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Direito do trabalho e epistemologias dissidentes: demarcações teóricas para uma crítica-outra

Labor law and dissident epistemologies: theoretical demarcations for another-critique

Resumo

O direito do trabalho tem uma relação complexa com a crítica. O artigo explora os limites e potencialidades dessa relação ao investigar a epistemologia juslaboral, demonstrando que ela é parte do projeto moderno/colonial de poder, ao excluir a cientificidade de saberes subalternos. O ponto de partida é uma compreensão dos processos de produção de saberes críticos no direito do trabalho. Visa-se explorar os limites da teoria crítica neste ramo, por ser feita a partir de um lugar epistêmico atravessado pelo poder. Para entender esses atravessamentos, parte-se para o domínio conceitual e político da epistemologia. Para, logo em seguida, abri-lo com radicalidade, enunciando uma vontade futura. A de pensar o direito do trabalho a partir de epistemologias dissidentes. A hipótese é que epistemologias dissidentes podem armar uma crítica-outra do direito do trabalho, instigando-o a repensar o seu próprio pensar.

Palavras-chave:
Direito do trabalho; Crítica; Epistemologias dissidentes

Abstract

Labor law has a complex relationship with critique. The article explores the limits and potentialities of this relationship. It investigates the domain of labor law epistemology to demonstrate that it is part of the modern/colonial project of power, by excluding subaltern rationalities from scientificity. The starting point is an understanding of the critical knowledge production processes in labor law. The aim is to explore the limits of critical theory in this field, as it is made from an epistemic location intersected by power. In order to understand these intersections, the conceptual and political domain of epistemology is analyzed. To, immediately afterwards, open it radically, enunciating a future epistemic project. The idea of thinking about labor law based on dissident epistemologies. The hypothesis is that dissident epistemologies can set up a critique of labor law, instigating it to rethink its own thinking.

Keywords:
Labor law; Critique; Dissident epistemologies

1. Introdução: um começo em movimento

O direito do trabalho tem uma relação muito próxima com a crítica. E muito mais complexa do que aparenta ser. Este artigo pretende dar os primeiros passos para compreender as limitações e as potencialidades dessa relação. A partir do que ela foi e é. Mas sobretudo para pensar o que ela pode ser. Tenta-se mover, então, em direção a outros lugares. Conectar-se, em pesquisa teórica, com outras formas de saber e viver, que normalmente são ignoradas ou expurgadas pela reflexão jurídica, ainda que no campo da crítica. Formas que vão mostrar algo que normalmente está ocultado pelo retrato padrão das origens e das ambiguidades do direito do trabalho. Ele é, certamente, uma conquista das classes trabalhadoras de melhores condições de vida e de trabalho. Também, ao mesmo tempo, estabiliza um quadro normativo para a exploração capitalista. Tudo isso é bem conhecido. Mas não diz tudo. O que queremos explorar é algo que, para nós, não é tão conhecido assim: como o direito do trabalho tem pertencimentos epistêmicos não ditos. Ou seja, como seu conhecimento e normatividade são produzidos a partir de um lugar específico e inconfesso, especialmente em relação à maneira como a colonialidade, a raça, o gênero e a sexualidade subjazem seus conteúdos.

Neste ponto que o direito do trabalho pode revelar dimensões mais complexas na sua relação com a crítica. Cumplicidades e investimentos ativos na produção de subalternidades que não estão necessariamente visíveis nas leituras estabelecidas. Queremos levar a fundo a investigação de como os saberes e normas trabalhistas se produzem e se materializam de maneira desigual em relação a sujeitas desiguais. Sujeitas que tomam parte de maneira também desigual nos processos sociais, de conhecimento, de normatização e de vida que o direito do trabalho compõe. Não queremos apenas apontar problemas de não efetivação, de descumprimento dos mandamentos da proteção trabalhista. Isso também é importante. Mas a questão nos parece muito mais difícil. Queremos compreender como o próprio direito do trabalho constitui suas categorias e pensa sobre si próprio a partir desses pressupostos corporificados e geopoliticamente localizados. E como esses processos resultam em normas que tomam a condição desses corpos como referente oculto, para serem produzidas, aplicadas, pensadas, comentadas, teorizadas.

Queremos falar a partir dessas e com essas pessoas, desses lugares teóricos e vividos que, de uma maneira ou outra, vêm delas. Com a trabalhadora diarista doméstica sem direitos. Com a travesti na prostituição. Com o garoto gay e negro operador de teleatendimento. Com o vendedor ambulante. Com tantas outras pessoas para quem o direito do trabalho significa coisas muito diferentes. E tentaremos, aqui, desenhar um primeiro passo. Por meio do engajamento de natureza teórica com os universos do saber e do viver que se constituem a partir dessas posicionalidades todas, reunidas sob a chave da dissidência. Nos campos do conhecimento localizados nesses entrecruzamentos, que produzem saberes e que demandam para esses saberes a importância e a validade que lhes foi violentamente sequestrada.

Vamos, para tanto, propor aqui uma revisita que tem natureza propriamente epistemológica. E o que queremos com isso? Queremos, em última análise, provocar o direito do trabalho a pensar sobre o seu próprio pensar. E provocá-lo a fazer isso de modo dissidente. A partir de algo que está produzido como modo de ser e pensar em contraposição às hegemonias desse mesmo ser e pensar.

Nosso ponto de partida é uma compreensão dos processos de produção de saberes críticos no direito do trabalho. Mostrando, desde logo, os limites do que a crítica tem sido para este ramo, por ser feita a partir de um lugar atravessado pelo poder. Para entender esses atravessamentos, e a natureza profundamente arraigada deles, vamos ao domínio conceitual e político da epistemologia. Para, logo em seguida, abri-lo com radicalidade, enunciando uma vontade futura. A de pensar o direito do trabalho a partir de epistemologias dissidentes. Falaremos logo adiante sobre esse conceito, que é o centro desse artigo, mas antecipamos: esse escrito visa propor reconexões com saberes plurais, que partem de posições de subalternidade que reclamam a legitimidade, validade e relevância social de seus modos de ser, saber, resistir e conhecer. Gente do Sul, negras e negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, povos originários, pessoas com deficiência, que demandam para seus modos de experimentar o mundo um status próprio ao domínio da epistemologia.

Essas são posições que encarnam o fazer teórico, atravessando e arrebatando, com a força de quem traz nos corpos a urgência do que lhes é negado. Encarnam no sentido da carne de Gloria Anzaldúa (1987ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/la frontera: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.), da encruzilhada híbrida-chicana, do lugar onde tudo se passa. Ou de Hortense Spillers (1987SPILLERS, Hortense J. Mama’s baby, papa’s maybe: an American grammar book. Diacritics, Baltimore, v. 17, n. 2, p. 64-81, 1987.), para quem a condição da carne antecede a do corpo, como um grau zero, uma narrativa primária, de negras e negros, que tiveram o corpo roubado. E que, por isso, têm essas pessoas, corpos e carnes, muito a dizer sobre teoria jurídica, sobre os ramos do direito, que, em toda sua extensão, se constituíram histórica e materialmente sobre elas. Tentaremos, então, convidar a um primeiro mergulho nos universos teóricos dessas teorias vividas, abrindo ao máximo a reflexão trabalhista para essas vozes.

Esse é um escrito em movimento. As questões aqui levantadas não nasceram de um exercício circunscrito da escrita de um artigo científico. Decorrem de um acúmulo relativamente longo em nossas vidas. Vidas acadêmicas, evidentemente, mas não só. Somos as duas autoras (e usaremos o feminino genérico no texto, daqui em diante) professoras de direito do trabalho. Pesquisamos, ensinamos, aprendemos, produzimos, fazemos extensão, construímos afetos e desafetos, passamos a maior parte de nossas vidas em duas das escolas de direito das mais tradicionais do país. Uma posição extremamente privilegiada, que nos permite, entre muitas coisas, endereçar teoricamente os incômodos sobre os quais esse artigo se assenta.

Nossos itinerários acadêmicos mais alongados também se deram nesse mesmo espaço-tempo, sendo ambas oriundas, em graduação e doutoramento, daquela que chamam “vetusta casa de Afonso Pena”: a faculdade de direito da UFMG, hoje em Belo Horizonte, mas originalmente construída em Ouro Preto. Esse é um apelido, aliás, que diz muito do que esse artigo propõe. Ajuda a situá-lo. Vetusto é algo cuja antiguidade impõe respeito. Já a ideia de casa, no contexto, aparenta evocar metaforicamente os sentidos mais caros de uma relação de pertencimento. E Afonso Pena, deputado federal, governador do estado de Minas Gerais, vice-presidente e presidente do Brasil, foi fundador e primeiro diretor da faculdade. Ou seja, a faculdade é o espaço antigo e tradicional, constituidor, que relembra o fato de ter sido construída por um líder político e institucional, um “grande nome”. Por isso é a casa dele. Nesse ângulo, muito mais dele do que nossa.

As reflexões que compartilharemos aqui se colocam em frontal oposição aos lugares que a tradição, ocultando privilégios históricos, reservou às subalternas do mundo. Vai, por isso, a outras casas teóricas e a outros modos de conhecimento. A aversão à vetustez não se dá por desrespeito ao cultivo de antepassados ou à própria ideia de história(s). Mas à forma como esse respeito naturalizado ao antigo propaga no tempo a desmaterialização, a inexistência de certas sujeitas. No nosso caso, isso se revela pela entrada ainda limitada das teorias com as quais dialogaremos no campo jurídico.

As ideias do artigo estão ancoradas em muitas frentes. Poderíamos falar longamente da influência do nosso trabalho em pesquisa, ensino e extensão desenvolvido nas universidades públicas em que fomos formadas e, hoje, colaboramos para a formação de outras sujeitas. Ou sobre nossas trajetórias pessoais marcadas pelos atravessamentos que o texto discute, em presenças, mas também em ausências; em privilégios e violências. Mas, para encontrar um ponto de densificação, que nos permita introduzir esse texto que está em movimento, há um momento chave na origem da ideia aqui compartilhada. Nós, em 2019, ofertamos no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG uma disciplina focada na relação entre direito do trabalho e epistemologias dissidentes. A disciplina se estruturava na tentativa de ampliar o leque cognitivo do direito do trabalho nesse diálogo com pesquisas, leituras, extensão e vida que nós vínhamos já alinhavando há algum tempo. Ali, nas leituras e nos debates com as estudantes da disciplina, muito desse texto começou a se desenhar. Ou seja, esse artigo se conecta com todos os processos que se materializaram naqueles encontros semanais. Uma pesquisa que, como qualquer outra, é necessariamente construída por vontades coletivas1 1 As reflexões desse artigo são radicalmente atravessadas pelo diálogo, interlocução, convívio, enfim, pela partilha do pensar e do ser na academia (e fora dela) com muitas pesquisadoras. Agradecemos a todas elas. As integrantes do Diverso UFMG - Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero e do Grupo Ressaber da UFOP. Mestrandas e doutorandas em UFMG e UFOP e as participantes da disciplina “Direito do trabalho e epistemologias dissidentes”, como Cristiane, Rainer, Wanessa, Marco, Flávio, Bárbara, Natália, Ana Luíza, Jéssicas, Aysla, Rodrigo, Tito, Márcio, João Felipe, Maíra, Raquel, Rayann, Tauane, Igor, Marcela, Matheus, Bianca, Maria Clara, Nancy, Bruna, Tamíris, Taís, Breno e tantas outras. Interlocuções-chave, como as de Marcelo Maciel, Natália Lisbôa, Tatiana Ribeiro, Regina Stela Vieira, Iara Antunes, Karine Carneiro, Alexandre Bahia e muitas outras colegas. Incontáveis estudantes de graduação. Enfim, esse é, de fato, um escrito que traz muito em si desses momentos todos, dessas pessoas todas, e somos gratas por isso. .

Será impossível traçar em um curto espaço a genealogia das entradas críticas no estudo do direito no ambiente institucional em que estávamos, e estamos. Mas não somos nem de longe as primeiras. A reflexão sempre insurgente da professora Daniela Muradas, da UFMG, por exemplo, tem essa natureza. E, aliás, o agir acadêmico dela que nos reuniu. E há, além dela, um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores nas faculdades de direito em universidades públicas brasileiras que há um bom tempo alimentam perspectivas críticas em muitos campos jurídicos. No entanto, o fato é que, nessa disciplina, passamos a lidar com temas e perspectivas que não se costumam ver sempre no direito do trabalho.

Isso tampouco significa que o direito do trabalho seja algo hegemônico. Ele é, nesses mesmos espaços, uma trincheira, diante dos demais ramos do direito, sempre mais fortes, mais ricos, mais poderosos e, portanto, mais “jurídicos”. Se posiciona ele mesmo de maneira contra-hegemônica. O que nos obriga aqui a encarar o desafio de fazer crítica dissidente em um movimento que situa holisticamente as coisas. Fica, aqui, um último ponto de reflexão introdutória que deve se manter, para nós, em cada entrelinha do que virá nos momentos posteriores do texto.

O direito do trabalho, no campo das relações jurídicas, é uma das maiores conquistas das subalternas do mundo moderno. Não de todas, não de maneira homogênea, não de modo triunfante, mas não por isso deixa de ser uma conquista social importantíssima. E essa conquista é constantemente ameaçada. Há muitas décadas, é certo, mas especialmente agora. E, note-se: sua destruição contemporânea não se relaciona com a proposta epistêmica que aqui desenharemos. Ele está sendo destruído para atender interesses econômicos ostensivamente colocados, que se constituem em uma série de, do ponto de vista científico, mentiras. A mentira de que a proteção trabalhista é cara, de que ela impede o desenvolvimento, o crescimento econômico e a geração de empregos. De que o direito do trabalho, afinal, protege demais. Há prova científica farta disso de que tudo isso é mentira (por exemplo, DEAKIN, 2016DEAKIN, Simon. The contribution of labour law to economic development & growth. Cambridge: University of Cambridge, 2016.; CESIT, 2017).

Quando criticamos o direito do trabalho aqui, então, de certa maneira também o defendemos. Queremos para ele um destino radicalmente oposto a esse que se desenha contemporaneamente. Esse destino de destruição, sabemos, pode pretender se apropriar da crítica que faremos. É um risco que a literatura dissidente já aponta há tempos (LUGONES, 2008LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101, 2008.; SEGATO, 2012SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES, Coimbra, n. 18, p. 106-131, 2012.; PUAR, 2013PUAR, Jasbir. Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa: interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 343-370, jul./dez. 2013.; COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.). Porém, uma constatação sempre emergirá: a simples destruição do emprego regulado, típico e protegido, como tem acontecido, nada mais é do que um aprofundamento da colonialidade, do racismo, do sexismo, do capacitismo e da LGBTQIAfobia. São esses corpos que sofrem primeiro e mais fortemente os efeitos da precariedade no trabalho.

Insistimos, então, nesse lugar outro. Que compreenda a defesa histórica e política das categorias do direito do trabalho sem se furtar ao exercício de compreensão de suas contradições. E sem abandonar o difícil processo de abri-lo a modos de pensamento que centralizem essas mesmas contradições. Sem abdicar do exercício de um outro pensar, um pensar dissidente.

Metodologicamente, o artigo que ora se apresenta é fruto de pesquisa jurídica extensa e interdisciplinar. O artigo tem duas perguntas básicas. Uma de partida, a outra de conclusão. A primeira, esboçada acima, é: como o direito do trabalho se relaciona com a crítica social? A partir dela, desenham-se com mais precisão os contornos dessa relação, tanto no que ela tem de transformadora quanto de inibidora. Instiga-se, aqui, a crítica trabalhista a pensar o seu pensar, considerando como ponto de partida aquilo que esteve de fora dos seus modos de intelecção. Nesse itinerário, passamos pela definição de epistemologia como projeto de poder moderno/colonial, para chegar, depois, às dissidências epistemológicas. Após uma revisão da literatura dissidente, conectada com esses modos de ser, viver e conhecer das subalternidades, um dos principais contributos da pesquisa talvez seja uma tentativa de caracterização de epistemologias dissidentes. Em um conceito, aberto e provisório, vazado de politicidade e altamente negociável, que talvez permita explorações futuras. E esse conceito nos leva à pergunta de conclusão: o que o direito do trabalho poderá fazer a partir dessas epistemologias dissidentes?

2. O direito do trabalho entre os limites e potencialidades da crítica

Para que se fale em dissidência no campo do direito do trabalho é preciso assumir e dialogar com um pressuposto importante, sob pena de se construir uma caricatura argumentativa: no universo do direito, o direito do trabalho ele mesmo é produto da crítica. A relação entre direito do trabalho e crítica é, desde as suas origens, essencial. Os movimentos, gestos, ideias, figuras, institutos básicos desse ramo do direito, em sua estruturação, são, em larga medida, críticos. Ou seja, contrários à tradição social e jurídica. O direito do trabalho é como uma infiltração. Há algo nele de contraposição à ordem geral da exploração do trabalho humano que se entremeia e tenta se expandir. Ele vai buscar seus caminhos nas frestas do sólido regime patrimonialista do direito comum. Vai desestabilizando pelas porosidades o regime punitivista do direito criminal, ou erodindo, com sua forma jurídica própria, as paredes concretas do direito constitucional moderno, mostrando que elas são construídas por abstrações compactadas.

Enfim, nosso pressuposto aqui é que o horizonte epistemológico por excelência do direito do trabalho, enquanto campo do saber jurídico, é aquilo que se pode chamar crítica. Tomemos, aqui, provisoriamente (como qualquer definição), o conceito de crítica de Patricia Hill Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.). Embora Collins estabeleça seu conceito para o desenvolvimento do pensamento crítico feminista negro estadunidense, ela demarca conceitualmente algo importante para nossa compreensão ampla (e subalterna) de crítica.

Uma teoria social crítica, para Collins, exprime um conhecimento adquirido e desenvolvido para se opor à opressão vivenciada historicamente por um grupo (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.). A forma assumida pelo pensamento social crítico diverge, então, das teorias acadêmicas que se impõem como padrão. Isso porque o propósito deste pensamento coletivo é distinto. A crítica emerge de grupos oprimidos (mesmo que não de forma exclusiva) que visam encontrar maneiras de sobreviver e resistir à injustiça social e econômica (COLLINS, 2019). Nada disso se passa em uma atmosfera etérea, mas sim de violências experimentadas enquanto coletividade (COLLINS, 2019). A crítica, portanto, conecta-se à elaboração e transmissão de saberes coletivos subjugados, que foram capazes de construir projetos de conhecimento sobre relações de poder históricas, mesmo com parâmetros outros de validação epistemológica (COLLINS, 2019). Esse caráter insurgente da crítica suscita reações imediatas dos poderes hegemônicos. Por isso, tais saberes críticos são constantemente desqualificados como meramente locais, subversivos ou aquém do nível de cientificidade por aquelas que controlam os procedimentos de validação do saber (COLLINS, 2019).

Com esse conceito em mente, como compreender a relação de direito do trabalho e crítica? O primeiro passo para tentar responder a essa pergunta é entender uma ambiguidade de partida. Como dizíamos, o direito do trabalho tem íntima relação com a crítica. Ao mesmo tempo, a grande crítica no horizonte da reflexão dele foi imposta pela modernidade industrial europeia: a opressão da classe trabalhadora como o conflito por excelência. Não que os movimentos feministas, negros, subalternos do Sul não existissem, como forma de luta de trabalhadoras2 2 Um entre muitos exemplos é a greve negra de 1857 na Bahia, retratada por REIS, 2019. e como teoria social crítica. Tais saberes coletivos subjugados sempre estiveram presentes, mas foram ocultados, suprimidos, gentrificados, usurpados e/ou confinados no não-lugar científico do costume, da religião, do folclórico, do exótico, da política comunitária.

Para compreender melhor essa ambiguidade, é preciso perceber que o direito do trabalho, apesar de ser resultado da crítica, também é fruto da modernidade/colonialidade. Para Aníbal Quijano (2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In CLACSO (org.). Colonialidad del saber. Buenos Aires: CLACSO, 2000.), colonialidade é o complexo modo de permanência das estruturas de poder da modernidade colonial em cada campo da existência social, inclusive no saber. O ambiente de poder no qual se concebe o direito do trabalho na Europa, e, depois, no resto do mundo, foi constituído na/pela colonialidade. O direito do trabalho subestimou e subestima formas de conhecimento consideradas “não-científicas” sob os critérios epistêmicos da modernidade. Conhecimentos femininos, de povos originários, negros, do Sul. Talvez seja por isso que a crítica moderna, que foi substrato do direito do trabalho, represente maior continuidade paradigmática do que ruptura. Há uma mudança que, ainda que crítica, opera dentro da mesma tradição, que continua rejeitando outras formas de saber como científicas ou academicamente válidas.

A expressão mais conhecida dos limites críticos dos saber jurídico-trabalhista diz respeito à própria natureza ambivalente do ramo como um todo. Aqui não dizemos nenhuma novidade: está em quase todo manual trabalhista contemporâneo um relato da dupla função que o direito do trabalho exerce. Ele encampa as energias de transformação dos movimentos de resistência, de um lado. Mas, do outro, ao estabelecer um regime jurídico da exploração, mantém o mundo como está. Nas leituras mais simplificadas dessa contradição, desenha-se uma espécie de contentamento. Esta função conciliatória do direito do trabalho com o capital é abordada de maneira genérica e pronto: vai-se adiante.

Mas há um conjunto crítico que, desde o início da experiência trabalhista moderna, percebe a profundidade dessa contradição. Marx, os marxismos e a teoria crítica denunciaram, desde o século XIX, a dimensão das operações socioeconômicas que sustentam o modelo produtivo e produzem com ela uma forma específica de sociabilidade. Esta reflexão é igualmente desenvolvida no direito, por juristas, com grande vigor. Teóricos como o jurista soviético Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evgueni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.), ainda nos anos 1920, se engajaram nesse processo. Expõe-se que o trabalhador não é somente explorado na materialidade da carne. Ele é levado ao trabalho por meio de um vínculo jurídico abstrato, de tal modo que sua sujeição corporal é mediada por categorias do direito (MASCARO, 2009MASCARO, Alysson Leandro. Pachukanis e Stutchka: O Direito, entre o poder e o capital. In: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). O discreto charme do direito burguês: Ensaios sobre Pachukanis. Campinas: UNICAMP, 2009. p. 45-52.). “Cria-se a possibilidade de abstrair as diferenças concretas entre os sujeitos de direitos e de reuni-los sob um único conceito genérico” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgueni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017., p. 125). Em outras palavras: “há uma dinâmica de exploração lastreada no próprio direito” (MASCARO, 2009, p. 49).

Os debates críticos se seguiram fortes no século XX, com autores como Bernard Edelman (2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.), desde os anos 1970. Aqui entre nós, no direito do trabalho, Reginaldo Melhado (2003MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição: os fundamentos da relação de poder entre capital e trabalho e o conceito de subordinação. São Paulo: LTr, 2003.), Wilson Ramos Filho (2012), Jorge Luiz Souto Maior (2000SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.), Flávio Roberto Batista (2013BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da tecnologia dos direitos sociais. São Paulo: Outras expressões / Dobra editorial, 2013.), Gustavo Seferian (2016), entre muitos outros, operam nesse círculo da crítica densa ao modelo sociopolítico e à sua expressão na regulação do conflito trabalhista. Analisam e compreendem os contornos da contradição em termos bastante distintos de uma literatura tradicional.

Nota-se algo importante aqui. Há a prevalência masculina-branca nos trabalhos de crítica jurídica ao modelo socioeconômico. Algo que se conecta com a divisão sexual e racial do trabalho (também) científico. Que faz com que a produção crítica de pensadoras como Aldacy Rachid Coutinho (1999COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista. São Paulo: LTr, 1999.), Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva (2008SILVA, Sayonara Grillo. Relações coletivas de trabalho: configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.), Felipe Santos Estrela de Carvalho (2015), Juliana Teixeira Esteves (2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O direito da seguridade social e da previdência social: a renda universal garantida, a taxação dos fluxos financeiros internacionais e a nova proteção social. Recife, Editora UFPE, 2015.), Valdete Souto Severo (2016SEVERO, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2016.), Daniela Muradas (2017), Maíra Neiva Gomes (2018GOMES, Maíra Neiva. Horizontes Rebeldes: relações de trabalho e movimentos sociais no século XXI. Belo Horizonte: RTM, 2018.), Regina Stela Vieira (2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Doutorado (Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), e tantas outras, fique menos visível. Mas a produção delas compõe fortemente esse núcleo de uma crítica trabalhista em movimento, com contributos de alta densidade intelectual e insurgência contra-hegemônica (não só feminista ou racial). Além disso, são elas quem enunciam algo que vai se passar à crítica.

Nos próprios processos sociopolíticos implicados nesses estudos críticos trabalhistas no mundo inteiro nascem novos modos de insurgência. Por vezes contrapostos, ou surgindo ao lado, ou dentro, ou a partir de. Nas últimas décadas, as expressões da crítica social se expandem radicalmente e ganham novo corpo. Muitas das próprias autoras e autores da crítica trabalhista (dessa nossa lista anterior, e para muito além dela) se engajam nessa transformação.

No Brasil, um dos maiores expoentes desse momento expansivo e de transição para um novo corpus crítico do direito do trabalho é Everaldo Gaspar Lopes de Andrade. Gaspar (2005ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Direito do trabalho e pós-modernidade: fundamentos para uma teoria geral. São Paulo: LTr, 2005.; 2007; 2014), em três livros (Direito do trabalho e pós-modernidade: fundamentos para uma teoria geral; Princípios de direito do trabalho: fundamentos teórico-filosóficos; O direito do trabalho na filosofia e na teoria social crítica), passa a oferecer em bases ampliadas uma nova teoria do conhecimento jurídico-trabalhista. Abre-se muito em crítica, em diálogos, temas, angulações que não se viam muito na reflexão.

Assim é que, no movimento mais amplo da história política e intelectual que atravessa o direito do trabalho, passam a ser apontados os limites mesmo daquilo que, no início do século XX, se anunciara como teoria crítica. O que se critica é, justamente, um caráter parcial da crítica. É aqui que nosso texto se insere. Pretendemos contribuir, ainda que de forma incipiente, com um giro epistêmico que discuta os limites de uma postura simplesmente defensiva de um modo de fazer crítica do e no direito do trabalho. Um modo que se pode traduzir em um apego analítico a certas categorias. Especialmente à relação de emprego padrão. Partimos, como dissemos, do pressuposto de sua absoluta importância como conquista sociopolítica subalterna. Mas reduzir a reflexão crítica a uma operação de defesa, a algo dual, de incluir/não-incluir na categoria jurídica do emprego protegido, não nos satisfaz. Sufoca questionamentos importantes sobre as bases nas quais se constituiu o conhecimento, prática e experiência do direito do trabalho. Este gesto defensivo do modo dominante da crítica juslaboral é anticrítico. Ele simplifica o nosso papel intelectual, reduzindo-o ao de fiscalizadoras. De guardiãs incansáveis do imperativo da relação de emprego protegido. E, com isso, classifica sumariamente o interesse em explorar outras abordagens de teorização crítica: é sempre problemático.

Nossa crítica visa, portanto, conectar-se a movimentos que, de uma forma ou de outra, pretendem ir um pouco (ou muito) além das ideias representadas pelo pensamento social até então. Inclusive o crítico. Esses movimentos é que, em muitas frentes, de muitas formas, na produção e ação, passam a expressar aquilo que chamaremos de epistemologias dissidentes, convidando a repensar os modos de pensar o direito do trabalho. Por isso faremos aqui um recuo. Uma requalificação do debate que o compreenda nos marcos da epistemologia, um pensar sobre o pensar. Saber sobre o saber. A nossa grande pergunta a partir daqui é: que são epistemologias dissidentes e como elas se relacionam com os horizontes do direito do trabalho?

3. Os significados de epistemologia: possibilidades para além do projeto moderno/colonial do saber

Comecemos por epistemologia. O que hegemonicamente se entende por epistemologia, de maneira supostamente neutra e puramente conceitual, esconde um projeto de poder. Nas últimas décadas, extensa literatura (ANZALDÚA, 1987ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/la frontera: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.; SANTOS, 1988SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 46-71, mai./ago. 1988.; HARDING, 1988HARDING, Sandra. Feminism and Methodology: Social Science Issues. Bloomington: Indiana University Press, 1988.; HARAWAY, 1988HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, College Park, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988.; MOHANTY, 1991MOHANTY, Chandra. Third World women and the politics of feminism. Bloomington: Indiana University Press, 1991.; MIGNOLO, 2006MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. p. 667-771.; GROSFOGUEL, 2007; LUGONES, 2008LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101, 2008.; NUNES, 2008NUNES, João Arriscado Nunes. O resgate da epistemologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 45-70, 2008.; WALSH, 2019WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Pelotas, Pelotas, v. 5, n. 1, p. 6-39, 2019.) vem construindo uma teoria crítica à epistemologia como elemento indissociável da modernidade. Essa literatura rejeita justamente um projeto unívoco do saber, com a reivindicação da democratização de definição dos critérios que estabelecem o que é conhecimento e como ele pode ser validado.

A epistemologia na modernidade foi convertida de uma teoria do conhecimento para uma teoria eurocêntrica do conhecimento científico. O caráter de ciência foi negado a todas as outras formas de saber que não se pautassem em herméticos procedimentos metodológicos, com marcadores autodeterminados por homens europeus. Esta homogeneização também emerge da forma como a revolução científica foi concebida: como um triunfo da modernidade na perspectiva da própria modernidade (MIGNOLO, 2006MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. p. 667-771.). Uma autocelebração que negava às outras ciências e ao resto da humanidade3 3 Segue um exemplo desse processo eurocêntrico de racismo epistêmico: “Os Negros de África não têm por natureza nenhum sentimento que se eleva acima do insignificante. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo de um Negro que tenha mostrado talentos, e afirma que entre as centenas ou milhares de negros que são transportados dos seus países para outros lugares, ainda que muitos deles tenham sido libertados, ainda não foi encontrado nenhum que tenha apresentado algo de grandioso na arte ou na ciência” (KANT, 1993, p. 75-76). a capacidade de pensar e produzir conhecimento fora dos padrões criados de supremacia epistêmica (MIGNOLO, 2006). Por trás do conceito moderno de razão científica permaneciam os totalitarismos epistêmicos que a teologia havia instaurado, com números4 4 Mignolo (2006) ressalta que a produção científica de civilizações antigas das Américas, que apresentavam um elevado grau de sofisticação em matéria de números, foram de difícil compreensão para os teólogos europeus treinados nas letras, de modo que no século XVIII já tinham sido declaradas primitivas e, consequentemente, fora da marcha triunfal da razão “ocidental”, que viria a substituir a teologia cristã. no lugar das letras. De modo que, apesar de suas imensas contribuições, a revolução científica pode ser considerada uma “revolução caseira”: há um deslocamento dentro do mesmo paradigma “ocidental” (MIGNOLO, 2006).

Diante desta estreita relação da consolidação da epistemologia enquanto teoria de conhecimento com a origem do projeto moderno/colonial de ciência, chega-se em um epílogo científico (NUNES, 2008NUNES, João Arriscado Nunes. O resgate da epistemologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 45-70, 2008.): seria o fim da epistemologia enquanto teoria que determina o que vale como saber? (NUNES, 2008).

A compreensão das muitas ambiguidades no próprio processo de produção do que a Europa entendeu como epistemologia recompõe as origens dessa crise do conhecimento. Na decantação do projeto ideológico de uma Europa moderna, a ideia de epistemologia se coloca como um ramo da filosofia que se ocupa da própria produção dos saberes, do conhecimento, em geral (na tendência anglo-saxã), e particularmente do conhecimento científico em si (na tradição da Europa continental) (NOËL, 2014NOËL, Patrick Michel. Épistémologie, histoire et historiens. 2014. Doutorado (História) - Université Laval, Québec, Canadá.). Diz estudar os princípios, as hipóteses, os fundamentos, para avaliar criticamente o valor e importância do saber científico.

É, então, em uma Europa ideológica e contraditória que se define o que hegemonicamente se tem por epistemologia. Quando Lalande (1999LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), em seu famoso dicionário de filosofia, publicado originalmente em 1923, recolhendo os desenvolvimentos teóricos que se seguiram, define a epistemologia, ele não diz, mas o conceito foi historicamente forjado a partir daquele mundo de contradições materiais. O que ele diz é que epistemologia é o “estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, destinado a determinar sua origem lógica (não psicológica), seu valor e seu alcance objetivo” (LALANDE, 1999LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 313). Vê-se, ali, uma tentativa de purificação do saber filosófico, de um expurgo de seu lugar violento de produção, que nos exige, nos constrange a todo tempo a um exercício de sublimação. Desconsiderar o que circunda5 5 Em 1854, ano de aparecimento do termo moderno “epistemologia” na Europa (NOËL, 2014), as contradições de uma modernidade que afirma sua objetividade científica e superioridade política e moral já eram bastante evidentes. A escravização de negras e negros africanos pelo mundo era prática articulada por esta mesma Europa, e juridicamente amparada em muitos países, como os Estados Unidos. E muitas supostas “teorias racionais” europeias e estadunidenses, “racismos científicos”, circularam nesse momento da história para justificar a escravidão (SILVEIRA, 2000). Em um mundo, aliás, que também ainda operava sob uma lógica abertamente colonial, de dominação de povos pela Europa. E que ainda veria décadas e décadas de formas abertas de colonialismo, como na abjeta “partilha da África”, que atravessou o final do século XIX e início do século XX. Também nesse ano de 1854 as mulheres não tinham direito ao voto em nenhum país dessa Europa racional (RUBIO-MARÍN, 2014). E ainda no século XIX, no Reino Unido, um dos centros da discussão sobre essa teoria do conhecimento, dezenas de homossexuais foram condenados à morte pelo crime de sodomia (JOHNSON, 2018). A prática de criminalização das sexualidades dissidentes, desde a teorização, normatização e punição concreta, diga-se, tem raízes profundamente europeias. para que os conceitos universalistas eurocêntricos da razão se afirmem sem limitações. Ou seja, os homens europeus que enunciam e desenvolvem esse conceito e suas operações querem convencer que produzem seus saberes a partir de um ponto originário desmaterializado, sem subjetividade, não psicológico, que os levam ao lugar irrefutável da objetividade.

Para que, então, insistir no conceito de epistemologia por aqui? O que queremos não é justamente falar do que fica de fora dessa delimitação? De corpos, de lugares, de subjetividades? Como algo como a ideia de epistemologia, que termina tão impregnada desse projeto de poder da modernidade eurocentrada, pode ser dissidente?6 6 Perguntas semelhantes são o ponto de partida das Epistemologias do Sul, livro organizado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010).

Para nós, a resposta a essas perguntas passa por uma constatação: as epistemologias foram e podem ser muito mais do que isso. Esse conceito é, na verdade, uma especificidade forjada no pensamento europeu como resposta única, de uma só racionalidade, deslocalizada e pretensamente objetiva. Veja-se: uma avaliação crítica, por meio de racionalidades, da forma como o saber é produzido não se faz a um só modo. Ou seja, epistemologia não tem que ser o que o pensamento hegemônico tentou reproduzir. E por isso, pode sim ser dissidente. Racionalidades, no plural, que pensam os seus próprios processos de produção. E que também repensam os modos hegemônicos de pensar os conceitos, fazendo-o a partir de posições de inerente dissidência.

Enquanto proposta, isso significa, necessariamente, uma descontinuidade radical do projeto epistêmico moderno/colonial, para que o pensamento eurocêntrico deixe de ser o único parâmetro de validação de conhecimento científico (NUNES, 2008NUNES, João Arriscado Nunes. O resgate da epistemologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 45-70, 2008.). Variações de conhecimento dentro do mesmo paradigma, dentro do mesmo locus de enunciação, que se presume neutro e natural - como a própria teoria crítica europeia - não são dissidentes, pois constituem outros modos de saber dentro da mesma tradição: um pluralismo interno (NUNES, 2008).

Para haver a ruptura deste padrão moderno/colonial de saber, devemos partir do pressuposto que não existem critérios epistêmicos soberanos (NUNES, 2008NUNES, João Arriscado Nunes. O resgate da epistemologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 45-70, 2008.). Isso não significa um simples deslocamento redutivista de soberania epistêmica para o campo social ou uma homogênea equalização de saberes (NUNES, 2008). A demarcação do que é conhecimento científico é situacional e provisória (NUNES, 2008). Nenhuma forma de saber deve ter o privilégio de ser considerada como mais válida ou científica do que outras (NUNES, 2008). Isso porque o conhecimento e seus processos de validação existem em diversos contextos espaciais-temporais, localizados em relações de poder em termos de uma geopolítica de conhecimento. Pensar sob a perspectiva geopolítica não se refere apenas ao espaço físico, mas também aos espaços históricos, sociais, econômicos, culturais, discursivos e imaginados das sujeitas que produzem saber (ANZALDÚA, 1987ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/la frontera: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.). Trata-se de desvelar os espaços que foram desenhados nas cartografias da subalternidade do outro na modernidade. Espaços em que as fronteiras de poder são formadas, negociadas, transgredidas e desenvolvidas (WALSH, 2019WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Pelotas, Pelotas, v. 5, n. 1, p. 6-39, 2019.).

Portanto, fazemos parte de uma espécie de constelação de posições críticas da epistemologia que, mais do que promover e celebrar a sua dissolução, reivindica a necessidade e urgência de uma epistemologia radicada nas experiências subalternas. Que é proveniente de múltiplas inteligibilidades, ações e agentes (SANTOS; MENESES, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez. 2010.). Como ressaltam Santos e Meneses (2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez. 2010.), a importância do pluralismo epistemológico - interna e externamente - trata-se não somente de um giro gnosiológico, mas também de uma redefinição ontológica em relação aos sujeitos e às sujeitas que produzem estes saberes historicamente considerados subalternos.

O pensamento crítico que reconhece estas fronteiras geopolíticas de poder na produção do conhecimento é a resposta epistêmica subalterna ao projeto eurocêntrico da modernidade (GROSFOGUEL, 2007). Ao invés de rejeitar a modernidade para se recolher em um absolutismo fundamentalista, pretendemos nos alinhar à redefinição da retórica emancipatória da modernidade a partir de epistemologias dissidentes. Isso nos leva a uma ambiciosa tentativa de reimaginar categorias, princípios e valores centrais das relações do ser e do saber, em um processo geopolítico de desobediência epistêmica7 7 Em razão da colonialidade do saber, segundo Mignolo (2010), a desumanização das pessoas colonizadas, mediante a dialética de inferiorização do outro perpetrada pelo colonizador, também produziu o agenciamento epistêmico. Assim, para o autor, todo processo de decolonialidade política deve suscitar uma desobediência epistêmica em relação ao eurocentrismo (MIGNOLO, 2010). (MIGNOLO, 2006MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. p. 667-771.). Um gesto epistêmico definitivamente dissidente, que poderá, depois, nos ajudar a pensar o direito do trabalho de forma outra.

3. O que são “epistemologias dissidentes”?

Tomemos aqui o adjetivo dissidente no sentido de sua origem etimológica. Dissidente é uma pessoa que, literalmente, se sentou com o lado oposto: a soma do prefixo dis (contra, em discordância), com sedere, (sentar-se) (MERRIAM-WEBSTER, 2021).

O que vamos tentar fazer a partir daqui é exatamente isso: sentar-nos intelectualmente ao lado de quem não esteve nas mesas das teorias hegemônicas (e nem das teorias críticas...). Sentar-nos com aquelas e aqueles que, em última análise, não foram vistas pelas teorias hegemônicas como aptas e aptos a avaliar o valor do saber que produzem a partir de certos princípios e fundamentos. Aliás, nos sentamos com aqueles e aquelas cujos modos de viver e pensar, nos últimos séculos, sempre foram reputados como não racionais, não científicos, não verdadeiros, inválidos, repulsivos, abjetos. E faremos isso para repensar, no futuro, a própria concepção dos fundamentos do direito do trabalho, (re)teorizando a partir desses lugares dissidentes as bases mesmas da teoria do conhecimento jurídico-trabalhista.

É evidente que não somos, nem de longe, as primeiras a fazer algo nessa direção. Há uma vasta articulação de teorias do conhecimento que se constituem a partir da pluralidade epistêmica contra-hegemônica. Talvez possam todas elas ser reunidas sob a chave daquilo que Karina Bidaseca e Maria Paula Meneses (2018BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula. Introdução: as epistemologias do Sul como expressão de lutas epistemológicas e ontológicas. In: BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologías del sur - Epistemologias do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 11-21.) nomeiam “lutas epistemológicas”. Lutam as sujeitas que produzem saberes pelo reconhecimento de um valor e alcance para o que sabem e fazem, não a partir de sua esterilização psíquica e desmaterialização espacial. Mas a partir do contrário disso. Do que o conceito moderno e europeu de epistemologia rejeita: racionalidades plurais, espaço, tempo, práticas concretas, subjetividades, na relação com saberes que produzem efeitos. Esse texto, então, se comunica fortemente com produções anteriores que nomeiam esses espaços de outras formas, em movimento, num giro epistêmico decolonial (GROSFOGUEL, 2007; LUGONES, 2008LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101, 2008., ESPINOSA-MIÑOSO, 2014ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El Cotidiano, Cidade do México, n. 184, p. 7-12, mar./abr. 2014.): epistemologias do Sul (MENESES; BIDASECA, 2018BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula. Introdução: as epistemologias do Sul como expressão de lutas epistemológicas e ontológicas. In: BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologías del sur - Epistemologias do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 11-21.; SANTOS; MENESES, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez. 2010.); epistemologias de fronteira (ANZALDÚA, 1987ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/la frontera: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.; MIGNOLO, 2013MIGNOLO, Walter. Geopolitics of sensing and knowing on (de)coloniality, border thinking, and epistemic disobedience. Confero, Linköping, v. 1, n. 1, p. 129-150, 2013.); epistemologias insurgentes (WALSH, 2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008.; CECEÑA, 2008CECEÑA, Ana Esther. Hegemonia, emancipaciones y politicas de seguridad en América Latina: dominación, epistemologias insurgentes, territorio y descolonización. Lima: Programa Democracia y Transformación Global, 2008.; HERMIDA; MESCHINI, 2017HERMIDA, Maria Eugenia; MESCHINI, Paula (orgs.). Trabajo social y descolonialidad: epistemologias insurgentes para la intervención en lo social. Mar del Plata: Universidad Nacional de Mar del Plata, 2017.); epistemologias contra-hegemônicas (TAVARES; GOMES, 2019TAVARES, Manuel; GOMES, Sandra. Epistemologias contra-hegemônicas: desafios para a educação superior. Curitiba: Apris, 2019.); epistemologias subalternas (SPIVAK, 1996SPIVAK, Gayatri Chakravorty. The Spivak Reader. Edited by Donna Landry & Gerald MacLean. New York: Routledge, 1996.; BALLESTRIN, 2017); além de formulações específicas das epistemologias feministas, negras, queer. Que, aliás, podem ser pensadas todas a partir da ideia de pontes epistemológicas, de construção de coalizões, de translocalidades e histórias entretecidas de pensamento e prática em estados e processos de opressão. Esse, aliás, é o conceito de “epistemologias conectantes”, elaborado por Agustín Lao-Montes e Mirangela Buggs (2014), também trabalhado por Cláudia de Lima Costa (2020COSTA, Claudia de Lima. Latin America, decoloniality, and translation: Feminists building connectant epistemologies. In: PITTS Andrea J.; ORTEGA, Mariana; MEDINA, José (orgs.). Theories of the flesh: Latinx and Latin American feminisms, transformation, and resistance. New York: Oxford University Press, 2020. p. 171-187.) e Sonia Alvarez (2009ALVAREZ, Sonia E. Construindo uma política feminista translocal da tradução. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17, n. 3, p. 743-753, 2009.).

Nosso texto se conecta com estas epistemologias, mas assume para si a ideia central da dissidência. Essa ideia aparece quase como uma responsabilidade epistêmica, precisamente pelo lugar teórico no qual esse texto se insere: o direito. Nessa arena disputada, nos parece, evidenciar o caráter contraposto, insurgente, dessas epistemologias é ainda mais essencial, dada a prevalência dos modos estreitos e monopolistas do pensamento jurídico. O pensamento hegemônico, por evidente, mas também o pensamento jurídico crítico. Há, assim, uma força própria ao sentido da dissidência que nos interessa no conceito, que vem da necessidade imposta pelos cânones jurídicos. Pensar de modo dissidente o próprio pensar do direito. São epistemologias dissidentes em face disso. Mas conectantes, entre si, por essa mesma dissidência.

Epistemologias dissidentes, pois. Essa expressão, formulada exatamente assim, também já começa recentemente a aparecer na literatura brasileira (POCAHY, 2016POCAHY, Fernando. (Micro)políticas queer: dissidências em pesquisa. Textura, Canoas, v. 18, n. 38, p. 8-25, 2016.; CYPRIANO, 2015CYPRIANO, Breno Henrique Ferreira. Teoria política feminista e seus “nós”: “a” política e “o” político (re)pensados a partir da construção dos saberes políticos do Norte/Sul Global. 2015. Doutorado (Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.; MOUNTIAN, 2017MOUNTIAN, Ilana. Reflexões sobre metodologias críticas em pesquisa: interseccionalidade, reflexividade e situacionalidade. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 17, n. 40, p. 454-469, 2017.) e internacional (ÇAĞLAYAN, 2020ÇAĞLAYAN, Handan. Women in the Kurdish movement: mothers, comrades, goddesses. Londres: Palgrave Macmillan, 2020.; MACK; NA’PUTI, 2019MACK, Ashley Noel, NA’PUTI, Tiara R. “Our Bodies Are Not Terra Nullius”: Building a Decolonial Feminist Resistance to Gendered Violence. Women’s Studies in Communication, Oxford, v. 42, n. 3, p. 347-370, 2019.), nas mesmas direções das disputas epistemológicas dessas outras formulações referidas.

Há uma utilização da expressão na produção acadêmica contemporânea que nos interessa particularmente aqui. Em 2005, Jules Falquet, Ochy Curiel e Sabine Masson organizaram a primeira edição em castelhano da respeitada Revista Nouvelles Questions Féministes, sob o título “Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe”. As autoras, ao idealizarem esta edição da Revista, destacam a necessidade de se infiltrar nas barreiras acadêmicas vivas da linguagem, geopolítica, raça, classe, sexualidade para experienciar e disseminar coletividades dissidentes (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules; MASSON, Sabine (coords.). Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe. Editorial. Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, v. 24, n. 2, p. 4-13, 2005.). Elas descrevem como este processo foi desafiador e contraditório, pois não queriam repetir a usurpação de conhecimento recorrentemente feita por mulheres do Norte em relação às mulheres do Sul (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005). Por isso, elas buscam uma epistemologia dissidente que transborda as fronteiras da divisão do trabalho intelectual e militante (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005).

Contudo, elas se mantiveram sempre conscientes de seus limites, dados pela localidade social e epistêmica: “nosso feminismo pequeno-burguês nos distancia radicalmente (desta vez sim) das trabalhadoras, prisioneiras, prostitutas e vendedoras ambulantes, entre tantas marginalizadas, porque muitas vezes suas lutas não são contadas com letras, mas com vozes8 8 No original: “(..)nuestro feminismo pequeño burgués nos aleja radicalmente (esta vez que sí) de las obreras, presas, prostitutas y vendedoras de la calle, entre tantas marginadas, porque muchas veces sus luchas no se dicen con letras sino con voces”. ” (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules; MASSON, Sabine (coords.). Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe. Editorial. Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, v. 24, n. 2, p. 4-13, 2005., p. 6, tradução nossa). A erradicação dessas barreiras ainda tem algo de uma busca utópica feminista (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005). Mas uma busca que se mantém potente, porque tensiona a hegemonia e a parcialidade de pensamentos, inclusive os nossos próprios. Portanto, as autoras, assim como nós, assumem a abertura híbrida como posição política, atravessando formas diversas de transmitir e criar conhecimento, sem imposição de estilo acadêmico e de prática de luta (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005).

A terminologia “lutas dissidentes” preponderou sobre a primeira escolha das autoras - o termo “lutas radicais” - diante desta contradição da (im)potência revelada. “Provavelmente houve muita pretensão de nossa parte e, acima de tudo, muita ignorância sobre a polissemia da palavra ‘radical’, de acordo com os contextos em que as mulheres estão envolvidas”9 9 No original: “Fue probablemente mucha pretensión de nuestra parte y sobre todo mucha ignorancia sobre la polisemia de la palabra ‘radical’ según los contextos en los cuales las mujeres están involucradas”. (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules; MASSON, Sabine (coords.). Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe. Editorial. Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, v. 24, n. 2, p. 4-13, 2005., p. 7, tradução nossa). As autoras explicam: “radical” pode representar uma lei que defenda o pagamento do trabalho doméstico (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005). Mas também pode significar obter uma denúncia à Organização das Nações Unidas sobre violência militar contra mulheres (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005). “Isso não porque são menos radicais, mas por causa do contexto em que estão lutando e construindo sua própria radicalidade10 10 No original: “Todo eso no por ser menos radicales, sino por el contexto en el cual están luchando y construyendo su propia radicalidad”. ” (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005, p. 7, tradução nossa). Devido a essa complexidade situacional, o uso da palavra “lutas radicais” as colocou em uma séria dificuldade de definição (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005).

Assim foi que escolheram dissidentes. Para questionar um pensamento único e universalizável do feminismo, que não considera sistemas de opressão articulados, como racismo, cisheteronormatividade, capacitismo, aporofobia e neoliberalismo (CURIEL, FALQUET, MASSON, 2005CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules; MASSON, Sabine (coords.). Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe. Editorial. Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, v. 24, n. 2, p. 4-13, 2005.). Contudo, mesmo diante desta posicionalidade de abertura híbrida, que revela imensas possibilidades, as autoras ainda insistem na parcialidade e na limitação do trabalho proposto.

O que vemos de todo esse itinerário de contestação dos sentidos de epistemologia a partir da dissidência tem pelo menos duas dimensões. Primeiro, a profusão de formulações propriamente epistemológicas no mundo. A ideia de teoria do conhecimento, de métodos e comprovação, de pensamento sobre a existência e formas do saber, não é monopólio de um povo ou cultura. E, segundo, essas epistemologias não eurocentradas tampouco são em si uma coisa só, fechada, um “outro” completo e externo. Firma-se aquilo que Santos e Meneses (2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez. 2010., p. 12) veem como uma diversidade epistemológica. As tensões internas, hegemonias contestadas, disputas históricas, espaciais, atravessam essas experiências localizadas de produção e reflexão sobre a produção dos saberes. E a dissidência, assim, é algo que se produz e reproduz em contextos variados.

Dito tudo isso, para nós, epistemologias dissidentes são um conjunto de modos de compreensão da produção dos saberes subjetiva, espacial, histórica, corpórea e materialmente localizados, a partir de racionalidades outras que não uma única razão objetiva e hegemônica. As epistemologias dissidentes, em seu conceito e práxis, reclamam para si valor e importância e, por isso, se contrapõem às construções teóricas, às práticas materiais, às instituições, às estruturas, aos discursos e a quaisquer outras formas de pensar e agir que, ao lhes negar valor, negam valor às pessoas e comunidades que as produzem.

O conceito, vejam, não nega a racionalidade europeia, em uma espécie de “nossocentrismo” (LISBÔA, 2020LISBÔA, Natália de Souza. Nossocentrismo: para o que não tem solução. In: LISBÔA, Natália de Souza (org.). Igualdade na diversidade. Belo Horizonte: Initia Via, 2020.). Apenas a nega como a única. Ou como ponto de classificação de todas as demais. Mas esse gesto não significa, como já amplamente discutiu a literatura crítica (ANTHIAS, 2002ANTHIAS, Floya. Beyond feminism and multiculturalism: locating difference and the politics of location. Women’s Studies International Forum, Londres, v. 25, n. 3, p. 275-286, 2002.; WALSH, 2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008.; DUNFORD, 2017DUNFORD, Robin. Toward a decolonial global ethics. Journal of Global Ethics, Oxford, v. 13, n. 3, p. 380-397, 2017.), que tudo valha, numa versão tacanha do multiculturalismo liberal ou do relativismo absoluto. Ou tampouco que haja qualquer forma de superioridade, ou um valor maior e inerente à dissidência. Especialmente em se falando de epistemologias no campo do direito, do ponto de vista dos valores éticos nas comunidades morais que os produzem. E do que regula a vida social. Rita Laura Segato (2006SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 207-236, 2006., p. 225) diz melhor do que poderíamos: “os direitos estão na história, desdobram-se e transformam-se porque um impulso de insatisfação crítica os mobiliza”. E completa: “Nem a insatisfação, nem a dissidência ética são patrimônio de um povo em particular, mas atitudes minoritárias na maioria das sociedades. São elas os vetores que assinalam o que falta, o que não pode continuar como é”.

Entendemos, então, que a questão é promover um deslocamento, um deslizamento no campo do direito do trabalho a partir desses vetores localizados da dissidência. Para pensar novamente os próprios processos de intelecção de seus fundamentos. Isso, para nós, dará corpo à expansão daquilo que Karina Bidaseca e Maria Paula Meneses (2018BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula. Introdução: as epistemologias do Sul como expressão de lutas epistemológicas e ontológicas. In: BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologías del sur - Epistemologias do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 11-21.) chamam de uma justiça cognitiva global, essencial para a própria ideia de justiça. Isso porque, esse repensar do direito do trabalho a partir da dissidência abre a possibilidade de “imaginação de futuros anteriormente inimaginados” (BIDASECA; MENESES, 2018BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula. Introdução: as epistemologias do Sul como expressão de lutas epistemológicas e ontológicas. In: BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologías del sur - Epistemologias do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 11-21., p. 19).

É o que, já no direito do trabalho, Romina Lerussi (2014LERUSSI, Romina. Matriz heterosexual y matriz heterojurídica: in(ter)venciones conceptuales feministas para pensar el empleo doméstico. Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 220-239, 2014.) vai perceber como um processo jurídico-discursivo de desestabilização dos regimes epistêmicos que produzem e regulam o emprego. No caso da reflexão de Lerussi, propõe-se esse gesto no emprego doméstico com as epistemologias feministas. Para nós, esse gesto deve ser ainda mais expandido (como em MURADAS; PEREIRA, 2018MURADAS, Daniela; PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Decolonialidade do saber e direito do trabalho brasileiro: sujeições interseccionais contemporâneas. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 20, n. 20, p. 1-26, 2018.), para tornar visível na teoria jurídica respostas dadas a partir de outros lugares.

É preciso revisitar os contrassensos estruturais do direito do trabalho a partir da vida de quem os vive e dos saberes a elas associados. E levá-los a sério. Incomodar-se com uma relação de emprego padrão que não corresponde, nem em suas versões mais alargadas, a muitos dos modos mais precários do trabalho humano a partir da modernidade capitalista colonial. Especialmente no Sul. Entender que o emprego está atravessado de colonialidade. Denunciar e repensar uma posição trabalhista que resiste em centralizar a complexa dinâmica da informalidade. Em considerar as formas do chamado trabalho por conta própria, estruturalmente indispensável ao capitalismo, de altíssima precariedade socioeconômica e solenemente ignorado pelo direito do trabalho. Inquietar-se de verdade, com a força devida, em face do expurgo conceitual do trabalho reprodutivo não remunerado, tipicamente feminino, como forma de trabalho juridicamente relevante. Situar os fundamentos de regimes discriminatórios, como o do trabalho doméstico. Perguntar-se, para além das superfícies, sobre os porquês ocultos do fato de pessoas LGBTQIA+ estarem em regimes trabalhistas particularmente precários, como a prostituição para travestis e mulheres trans (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, João Felipe Zini Cavalcante de. “E travesti trabalha?”: divisão transexual do trabalho e messianismo patronal. 2019. Mestrado (Direito) - Universidade Feral de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.). Tentar realmente compreender como as categorias trabalhistas estão referenciadas, são concebidas, cotidianamente pensadas, aplicadas, cumpridas, descumpridas, a partir desses lugares. Tomar todas essas questões como questões também jurídico-trabalhistas.

Uma resposta pronta que reafirma que tudo isso é descumprimento, inefetividade, falha na aplicação do direito do trabalho é muito pouco. Há uma série de cumplicidades da norma trabalhista com esses quadros concretamente referenciados, produzidos também a partir do direito do trabalho. É preciso levá-las em consideração, para pensar os sentidos do direito do trabalho a partir de outro lugar. Um lugar que incorpore os modos de ser, experimentar o mundo, sentir e pensar de mulheres, pessoas LGBTQIA+, negras e negros, povos originários, pessoas com deficiência, que compõem, a partir desses lugares, as classes trabalhadoras. São as sujeitas desse direito do trabalho em chave epistemológica dissidente.

5. Uma pergunta difícil como conclusão (ou de como esse texto é só um ponto de partida)

Como imaginar as categorias jurídico-trabalhistas e seus futuros a partir do inimaginado (BIDASECA; MENESES, 2018BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula. Introdução: as epistemologias do Sul como expressão de lutas epistemológicas e ontológicas. In: BIDASECA, Karina; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologías del sur - Epistemologias do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 11-21.)? O que nós queremos é muito: repensar com as sujeitas dissidentes tudo o que constitui o direito do trabalho. Fundamentos, estruturas, instituições, categorias, normas e processos. E com isso produzir uma outra teoria do conhecimento jurídico-trabalhista. É um projeto amplo, por evidente, que não se completou nesse artigo. Mas aqui, como dizíamos, demarcamos teoricamente um ponto de partida. Levantando um quadro teórico que ajude a demonstrar que se quaisquer desses fundamentos, estruturas, instituições, categorias, normas e processos do direito do trabalho tenha origens racistas, capacitistas, geopoliticamente implicadas na colonialidade, gendradas ou enraizadas numa ordem cisheterossexual (e têm), eles podem e devem ser desestabilizados e repensados. Nesse artigo, demos apenas um passo teórico preparatório. Falando das filiações epistemológicas não ditas do direito do trabalho, que se reproduzem nos limites do pensar jurídico de seus elementos.

Queremos aquilo que está no título: uma crítica-outra. Não apenas uma outra crítica, mais uma que se junte ao catálogo das existentes. Queremos o amálgama. O entrelugar. Aquilo que está contido no hífen. Uma crítica que traga para seu conceito esse lugar outro. E que seja crítica justamente porque é outra. Quando aqui falamos outro não estamos nos referindo aos binários da modernidade. Aos processos subjetivos e intersubjetivos modernos de outorgas de identidades e categorias geopolíticas de dominação, ao redor da raça, do gênero, da origem, da classe e da sexualidade. A concepção de crítica-outra não tem o objetivo de ser unívoca, dicotômica, duradoura ou hierárquica. A potência e limitação da proposta de uma crítica-outra, ou de críticas-outras, presume fronteiras que serão constantemente deslocadas, renegociadas e transgredidas.

Esse é, por ora, nosso ponto de chegada: a expressão das epistemologias dissidentes como plataforma teórica dessa crítica-outra. Mas é um ponto de chegada que logo reclama mais movimento, um sentido para além. Está incompleto. O que fazer com ele? Especialmente no direito do trabalho. Como dissemos, a nossa conclusão é na verdade uma nova pergunta: o que fazer no direito do trabalho a partir das epistemologias dissidentes?

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  • 1
    As reflexões desse artigo são radicalmente atravessadas pelo diálogo, interlocução, convívio, enfim, pela partilha do pensar e do ser na academia (e fora dela) com muitas pesquisadoras. Agradecemos a todas elas. As integrantes do Diverso UFMG - Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero e do Grupo Ressaber da UFOP. Mestrandas e doutorandas em UFMG e UFOP e as participantes da disciplina “Direito do trabalho e epistemologias dissidentes”, como Cristiane, Rainer, Wanessa, Marco, Flávio, Bárbara, Natália, Ana Luíza, Jéssicas, Aysla, Rodrigo, Tito, Márcio, João Felipe, Maíra, Raquel, Rayann, Tauane, Igor, Marcela, Matheus, Bianca, Maria Clara, Nancy, Bruna, Tamíris, Taís, Breno e tantas outras. Interlocuções-chave, como as de Marcelo Maciel, Natália Lisbôa, Tatiana Ribeiro, Regina Stela Vieira, Iara Antunes, Karine Carneiro, Alexandre Bahia e muitas outras colegas. Incontáveis estudantes de graduação. Enfim, esse é, de fato, um escrito que traz muito em si desses momentos todos, dessas pessoas todas, e somos gratas por isso.
  • 2
    Um entre muitos exemplos é a greve negra de 1857 na Bahia, retratada por REIS, 2019REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Cia das Letras, 2019..
  • 3
    Segue um exemplo desse processo eurocêntrico de racismo epistêmico: “Os Negros de África não têm por natureza nenhum sentimento que se eleva acima do insignificante. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo de um Negro que tenha mostrado talentos, e afirma que entre as centenas ou milhares de negros que são transportados dos seus países para outros lugares, ainda que muitos deles tenham sido libertados, ainda não foi encontrado nenhum que tenha apresentado algo de grandioso na arte ou na ciência” (KANT, 1993KANT, Emmanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas, Papirus, 1993., p. 75-76).
  • 4
    Mignolo (2006MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. p. 667-771.) ressalta que a produção científica de civilizações antigas das Américas, que apresentavam um elevado grau de sofisticação em matéria de números, foram de difícil compreensão para os teólogos europeus treinados nas letras, de modo que no século XVIII já tinham sido declaradas primitivas e, consequentemente, fora da marcha triunfal da razão “ocidental”, que viria a substituir a teologia cristã.
  • 5
    Em 1854, ano de aparecimento do termo moderno “epistemologia” na Europa (NOËL, 2014NOËL, Patrick Michel. Épistémologie, histoire et historiens. 2014. Doutorado (História) - Université Laval, Québec, Canadá.), as contradições de uma modernidade que afirma sua objetividade científica e superioridade política e moral já eram bastante evidentes. A escravização de negras e negros africanos pelo mundo era prática articulada por esta mesma Europa, e juridicamente amparada em muitos países, como os Estados Unidos. E muitas supostas “teorias racionais” europeias e estadunidenses, “racismos científicos”, circularam nesse momento da história para justificar a escravidão (SILVEIRA, 2000SILVEIRA, Renato da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. Afro-Ásia, Salvador, n. 23, p. 87-144, 2000.). Em um mundo, aliás, que também ainda operava sob uma lógica abertamente colonial, de dominação de povos pela Europa. E que ainda veria décadas e décadas de formas abertas de colonialismo, como na abjeta “partilha da África”, que atravessou o final do século XIX e início do século XX. Também nesse ano de 1854 as mulheres não tinham direito ao voto em nenhum país dessa Europa racional (RUBIO-MARÍN, 2014RUBIO-MARÍN, Ruth. The achievement of female suffrage in Europe. International Journal of Constitutional Law, Oxford, v. 12, n. 1, p. 4-34, 2014.). E ainda no século XIX, no Reino Unido, um dos centros da discussão sobre essa teoria do conhecimento, dezenas de homossexuais foram condenados à morte pelo crime de sodomia (JOHNSON, 2018JOHNSON, Paul. Buggery and Parliament, 1533-2017. Oxford: SSRN, 2018. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3155522. Acesso em: 16 fev. 2021.
    https://ssrn.com/abstract=3155522...
    ). A prática de criminalização das sexualidades dissidentes, desde a teorização, normatização e punição concreta, diga-se, tem raízes profundamente europeias.
  • 6
    Perguntas semelhantes são o ponto de partida das Epistemologias do Sul, livro organizado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez. 2010.).
  • 7
    Em razão da colonialidade do saber, segundo Mignolo (2010), a desumanização das pessoas colonizadas, mediante a dialética de inferiorização do outro perpetrada pelo colonizador, também produziu o agenciamento epistêmico. Assim, para o autor, todo processo de decolonialidade política deve suscitar uma desobediência epistêmica em relação ao eurocentrismo (MIGNOLO, 2010).
  • 8
    No original: “(..)nuestro feminismo pequeño burgués nos aleja radicalmente (esta vez que sí) de las obreras, presas, prostitutas y vendedoras de la calle, entre tantas marginadas, porque muchas veces sus luchas no se dicen con letras sino con voces”.
  • 9
    No original: “Fue probablemente mucha pretensión de nuestra parte y sobre todo mucha ignorancia sobre la polisemia de la palabra ‘radical’ según los contextos en los cuales las mujeres están involucradas”.
  • 10
    No original: “Todo eso no por ser menos radicales, sino por el contexto en el cual están luchando y construyendo su propia radicalidad”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2021
  • Aceito
    23 Jan 2022
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