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Democracia, Populismo e o que se segue

ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021

Resumo

Cuida-se de resenha crítica acerca da obra O século do populismo: história, teoria e crítica, do historiador e cientista político francês Pierre Rosanvallon. O populismo atrai a atenção de muitos pesquisadores mundo afora e, apesar disso, a compreensão do fenômeno ainda se encontra distante de um consenso. A partir dessa resenha, busca-se analisar a contribuição dada por Rosanvallon à compreensão de uma tipologia do populismo. Ao final, nota-se que, para Rosanvallon, além de uma possibilidade dentro da própria democracia, o populismo também pode significar a força propulsora que a transforma em uma ditadura.

Palavras-chaves:
Populismo; Democracia; Democratura

Abstract

This is a critical review of the work The century of populism: history, theory and criticism, by the French historian and political scientist Pierre Rosanvallon. Populism attracts the attention of many researchers around the world and, despite this, the understanding of the phenomenon is still far from a consensus. From this review, we seek to analyze the contribution given by Rosanvallon to the understanding of a typology of populism. In the end, it is noted that, for Rosanvallon, in addition to being a possibility within democracy itself, populism can also mean the driving force that transforms it into a dictatorship.

Keywords:
Populism; Democracy; Democrat

Em O século do populismo: história, teoria e crítica, obra recentemente traduzida para o português por Diogo Cunha, publicada em 2021 pela editora Ateliê de Humanidades, Pierre Rosanvallon1 1 É um historiador e sociólogo francês, professor da cátedra de história moderna e contemporânea do Collège de France e diretor de estudos da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), na cadeira de “História e filosofia do político”. Sobre as mutações democráticas contemporâneas, o autor possui relevante contribuição a partir de sua tetralogia: A contra-democracia (2006), A legitimidade democrática (2008), A sociedade dos iguais (2011) e O bom governo (2015). traz uma teoria abrangente do populismo. O autor trabalha há algum tempo a natureza do fenômeno democrático2 2 Ao menos, desde o ano de 2000, quando publicou o livroLa démocratie inachevée. , enquanto um conceito instável, mutável, em que nessa indeterminação é que é possível traçar uma teoria democrática do populismo.

História, teoria e crítica apresentam-se, justamente, como a própria estrutura do livro, porém, com a teoria antecedendo a história na estrutura do livro, sendo nítido que a divisão não excluiu uma dimensão da outra. Em outras palavras: há uma mútua relação entre as ideias e a ordem dos eventos, o que permite ao leitor a perfeita compreensão do fenômeno do populismo e de sua relação com os atuais estágios das democracias ocidentais. Acrescenta-se ainda que a dimensão histórica não é prejudicada e sua análise não é meramente limitada ao momento espaço temporal da obra: ontem e hoje andam de mãos dadas.

Pierre Rosanvallon, apesar de uma abrangente teoria do populismo, defende a possibilidade de que tal fenômeno seja conceituado de forma objetiva (LYNCH, CASSIMIRO, 2021LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. O populismo reacionário no poder: uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro (2018-2021). Aisthesis Revista Chilena de Investigaciones Estéticas, [S.L.], n. 70, p. 223-249, dez. 2021. Pontificia Universidad Catolica de Chile. http://dx.doi.org/10.7764/aisth.70.10.
http://dx.doi.org/10.7764/aisth.70.10...
). Assim, o autor distingue ainda na introdução à edição brasileira da obra que há populismos e o populismo. Afirma o autor:

“Eu falo agora em 'populismo' no singular, pois, para além das grandes diferenças entre a personalidade dos líderes, as diversidades das histórias e das tradições sobre as quais se transplantaram os diferentes populismos (e que convidam, por exemplo, a distinguir entre um populismo de direita e um populismo de esquerda), há de fato algumas grandes invariantes que podemos descrever.” (ROSANVALLON, 2021ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021., p. 37)

Dessa forma, o autor desloca o populismo de um enquadramento teórico-conceitual rígido ou claramente situado, isto é: o populismo possui interconexões extensas com uma diversidade de fenômenos, movimentos políticos e regimes (MAIA, 2021MAIA, Felipe. Por uma crítica do populismo em nome de mais (e não menos) democracia. Norus: Revista Novos Rumos Sociológicos, [s. l], v. 15, n. 9, p. 446-453, jul. 2021.), que o permite pertencer a essa ou aquela visão ideológica. Contudo, há uma anatomia - as tais grandes invariantes - do fenômeno, o que é objeto da primeira parte do livro.

Rosanvallon disseca a anatomia do populismo em cinco partes, o que se traduz numa construção tipológica do populismo. O primeiro ponto dessa anatomia se dedicará a concepção de povo, ainda dentro do binômio “nós” e “eles”, porém, explicitando uma homogeneização do “nós”, o que será expresso na ideia de povo-Uno, ponto em que o autor bebe das águas do pensamento de Laclau em sua visão da possibilidade de o populismo aglutinar personagens heterogêneos numa composição de “nós” que se opõe a “eles” (LACLAU, 2004).

O segundo aspecto se refere a uma teoria da democracia e das visões polarizadas e hipereleitoralista do populismo. Para além de uma crítica à democracia liberal (ARDITI, 2007), Rosavallon demonstra a forma como que há uma transferência de poder dos parlamentos para o executivo. Aqui, a polarização da democracia ocorre na sua redução ao seu aspecto meramente eleitoral e plebiscitário.

Na sequência, a modalidade da representação e encarnação do homem bom, o homem-povo, é elencada como o terceiro órgão que compõe o sistema anatômico do populismo. As duas outras partes dessa anatomia são compostas pela política e pela filosofia da economia do nacional-protecionismo, consolidada na ideia de uma reconstrução da vontade política; o “corpo é fechado” com o regime de paixões e emoções, em que a cólera e o medo surgem como motores afetivos e psicológicos que servem para a adesão ao populismo.

Assim, Rosanvallon lança uma visão sobre o populismo enquanto um centralizador de inteligibilidade das dinâmicas democráticas de difícil compreensão aos cidadãos em uma sociedade. “Os populismos não podem ser compreendidos unicamente como reações, como formas de ‘democracia negativa’. Sua audiência também está ligada à sedução exercida por suas ideias.” (ROSANVALLON, 2021ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021., p. 36). E define, portanto, os regimes populistas enquanto aqueles que “são assim movidos por forças que superam, ou ao menos exacerbam, os cinco elementos estruturantes da cultura política do populismo” (ROSANVALLON, 2021, p. 126).

Na segunda parte do texto (história), Rosanvallon traça um retrospecto de momentos de emergência do populismo. Um primeiro momento é retratado no segundo império francês (Napoleão Terceiro (Bonapartismo)). O segundo momento retratado ocorre no final do séc. XIX e início do séc. XX, diante de uma primeira era da mundialização do período industrial, marcada por movimento políticos nos EUA e França. Enfim, o terceiro momento é o denominado de laboratório latino americano, expondo a forma com a qual o populismo floresceu na América Latina: importando o modelo institucional da Europa e dos EUA, contudo, tendo sua vida política muito marcada pelas ligações sociais com os latifúndios. Todos, em maior ou menor escala, com a presença de um homem-povo, ou seja, aquele que, supostamente, encarna (e é) a própria vontade do “povo”. Quanto ao laboratório latino americano, Rosanvallon enxerga uma incorreta depreensão analítica: “são os quadros intelectuais de apreensão espontânea dessas realidades que impediram que eles fossem compreendidas em profundidade” e explica “de um lado, havia a tendência a assimilá-las a uma forma de fascismo. Do outro, havia a obrigação sentida pelos historiadores e sociólogos do período de interpretá-los dentro dos limites de uma análise marxista” (ROSANVALLON, 2021ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021., p. 202).

O autor conclui a segunda parte com um capítulo dedicado as formas conceituais de democracia limite, de aporia, das contradições insolúveis da democracia, da democracia representativa, da definição do regime de igualdade, das três famílias de democracia limite. Nesse último ponto, uma especial atenção deve ser dada a ideia de Democracia Polarizada (aqui está o populismo). Cuida-se, portanto, do momento em que uma democracia desemboca numa “democratura”: um regime ileberal que conserva formalmente os hábitos de uma democracia. Ou seja, como a polarização; a politização das instituições; a censura da imprensa, ainda que velada sobre a forma de redução da verba publicitária; reorganizam a sociedade tomando por base um modelo de irreversibilidade (mudança constitucionais, plebiscitos frequentes etc.), enfim, há o momento quando uma democratura se torna uma ditadura. Processo que pode ser a marca dos efeitos do populismo:

[...] se eles se colocam todos como os arautos de uma democracia imediata e polarizada, eles podem oscilar entre a sólida manutenção do Estado de Direito (em razão dos freios constitucionais ainda ativos) e uma franca democratura. (ROSANVALLON, 2021ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021., p. 126).

Dessa forma, Rasanvallon não se furta de propor uma solução ao processo que torna uma democracia uma ditadura. Embora reconheça a importância dos freios e contrapesos, ele não possui uma visão como a de Harry Collins, Robert Evans, Darrin Durant e Martin Weinel (COLLINS, Harry et al., 2021), em que os intelectuais poderiam compor esse sistema enquanto uma retenção do caráter antielitista e anti-institucionalista do populismo. A solução é outra: um aprofundamento da democracia, em que a democracia ocorra de forma interativa, por meio de dispositivos permanentes de consulta, informação e prestação de contas.

Enfim, a obra de Rosanvallon é um trabalho localizado no auge da maturidade e da produção do autor. Uma importante contribuição para pensarmos a relação entre democracia e o/s populismo/s, tanto em seus aspectos históricos quanto conceituais tipológicos do fenômeno, que vem se apresentando como a pseudo solução às crises de representação nas democracias ocidentais: o populismo.

Referências bibliográficas

  • ARDITI, Benjamin. Politics on the Edges of Liberalism: difference, populism, revolution, agitation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2017.
  • COLLINS, Harry et al. Experts and the Will of the People. Society, Populism and Science. London: Pallgrave, 2019.
  • LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
  • LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. O populismo reacionário no poder: uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro (2018-2021). Aisthesis Revista Chilena de Investigaciones Estéticas, [S.L.], n. 70, p. 223-249, dez. 2021. Pontificia Universidad Catolica de Chile. http://dx.doi.org/10.7764/aisth.70.10
    » http://dx.doi.org/10.7764/aisth.70.10
  • MAIA, Felipe. Por uma crítica do populismo em nome de mais (e não menos) democracia. Norus: Revista Novos Rumos Sociológicos, [s. l], v. 15, n. 9, p. 446-453, jul. 2021.
  • ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria, crítica. São Paulo: Ateliê de Humanidades, 2021.
  • 1
    É um historiador e sociólogo francês, professor da cátedra de história moderna e contemporânea do Collège de France e diretor de estudos da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), na cadeira de “História e filosofia do político”. Sobre as mutações democráticas contemporâneas, o autor possui relevante contribuição a partir de sua tetralogia: A contra-democracia (2006), A legitimidade democrática (2008), A sociedade dos iguais (2011) e O bom governo (2015).
  • 2
    Ao menos, desde o ano de 2000, quando publicou o livroLa démocratie inachevée.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2023
  • Aceito
    26 Nov 2023
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