Resumo
O presente artigo examina alterações da disciplina legal e do entendimento jurisprudencial dos contornos da noção de gênero no direito antidiscriminatório, em países diversos. Para discutir a relação entre direitos das mulheres e das pessoas não binárias, tribunais de países como Dinamarca, Malta, Irlanda e Noruega passam a compreender a categoria gênero a partir de uma experiência de caráter íntimo e vivenciado a partir das subjetividades individualizadas, valendo-se da compreensão sociológica dos Princípios de Yogyakarta. Os entendimentos engessados e calcados em uma padronização comportamental cisheternormativa passam, assim, a ser revisitados. Com isso, os direitos das mulheres são conciliados aos direitos das pessoas não binárias e são analisados em perspectiva diversa, ganhando uma projeção pluralizada, sideral e em maior consonância com o aspecto material do princípio da igualdade.
Palavras-chave: Direito da Antidiscriminação; Igualdade; Direitos das mulheres; Direitos das pessoas não binárias
Abstract
This article examines transformations in legal discipline and jurisprudential understanding of the contours of the notion of gender in anti-discrimination law, in different countries. In order to discuss the relationship between the rights of women and non-binary people, courts in countries such as Denmark, Malta, Ireland and Norway begin to understand the gender category from an intimate and experienced experience based on individualized subjectivities, using of the sociological understanding of the Yogyakarta Principles. The understandings plastered and based on a cisheternal normative behavioral standardization are, therefore, revisited. With this, women's rights are reconciled with the rights of non-binary people and are analyzed from a different perspective, gaining a pluralized, sidereal projection and in greater consonance with the material aspect of the principle of equality.
Keywords: Anti-discrimination Law; Equality; Women's rights; Rights of non-binary people
1. Introdução
A eficácia do princípio da igualdade exige frequentemente a afirmação de direitos específicos e de medidas corretivas, principalmente a partir da introdução das diretrizes europeias sobre a matéria. A igualdade passou, assim, da sua dimensão formal para a sua dimensão material, e, mais tarde, tornou-se a garantia de acesso à representação política e institucional: a paridade (SÉNAC, 2008).
Durante muito tempo, a tradição universalista do direito francês foi um obstáculo à realização da igualdade material. Olympes de Gouges salientou que a neutralização do sujeito político é a forma mais insidiosa de subjugação, pois impede que a diferença de gênero seja considerada como discriminação.
O empreendimento de desconstrução da filósofa começou com a escrita de uma peça de teatro: La nécessité du divorce (1790), tão consciente estava de que era através do divórcio que as mulheres podiam alcançar a igualdade. A sua Déclaration des droits de la femme, de setembro de 1791, constitui a transição da igualdade doméstica para a igualdade política. Condorcet ficou também indignado com a situação das mulheres no século XVIII: “Mostrem-me uma diferença natural entre homens e mulheres que possa legitimamente justificar a exclusão do direito” (CONDORCET, 1790).
Foi preciso esperar o ano de 1944 para que as mulheres pudessem votar e candidatar-se às eleições. E foi só nos anos 70, com a emergência do movimento das mulheres, que a questão do gênero produziu efeitos em todas as áreas sociais, incluindo o direito. Se a exclusão das mulheres da cidade se baseava em diferenças “naturais” entre os sexos, a integração das mulheres deveria passar necessariamente pela ideia de uma humanidade comum de dois sexos. Já na República, Platão, ao negar uma especificidade aos papéis parentais, considerava a diferença entre os sexos tão arbitrária como a diferença entre “careca e cabeludo”. Mais tarde, no Mênon, Platão apresenta Sócrates, que ironiza as alegadas virtudes de cada sexo, uma vez que as virtudes vêm da alma e a alma não tem sexo. No entanto, na realidade, foram apenas os homens que governaram a pólis.
2. Os paradoxos do universalismo
Em Le droit et les paradoxes de l'universalité, Danièle Lochak (LOCHAK, 2010) salienta as tensões e exigências contraditórias do postulado da unidade da raça humana e suas implicações legais.
Em uma perspectiva histórica, esta unidade supostamente universal foi construída, em verdade, com base na neutralidade (naturalização) do gênero masculino. No direito internacional, é a preservação desta ideia de universalidade que se sobressai. Isabelle Duplessis tem razão em afirmar que “os primeiros instrumentos legais de proteção dos direitos humanos fazem pouca diferenciação quanto ao gênero dos indivíduos. As mulheres queriam ser reconhecidas antes de tudo como sujeitos de direitos, da mesma forma que os homens, e não como seres vulneráveis que requerem uma proteção específica. Uma terminologia neutra, isto é, masculina, será inicialmente privilegiada” (DUPLESSIS, 2021, p. 183-184).
Uma primeira tentativa para resolver este paradoxo foi a inclusão do termo “mulher” numa convenção internacional de alcance geral: a Carta das Nações Unidas concluída em São Francisco em 26 de junho de 1945, cujo Preâmbulo proclama “a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres”. Embora a OIT tenha se dedicado ao estatuto da mulher entre as guerras, a universalidade do tratamento antidiscriminatório estava limitada ao campo do trabalho e do emprego. O objetivo era proteger os direitos da mulher trabalhadora, não os da mulher.
Vale a pena notar que é a partir do âmbito internacional que a categoria “mulher”, no sentido jurídico atual, chega ao direito nacional. O movimento feminista, por meio da figura política de Eleanor Roosevelt, conseguiu impor um tratamento específico da questão das mulheres no centro das Nações Unidas e levantou a questão da ruptura da universalidade abstrata. Apesar das muitas críticas e controvérsias, a Comissão Sobre a Situação da Mulher foi criada no seio de um órgão universal da ONU: o Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Esta passagem pela especificidade do estatuto internacional da mulher permitiu a elaboração de uma Convenção cujo objetivo não era tanto a proteção do estatuto da mulher em abstrato, mas a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher in concreto: Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979. Tomar em consideração as necessidades específicas de metade da humanidade é uma forma universalista de resolver o paradoxo apontado por Danièle Lochak. Com efeito, a utilização do plural “mulheres”, ao contrário da Convenção de São Francisco, permitiu à CEDAW pôr em prática medidas corretivas sem a elaboração de um coletivo feminino. Contudo, tratar as mulheres de forma equitativa não significa, para vários Estados, reconhecê-las como iguais aos homens, e, nesse ponto, penso particularmente nos países membros da OCI (Organização de Cooperação Islâmica).
É com base nas novas especificidades que o direito internacional conseguiu superar este novo paradoxo ao incluir as violências sexuais e o estupro na definição do crime de guerra e dos crimes contra a humanidade. Assim, o Artigo 27 da Convenção de Genebra de 1977 e o Artigo 76 do Protocolo I, que se centrava exclusivamente nas mulheres, não protegeu os homens contra as violências sexuais de guerra.
Françoise Gaspard tem razão em afirmar que “os instrumentos que foram postos em prática e os tratados que foram adotados foram por vezes criticados por romperem com o universalismo. Esta crítica seria eficaz se os textos que tratam dos direitos humanos e seus órgãos de tratados tivessem, por si só, permitido condenar a discriminação de que as mulheres foram e continuam sendo vítimas em muitas partes do mundo” (GASPARD, 2002, p. 46-47).
O direito internacional é um exemplo de compromisso com o ideal abstrato do universalismo, preservando simultaneamente a dimensão concreta de uma regra aplicável a todos, independentemente do gênero.
A nível nacional, a especificidade dos direitos da mulher foi justificada durante muito tempo pela gravidez e pelo parto, acontecimentos reservados à condição feminina. Desde a adoção da Lei nº 2016-1547 de 18 de novembro de 2016, os tratamentos médicos, a cirurgia ou a esterilização não são mais indispensáveis para a mudança de sexo. O novo artigo 61-6 do Código Civil estabelece que “o fato de não ter sido submetido a tratamentos médicos, uma cirurgia ou esterilização não pode ser motivo para recusar o pedido [de modificar a menção do próprio sexo nos registros do estado civil]”.
A partir de agora, duas mulheres ou dois homens podem dar à luz uma criança sem recorrer à tecnologia reprodutiva, já que o legislador libertou as pessoas transgêneras de qualquer exigência médica. Um caso recente ilustra a situação: Claire, a mulher transexual (M-para-F) de um casal inicialmente heterossexual que já tinha gerado vários filhos, mudou o seu sexo, mantendo o seu sistema reprodutivo masculino. O casal gerou uma nova criança, depois de Claire ter mudado o seu estado civil para feminino. Após a recusa do registo civil em transcrever na certidão de nascimento da criança o reconhecimento da maternidade feito por Claire, o casal levou o assunto ao tribunal. Em decisão de 14 de novembro de 2018, o Tribunal Recursal de Montpellier ordenou que ela fosse mencionada na certidão de nascimento da criança como “genitor biológico”. Em 16 de setembro de 2020, o Tribunal de Cassação decidiu que a lei francesa não permite que o pai ou a mãe da criança seja designado como “genitor biológico” nos registos do estado civil e que o direito ao respeito pela vida privada e familiar não exige tal designação. O caso foi remetido ao Tribunal Recursal de Toulouse, que reconheceu (contra a cassação) o direito de uma mulher transexual que concebeu uma criança com o seu sistema reprodutivo masculino de ser designada como mãe na certidão de nascimento da criança. Assim, é possível uma dupla filiação materna biológica, uma das quais é “não gestacional” (TOULOUSE, 2022, a). Esta decisão foi confirmada pelo TEDH nos seguintes termos: “o Tribunal Recursal de Toulouse (...) estabeleceu judicialmente a filiação materna entre C.V. e M.E.D. e declara que esta filiação será transcrita na certidão de nascimento de M.E.D.” (TOULOUSE, 2022, b)
De acordo com as regras de filiação, a mãe gestacional é aquela que dá à luz. É por isso que um homem transgênero de nacionalidade americana, Trystan Reese, se tornou mãe em 2017. Tal como na França, a lei americana não exige que um indivíduo sofra uma alteração fisiológica para mudar o seu sexo legal para fins de estado civil. Assim, o Sr. Reese pode manter o seu útero. A situação não é nova, visto que, em fevereiro de 2012, um caso semelhante já tinha chegado às manchetes em toda a Grã-Bretanha. Um homem transgênero, ao manter as suas capacidades reprodutivas, pode, portanto, tornar-se legalmente a mãe da criança e, assim, usufruir de todos os direitos que decorrem do parto (acompanhamento por um profissional de saúde durante a gravidez, direito a exames médicos como o diagnóstico pré-natal, acompanhamento pós-parto, licença maternidade, proteção contra a dispensa, direito a amamentar etc.)
Seguindo a argumentação do Tribunal Recursal de Toulouse, confirmada pelo TEDH, um homem transexual também poderia pedir para aparecer na certidão de nascimento, não como mãe, mas como pai da criança.
Um homem pode agora dar à luz e deixar seu filho para adoção, tornar-se uma mãe substituta em países que permitem esta técnica e até realizar um aborto...
Não existe qualquer especificidade baseada na natureza ou vulnerabilidade, pois mesmo os delitos como a violação ou as violências domésticas, originalmente pensados como sendo de gênero específico, são agora neutros (BORDET, 2019, p. 14-15).
3. Direitos da mulher e direitos das pessoas não binárias
A articulação dos direitos da mulher e dos direitos das pessoas não binárias poderia inicialmente envolver o reconhecimento de um espaço comum, o universus, do latim, voltar-se ao uno: uni versus. Esta ideia não é de modo algum nova; São Paulo já a tinha mencionado quando declarou na sua Carta aos Gálatas: “Já não há judeu nem grego; já não há escravo nem homem livre; já não há homem nem mulher; pois todos sois um em Jesus Cristo”. Alguns autores veem esta referência como o ponto de partida para uma teologia feminista (SCHÜSSLER-FIORENZA, 1986, p.302).
Se a eficácia dos direitos da mulher teve necessariamente de passar por uma certa ruptura com a neutralidade do masculino e o seu pretenso universalismo, os direitos das pessoas não binárias poderiam ser enraizados num regresso (versus) a outra forma mais radical de universalismo (no sentido etimológico da palavra: radix, raiz), ou seja, voltar-se para a noção universal do indivíduo (uni).
4. Fugir da natureza
Os direitos das mulheres foram construídos filosoficamente com base na ideia de que a diferença dos gêneros era, antes de tudo, um fato biológico ou natural.
Juridicamente, os seres humanos ainda são constituídos por dois corpos estáveis definidos biologicamente por duas gramáticas distintas, XY e XX. Na ordem binária dos sexos, os indivíduos são necessariamente distribuídos em dois grupos: machos ou fêmeas. Enquanto a pessoa coletiva aparece como uma entidade assexuada, o indivíduo pessoa física - é, no estado atual estado do direito positivado, necessariamente generificado. Com efeito, o Tribunal de Cassação considerou que “a dualidade das declarações relativas ao sexo nos registos do estado civil prossegue um objetivo legítimo, na medida em que é necessária à organização social e jurídica da qual constitui um elemento fundador; que o reconhecimento pelo juiz de um “sexo neutro” teria repercussões profundas nas regras do direito francês construídas com base na binaridade dos sexos, e implicaria numerosas modificações legislativas de coordenação” (FRANÇA, 2017). Contudo, a “questão hermafrodita”, inicialmente, e, a “questão transexual”, mais tarde, perturbaram esta ordem jurídica dos sexos. No processo B. v. França de 25 de março de 1992, o TEDH considerou que o não reconhecimento da nova identidade sexual de uma pessoa transexual constituía uma violação do seu direito fundamental à privacidade. Ao consagrar a identidade sexual como um direito humano, o TEDH abrirá uma brecha na ordem jurídica fundada em uma concepção binária do gênero. Daí em diante, este abandona a objetividade da ordem pública para se estabelecer na subjetividade da privacy. O sexo deixa de ser um dado puramente objetivo para se tornar, por lei, um componente da identidade da pessoa, um tipo de autoconsciência sexual que é distinta da noção de sexo biológico. Durante muito tempo, a lei francesa delegou à autoridade médica o poder de identificar pessoas transexuais. A reforma de 2016 pôs fim a esta justificação clínica, permitindo que o direito de mudar de sexo se baseie na autonomia individual.
A gender self-determination aparece hoje em dia como o padrão para definir a realidade jurídica do gênero, tal como consagrada na lei argentina de 2012, na lei dinamarquesa de 2014 e na lei maltesa de 2015, para mencionar apenas os pioneiros. Como observa Alexandre Jaunait “a identidade de gênero já não é uma verdade que possa ser objetivada pelo conhecimento médico - a do sexo biológico e/ou psicológico - mas uma forma de subjetividade individual que não passa por qualquer mediação e que só pode ser reconhecida” (JUNAIT, 2020, p. 429-430). É certo que a categoria “identidade de gênero” aparece como uma noção juridicamente distinta da de “sexo”, mas esta última é agora profundamente modificada, já que não está indisponível como estava no “antigo regime” do gênero do Tribunal de Cassação antes da condenação do TEDH. Quanto ao lugar do sexo no estado civil, estamos numa situação de crise porque, como Gramsci salienta, uma crise é quando o velho está morto e o novo não pode nascer ou, para retomar a análise de Kuhn sobre as revoluções científicas, quando estamos perante uma mudança de paradigma em que coexistem pelo menos duas representações, uma das quais é antiga e a outra nova. Os dois sistemas (ou formas de ver) coexistem durante algum tempo, tal como todos os conceitos que se utilizam para compreender e explicar as crenças. O antigo e residual é considerar o sexo como um fato objetivo que é imposto aos indivíduos; o novo é tratar legalmente o sexo como uma identidade pessoal e íntima decorrente da questão de subjetividade e liberdade individual.
A polêmica sobre o lugar das mulheres transexuais no movimento feminista, trazida à cena pública pelo TERF (Trans-exclusionary radical feminist), realça o conflito entre a visão residual do gênero, baseada na objetividade biológica, e a concepção emergente, baseada na autodeterminação. A ex-feminista Marguerite Stern, defensora da visão residual do gênero, propõe um regresso a uma concepção objetiva do feminismo ao afirmar: “Somos mulheres porque temos vulvas. Trata-se de um fato biológico”. Ela foi apoiada pela senadora e ex-ministra Laurence Rossignol quando afirmou que “a mudança de entendimento para reexaminar o feminismo através da transexualidade apenas resulta na invisibilização das mulheres”.
Este regresso a uma visão essencialista do gênero torna particularmente difícil a articulação entre os direitos das mulheres e os direitos das pessoas não binárias. De fato, a não-binaridade parece ser uma realidade social para as pessoas que não desejam enquadrar-se na norma “masculino/feminino”.
A investigação sociológica tem salientado a variedade e complexidade da não binaridade. As pessoas agêneras são aquelas que não sentem pertencer a nenhum gênero, nem masculino, nem feminino, nem trans. As pessoas cisgênero são aquelas que estão de acordo com o sexo atribuído à nascença, e há também os gêneros fluidos, cuja identificação do sexo ou da sexualidade é mutável ou não categorizável. Nesse sentido, o Facebook oferece aos seus utilizadores cinquenta e duas opções de identificação de gênero, incluindo: andrógina, bigênero, trigênero, cis/cisgênero, masculino/cis, fêmea/cis, mulher/cisgênero fêmea/cisgênero, mulher transgênero, homem transgênero, gênero fluido, gênero não conforme, gênero questionável, gênero mutável, gênero queer, intersexo, travesti, nenhum dos dois, não binário, outro, pangênero, trans, transgênero, transexual, transexual feminino, mulher transexual, transexual fêmea, homem transexual, pessoa transexual; ou Dois espíritos, um termo guarda-chuva para homens que praticam uma identidade de gênero feminino e mulheres que praticam uma identidade de gênero masculino entre os nativos americanos.
Esta compreensão “psicológica” do gênero foi cristalizada no Preâmbulo dos Princípios de Yogyakarta da ONU, no qual a identidade de gênero se refere à experiência íntima e pessoal do gênero profundamente vivido por cada pessoa, à consciência pessoal do corpo (que pode envolver, se livremente consentida, a modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, incluindo o vestuário, a fala e os maneirismos.
5. Neutralidade de gênero
Na França, a possibilidade de neutralidade de gênero foi levantada no final do século XIX pelo fundador da medicina forense, Alexandre Lacassagne, que apelou a “uma reforma do artigo 57 do Código Civil para impor um exame médico na puberdade que determinaria o sexo e o registro como sendo masculino, feminino ou neutro em termos de gênero nos registos civis” (LACASSAGNE, 1887, p.91). Mas esta proposta nunca evoluiu.
Norrie May-Welby foi a primeira pessoa a ser legalmente considerada de gênero “neutro”, e a Austrália foi o primeiro país a inserir o “not-specified gender” na certidão de nascimento. Desde 2011, os australianos têm podido declarar-se neutros em termos de gênero nos seus passaportes, mesmo que não tenham sido submetidos a cirurgia de mudança de sexo.
Pode dizer-se que, em termos legais, o sexo deixou o corpo e passou para a alma. Deste modo, o sexo torna-se um elemento de personalidade disponível para o indivíduo como componente essencial da sua vida privada. O gênero deixa de ser uma questão de ordem pública e torna-se uma variável dependente exclusivamente da vontade e da autonomia individuais. Assim, a Dinamarca em 2014, depois Malta e a Irlanda em 2015, e a Noruega em 2016 implementaram o princípio da autodeterminação das pessoas transgêneras, dando-lhes a possibilidade de mudar o seu primeiro nome e/ou gênero no estado civil através de um procedimento declarativo baseado unicamente em autodeclarações. O Tribunal Constitucional belga anulou o Artigo 3 da lei de 25 de junho de 2017 sobre a identidade de gênero, por não prever o registo de uma identidade não binária (WILLEMS, 2020).
A Alemanha tem emitido certidões de nascimento sem indicação de gênero desde 2013. Da mesma forma, nos Países Baixos, se o sexo da criança for incerto, a certidão de nascimento pode indicar esta indeterminação, deixando ao indivíduo a possibilidade de ter esta entrada alterada e de lhe ser atribuído um sexo no estado civil. A lei maltesa permite, desde 2015, adiar o registo até que o sexo da pessoa seja determinado. Em Portugal, ao registar uma criança intersexo, a Administração propõe a escolha de um nome misto, a fim de facilitar os procedimentos subsequentes (BLONDIN, BOUCHOUX, 2017). Na Índia, além da categoria “masculino” ou “feminino”, os formulários oferecem a opção de “outro”. Na África do Sul e Nova Zelândia, a anotação “X” (outro sexo) pode ser inscrita no passaporte, e a Malásia, o Nepal e a Tailândia permitem o “sexo neutro” ou “indeterminado”. Um decreto do poder executivo argentino de 21 de julho de 2021 (476-2021) propõe três marcadores M, F e X. Imediatamente, as associações de pessoas não binárias expressaram a sua opinião de que a categoria X não correspondia às suas realidades.
Na França, a binaridade sexual continua a ser a norma e, como observa Benjamin Moron-Puech (MORON-PUECH, 2017), o baixo nível de consciência pública e a falta de vontade política não pressagiam uma evolução legal a favor da não binaridade.
6. Adeus à ordem pública
Se o gênero se tornou um conceito tão íntimo, é questionável o nível de legitimidade para o Estado em utilizar esta categoria como um meio de identificar a pessoa.
Se, no plano jurídico, o gênero pertence à categoria de identidade dinâmica (KADDOURI, 2019, p. 66-69) mais próxima da religião, filiação política ou profissão, por que continuar a mantê-la nos documentos de identidade?
Nos Países Baixos, a Ministra da Educação, Cultura e Ciência, Ingrid van Engelshoven, considerou-a “inútil”. Ela escreveu ao Parlamento em 4 de julho de 2020, declarando a sua intenção de retirar esta informação dos documentos de identidade “a partir de 2024 ou 2025”.
Na França, o critério de gênero tem sido progressivamente abandonado desde a adoção de certas normas como o PaCS em 1999, o casamento para todos em 2013, o PMA para todos em 20211 ou a possibilidade de uma mulher transgênera ser reconhecida como segunda mãe (TOULOUSE, 2022, c). Do mesmo modo, sob a pressão do direito europeu, os privilégios reservados às mulheres diminuem, como a proibição do trabalho noturno, a pensão a uma viúva pela morte de um funcionário público, o bônus no cálculo das pensões ou o limite de idade para o acesso à função pública. E se a lógica diferencialista for reintroduzida, é mais para proteger as mulheres contra a discriminação ou para promover a paridade do que para consolidar uma categoria identificadora.
Apesar de certos avanços como o relativo à identidade de gênero em 2016 ou à intersexualidade em 2021, a lei francesa continua a estar ligada à lógica binária dos sexos. Isto pode ser justificado quando a categoria se destina a proteger o gênero sub-representado, tal como a paridade nos órgãos de gestão empresarial ou na Assembleia Nacional. Ao contrário, quando os documentos de identidade pretendem refletir a multiplicação de marcadores de gênero, a situação torna-se particularmente problemática. Com efeito, como pode uma identidade fluida e variada ser transcrita em documentos públicos que requerem uma certa estabilidade? Como pode o sentido de identidade individual ser reduzido a uma categoria do estado civil?
Se é uma questão de autopercepção, pode efetivamente haver tantos gêneros quanto indivíduos. Esta multiplicação de gêneros deveria, a meu ver, ser legalmente traduzida pelo silêncio da privacy: cada indivíduo adota na sua vida privada o gênero que deseja. Assim, um sujeito de direito sem gênero (em vez de ter vários gêneros ou com um gênero neutro) tornar-se-ia o princípio governante da nova gramática sexual do direito. Bastaria, para tanto, o fim da prática de registrar o sexo dos indivíduos nas certidões de nascimento e nos outros documentos de identidade (BORILLO, 2011, p. 263). Isto faz parte da evolução do estatuto civil francês, que perde gradualmente a sua função de polícia civil para tornar-se o espaço de autodeterminação: mudança do primeiro nome, mudança de nome de família, advento do primeiro nome social etc. Como Nicolas Molfessis observa, a partir de agora, “é o indivíduo que atesta a si próprio” (MOLFESSIS, 2022, p. 1441).
Portanto, como categoria fluida, o gênero poderia ser assimilado à religião e se submeter ao tratamento estabelecido pelo TEDH no caso do Sinan işik v. Turquia de 2 de fevereiro de 2010, no qual o Tribunal de Estrasburgo considerou que a inclusão da religião nos documentos de identidade era contrária à liberdade de consciência.
7. Conclusão
Ao abordar a questão de como articular os direitos das mulheres e os direitos das pessoas não binárias, responderei em dois tópicos.
Em primeiro lugar, parece-me que a classificação das pessoas em dois gêneros imposta pelo Estado como categoria de identificação perdeu a sua relevância jurídica. Se agora a vontade do indivíduo é que faz a lei (para usar a expressão de Nicolas Molfessis), de que serve manter o sexo como uma categoria objetiva do estado civil?
Abandonar o nível de identificação (categoria)2 não implica, de forma alguma, abandonar critérios sexuados (mulher, homem, não binário, orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero...) no plano das políticas públicas antidiscriminatórias, utilizando, por exemplo, o método da autoidentificação. Em outras palavras, “sexo” pode continuar a funcionar legalmente como um critério protegido como “raça” ou “religião”, ou seja, um factum em oposição a uma categoria, o que implica uma qualidade do sujeito, uma essência, uma natureza in fine.
Em segundo lugar, a eliminação do sexo na identificação legal das pessoas permitiria recuperar a radicalidade do universal, no sentido do uni versus (voltar-se para o uno) que tínhamos mencionado. Esta radicalidade encontra-se nas origens míticas da nossa civilização. De fato, de acordo com os teólogos, o projeto divino de criar Adão não considerava o gênero: “Adão não é um nome próprio (...) em hebraico, não há artigo indefinido: naasseh adam significa “faremos um Adão, um humano”(LÉVY, 2015).
Deus não tem sexo e se o humano é criado à sua imagem, ele também não tem sexo...
Para Filo de Alexandria, o homem primordial (o οὐράνιος ἄνθρωπος) não é nem homem nem mulher, mas uma ideia, é o projeto divino. Para São João, ele é o Logos pré-existente.
Finalmente, seguindo a expressão de Santo Ambrósio: anima sexum non habet, então também podemos deduzir que persona sexum non habet...
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1
PaCS - sigla que designa o ato jurídico contratual que institui união entre pessoas de mesmo ou diferente sexo. PMA - sigla que designa a previsão legal de procriação medicamente assistida. N.T.
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2
A categoria caracteriza-se por certa homogeneidade e continuidade, enquanto o critério refere-se a uma situação fática heterogênea e descontínua.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Out 2023 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2023
Histórico
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Recebido
04 Ago 2023 -
Aceito
06 Ago 2023