuntários - diz respeito aos efeitos que o discurso potencialmente causará na realidade. Avalia-se, então, quem e como os diferentes sujeitos são afetados pela expressão. Caso o efeito seja positivo, a limitação poderia ser danosa. Neste ponto, Brison (2008) salienta que em sua maioria os alvos de discurso de ódio são espectadores involuntários. E desta forma, um sistema que proteja qualquer tipo de discurso, incluindo discurso de ódio, exige que esses alvos tenham mecanismos de defesa próprios, para que sua autonomia não seja afetada.

Levin (2009), por sua vez, conquanto reconheça que a teoria da autonomia tem uma forte sustentação, discorda de Dworkin quanto às consequências de sua teoria. Como já foi observado, para Dworkin é inaceitável a ponderação entre direitos, e toda relativização da liberdade de expressão configura, por isso mesmo, uma violação desse direito fundamental. Levin, no entanto, considera que ao se privilegiar a liberdade de expressão, pode-se chegar a conclusões racistas e sexistas, principalmente quando o direito preterido for o da igual proteção da lei. Nesse sentido, a autora argumenta que discursos de ódio e pornográficos impedem que as pessoas atingidas possam exercer a sua autonomia, sofrendo um efeito silenciador e de subordinação. Para ela, tal forma de discurso altera a própria percepção do público, pois a difusão do ódio e do preconceito torna os atores menos sensíveis aos danos causados as minorias. Seguindo essa linha de pensamento, Levin conclui que certos tipos de discurso violam a própria igualdade, pois estabelecem oportunidades desiguais, criando ou ampliando um efeito de subordinação. Esses discursos devem ser proibidos para que a igualdade seja preservada. É o que ocorre com a pornografia, que por si só já é um instrumento de subordinação, pois constrói a imagem de uma superioridade masculina, o que acarreta em diminuição do status e liberdade ideológica das mulheres. Esse efeito silenciador cria uma base de preconceito e exclusão, que faz com que o discurso das minorias seja desconsiderado ou mesmo não ocorra na prática. O discurso opressor define a opinião sobre as minorias antes que haja sequer a chance de que essas se pronunciem.

Como se pode ver, para Levin o discurso não regulado sempre privilegia as classes mais favorecidas, pois permite a elas reafirmar as ideias historicamente construídas de objetificação, inferioridade e subordinação. Há, contudo, algumas dificuldades importantes nessa tese. A primeira delas decorre da disjunção entre discurso e ação. Se é certo que a ação preconceituosa deve ser combatida, pois afronta parâmetros básicos de igualdade, não se sabe ao certo em que medida o discurso gera essa forma de ação. Butler enfatizou este “gap” entre discurso e ação, chegando à conclusão de que “a possiblidade de uma expressão ser ressignificada em novos contextos depende, em parte, do gap existente entre o contexto e a intenção originários do enunciado e os efeitos que ele produz” (BUTLER, 1997BUTLER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative, New York: routledge, 1997., p. 14). Somado à constatação de que todo texto é passível de interpretação e, portanto, está sujeito à contestação, essa disjunção entre expressão e ação é o que torna possível a discussão, o debate, enfim, a assimilação do discurso agressivo pelos diversos atores sociais. Mais uma vez, a pornografia pode servir de exemplo. É fato, como afirma Levin, que o discurso pornográfico cria um sistema de opressão, em que a imagem e a autoestima feminina são severamente diminuídas. Trata-se, portanto, de um sistema, com raízes políticas, econômicas e sociais, que tem o efeito perverso de excluir a mulher do debate público (MOON, 1954, p.105). Porém, a simples censura dessa espécie de conteúdo pode afetar conteúdos com fundo artístico - seria o caso, por exemplo, do livro Lolita, escrito por Vladimir Nabokov ou o filme “A bela da tarde”, de Luis Buñuel -, e também impedir que movimentos sociais contestadores da moral estabelecida utilize o corpo feminino como instrumento de contestação - foi o que ocorreu no ano de 2017, quando uma série de passeatas do movimento feminista foram duramente reprimidas pelo governo russo.6 6 Esse caso gerou, com boas razões, a condenação do governo russo pela Corte europeia de direitos humanos. A esse respeito, ver a exposição crítica de JOHNSON, 2011.

O caminho da censura pode ter início, portanto, com boas intenções, mas a indeterminação do discurso e a impossibilidade de se antever os efeitos das ideias e palavras geram a possiblidade constante de transformar o adversário político e também a minoria contestadora em inimigos da moral pública. Foi o que ocorreu com uma exposição de arte queer,7 7 Fato relatado em: 'Queermuseu', a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos, reabre no Rio.2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45191250>. Acesso em: 27 ago. 2019. em que uma a obra de arte que apresentava um homem nu, e com as passeatas que defendem direitos reprodutivos de mulheres. Chegou-se, neste último caso, a condenar três participantes da passeata realizada no Estado de São Paulo.8 8 O caso foi amplamente relatado na mídia, como em: Manifestante da Marcha das Vadias condenada por ‘ato obsceno’ tem acesso ao STF negado. 2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/09/03/manifestante-da-marcha-das-vadias-condenada-por-ato-obsceno-tem-acesso-ao-stf-negado/>. Acesso em: 27 ago. 2019. E os exemplos e situações poderiam ser multiplicados: a autora que defende o direito ao aborto, ataca pessoas indefesas e afronta o direito à vida? E o pacifista que utiliza palavras fortes, contrárias à campanha de guerra, afirmando inclusive que “soldados são assassinos” ataca a família de mortos em combate? Esses casos têm um elemento comum. Neles, a busca da proteção de minorias perseguidas se torna o instrumento de silenciamento do pensamento crítico. Eles também mostram que a indeterminação do conteúdo do discurso e a consequente impossibilidade de se distinguir com clareza os limites entre a crítica ácida, que é essencial para o debate democrático, e a injúria a minorias excluídas, que é um ato reprovável, podem levar à repressão das mesmas minorias que se pretendia proteger (WEINSTEIN, 2009, p. 34).

Esses fatores indicam que a regulação geral e a simples censura do discurso agressivo não é uma alternativa aceitável em uma sociedade democrática. Em termos literários, essa conclusão foi apresentada por Ray Bradbury, para quem a eliminação, por determinação estatal, da expressão de ideias que desagradam, ferem ou até prejudicam, não proporciona mais igualdade ou liberdade, mas apenas o silêncio e alienação: “Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do Pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro” (BRADBURY, 2012, p. 83). Isso quer dizer que a espiral gerada pela censura não tem limites nem volta. Uma vez iniciada, ela elimina o pensamento crítico, a possibilidade de autodeterminação e, enfim, as próprias bases do agir democrático, ponto que foi aprofundado pela próxima teoria que fundamenta a liberdade de expressão.

2.3 Teoria Democrática

O que é democracia? A maioria das pessoas concorda que democracia é um sistema de governo, em que o poder é exercido pelo povo. Mas essa é uma definição tão imprecisa quanto irreal. O povo, de fato, não governa. E os governantes, muitas vezes não estão preocupados com os interesses do povo. Enfim, não se sabe ao certo quem é o povo. O que é, então, a democracia? Buscando responder essas perguntas, Alexander Meiklejohn (1948) afirmou que a legitimidade de um governo democrático vem do povo e do fato de o poder exercido pelo governo pertencer aos governados, sendo que, esse exercício deve ocorrer sempre com base no consentimento destes. Entretanto, o mesmo autor observa que há muita incompreensão quanto ao que significa esse consentimento. É preciso diferenciar consentimento de submissão. Nesse ponto, Meiklejohn observa que a submissão vem da obediência de um poder externo. Ela decorre do medo e falta de alternativa do destinatário da ordem, que não tem opção a não ser seguir o comando. É o caso da submissão de um escravo, que apenas obedece às regras impostas pelo seu senhor. Já o consentimento não é imposto. Ele decorre de uma escolha: ceder um poder que é seu. Nesse caso, não há imposições, mas sim em direitos. O povo que consente em ser governado tem o direito e obrigação de cobrar uma boa gestão.

Essa escolha vem de um acordo, no qual homens livres governam e são governados. Afinal, pessoas livres apenas podem ser controladas por si mesmas. Diz, então, Meiklejohn: “homens livres não são não-governados. Eles são governados - por si mesmos” (1948, p. 16). Todavia, para que não reine o caos e a anarquia, esse regime de autogoverno não dá ao cidadão autonomia para se negar a cumprir leis ou regras com as quais ele não concorda. Deve haver um entendimento implícito, de que todos concordam: as regras valem para todos. Através da autocrítica e de restrições contínuas ao exercício do poder, um governo nunca pode exceder sua força a ponto de oprimir o cidadão. Ou seja, “o próprio governo deve limitar o governo, deve determinar o que pode e não pode fazer. Deve certificar-se de que suas tentativas de libertar os homens não resultem em escravizá-los” (MEIKLEJOHN, 1948, p. 13).

Definido o que é o autogoverno, passa-se, então, a analisar como a democracia e a liberdade de expressão se relacionam nesse regime político. A esse respeito, diz a Primeira Emenda da Constituição norte-americana: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”.

Para Alexander Meiklejohn três considerações iniciais devem ser feitas a esse respeito. Primeiro: o sentido da emenda é claro ao dizer que o Congresso não pode legislar cerceando a liberdade de expressão. Não se diz ali que não podem ser editadas leis a respeito da liberdade de expressão e, por isso, leis que aumentem ou enriquecem essa liberdade são autorizadas. Até bem-vindas. Segundo e como complemento da primeira consideração: quando se prevê que o Congresso não pode limitar a liberdade de expressão, qualquer lei que a limite é inconstitucional, sem exceções. A regra vale para todos, tanto em períodos de paz quanto de guerra. Afinal, quem elaborou essa Emenda tinha plena ciência da possibilidade de guerras e, deste modo, caso fosse a intenção de flexibilizar a regra em tais casos, assim teria sido no próprio texto da lei. O terceiro e último ponto apresenta um paradoxo na proteção constitucional da liberdade de expressão. Meiklejohn sustenta que existe uma proibição de cercear esse direito, mas não uma proibição de cercear a expressão em si. Por isso, o governo possui a atribuição e até a obrigação de restringir alguns discursos, tais como difamação e calúnia, por exemplo, atos esses que ameaçam indivíduos e até mesmo a sociedade. Mas a liberdade de expressão é intocável. Para resolver esse paradoxo, o autor propõe uma reflexão a respeito do que significa liberdade de expressão. Ele destaca que a Primeira Emenda não é guardiã do falatório. Ela não exige que todo cidadão se torne uma parte ativa no debate público. O que é protegido pelo direito fundamental é que tudo aquilo que valha a pena ser dito seja dito e ouvido; toda ideia que de alguma forma contribua para o desenvolvimento da democracia. De todo modo, Meiklejohn defende que nenhuma expressão pode ser cerceada em virtude do ponto de vista que o seu autor adota. E, assim, nos casos em que as pessoas sejam impedidas de falar, esse impedimento não pode ser motivado pelo seu conteúdo, mesmo que ele seja considerado falso ou então perigoso.

A necessidade de que todos os pontos de vista tenham a mesma proteção decorre da igualdade, que é um elemento necessário de uma sociedade em que os homens e mulheres se autogovernam. Só os cidadãos livres e autônomos podem julgar o que é injusto, quem é ignorante ou perigoso. Isso significa que todos os pontos de vista devem ser ouvidos. Essa conclusão é reforçada pelo fato de que decidir a priori quem deve falar e quem deve se calar, é fazer uma escolha deficiente e preconceituosa, que carece de informação e reflexão, pois as informações só podem ser avaliadas após o confronto de ideias. Essa forma de limitação das ideias é proibida, pois “é essa mutilação do processo de pensamento da comunidade contra a qual a Primeira Emenda da Constituição é dirigida” (MEIKLEJOHN, 1948, p. 26).

Essa premissa é uma consequência direta do acordo realizado pelos fundadores do Estado norte-americano, acordo que busca atribuir ao povo o autogoverno. Acordo que criou um regime no qual as questões públicas devem ser decididas por todos. Uma democracia. Isso quer dizer que, em um contexto de garantia da liberdade de expressão, todos os pontos de vista, especialmente os mais radicais, os mais perseguidos, os menos aceitos, devem ser garantidos pela ordem constitucional. São justamente essas ideias que necessitam da proteção constitucional - é muito fácil estar de acordo com aquilo que todos aceitam. Mesmo erradas ou inverídicas, mesmo perigosas ou não aceitas, até mesmo aquelas que chocam ou causam repugnância, todas as ideias devem ser protegidas pelo direito constitucional. O sentido da liberdade de expressão está justamente em garantir que essas vozes dissidentes sejam ouvidas9 9 Nesse mesmo sentido, na jurisprudência da Corte Europeia de direitos humanos, ver o julgamento do Caso Handyside v. UK, 24 Eur. Ct. H.R (ser. A) par. 23 (1976). . Ou seja: “ter medo de ideias, qualquer ideia, é ser desqualificado para o autogoverno. A Primeira Emenda condena com sua desaprovação absoluta qualquer supressão de ideias sobre o bem comum. A liberdade de ideias não deve ser cerceada” (MEIKLEJOHN, 1948, p. 27).

Apesar de as teorias da verdade e democrática possuírem grandes diferenças, elas tocam um problema comum: em ambas, existe uma falha em proteger todo o discurso. Nessa linha, constata-se que a teoria democrática é voltada principalmente para proteger o autogoverno e com isso, o processo eleitoral. Discursos considerados irrelevantes ou prejudiciais para a democracia e para o debate público não terão, segundo essa teoria, proteção constitucional. Meiklejohn não deixa claro como deve ser feita a distinção entre o que é relevante ou não no debate político. E isso gera insegurança. Por isso mesmo, ao abordar o teste do perigo claro e iminente de Holmes, Meiklejohn o vê não como uma interpretação da Primeira Emenda, mas como uma exceção de seu conteúdo. A própria Suprema Corte norte-americana viria a negar essa premissa algumas décadas depois, por ocasião do julgamento do caso Brandenburg10 10 Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969). . É necessário admitir, portanto, que essa teoria apresenta limites abstratos imprecisos, para não dizer ambíguos.

3 Análise de Casos

3.1 Casos da Suprema Corte dos Estados Unidos

3.1.1 Whitney v. California

Em abril de 1919 passou a vigorar no estado da Califórnia a Lei do Sindicalismo Criminal, que criou o crime de sindicalismo criminoso. Tal Lei considerava como ato criminoso “qualquer doutrina ou preceito defendendo, ensinando ou auxiliando e encorajando a prática de crime, sabotagem (cuja palavra é definida como significando dano físico intencional e malicioso ou lesão a propriedades físicas), ou atos ilegais de força e violência ou métodos ilegais de terrorismo como meio de realizar uma mudança na propriedade industrial ou controle, ou efetuar qualquer mudança política”. Além disso, a norma considerava responsável e, portanto, punível por tais atos, não apenas quem pessoalmente defendesse tais ideias, mas também aqueles que conscientemente fossem parte de um grupo que o fizesse. De acordo com a segunda seção do documento: “Qualquer pessoa que: (...) 4. Organiza ou ajuda na organização, ou é ou se torna conscientemente membro de qualquer organização, sociedade, grupo ou assembleia de pessoas organizadas ou reunidas para defender, ensinar ou ajudar e estimular o sindicalismo criminal [...] é culpado de um crime e punível com prisão”.

Em novembro de 1919, Anita Whitney11 11 De acordo com Vincent Blasi (1988), Anita Whitney foi uma das pessoas mais importantes a ser presa pela violação da lei de sindicalismo criminoso. Oriunda de uma família proeminente, Whitney passou sua vida lutando por direitos políticos, inclusive fazendo parte da luta sufragista. foi presa pela violação da Lei do Sindicalismo Criminoso, após discursar para o “Women’s Civic Center of Oakland”, tendo como base para sua prisão, sua participação no “Communist Labor Party of California”, o que foi considerado como uma violação da supracitada Lei por ter “ilegalmente, intencionalmente, injustamente, deliberadamente e criminosamente organizado e ajudado na organização, e foi, e é conscientemente um membro de uma organização, sociedade, grupo e assembleia de pessoas organizadas e reunidas para defender, ensinar, ajudar e estimular o sindicalismo criminal”.

Submetida a cinco acusações, Whitney foi condenada por uma delas: a de fazer parte de grupo considerado ilegal, condenação que a sentenciou a prisão. De acordo com Blasi (1988BLASI, Vincent. The First Amendment and the ideal of civic courage: The Brandeis opinion in Whitney v. California. William And Mary Law Review, [s.l.], v. 29, n. 4, p.652-697, 1988.), o pedido inicial de Whitney para fiança foi negado. Ele somente foi aceito após o testemunho de três médicos indicando o grave perigo que sua saúde corria ao continuar presa, o que deu a Whitney o direito de apelar em liberdade.

Inicialmente o recurso foi encaminhado para a Corte distrital de apelações da Califórnia. A defesa afirmou que não havia evidências suficientes para provar que o partido comunista, do qual Whitney fazia parte, havia realizado atos de sindicalismo criminoso. Em paralelo, sua defesa sustentou que não havia sido suficientemente comprovado que essas atividades fossem do conhecimento da apelante. Contudo, a Corte de apelações manteve a condenação com base em um documento do partido que elogiava o I.W.W (Industrial Workers of the World), grupo que defendia o sindicalismo militante. Quanto ao segundo argumento, a Corte entendeu não ser possível que Whitney desconhecesse as atividades criminosas do grupo do qual fazia parte. Afirmou inclusive que esse fato seria comprovado por ela fazer parte da liderança do partido e por ela ter participação ativa da organização da filial em Oakland. Não seria, portanto, um caso de absolvição, visto que a culpa poderia ser presumida pela lei quando cometido deliberadamente o ato criminoso. Whitney recorreu, então, à Suprema Corte do Estado, que não apreciou o caso.

Na primeira vez que o recurso chegou a Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1925, o caso foi extinto sem apreciação do mérito. Ele apenas foi aceito em 1926, em decorrência de uma petição para reabertura. Os advogados de Whitney desenvolveram a sua defesa em três pontos. Primeiro, alegaram que a lei era ineficaz, por ser excessivamente vaga, o que não providencia um padrão específico para definir a culpa. A Corte refutou tal argumento, pois alegou que a Lei era clara, não restando dúvida quanto à definição da conduta criminosa. Nas palavras da Corte: “A linguagem do § 2, subd. 4, da Lei, em que a apelante foi condenada, é clara; a definição de “sindicalismo criminal” específica. A Lei, claramente, atende ao requisito essencial do devido processo de que um estatuto penal seja "suficientemente explícito para informar aqueles que estão sujeitos a ele, que conduta de sua parte os tornará sujeitos às penalidades", e ser expresso em termos que sejam não "tão vagos que os homens de inteligência comum devam necessariamente adivinhar seu significado e diferir quanto à sua aplicação”.

A segunda razão sustentada pela defesa dizia que a Lei violava a igual proteção conferida pela Décima Quarta Emenda, pois ela proibia o uso da violência apenas quando fosse usada para obter a mudança, mas não a violência que fosse utilizada para manter a situação social. A Corte também negou procedência a esse argumento, observando que a lei visava punir qualquer um que defendesse a utilização de violência e meios ilegais, fosse para mudar as condições ou mantê-las. Enfim, a terceira razão e o motivo pelo qual esse caso é tão famoso, é a violação à liberdade de expressão. Quanto a essa razão houve controvérsia na Corte. Parte dos juízes votou pela improcedência, por entender que no caso ocorreu o abuso da liberdade de expressão e que, em relação a esse abuso, o governo teria uma pretensão punitiva de impedir tais condutas, sobretudo quando os atos do acusado causassem distúrbio social, ou incitassem a prática de crime. Acompanhado por Holmes, Louis Brandeis foi contrário ao voto majoritário e argumentou que o governo apenas poderia proibir discurso que defendesse uma forma violenta de revolução se, na situação concreta, esse discurso criasse um perigo claro e iminente que pudesse causar um mal grave ao Estado. Para que a restrição da liberdade de expressão subsista, os limites que definem essa restrição devem ser claramente descritos (BRANDEIS, 1927BRANDEIS, Louis. Whitney v. California, 274 U.S. Supreme Court, 357 (1927)., p. 374).

Brandeis observou que, para se chegar a uma conclusão sobre esses limites, seria preciso questionar o motivo para que a restrição seja uma exceção à proteção da liberdade de expressão, o que deve ocorrer mesmo em casos em que a maioria da população acredite que uma ideia seja falsa ou maligna. Sustenta, então, em uma das defesas mais contundentes que se tem notícia da liberdade de expressão:

Aqueles que conquistaram nossa independência acreditavam que o objetivo final do Estado era tornar os homens livres para desenvolver suas faculdades; e que em seu governo as forças deliberativas deveriam prevalecer sobre as arbitrárias. Eles valorizavam a liberdade tanto como um fim quanto como um meio. Eles acreditavam que a liberdade era o segredo da felicidade e a coragem o segredo da liberdade. (BRANDEIS, 1927BRANDEIS, Louis. Whitney v. California, 274 U.S. Supreme Court, 357 (1927)., p. 375).

Vincent Blasi (1988BLASI, Vincent. The First Amendment and the ideal of civic courage: The Brandeis opinion in Whitney v. California. William And Mary Law Review, [s.l.], v. 29, n. 4, p.652-697, 1988.) sugere que, ao escolher essas palavras, Brandeis quis remeter à quebra com a soberania inglesa, de onde surge o conceito de soberania popular e autogoverno. Disso decorre uma noção fundamental: o Estado não pode se sobrepujar em importância ao indivíduo e os direitos individuais devem ser respeitados mesmo frente às razões de estado. O objetivo do Estado, afinal, é que todos os homens livres se desenvolvam em liberdade.12 12 Eles acreditavam que a liberdade de pensar como você quiser e de falar como você pensa são meios indispensáveis ​​para a descoberta e disseminação da verdade política; que sem liberdade de expressão e reunião a discussão seria fútil; que com elas, a discussão permite uma adequada proteção contra a disseminação de doutrina nociva; que a maior ameaça à liberdade é um povo inerte; que a discussão pública é um dever político; e que isso deveria ser um princípio fundamental do governo americano (BRANDEIS, 1927, p. 375).

Apesar de não ter usado explicitamente a metáfora, Brandeis também se refere indiretamente ao livre mercado de ideias ao falar em descobrir e disseminar a verdade política. No entanto, quando Brandeis se refere à verdade, não o faz no sentido de suscitar a teoria da verdade, mas como parte de sua defesa da teoria democrática. Nesse trecho, Brandeis também oferece o que para ele seria a solução para os problemas causados pela liberdade de expressão. Argumenta que, quando há livre debate, a discussão pública é capaz de se proteger contra ideias falsas ou perigosas. Não haveria, assim, necessidade de que o governo regulasse o discurso, uma vez que o próprio povo realizaria essa tarefa. Desse modo, para Brandeis, a maior ameaça à liberdade não está no governo, mas sim em um povo inerte, pois a “discussão pública é um ‘dever’. É um dever porque a liberdade política é uma condição frágil, facilmente perdida quando suas instituições e tradições caem nas mãos de pessoas inertes” (BLASI, 1988BLASI, Vincent. The First Amendment and the ideal of civic courage: The Brandeis opinion in Whitney v. California. William And Mary Law Review, [s.l.], v. 29, n. 4, p.652-697, 1988., p. 675). Assim como ocorre na teoria desenvolvida por Meiklejohn (1948), em um governo democrático, os governados e os governadores são um só grupo, que são os autogovernados. Sendo assim, quando os homens livres não exercem sua liberdade, quando não se autogovernam, o Estado precisa fazê-lo. Quando isso ocorre, o consentimento do povo em relação ao poder para o Estado não é mais um ato de libertação, mas de submissão.

Eles [os pais fundadores] reconheceram os riscos aos quais todas as instituições humanas estão sujeitas. Mas eles sabiam que a ordem não pode ser garantida apenas pelo medo de punição por sua infração; que é perigoso desencorajar o pensamento, a esperança e a imaginação; que o medo gera repressão; essa repressão gera ódio; que o ódio ameaça a estabilidade do governo; que o caminho da segurança reside na oportunidade de discutir livremente os supostos desentendimentos e os remédios propostos; e que o remédio adequado para os maus conselhos são os bons. (BRANDEIS, 1927BRANDEIS, Louis. Whitney v. California, 274 U.S. Supreme Court, 357 (1927)., p. 375).

Aqui Brandeis parece admitir que a garantia da liberdade de expressão traz sim riscos à ordem pública e ao governo. Mas não existe sociedade que não corra riscos nem governos democráticos que possam anular essa liberdade com base em riscos pressupostos ou abstratos. Por isso, quando em seu voto Brandeis quis incentivar o “pensamento, a esperança e a imaginação”, o fez por pensar que tais qualidades são contagiosas, assim como o ódio, medo e a repressão também são (BLASI, 1988BLASI, Vincent. The First Amendment and the ideal of civic courage: The Brandeis opinion in Whitney v. California. William And Mary Law Review, [s.l.], v. 29, n. 4, p.652-697, 1988.). É, por isso, muito mais seguro para um governo discutir abertamente todas as questões, pois só desse modo as ameaças são combatidas pelo próprio debate e contraposição de ideias positivas. A opinião de Brandeis no caso Whitney é aparentemente ingênua e idealista. Entretanto, esse idealismo advém de uma falta de alternativas: acreditar na razão e no seu poder de libertação é a única alternativa do cidadão que não queira recorrer ao uso da força. Caso não seja dada uma chance à razão e ao debate público, o sistema de governo inevitavelmente estará corrompido, uma vez que o Estado sempre será maior e mais poderoso do que os indivíduos. Restará apenas uma sociedade governada pela força. Nas palavras, que se tornaram clássicas, de Brandeis:

O medo de danos graves não pode justificar a supressão da liberdade de expressão e de reunião. Homens temiam bruxas e queimaram mulheres. É a função da fala libertar os homens da escravidão dos medos irracionais […] Aqueles que conquistaram nossa independência pela revolução não eram covardes. Eles não temiam mudanças políticas. Eles não exaltaram a ordem à custa da liberdade. (BRANDEIS, 1927BRANDEIS, Louis. Whitney v. California, 274 U.S. Supreme Court, 357 (1927)., p. 376-377).

Em seu voto, Brandeis faz, assim, uma celebração da coragem cívica. A liberdade de expressão é o meio de realização dessa coragem e, ao mesmo tempo, ela contribui para o desenvolvimento do caráter político da comunidade. Essa coragem é a virtude máxima de uma democracia, pois “a chave para uma democracia bem-sucedida está no espírito, na vitalidade, na ousadia, na inventividade de seus cidadãos” (1988, p. 686). Homens livres não podem ter medo de mudanças. Ao contrário, devem ter a capacidade de lidar com ela e até antecipá-la. A liberdade de expressão é capaz de trazer essas mudanças. Como observa Blasi (1988BLASI, Vincent. The First Amendment and the ideal of civic courage: The Brandeis opinion in Whitney v. California. William And Mary Law Review, [s.l.], v. 29, n. 4, p.652-697, 1988., p. 692), o debate aberto contra e a favor de ideias que sejam consideradas perigosas ou malignas faz com que a comunidade política seja mais forte, mesmo que temporariamente essas ideias tenham efeitos negativos. É por isso que a autorregulação da liberdade de expressão faz com que os cidadãos se tornem mais capazes. E os únicos sujeitos que estão realmente capacitados para realizar essa tarefa são eles, os cidadãos. Esses são os motivos pelos quais, para Brandeis, a regulação estatal do discurso só pode ocorrer em casos emergenciais. Por regra, a melhor solução é o debate.

3.1.2 New York Times Co. v. Sullivan

Anos 1960. Eclosão do movimento pelos direitos civis. Conflitos sociais e raciais generalizados nos EUA. Nesse contexto, o jornal New York Times publicou um anúncio no qual acusava as autoridades do condado de Montgomery e do Estado do Alabama de violarem direitos civis da comunidade negra. Esse anúncio, que também pedia contribuições para auxiliar com as despesas da defesa de Martin Luther King, que se encontrava preso, continha várias incorreções factuais. Constatando esse fato, o comissário de Montgomery, L.B. Sullivan, propôs uma ação na qual dizia que tinha sido difamado por tal artigo, ainda que não fosse referenciado por nome. Isso porque uma de suas atribuições era realizar a supervisão do departamento de polícia, o que foi especificamente referenciado no artigo. Para fundamentar a ação, Sullivan apontou uma passagem do sexto parágrafo do anúncio, em que o uso do termo “polícia” levaria a entender que se referia a ele por ser o supervisor do departamento de polícia. Com base na premissa de que as alegações poderiam ser entendidas como referências à sua atuação, Sullivan foi autorizado a provar que não tinha participado dos eventos descritos, ressaltando que durante grande parte de tais eventos não tinha sequer tomado posse em seu cargo. Quanto aos danos pecuniários, Sullivan não apresentou qualquer prova de que tenham ocorrido. Pelo contrário, uma de suas testemunhas chegou a afirmar que não acreditou nas afirmações contidas no anúncio, quanto menos acreditava que tais referências fossem destinadas a ele.

Oferecida a chance de retratação, todas as pessoas que tiveram seu nome mencionado no documento negaram terem dado permissão para que estes fossem divulgados ou que tinham conhecimento da sua publicação. Alegaram que não tinham razão para se retratar, visto que não tinham realizado a conduta imputada. O NYT, por sua vez, sustentou que não se retrataria por não entender que o anúncio publicado tivesse relação com a ação de Sullivan. A Corte local entendeu que a difamação por si só já pressupunha prejuízos aos envolvidos, sem que esses precisassem comprovar a culpa ou o dolo dos anunciantes. Sendo assim, os danos compensatórios para Sullivan seriam também presumidos caso ficasse provado que os anunciantes haviam escrito o documento e que este se relacionasse ao comissário. Quanto aos danos punitivos, entendeu-se que a mera negligência não justificava sua aplicação, pois estes estão condicionados à verificação comprovada do dolo.

Em recurso perante a Suprema corte do Alabama, o julgamento foi mantido. O jornal e os quatro envolvidos peticionaram à Corte por meio de um writ of certeriori13 13 Procedimento que faz parte do poder discricionário da Suprema Corte para poder reavaliar decisões de uma corte inferior, averiguando se há erros. , que, aceito, fez com que o caso fosse encaminhado para a Suprema Corte. Em seu julgamento final, a Suprema Corte entendeu que as Cortes do Alabama tinham falhado em proteger os direitos garantidos pela Primeira e Décima Quarta Emendas. Em sua conclusão, a Suprema Corte dos Estados Unidos salientou ainda que, caso respeitadas as devidas precauções, as evidências apresentadas pelo autor não seriam suficientes para fundamentar a condenação.

As decisões das cortes do estado do Alabama foram superadas em dois pontos. Primeiro, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu ser infundada a alegação de que no caso não se aplicava a proteção concedida pela Décima Quarta Emenda, por se tratar de um caso entre particulares. Isso porque o que os autores contestavam era a interferência do Estado em seus direitos, o que torna irrelevante se essa interferência tinha ocorrido no âmbito de um processo civil ou criminal. Segundo, considerou que a Corte local se equivocou ao dizer que as garantias de liberdade de expressão e imprensa não se aplicavam ao NYT pelo fato de as supostas difamações terem ocorrido em um anúncio pago. A publicação motivo de controvérsia, apesar de um anúncio pago, não continha caráter comercial e todo o seu conteúdo, inclusive o pedido de contribuições financeiras, era orientado por questões políticas. Fora isso, o fato de o Times ter recebido para publicá-lo não pode desconfigurar a proteção da liberdade de expressão, sob o risco de desencorajar a imprensa a fazer esse tipo de publicação, o que seria um grande prejuízo para a liberdade de expressão.

A questão central do caso, portanto, é se a liberdade de expressão protege publicações difamatórias contrárias a conduta de funcionários públicos ou membros do governo. Essa era uma pergunta sem precedentes na história norte-americana. O Justice Brennan, que falou pela Corte, defendeu então que é preciso considerar que há um compromisso nacional no sentido de se propiciar o livre debate por meio da proteção da liberdade de expressão.

Assim, consideramos este caso no contexto de um profundo compromisso nacional com o princípio de que o debate sobre questões públicas deve ser desinibido, robusto e aberto, e que pode muito bem incluir ataques veementes, cáusticos e às vezes desagradavelmente afiados ao governo e funcionários públicos [...] O presente anúncio, como uma expressão de queixa e protesto em relação a uma das principais questões públicas do nosso tempo, parece claramente se qualificar para a proteção constitucional. A questão é se ela perde essa proteção pela falsidade de algumas de suas declarações e por sua suposta difamação do reclamado (BRENNAN, 1964BRENNAN, Willian. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. Supreme Court, 254 (1964)., p. 270).

A proteção constitucional não depende da verdade ou popularidade das ideias. Caso contrário, não se trataria de um livre debate, mas de mera doutrinação da ideia aceita como verdadeira e correta. Para que a liberdade de expressão não seja sufocada, a sua proteção deve ser ampla. Assim, mesmo uma declaração falsa deve ser protegida, pois dentro de um debate político que envolve questões controversas muitas vezes são inevitáveis os enganos e os exageros. Não é a validade do discurso em si o que lhe concede proteção, mas sua relevância. Era incontroverso que algumas das afirmações do anúncio não são verídicas. Nele havia, de fato, erros e exageros. No entanto, com as devidas correções, a maioria dos eventos relatados realmente ocorreu. E desconsiderar sua importância por pequenas incorreções, que eram facilmente constatáveis, seria simplista, ingênuo e antidemocrático.

Considerada a ideia de autogoverno, o fato de a reputação de um servidor sofrer com críticas a ele dirigidas não é razão suficiente para justificar a censura. Essa fiscalização contínua do público constitui, na verdade, uma obrigação de todo cidadão e uma exigência da democracia. Na inércia em relação à violação de direitos políticos está a verdadeira causa da abdicação da liberdade. Assim, afastados os motivos pelos quais os responsáveis pelo anúncio poderiam ter seus direitos à liberdade de expressão e imprensa questionados, Brennan lembra que o Ato de Sedição de 1798 foi posteriormente considerado inconstitucional pela Suprema Corte. A premissa que sustenta essa conclusão foi apresentada pelo próprio Madison, para quem a Constituição elegeu como forma de governo uma democracia, do que decorre necessariamente a soberania do povo, não do governo. Consequentemente, o povo tem o direito de falar sobre como o país está sendo governado, inclusive criticando e cobrando os seus governantes. De outro lado, não parece ser necessário e nem sábio que apenas possa ser dito o que seja integralmente verdadeiro, pois pouquíssimas vezes será possível comprovar a verdade de uma crítica ao governo antes de se iniciar o debate com um pouco de especulação. Dessa maneira, observa Brennan que:

O subsídio de defesa da verdade, com o ônus de prová-lo ao réu, não significa que apenas falsos discursos sejam dissuadidos. [...] Sob tal regra, possíveis críticos da conduta de oficiais podem ser dissuadidos de expressar suas críticas, embora acreditem que seja verdade e mesmo que seja verdade, por causa da dúvida se pode ser provado em tribunal ou por medo da despesa de ter que fazer isso. (BRENNAN, 1964BRENNAN, Willian. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. Supreme Court, 254 (1964)., p. 279).

Com base nesses argumentos, a Suprema Corte conclui que, para que possa ser reconhecido o dano indenizável em um caso de difamação de um oficial que se encontre no exercício de suas atribuições funcionais, deve necessariamente ser comprovado o dolo de difamar tal funcionário, seja pelo prévio conhecimento da falsidade dos fatos divulgados, seja pelo imprudente desrespeito de não se importar com a veracidade. Mas, no caso de Sullivan, as Cortes locais apenas exigiam essa comprovação para a aplicação de danos punitivos, considerando, por outro lado, que para a condenação à indenização pelo dano geral bastava a presunção da culpa. A diferença é equivocada, diz Brennan, pois a aplicação da Constituição é igual para ambos os casos. Seja como for, aos membros do júri não foi explicada a diferença entre danos punitivos e danos gerais e, por isso, é impossível saber se a sentença condenatória se referia a um a outro ou a ambos os afetados. Essa incerteza fez a Suprema Corte rever o julgamento.

Em relação especificamente ao caso Sullivan, a Suprema Corte considerou não haver prova suficiente para que fosse considerado o dolo de difamar o comissário. Já no que tange aos peticionários individuais, cujos nomes constavam no documento, a Corte entendeu que mesmo que tivessem autorizado o uso de seus nomes em tal publicação, não havia qualquer evidência de que estivessem cientes de que nela havia acusações inverídicas. O mesmo foi decidido em relação ao NYT, pois em nenhum momento foi comprovado que o jornal tivesse conhecimento prévio de que a publicação continha afirmações substancialmente inverídicas ou informações erradas ou exageradas. Disso decorre a conclusão de que, ao tempo de sua publicação, não havia intenção de difamar a polícia e muito menos Sullivan. Em suma, a falha ao verificar as informações foi suficientemente justificada pela crença dos funcionários do jornal na reputação dos autores do anúncio e da carta de uma pessoa que certificava que as pessoas indicadas na publicação autorizaram a utilização de seus nomes.

Em consequência, a Suprema Corte entendeu que houve, no caso, somente uma conduta negligente dos autores que falharam em verificar melhor as informações divulgadas. Mas o mero descuido não é suficiente para caracterizar dolo ou o total descaso pela verdade. No tocante à alegação de que a publicação atingia pessoalmente Sullivan, a Suprema Corte corretamente considerou essa alegação improcedente, visto que em nenhum momento o documento citou seu nome ou o cargo que ele ocupava. Afirmar que essa crítica pessoal poderia ser subtendida apenas pelo uso das palavras “polícia” ou “eles”, como foi entendido nas cortes inferiores, beira ao absurdo, pois inverte o sentido da proteção da liberdade de expressão: exige que o titular do direito fundamental prove que não tinha intenção de atacar ou caluniar terceiros.

Por fim, o juiz H. L. Black, a quem se juntou o juiz W. O. Douglas, votou por reverter o julgamento, absolvendo os sentenciados. Entretanto, sua justificativa era diversa. Para Black, a Constituição dos EUA fornece proteção absoluta aos indivíduos que manifestem suas opiniões e também ao jornal para publicar críticas ao governo de Montgomery e seus oficiais. Trata-se, portanto, de imunidade absoluta. Black sustentou ainda que a exigência da Corte de que, para sustentar a proibição da expressão, o dolo do autor deve ser comprovado, cria uma forma de proteção fugaz, o que não condiz com o nível de proteção que a Constituição oferece. Em síntese, ainda que alguns tipos de discurso, como a obscenidade e o discurso que intencionalmente, causem distúrbios e, por isso, possam ser excluídos do âmbito de proteção da liberdade de expressão, Black afirma que a liberdade de discutir questões públicas está no âmago dessa proteção, constituindo-se como o tipo de discurso para qual a Primeira Emenda foi criada para proteger. Esse é o mínimo garantido pela Primeira Emenda.

3.1.3 Considerações acerca das decisões

Os casos Whitney e Sullivan são referências fundamentais não só da jurisprudência americana, mas também do estudo da liberdade de expressão. Eles possibilitam verificar como e em que condições ocorreu o desenvolvimento da compreensão da liberdade de expressão. Em Whitney, Louis Brandeis foi a voz minoritária. Seu voto expôs de forma eloquente a importância do debate contundente de ideias e da proteção da liberdade de expressão, mesmo quando este direito é utilizado para propagar ideias falsas ou perigosas. Anos depois, esta tese foi o ponto central da argumentação da Corte, que de forma unânime votou a favor da proteção constitucional do discurso falso que afrontou os oficiais do governo.

A Suprema Corte apresenta aqui decisões contraditórias. Decide de forma diferente questões semelhantes e supera entendimentos por ela mesma consolidados. A liberdade de expressão fomenta a mudança de ideias. E a Suprema Corte faz prova concreta deste fato. No entanto, ao estudar os casos em que isso ocorre, é possível averiguar que essa aparente contradição faz parte de um processo contínuo de aprendizagem, durante o qual vão sendo desenvolvidas técnicas e argumentos. A liberdade de expressão foi e continua sendo o campo de experimentação da jurisprudência constitucional. É um território livre de desenvolvimento do direito, da cidadania e, enfim, da sociedade. Se antes a censura era autorizada, aos poucos se reconheceu a dignidade constitucional da liberdade de expressão. Se antes a simples tendência de se causar o dano podia fundamentar a criminalização do discurso, esse texto foi logo substituído por outro que exige a aferição de um perigo claro e iminente, que logo depois foi substituído pela exigência de um perigo claro, iminente e grave. E assim por diante.

Coube a Brandeis introduzir a ideia de que a defesa de todas as ideias é um valor caro à democracia, não importa se falsas ou perigosas. Não são as consequências de uma ideia que definem seu valor. Por si só, a liberdade de pronunciá-las é um valor. Em seu voto, Brandeis apresenta a liberdade e a arbitrariedade como polos opostos da vida democrática. Opostos que se aproximam e se contradizem. Em um contexto como esse, é preciso optar: coragem ou medo, governo ou sociedade, liberdade ou autoridade. E a opção de Brandeis é clara. Ele adota o pensamento democrático e defende que o Estado não pode ser maior que o cidadão. Na ocasião, perdeu na votação, mas seu voto entrou para a história da proteção da liberdade de expressão.

Essa mesma questão foi novamente suscitada no caso Sullivan. Nele, o Justice Brennan lembra a Lei de Espionagem de 1917 e que essa lei foi considerada inconstitucional por violar a liberdade de expressão. Comentando o caso Sullivan e o paralelo estabelecido por Brennan em relação à lei de 1917, Kathleen Sullivan (2010) considera que a afronta à liberdade verificada em Sullivan é mais grave, pois aqui ela atinge um grupo que naturalmente já tinha seu poder de manifestação limitado: negros e marginalizados dos Estados do sul dos EUA. Para essa autora, existe na sociedade norte-americana uma hierarquia ideológica, por meio da qual as ideias de maiorias ou grupos socialmente poderosos predominam sobre as minorias. Assim, quanto mais um discurso for tradicional e culturalmente aceito, maior deverá ser a regulação do governo. Deste modo, discursos de minorias devem ser protegidos de regulações. É preciso proteger o discurso de grupos dissidentes para igualar as oportunidades de fala.

Ainda que em relação a alguns tipos de discurso haja, ainda hoje, divergência acerca da incidência da proteção constitucional da liberdade de expressão, não há dúvidas de que o discurso político está no centro dessa proteção. Nenhum cargo governamental está imune a críticas e é direito e dever do cidadão fiscalizar e criticar com veemência os detentores de poder. É como afirma Meiklejohn: o povo é o governante e se o governante ficar inerte ele perde a sua condição de soberano. Ele abre mão da liberdade e se sujeita a uma condição de submissão. Avaliando a questão de se a manifestação supostamente caluniosa ser dirigida a funcionários públicos, Brennan apresenta a ideia de que mesmo que o discurso seja falso, ele deve ser protegido. O contrário seria congelar a liberdade, que ficaria dependente de validação daquele que se coloca na condição de detentor do padrão absoluto da verdade.

Como se vê, o direito constitucional considera necessária e importante a proteção de discursos falsos (fake News), sem as quais não seria nem mesmo necessário garantir a livre expressão. Afinal, se todos soubessem de antemão o que é certo e verdadeiro, ninguém precisaria dizer absolutamente nada. Brandeis e Brennan foram precursores das ideias fundamentais da proteção da liberdade de expressão. Mais importante do que isso, esses juízes vivenciaram na prática o valor cívico que eles mesmos defenderam: contestaram em seus votos o pensamento dominante, mesmo que com isso não tenham convencido seus pares e mesmo que sua opinião tenha afrontado os padrões decisórios da época. Eles nos mostraram, portanto, na prática que se quisermos viver em uma democracia, não podemos ter medo de ideias e do debate. Devemos ter convicção de nossas opiniões, mesmo que elas não sejam as mais aceitas; devemos, enfim, ter coragem de enfrentar a maioria e o poder, pois só assim a liberdade de expressão e o direito irão sobreviver.

3.2 Casos do Supremo Tribunal Federal Brasileiro

3.2.1 Marco regulatório da TV por assinatura (ADI 4.923)

Na Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.923 ocorreu o julgamento conjunto de quatro ADI’s 4.679, 4.747, 4.756 e 4.923, todas elas propostas contra a Lei nº 12.485/2011, mais conhecida como marco regulatório de TV por assinatura14 14 Definição dada pela Lei nº 12.485, de 12 de setembro 2011. . Nessas demandas contestou-se praticamente todos os artigos da dita Lei, com base em alegadas violações aos direitos à livre iniciativa (Arts. 1º, inciso IV, 170, caput e inciso IV, ambos da Constituição Federal), princípio da proporcionalidade (art. 5º, inciso LIV, da CF), liberdades de manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV, da CF), de comunicação e expressão (art. 5º, inciso IX, da CF) e de imprensa e informação jornalística (art. 220, caput, §1º da CF) e, por fim, a igualdade entre brasileiros e estrangeiros (art. 5º, caput da CF). Conquanto todos os direitos mencionados sejam caros à democracia, para o escopo deste trabalho, serão abordadas apenas as controvérsias quanto ao direito à liberdade de expressão, pensamento e imprensa.

Tendo em vista a relevância e complexidade dos temas discutidos, foram realizadas duas audiências públicas, nas quais foram ouvidos representantes da sociedade civil, especialistas e entidades reguladoras. Em relação ao seu conteúdo, o marco regulatório visava ampliar o acesso da população a canais por assinatura, combater o monopólio de grandes empresas e incentivar a criação e expansão de conteúdo nacional.15 15 “Em linhas gerais, a Lei nº 12.485/11 (i) promove a uniformização regulatória do setor de TV por assinatura frente ao processo de convergência tecnológica, (ii) reduz as barreiras à entrada no mercado; (iii) restringe a verticalização da cadeia produtiva, (iv) proíbe a propriedade cruzada entre setores de telecomunicação e radiodifusão, e (v) institui cotas para produtoras e programadoras brasileiras. Os objetivos fundamentais do novo marco regulatório foram expressamente consolidados e registrados na Justificativa ao PL” (BRASIL, 2017, p. 46).

Como destacou o ministro Luiz Fux, relator da ADI, os objetivos buscados pelo criador de tal regulação eram legítimos sob o prisma constitucional. No entanto, por se tratar de intervenção judicial de grande impacto, foi necessário observar se tal intervenção teve repercussões positivas ou negativas em relação aos direitos constitucionalmente garantidos. O primeiro dos pontos discutidos foi a restrição que o regulamento estabeleceu em relação à propriedade cruzada e a vedação à verticalização da cadeia de valor audiovisual. Em relação a esse ponto, o relator entendeu que não havia violação a livre iniciativa ou liberdade de concorrência. Ao contrário, a legislação teria o condão de promover a livre concorrência, pois dificultaria o monopólio e a dominação do mercado e meios de comunicação por grandes agentes econômicos. Dessa forma, além de promover diversidade comercial, ao coibir o abuso econômico e evitar a concentração de mercado, a Lei promovia indiretamente a diversificação do conteúdo e o direito à liberdade de expressão e de informação, vulneráveis a concentração do poder comunicativo.

Uma das questões mais graves discutidas na ADI diz respeito à regra do artigo 12 da Lei 12.485/2011, que configuraria censura prévia, pois, de acordo com o partido Democratas, autor da ADI, “o dispositivo confere à ANCINE verdadeiro poder de ‘outorga’ para as atividades de programação e empacotamento, vez que é vedada a veiculação de conteúdos audiovisuais por meio das distribuidoras que não tenham sido fornecidos por empacotadora credenciada junto à agência reguladora ANCINE” (BRASIL, 2017, p. 19). Essa opinião foi encampada pela Associação Brasileira de Radiodifusores (ADI 4.756), que entendeu que esse artigo viola a liberdade de manifestação do pensamento, de comunicação, de expressão, de imprensa e informação jornalística.

Os artigos 13 e 31 da Lei, que são decorrência direta da necessidade de credenciamento pela ANCINE, tratam respectivamente da exigência de que as empresas credenciadas prestem informações para o órgão regulador, para que este fiscalize se foram cumpridas as obrigações por ele determinadas, assim como de norma que vincula o direito a distribuição de conteúdo ao prévio credenciamento. Sob esses artigos recaem as mesmas críticas de violação quanto ao artigo 12.

O relator rejeitou tais teses sob a argumentação de que não se trata de regulamentação do Estado que fere a liberdade de expressão. Não se regula, no entender do ministro, as ideias veiculadas pelos programas, pois o credenciamento e a fiscalização não têm conexão com a produção, programação e empacotamento dos conteúdos. Assim, entendeu-se que se trata de regulação instrumental, que visa averiguar o serviço prestado, não de fiscalização ideológica que visa censurar conteúdos de acordo com sua orientação. Ademais, considera o relator que não faria sentido defender que possam ser feitas regulações para impedir o monopólio e não ter ferramentas para fiscalizá-las. Considera, dessa forma, a fiscalização consequência natural do modelo de controle criado pela Lei, não se tratando de medida abusiva ou desnecessária. Em relação ao artigo 31, destacou-se que, se exigido o credenciamento de modo a autorizar a atuação no mercado brasileiro, seria demasiadamente ilógico que empresas empacotadoras descredenciadas pudessem realizar contratos de distribuição. O relator entende, portanto, que a previsão é uma estratégia para incentivar o mercado a se regularizar.

O ponto de maior controvérsia da Lei está na previsão de obrigatoriedade de veiculação de conteúdo nacional, discutida nos artigos 16, 17, 18, 19, 20 e 23. Aqui o partido Democratas, autor da ação, sustentava que essa obrigatoriedade é uma invasão desmotivada na liberdade tanto dos canais, que são obrigados a veicular esse conteúdo, quanto na liberdade dos assinantes que são obrigados a consumi-lo. Alega-se, ainda, que a imposição de cotas não é medida razoável a incentivar o consumo e produção de conteúdo nacional, visto que existem muitos meios e prestadores de serviço de comunicação. Por isso, considera o autor que não se pode justificar a imposição do conteúdo pelo argumento de que a cultura nacional e produções independentes não tenham acesso aos meios de comunicação. Enfim, sustenta que existem outros meios mais eficazes do que cotas para promover a indústria brasileira, tais como subsídios e campanhas de conscientização.

Em contraponto, o relator aduz que, ao instituir as mencionadas regulações, o legislador não exorbitou os limites constitucionais. Buscou simplesmente promover a tutela de valores constitucionalmente relevantes, destacando-se que as medidas fomentam os princípios previstos nos artigos 221 e 222 da Constituição Federal, os quais expressamente determinam a promoção da cultura nacional e a produção de conteúdo independente. Fora isso, Fux sustenta que a lei é também convencional, visto que seu conteúdo se encontra de acordo com as previsões da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.

Quanto às considerações da lei sobre publicidade, são dois os artigos que devem ser analisados. O primeiro deles é o artigo 24, que trata do tempo máximo de publicidade em canais por assinatura. O segundo é o artigo 25, que favorece agências nacionais de publicidade em relação às estrangeiras. O artigo 24 apenas determina que os canais por assinatura se restrinjam ao mesmo tempo de exibição que os canais abertos. Seu conteúdo não foi devidamente contestado nas ações diretas de inconstitucionalidade, fato que foi salientado pelo voto do relator. Quanto ao artigo 25 e o favorecimento de empresas nacionais, o relator observa que não foi apresentada qualquer justificativa que sustente a preferência das agências publicitárias nacionais em relação às estrangeiras. Enfim, em decisão unanime, o Supremo Tribunal Federal considerou a Lei constitucional em todos os pontos contestados, exceto em relação ao artigo 25, pelos motivos já expostos.

3.2.2 Caricaturas de políticos (ADI 4.451)

Essa ação direta foi proposta pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), que trouxe para o Tribunal a análise da Lei 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições. A associação impugnou os incisos II e III (parcialmente), ambos do artigo 45 desta lei,16 16 Art. 45. A partir de 1º de julho do ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário: [...] II- usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito; III- veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes. alegando que os dispositivos violavam o direito à liberdade de expressão, de imprensa e o direito à informação. Por sua vez, o Congresso Nacional apresentou informações nas quais sustenta que a lei discutida pretende proteger a honra e dignidade dos agentes políticos durante o período de eleição. Nesse sentido, diz que os dispositivos em questão “não afrontam as liberdades de expressão, de informação e de comunicação, mas tão somente as conformam para proibir que o seu exercício tenha como fim especial o desequilíbrio da disputa eleitoral e como instrumento a transmissão de rádio ou televisão”.

Em contrapartida, a requerente alega que a proibição de veicular conteúdos que possam ser entendidos como forma de ridicularização, degradação, apoio ou crítica de candidatos, causa um efeito silenciador, que impede o debate político como um todo, tendo em vista o medo dos expositores serem considerados críticos ou partidários. O autor considera ainda essa medida desproporcional e ineficaz para cumprir o propósito do legislador de assegurar a integridade do processo eleitoral, já que ao defender veementemente o direito ao sufrágio, violou direitos tão importantes quanto, que necessariamente devem fazer parte do processo eleitoral. O ministro Alexandre de Moraes foi o relator do acórdão e foi acompanhado em seu voto por todos os demais ministros, que consideraram os incisos II e III parcialmente inconstitucionais, bem como, por arrastamento, os parágrafos 4º e 5º, do artigo 45. Todavia, ainda que unanime a decisão, foram feitas algumas considerações importantes por outros ministros que não foram abordadas no voto do relator, motivo pelo qual esses argumentos serão adiante analisados.

Moraes inicia seu voto observando que a Constituição Federal garante a liberdade de expressão sob um duplo aspecto. Protegendo-a tanto no aspecto positivo com base no direito à livre manifestação de ideias, quanto no negativo, proibindo a intervenção indevida do Estado através da censura prévia. Em relação ao primeiro aspecto, a Constituição Federal admite posterior responsabilização e direito de resposta. No entanto, não admite limitação ao direito de liberdade negativo, ou seja, não prevê qualquer forma aceitável de censura prévia. Dito isso, entende o relator que os incisos impugnados são inconstitucionais, visto que possuem claro caráter de censura, ao objetivar prevenir manifestações futuras.

Ademais, mesmo que a censura fosse permitida, sua utilização não faria sentido para alcançar o fim pretendido pelo legislador, pois o debate é o único meio apto a combater o pensamento da maioria, não o silêncio. Para que uma democracia subsista é, portanto, necessária a garantia de um processo eleitoral saudável, mas isso não é o bastante. É preciso também que a liberdade de expressão seja assegurada, pois só assim se garante a possibilidade de alternância no poder. Neste ponto, Moraes ressalta que mesmo as declarações errôneas (fake) estão garantidas pela norma constitucional. Afinal, a democracia pressupõe que não apenas as ideias populares e presumidamente corretas sejam permitidas e incentivadas, mas sim que todas as ideias, até mesmo aquelas que causam repulsa ou mal-estar, sejam tuteladas pela Constituição. Só com base em um debate livre e com diversidade de pensamentos é que a democracia e o senso crítico da sociedade se desenvolvem.

O relator também recorda que, em Estados totalitários, as liberdades de expressão, comunicação e imprensa são sempre suprimidas, instalando-se, assim, um monopólio dos meios de comunicação e o controle do governo sobre o que as pessoas devem pensar. Medidas como essas impedem a diversidade de ideias, podam as informações, as notícias e críticas, o que vem a facilitar o controle do povo e a diminuir a percepção dos abusos cometidos pelos detentores do poder. Aponta o relator também que sempre que o direito à liberdade de expressão é violado, outras violações de direitos se seguem. Tal liberdade parece ter o poder de coibir outros excessos, o que justifica a importância da garantia deste direito. Nas palavras do relator:

No Estado Democrático de Direito, não cabe ao Poder Público previamente escolher ou ter ingerência nas fontes de informação, nas ideias ou nos métodos de divulgação de notícias ou, - como pretendido nos dispositivos impugnados - no controle do juízo de valor das opiniões dos meios de comunicação e na formatação de programas humorísticos a que tenham acesso seus cidadãos, por tratar-se de insuportável e ofensiva interferência no âmbito das liberdades individuais e políticas. (BRASIL, 2018, p. 20).

Feitas tais considerações, o ministro também apresentou condicionantes à garantia da liberdade de expressão. Ele observa que, ainda que plena a proteção constitucional, não considera a liberdade de expressão como um direito absoluto, visto que a Constituição e diversos tratados internacionais possibilitam a responsabilização posterior em casos de injuria e difamação, por exemplo. Nesse mesmo sentido, Luís Roberto Barroso sustenta ser possível um balanceamento entre direitos fundamentais que se encontrem em confronto, porém entende que existe uma presunção a favor da liberdade de expressão. Deste modo, na visão deste ministro, mesmo quando utilizado um critério de ponderação entre direitos de acordo com a situação concreta, o direito à liberdade de expressão tende a prevalecer.

Um argumento adicional abordado pelos ministros afirma que, caso permitidas as vedações previstas nos incisos aqui discutidos, serão autorizadas infinitas outras formas de censura. Nessa linha, Rosa Weber observa que, uma vez admitidas as restrições, aos poucos se abre mão da liberdade de expressão, criando-se assim progressivamente uma situação de enfraquecendo da garantia dessa liberdade. Para exemplificar seu argumento, ela aponta que durante o período em que a presente ADI esteve pendente, houve uma mudança no caput do artigo 45 da Lei 9.504/1997, que substituiu a previsão específica de prazo das vedações por uma formulação abstrata muito mais perigosa para o direito à liberdade de expressão.

Por fim, o ministro Luiz Fux aborda em seu voto a questão das fake news. Diz ele que essa espécie de manifestação constitui uma ameaça concreta para o processo eleitoral, tendo grande alcance em relação aos eleitores e um efeito silenciador em relação a candidatos, que precisam se defender de acusações falsas ao invés de expor seus planos de governo. No entanto, como o próprio ministro observa, não basta a imprensa combater as fake news. É preciso a conscientização da sociedade.

3.2.3 Considerações acerca das decisões

Os casos trazem a discussão de muitas questões importantes a respeito da liberdade de expressão. Algumas delas ainda não têm resposta definida no direito brasileiro. Como se depreende dos votos, não há um consenso no âmbito jurídico nacional sobre qual deve ser o valor da liberdade de expressão em relação aos outros direitos constitucionalmente garantidos. Conquanto que a maioria dos julgados admita que a ponderação da liberdade de expressão deva conferir um peso diferenciado a esse direito fundamental, existem casos em que se abre mão desse direito em nome de outros considerados mais caros naquelas situações específicas17 17 Talvez o mais famoso deles seja o que envolveu o escritor e editor gaúcho, Siegfried Ellwanger, condenado por escrever livro considerado racista (HC 82424). Mais recentemente, na mesma linha, o Supremo conferiu interpretação ampliativa ao termo “raça” e ponderou, mais uma vez, o direito à liberdade de expressão, criando assim o crime de homofobia (ADO 26). Algo interessante a analisar são as decisões que referendam a liminar dada n a ADPF 548. .

Ocorre que a utilização da ponderação em casos que envolvem a liberdade de expressão deve ser evitada. Não há padrões teóricos fixos e confiáveis para a realização de ponderações, o que por si só afastaria essa operação de julgamentos envolvendo a aplicação de direitos fundamentais, sobretudo quando está em jogo a defesa de elementos mínimos do sistema democrático (LAURENTIIS, 2017). Em específico, quando o caso envolve a proteção da liberdade de expressão, os efeitos da ponderação podem ser incorretos no curto prazo e catastróficos no longo prazo. Isso por duas razões.

Primeiro, quanto ao curto prazo, a ponderação de valores tende simplesmente a anular o elemento contestador da liberdade de expressão. Afinal, sempre que se estiver diante de uma forma de expressão radical, minoritária, enfim, contestadora do status quo, a ponderação da liberdade de expressão e do direito coletivo que é afetado pela expressão tenderá a dar prevalência ao segundo desses valores, que envolve inúmeros sujeitos e direitos. Mas a liberdade de expressão deveria ter aplicação e proteção justamente nesses casos. Casos envolvendo situações de emergência nacional tendem a acentuar esse problema. A esse respeito, como observou Sunstein (1993, p. 150), se a sociedade e o governo se encontram em estado de alerta, todo perigo causado pela expressão tende a ser exagerado e potencializado. Guerras, ataques terroristas, conflitos sociais, crises econômicas, o combate de inimigos internos e externos, podem ser todos fatores a sustentar a relativização da liberdade de expressão em prol de bens jurídicos que, real ou imaginariamente, se encontrem em perigo18 18 A crescente campanha do direito brasileiro contra recentes publicações de um site jornalístico que tem divulgado fatos e eventos ligados ao atual Ministro da justiça é um exemplo contundente a esse respeito. A esse respeito, foi instaurado inquérito pela polícia federal e foram solicitados ao COAF dados financeiros do editor do site (Glenn Greenwald), o que além de configurar uma tentativa de intimidação, representa uma forma de criminalização do exercício da liberdade de expressão. . Como foi antes exposto, a história dos EUA é pródiga em exemplos como esse (a Lei de espionagem foi um deles; o período macarthista, outro). Mas isso não foi motivo para a anulação da liberdade de expressão.

Uma possível objeção a essas conclusões diria: mas a liberdade de expressão pode ser exercida contra os valores protegidos pela Constituição Federal? E isso não conflita com as ideias de supremacia, ou força normativa da Constituição? Uma resposta simples e direta a essa segunda questão diria, simplesmente, que as noções de supremacia e força normativa da constituição são, elas mesmas, relativas. Os EUA, por exemplo, têm, para o bem e para o mal, uma Constituição antiga e com alta força normativa, o que simplesmente quer dizer que esse Texto constitucional tem grande relevância prática e é observado pelo governo e pelos cidadãos. Isso quer dizer que o fato de a liberdade de expressão ser protegida neste país de forma muito intensa não afeta, ou altera, em nada o grau da força normativa da Constituição. Quanto à primeira questão, é preciso observar que a própria liberdade de expressão também é um direito fundamental e tem, por isso, um valor constitucional. Dessa forma, a simples referência aos valores constitucionais não pode ter como consequência a restrição ou a ampliação da proteção da liberdade de expressão.

Segundo, no que diz respeito ao longo prazo e como decorrência do primeiro problema, a generalização das restrições impostas à liberdade de expressão torna impreciso o conteúdo protegido por esse direito e desestimula o seu exercício. Aqui ocorre o que a literatura norte-americana denomina de “efeito resfriador” (Chilling efect), pois os atores que poderiam exprimir suas ideias se sentem desestimulados em virtude da simples potencialidade da sanção. O voluntarismo e a falta de critérios da jurisprudência brasileira em julgamentos envolvendo a liberdade de expressão acentuam esse efeito. Assim, ainda que nos casos aqui analisados o Supremo tenha optado por proteger a liberdade de expressão, os argumentos que sustentam as conclusões desses julgamentos e a simples possibilidade de se chegar a um resultado contrário já são elementos que geram profunda preocupação.

Quando comparadas as decisões das ADI’s, é possível estabelecer uma relação entre as decisões e as diferentes visões apresentadas por Kathleen Sullivan (2010) para a liberdade de expressão. Enquanto a ADI 4.923, que trata do marco regulatório da TV por assinatura, adota uma concepção de igualdade política, a ADI 4.451, que trata das eleições, parece pautada pela liberdade política. Nessas situações, ressalta a autora, a liberdade de expressão é vista como decorrência da igualdade política e, por isso, a regulação do discurso e a liberdade de manifestação devem ser sopesadas, prevalecendo aquela que favoreça mais a igualdade política. Já se a liberdade de expressão é tratada como um elemento constitutivo da liberdade política, esse sopesamento não será de nenhuma forma admissível.

Na ótica adotada pela ADI 4.923 atuam duas ordens de argumentos diferentes: o da antidiscriminação, que impede que o governo marginalize pontos de vista impopulares, e o da ação afirmativa, que exige que o Estado realize ações que promovam a igualdade. Sob essa perspectiva, o marco regulatório criado pela Lei visa promover a cultura nacional e produções independentes, com as regulações e adoção de cotas desses conteúdos, criando um incentivo para uma competição justa. Já o julgamento da ADI 4.451 se mostra como expoente da liberdade política. Nele, o STF impõe uma obrigação negativa ao governo, a qual veda a tirania ou qualquer intervenção governamental no âmbito de proteção da liberdade de expressão, mesmo que por motivos paternalistas ou redistributivos. Garante-se, assim, ao discurso político um valor diferenciado, e assegura-se o livre debate em período eleitoral, conferindo também aos cidadãos o reconhecimento de sua autonomia política e moral.

É interessante contrastar o que foi decidido pela Suprema Corte dos EUA no caso Sullivan com o conteúdo dos dispositivos da Lei de Eleições, ainda que cada qual dessas situações tenha suas particularidades. A questão principal em ambos os casos é a mesma: o direito à manifestação em relação a figuras públicas19 19 Vale lembrar que, a despeito do resultado deste julgamento, a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros continua a considerar constitucional o crime de desacato (art. 331 do CP). Vê-se que tal entendimento contraria, a um só tempo, a decisão do STF na ADI 4451 e também as decisões de tribunais internacionais que têm sistematicamente considerado tais crimes inválidos. . Os relatores de ambos os casos, além de procurarem apresentar uma leitura técnica, com a exposição de teorias e jurisprudências, optaram por fazer também uma leitura histórica, expondo a ligação entre o surgimento de governos autoritários e o silenciamento da crítica política, argumento que sozinho já possui grande peso, por ser capaz de mostrar as consequências nefastas da censura. Enfim, ambos os julgamentos chegam à mesma conclusão: por mais desagradável, ou até falsa, que seja, a livre manifestação do pensamento não deve ser podada pelo Estado.

Por fim, a manifestação do ministro Luiz Fux no julgamento da ADI 4.451 merece um comentário. Ainda que não se negue que as fake news tenham grande impacto nas eleições devido ao seu poder de manipulação, mostra-se inviável defender a constitucionalidade dos dispositivos da Lei em questão. Na verdade, como observou Brandeis no julgamento do caso Whitney, a solução para combater discursos falsos ou prejudiciais ao processo eleitoral é contestação e a apresentação de bons argumentos. Nunca a censura. Por consequência, quanto maior a quantidade de notícias falsas em uma sociedade, maior será a necessidade do debate para que através da reflexão se combata a alienação e as injustiças. Ademais, como observa Luiz Fux, grande parte da responsabilidade da defesa da liberdade de expressão é do povo, que precisa fazer parte do debate. Não basta, como afirma William James (2003JAMES, William. Pragmatism: a new name for some old ways of thinking. [s.l.]: Barnes & Noble, 2003.), adotar verdades declaradas, é preciso mais, nunca menos, senso crítico e reflexão. Seria possível alcançar tal nível de proteção da liberdade de expressão quando a sociedade não tem formação suficiente para agir criticamente e o Estado não fornece guias para a compreensão das mensagens disponibilizadas ao público?

A resposta a essa questão foi apresentada pelo próprio juiz Holmes, que no julgamento de Abrams afimou, de forma enfática, que a liberdade individual, a Constituição e a própria democracia são experimentos contínuos e inconclusos. Elas pressupõem um exercício contínuo e persistente de tolerância e aprendizado. Não há verdades absolutas, não há opiniões incontestáveis e não há questão tabu nesse sistema, que, por isso mesmo, está sempre aberto à experimentação e ao erro. Essa é a educação cívica oferecida pela liberdade de expressão, que, dessa forma, aponta para o caminho do diálogo e da convivência. Essas são bases teóricas da defesa da liberdade de expressão e também as portas de entrada para a construção da democracia.

4. Considerações Finais

Analisadas as diferentes teorias que fundamentam a liberdade de expressão, podemos concluir, antes de tudo, que este não é um direito estático. Ela nasceu, cresceu e se desenvolveu com base em eventos históricos determinados e problemas concretos específicos. Teorias da verdade, da autonomia e democrática espelham tal desenvolvimento histórico e as dificuldades enfrentadas pelos defensores desse direito. Oliver Wendel Holmes, Louis Brandeis e Willian Brennan representam esses diferentes momentos e os esforços para se manter esse direito, mesmo quando tudo e todos sejam contrários. E as teorias da verdade, da autonomia e democrática indicam diferentes aspectos da mesma proteção constitucional: a liberdade de expressão, um direito fundamental altamente complexo em sua formulação teórica e em suas consequências práticas. Por isso, o trabalho analisou cada uma dessas teorias, buscando indicar as características mais fundamentais da liberdade de expressão.

A primeira delas, a teoria da verdade, indica que esse direito fundamental está fundamentado em uma visão de mundo que nega toda e qualquer forma de fundamentalismo ou dogmatismo. Não há verdade absoluta, ponto de vista fixo, ou tema imune à crítica do pensamento, portanto. Tudo o que se diz está permanentemente sujeito à crítica ou contraprova e nenhum pensamento ou crença está imune à força destrutiva da liberdade de expressão. Nesse sentido, por meio desse direito se cria um ciclo infinito de ideias e “contra-ideias”, provas e contraprovas, um mercado do pensamento, sendo que no interior deste ciclo tudo é relativo e nada é absoluto. Essa estrutura de debates permanentes e persistentes criada pela liberdade de expressão se chama opinião pública. Uma estrutura autônoma que funciona como órgão supremo de avaliação da validade e da legitimidade de todos as ideias e pensamentos. Só cabe ao mercado de ideias e à opinião pública, nunca ao governo, controlar a liberdade de expressão.

Esse aspecto indica a relevância da segunda teoria - a teoria da autonomia. A liberdade de expressão se apresenta aqui não só como um veículo que leva à construção de um mercado de troca de ideias, mas também como um instrumento de formação do indivíduo e da cidadania. Por meio desse direito são formados sujeitos com pensamento crítico e contestador, pessoas que não se contentam com o óbvio, que não aceitam conclusões prontas, que querem pensar por si mesmas. A liberdade de expressão se revela, neste ponto, como um instrumento educativo e formador. Ao confrontar as pessoas com as mais diversas formas de pensamento e as mais diferentes opiniões, ela forma cidadãos com senso e postura crítica perante o mundo. A liberdade de expressão é vista, então, como um meio de emancipação. Um direito por meio do qual se pode pensar na formação emancipadora e criativa. Sob essa ótica, a liberdade de expressão é vista muito mais sob a ótica dos ouvintes do que dos emissores da mensagem. Ela tutela o direito de todos terem acesso às mais diversas ideias, sem que se possa discriminar entre ideias que são boas ou más para a formação do debate público. A liberdade de expressão se mostra, então, como um fator garantidor da igual oportunidade de acesso de todos a todas as formas de pensar. Ela garante que todas as ideias tem igual dignidade e podem, com igualdade de chances, ter acesso ao debate público livre e franco. Liberdade de expressão significa respeito pela diferença e oportunidade de formação com base nas próprias convicções.

Finalmente, sob a ótica da teoria democrática, a liberdade de expressão garante não só a alternância no poder - o governante que não é criticado tende a se perpetuar no poder -, mas também a possibilidade de todo e qualquer cidadão influir direta e quotidianamente nos atos do governo. Aqui a liberdade de expressão se mostra como um instrumento de participação e de realização da democracia direta, por meio do qual todos os cidadãos são conclamados a participarem da construção das políticas conduzidas e realizadas pelos órgãos estatais. Como consequência, a liberdade de expressão tente a construir um sistema de governo mais transparente, limitado e responsável perante as demandas dos eleitores. Mais do que isso: ao garantir que toda ideia e todo pensamento têm igual acesso ao debate público, a liberdade de expressão define e contribui para o desenvolvimento da democracia. Um sistema de governo que aceita as diferenças e as imperfeições do pensamento e do ser humano; um ideal político que está permanentemente aberto à experimentação e à mudança de rumos. A democracia, assim como a vida, se mostra então como o único sistema político que assimila as virtudes, mas também os vícios da humanidade; uma forma de configuração do governo e da sociedade que aceita o erro e a imperfeição e, por isso mesmo, está sempre aberta ao despertar do novo. A liberdade de expressão é o veículo que torna possível esse regime de governo e que abre as portas para a constante possibilidade de mudança.

Os casos estudados apontam que nem sempre a defesa da liberdade de expressão é trivial. Mas ela é necessária. Questões como a difusão de fake news e a disseminação do discurso de ódio tencionam esse debate e fazem com que a opinião pública muitas vezes se volte contra a liberdade de expressão. O aumento dos veículos de comunicação torna essa questão ainda mais dramática, pois as redes sociais transformaram toda e qualquer pessoa em um veículo de comunicação, o que as torna um meio de potencial difusão do ódio ou do engano. A liberdade de expressão é adaptável e ela também se adequará a essas novas realidades. O que este trabalho demonstrou foi que não será a censura ou o poder de opressão do Estado que remediarão os efeitos potencialmente danosos do discurso. Essas são as soluções fáceis, mas passageiras e ineficazes, das questões decorrentes do exercício radical da liberdade de expressão. Em sua sombra está escondido o real problema da limitação inconsequente desse direito: o censor, que pode tanto trabalhar para proteger o fraco e o oprimido, quanto favorecer seus colegas e amigos que sofrem com a crítica mordaz dos meios de comunicação. E como os critérios do censor são inquestionáveis, nunca se sabe onde termina a boa ação e quando tem início o autoritarismo.

A jurisprudência brasileira revela que o papel da liberdade de expressão na sociedade brasileira ainda é um tema em aberto. O STF vacila e até hoje ainda não estabeleceu qual é a real função da liberdade de expressão no sistema constitucional brasileiro. Ora o Tribunal privilegia a expressão, ora a mutila, tudo isso com base em critérios imprecisos e na conveniência política. Essa incerteza da jurisprudência constitucional revela que não há um comprometimento a coerência da proteção dos direitos fundamentais. Nesse clima de insegurança quem perde é a liberdade de expressão, pois o cidadão amedrontado tende a permanecer calado. Ainda há tempo para se mudar de rumo. E, nesse caminho, revitalizar a liberdade de expressão seria o primeiro e mais urgente passo.

Referências Bibliográficas

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  • WEINSTEIN, James. “Extreme speech, public order, and democracy: lessons from The masses”, in: HARE, Ivan; WEINSTEIN, James, Extreme speech and Democracy, Oxford: Oxford University Press, 2009.
  • 1
    Esse ponto foi salientado por Garret, para quem: "Qualquer um que por sua vontade, profira, escreva ou publique texto desleal, profano, abusivo ou difamatório sobre o nosso governo, constituição, forças armadas ou seus uniformes ou bandeiras, ou texto que pretenda incitar ou encorajar resistência aos Estados Unidos da América ou promover a causa de seus inimigos ou advogar ou defender qualquer um dos atos acima é denunciado pela emenda da Lei de espionagem” (1919, p. 71).
  • 2
    No caso Schenck v. United States, julgado em outubro de 1918, membros do partido comunista foram acusados e posteriormente condenados por terem tentado causar insubordinação no exército e marinha, além de obstruírem o recrutamento e alistamento entre os recrutados para o serviço militar. Sua conduta: impressão e circulação de um documento instigando a insubordinação. Mantendo a condenação, a Suprema Corte argumentou que a legalidade do ato depende da situação na qual é realizado, pois, em tempos de paz, não haveria de fato crime, no entanto, em tempos de guerra tais palavras tem a capacidade de criar um perigo claro e iminente, trazendo um mal o qual o Congresso tem o direito de prevenir.
  • 3
    Acerca das características e origem histórica deste teste, ver: STONE (2002).
  • 4
    Nesse sentido, ver: POST, 2000, p. 2366.
  • 5
    Esse aspecto da liberdade de expressão tem sido salientado por diversos Tribunais internacionais, dentre eles, a Corte interamericana de direitos humanos, para quem a liberdade de expressão “não envolve apenas o direito e a liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza” (Caso López Álvarez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Série C N° 141, par. 163).
  • 6
    Esse caso gerou, com boas razões, a condenação do governo russo pela Corte europeia de direitos humanos. A esse respeito, ver a exposição crítica de JOHNSON, 2011.
  • 7
    Fato relatado em: 'Queermuseu', a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos, reabre no Rio.2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45191250>. Acesso em: 27 ago. 2019.
  • 8
    O caso foi amplamente relatado na mídia, como em: Manifestante da Marcha das Vadias condenada por ‘ato obsceno’ tem acesso ao STF negado. 2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/09/03/manifestante-da-marcha-das-vadias-condenada-por-ato-obsceno-tem-acesso-ao-stf-negado/>. Acesso em: 27 ago. 2019.
  • 9
    Nesse mesmo sentido, na jurisprudência da Corte Europeia de direitos humanos, ver o julgamento do Caso Handyside v. UK, 24 Eur. Ct. H.R (ser. A) par. 23 (1976).
  • 10
    Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969).
  • 11
    De acordo com Vincent Blasi (1988), Anita Whitney foi uma das pessoas mais importantes a ser presa pela violação da lei de sindicalismo criminoso. Oriunda de uma família proeminente, Whitney passou sua vida lutando por direitos políticos, inclusive fazendo parte da luta sufragista.
  • 12
    Eles acreditavam que a liberdade de pensar como você quiser e de falar como você pensa são meios indispensáveis ​​para a descoberta e disseminação da verdade política; que sem liberdade de expressão e reunião a discussão seria fútil; que com elas, a discussão permite uma adequada proteção contra a disseminação de doutrina nociva; que a maior ameaça à liberdade é um povo inerte; que a discussão pública é um dever político; e que isso deveria ser um princípio fundamental do governo americano (BRANDEIS, 1927, p. 375).
  • 13
    Procedimento que faz parte do poder discricionário da Suprema Corte para poder reavaliar decisões de uma corte inferior, averiguando se há erros.
  • 14
    Definição dada pela Lei nº 12.485, de 12 de setembro 2011.
  • 15
    “Em linhas gerais, a Lei nº 12.485/11 (i) promove a uniformização regulatória do setor de TV por assinatura frente ao processo de convergência tecnológica, (ii) reduz as barreiras à entrada no mercado; (iii) restringe a verticalização da cadeia produtiva, (iv) proíbe a propriedade cruzada entre setores de telecomunicação e radiodifusão, e (v) institui cotas para produtoras e programadoras brasileiras. Os objetivos fundamentais do novo marco regulatório foram expressamente consolidados e registrados na Justificativa ao PL” (BRASIL, 2017, p. 46).
  • 16
    Art. 45. A partir de 1º de julho do ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário: [...] II- usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito; III- veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes.
  • 17
    Talvez o mais famoso deles seja o que envolveu o escritor e editor gaúcho, Siegfried Ellwanger, condenado por escrever livro considerado racista (HC 82424). Mais recentemente, na mesma linha, o Supremo conferiu interpretação ampliativa ao termo “raça” e ponderou, mais uma vez, o direito à liberdade de expressão, criando assim o crime de homofobia (ADO 26). Algo interessante a analisar são as decisões que referendam a liminar dada n a ADPF 548.
  • 18
    A crescente campanha do direito brasileiro contra recentes publicações de um site jornalístico que tem divulgado fatos e eventos ligados ao atual Ministro da justiça é um exemplo contundente a esse respeito. A esse respeito, foi instaurado inquérito pela polícia federal e foram solicitados ao COAF dados financeiros do editor do site (Glenn Greenwald), o que além de configurar uma tentativa de intimidação, representa uma forma de criminalização do exercício da liberdade de expressão.
  • 19
    Vale lembrar que, a despeito do resultado deste julgamento, a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros continua a considerar constitucional o crime de desacato (art. 331 do CP). Vê-se que tal entendimento contraria, a um só tempo, a decisão do STF na ADI 4451 e também as decisões de tribunais internacionais que têm sistematicamente considerado tais crimes inválidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2019
  • Aceito
    05 Jan 2020
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