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Indignação epistêmica e decolonização do conceito de minorias

Resumo

Este trabalho traz a proposta da indignação epistêmica como caminho crítico e decolonizador para refletir sobre a construção do conceito de minorias no Direito moderno. A partir de pesquisa bibliográfica e de análise da construção histórico-social do conceito de minorias, buscamos demonstrar sua ambigüidade latente: ao mesmo tempo em que reconhece direitos, oculta relações de poder que criam, reforçam e atualizam injustiças sociais, econômicas e epistêmicas.

Palavras-chave:
indignação epistêmica; Decolonialidade; Minorias

Abstract

This paper proposes the epistemic indignation as a logical and decolonizing way to reflect on the concept of minorities in contemporary Law. Using bibliographic research and analyzing the social history of the concept of minorities, we seek to demonstrate its ambiguity: while recognizing rights, it hides power relations which create, reinforce and update social, economic and epistemic injustices.

Keywords:
Epistemic indignation; Decolonization; Minorities

Introdução

Este trabalho parte da ideia da indignação epistêmica (FREITAS, 2020FREITAS, Raquel Coelho de. Indignação e Conhecimento: para se pensar-sentir o Direito das Minorias. Fortaleza: Editora UFC, 2020.) como caminho crítico e decolonizador1 1 O debate em torno das categorias descoloniais e decoloniais não é apenas de mero preciosismo acadêmico. De acordo com Castro-Goméz e Grosfoguel (2007), o termo decolonial descreve melhor a especificidade do momento histórico atual em que o fim do colonialismo não implicou em uma libertação das periferias/antigas colônias de uma relação de subordinação frente aos centros mundiais. Trata-se, desse modo, de uma nova etapa do processo capitalista dentro de um contexto mais amplo de colonialidade global. Assim, de acordo com os autores: “De este modo, preferimos hablar del ‘sistema-mundo europeo/euro-norteamericano capitalista/patriarcal moderno/colonial’ (Grosfoguel, 2005) y no sólo del ‘sistema-mundo capitalista’, porque con ello se cuestiona abiertamente el mito de la descolonialización y la tesis de que la posmodernidad nos conduce a un mundo ya desvinculado de la colonialidad. Desde el enfoque que aquí llamamos ‘decolonial’, el capitalismo global contemporáneo resignifica, en un formato posmoderno, las exclusiones provocadas por las jerarquías epistémicas, espirituales, raciales/étnicas y de género/sexualidad desplegadas por la modernidad. De este modo, las estructuras de larga duración formadas durante los siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante en el presente” (CASTRO-GOMÉZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 13-14). Nesse sentido, os autores argumentam pela necessidade de uma segunda descolonização, a qual eles denominam de decolonialidade, de modo a reverter processos de hierarquia sociais que a primeira descolonização (o fim formal das relações coloniais) deixou inalterados: “[…] la segunda descolonialización —a la cual nosotros aludimos con la categoría decolonialidad—tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad que complemente la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y XX. Al contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un proceso de resignificación a largo plazo, que no se puede reducir a un acontecimiento jurídico-político” (Idem, p. 17). Por outro lado, Sílvia Cusicanqui considera que, muitas vezes, o debate decolonial está enredado em um discurso de alteridade profundamente despolitizando, sendo decorrente de estudos de pesquisadores latinoamericanos sediados em Universidades estadunidenses, mas que pouco possuem de práticas descoloniais, limitando-se a versões logocêntricas e nominalistas de descolonização: “Neologismos como “de-colonial”, “transmodernidad”, “eco-si-mía” proliferan y enredan el lenguaje, dejando paralogizados a sus objetos de estudio -los pueblos indígenas y afrodescendientes - con quienes creen dialogar. Pero además, crean un nuevo canon académico, utilizando un mundo de referencias y contrarreferencias que establece jerarquías y adopta nuevos gurús: Mignolo, Dussel, Walsh, Sanjinés”. (CUSICANQUI, 2010, p. 64-65). Apesar de conhecermos a controvérsia terminológica, utilizaremos os termos decolonialidade e decolonização. para se refletir sobre a construção do conceito de minorias no Direito contemporâneo, e as implicações na sua efetividade.

As reflexões aqui apresentadas baseiam-se em direcionamentos teóricos de intelectuais do grupo Modernidade/Colonialidade, os quais compreendiam a colonialidade como a face violenta da modernidade, que somente conseguiria ser revertida por meio de uma desobediência epistêmica (QUIJANO, 1992QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena. 13 (29), p. 11-20, 1992.; MIGNOLO, 2010). Nesse contexto, é preciso distinguir o conceito de colonialismo e de colonialidade, conforme expressos por Aníbal Quijano (1992QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena. 13 (29), p. 11-20, 1992., 2005). De acordo com esse autor, enquanto o colonialismo denota uma relação política e econômica de dominação colonial de um povo ou nação sobre outro, a colonialidade se refere a um padrão de poder que permanece vigente nas relações sociais e institucionais mesmo após o fim da colonização. Assim, posições de hierarquia e de subalternidade, marcadas por múltiplos vieses, especialmente o racial, continuam a conformar a epistemologia, a compreensão de ciência, a estética e as relações intersubjetivas, seja no interior de antigas colônias, agora formalmente independentes, seja na relação entre estas e outros países. Nas palavras de Quijano:

[...] si se observan las líneas principales de la explotación e de la dominación social a escala global, las líneas matrices del poder mundial actual, su distribución de recursos e de trabajo, entre la población del mundo, es imposible no ver que la vasta mayoría de los explotados, de los dominados, de los discriminados, son exactamente los miembros de las “razas” de las “etnias” o de las “naciones” en que fueron categorizadas las poblaciones colonizadas, en el proceso de formación de ese poder mundial, desde la conquista de América adelante (QUIJANO, 1992QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena. 13 (29), p. 11-20, 1992., p. 61).

A colonialidade é uma forma de continuação do colonialismo, atualizando-o e forjando identidades coletivas nas antigas colônias, de modo a reproduzir hierarquias de poder, de saber e de ser (MIGNOLO, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais e projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.). O padrão eurocentrado é, assim, apresentado, compreendido e incorporado como universal, nos imaginários individuais e coletivos dos sujeitos, sendo referência e modelo para o qual todo e quaisquer conhecimentos e subjetividades devem mirar e buscar se espelhar.

No entanto, para desobedecer a esse episteme dominante é preciso indignar-se (FREITAS, 2020FREITAS, Raquel Coelho de. Indignação e Conhecimento: para se pensar-sentir o Direito das Minorias. Fortaleza: Editora UFC, 2020.; SANTOS, 2018SANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.) com as suas consequências sócio-jurídicas e cognitivas, que se encontram tanto nas matrizes de distribuição do poder mundial, como nas construções intersubjetivas que geram as discriminações sociais.

Neste sentido, a indignação é compreendida enquanto um sentir-pensar-agir sociopolítico contra situações de injustiça social e cognitiva, resultantes do projeto político hegemônico da modernidade, de negação de direitos aos grupos sociais subalternizados, expandindo a novas possibilidades teóricas e metodológicas de compreensão desses grupos, conhecidos na literatura acadêmico-jurídica como ‘minorias’ devido a condições econômicas, de gênero, de orientação sexual, de idade, relacionadas ao pertencimento étnico-racial, dentre outros marcadores sociais.

Enquanto a concepção moderna de ‘minorias’ vincula-se ao projeto europeu de dominação epistêmica, teórica e política do mundo ocidental, a opção teórica decolonial instiga à reinterpretação dessas situações a partir dos limites territoriais, temporais e políticos, possibilitando que alguns grupos sociais tenham sua história compreendida e considerada através de outras práticas sociais, resistências políticas e reorientação jurídica. Por essa razão, torna-se premente uma reflexão sobre o conceito de ‘minorias’ por ter sido elaborado, originariamente, a partir do projeto hegemônico europeu que, para se estabelecer, reproduziu a lógica binária de subalternização do outro diferente, em particular, nas ideias do “nós superiores e civilizados versus eles inferiores e selvagens” (MAGALHÃES; ÁLVARES, 2017MAGALHÃES, José Luiz Quadros; ÁLVARES, Lucas Parreira. “Infiltrações: do direito à diferença ao direito à diversidade: construindo uma nova teoria da constituição para o novo constitucionalismo democrático”. In: WOLKMER, Antônio Carlos et al. (Orgs). Direito à Diferença e Constitucionalismo Latino-Americano. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2017, p. 69-90., p. 69).

O “nós” referem-se, preferencialmente, a uma categoria racializada de pessoas (brancas), do sexo masculino, proprietários e/ou comerciantes, inclusive, de escravos, para quem o direito organizava as bases de suas relações políticas, civis, econômicas e culturais de modo a expandi-las e protegê-las, chegando à contemporaneidade devidamente regulamentado e efetivado, sem causar maiores questionamentos. Enquanto "eles" não eram necessariamente definidos em termos biológicos, mas como uma circunstância, uma coisa, uma significação, um conceito, uma teoria que reforça a ideia do outro inferior, bárbaro, não instruído, rude, incapaz de desenvolver o seu intelecto e, portanto, de construir um projeto civilizatório. De acordo com a socióloga feminista María Lugones:

A missão civilizatória colonial foi a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas pela exploração inimaginável, violenta violação sexual, controle da reprodução e um horror sistemático [...] transformar os colonizados em seres humanos não era o objetivo dos colonizadores (LUGONES, 2019LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa (Org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., p. 360).

Durante a modernidade, este discurso estrutura uma forma de pensar e argumentar as mais diversas áreas do conhecimento, com destaque para a teologia e a filosofia do século XVI e XVII.2 2 A Controvérsia de Valladolid traz o primeiro debate moral acerca dos povos indígenas da América entre Bartolomé de Las Casas e Juan Guiné de Sepúlveda, entre 1550 e 1551, em que Las Casas rejeitava a escravidão indígena por serem todos filhos do mesmo Deus, enquanto Sepúlveda a defendia com base na doutrina aritotélica da escravidão natural; tese esta que expandia e justificava a escravidão em todas as terras conquistadas pelos europeus. Na defesa vencida de Las Casas, encontra-se a seguinte tese: “Também não eram bárbaros da terceira classe: não eram naturalmente escravos no sentido aristotélico. Eles tinham seus reinos e seus reis, polícia, repúblicas bem regidas e ordenadas, casas, fazendas, lares, leis, tribunais, etc. Por isso, sendo eles capazes de governar a si mesmos, não precisavam ser governados por outros. Da mesma maneira, sendo eles capazes de ser instruídos pacificamente na fé e nos sacramentos, nunca devia ser usada contra eles a guerra, só a persuasão.” (LAS CASAS apud GUTIERREZ, 2014, p. 230). Mas é no desenvolvimento do pensamento político liberal dos séculos seguintes que a diferenciação do ‘outro’, com o objetivo de sustentar a sua subalternização política, legal e cognitiva, torna-se mais evidente e difundida, como no pensamento de Hume, Voltaire, Kant, Hegel, dentre outros pensadores europeus e de grande influência para o Direito. É neste período que se fundamenta a base filosófica e política do processo de formação do Estado Liberal e de suas instituições pós Revoluções Liberais, para a negação dos direitos a vários grupos sociais. Exemplificativamente, citamos um trecho de Kant, o qual Mignolo (2006MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006., p. 670) definiu como de uma ‘arrogância cega’:

Os Negros de África não têm por natureza nenhum sentimento que se eleve acima do insignificante. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo e um Negro que tenha mostrado talentos, e afirma que entre as centenas ou milhares de negros que são transportados dos seus países para outros lugares, ainda que muitos deles tenham sido libertados, ainda não foi encontrado nenhum que tenha apresentado algo de grandiosos na arte ou na ciência ou qualquer outra qualidade digna de apreço, apesar de entre os brancos ter sempre havido alguns que se elevaram da mais baixa ralé e que, através de dotes superiores, ganharam o respeito do mundo (Kant, 1763, secção IV).

No seu livro A Filosofia da História, Hegel (1837), por sua vez, sustenta a ideia da Europa como o berço da história universal e a América como uma extensão do espírito europeu, por ter sucumbido ao projeto do colonizador. Para ele, os negros africanos eram considerados selvagens, desprovidos de caráter humano, por isso, não traziam nenhuma contribuição importante à história do mundo. É neste sentido que a escravidão, associada à cor da pele negra, é reconhecida por alguns historiadores como uma “morte social” e cultural (GOMES, 2019GOMES, Laurentino. Escravidão, do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi de Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, v.1.).

Com a colonização europeia na América e na África estruturada em práticas de violência, exploração e escravidão de negros e indígenas,3 3 Las Casas denuncia este estado de violência contra os indígenas em seu livro Short Account of the Destruction of the Indies (1542): “This is a well-known and proven fact which even the tyrant Governors, themselves killers, know and admit. And never have the Indians in all the Indies committed any act against the Spanish Christians, until those Christians have first and many times committed countless cruel aggressions against them or against neighboring nations. For in the beginning the Indians regarded the Spaniards as angels from Heaven. Only after the Spaniards had used violence against them, killing, robbing, torturing, did the Indians ever rise up against them.” Disponível em: https://www.coreknowledge.org/wp-content/uploads/2017/02/CKHG-G5-U3-about-spanish-explorers.pdf. Acesso em 09 de ago. 2021. a consequência mais natural desse processo foi a construção da identidade desses grupos em desvalor, barbarizada, ou mesmo, invisibilizada, para se amoldar a uma identidade nacional única, que serviria de base para o modelo do Estado-Nação em formação (MAGALHÃES; ÁLVARES, 2017MAGALHÃES, José Luiz Quadros; ÁLVARES, Lucas Parreira. “Infiltrações: do direito à diferença ao direito à diversidade: construindo uma nova teoria da constituição para o novo constitucionalismo democrático”. In: WOLKMER, Antônio Carlos et al. (Orgs). Direito à Diferença e Constitucionalismo Latino-Americano. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2017, p. 69-90.). Enquanto os menos diferentes do padrão dominante tinham suas identidades uniformizadas nas normas jurídicas civis, os mais diferentes eram marginalizados nas relações políticas que envolviam etnias, raça, gênero, idade etc. Diferenças estas que simbolizavam a desigualdade em termos de reconhecimento, de acesso a direitos e de poder.

No seu propósito uniformizador e normatizador liberal clássico, o Estado-Nação europeu somente reconheceu como diferentes e aptos a uma proteção jurídica distinta, os grupos quantitativamente minoritários cujas identidades de nacionalidade, etnia (europeia branca) e religião fossem bem definidas, e não apresentassem ameaças estruturais, ou contra-hegemônicas, ao seu modelo político-institucional.4 4 Walter Mignolo, em seu livro Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e projeto liminar, analisa o circuito comercial que ligava o Mediterrãneo ao Atlântico, o qual associa-se a uma rearticulação do imaginário racial e patriarcal, cujas ideias de “pureza de sangue" e “direito dos povos” tornaram-se centrais. Enquanto a “pureza de sangue” se firmava como um princípio punitivo, que excluía os negros africanos de qualquer semelhança a pessoa humana, o “direito dos povos” era a primeira tentativa legal (de natureza teológica), de redigir um cânone de direito internacional, que fosse além do reconhecimento dos mouros e dos judeus, uma vez que buscava reconhecer também os ameríndios como vassalos do rei (MIGNOLO, 2004, p. 56-57) Portanto, é com base nessas categorias de pessoas com vínculo de nacionalidade, isoladas dentro do Estado-Nação europeu, com características culturais e étnicas próprias, que o conceito de minorias se desenvolveu na Europa e passou a ser empregado generalizadamente para outros grupos sociais, em outros espaços e temporalidades.

A importação do conceito de minorias a partir da realidade local europeia, de onde se originou, e da realidade norte-americana, de onde tomou um impulso transnacional (BOURDIEU; WACQUANT, 2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n º 1, 2002, pp. 15 -33.), suscita a necessidade de se reinterpretar esse conceito nas diferentes sociedades da América Latina, argüindo sua eficácia normativa, suas amarras político-teóricas e sua utilidade em contexto de dominação epistêmica. Isso porque as lutas que os grupos sociais enfrentam em diferentes lugares, com suas experiências históricas e modos de vida próprios, apresentam sentidos diversos nas muitas formas que encontram para alcançar o reconhecimento de sua existência e condição de sujeitos de direitos integrantes de um Estado.

Por essa razão é que a aplicação do conceito de minorias a uma realidade diferente da qual foi inicialmente construído tem sido justificada em estudos acadêmicos sócio-jurídicos mediante muitas ressalvas e contradições. Mais especificamente, é o que observamos no destaque geralmente dado por autores que discutem o tema das minorias de que não se trata de uma categoria definida numericamente. Exemplificativamente, mulheres e negros, maiorias no sentido populacional brasileiro, são frequentemente considerados como minorias nesses estudos.

Isso nos faz crer que se trata de um conceito que não conceitua por estar desconectado de condições político-institucionais que possam viabilizar a sua construção nos moldes da “participação comum” e das “relações inter-epistêmicas” (MIGNOLO, 2006MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006., p. 691). Mesmo quando o emprego de ‘minorias’ conceitua, limita a análise do grupo social associado a demandas baseadas em reconhecimento, porém, relacionado aos princípios da “tolerância” e "diferença" e não da interculturalidade (FORNET-BETANCOURT, 2017), mantendo inalteradas as relações de poder de um grupo sobre outro.

O direito à diferença, associado a muitos estudos sobre direitos das minorias no contexto latino-americano, tende a pressupor um padrão de comparação, subordinação e controle de grupos particulares dentro de uma universalidade maior, e não uma noção de emancipação de novas universalidades que possam existir dentro de um contexto particular e transversal a muitas outras sociedades. Por isso, convém perguntar: diferente a quê? diferente de quem? como e por que essas diferenças foram construídas? como podem ser eliminadas?

Neste contexto, o conceito de minorias se desenvolve sem um sentido concreto, cujos conteúdos, muitas vezes, não apenas refletem os espaços sociais liberais e de dominação epistêmica em que o conhecimento é produzido, como também revelam o efeito que esse conhecimento provoca sobre a realidade social desses grupos, a qual tem sido de baixo impacto transformador (D’SOUSA, 2009D’SOUSA, Radha. As prisões do conhecimento: pesquisa ativista e revolução na era da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p.119-143.). Por isso, o conceito de minorias, ao ser utilizado indistintamente para significar a realidade de muitos grupos sociais latinoamericanos, que lutam por reconhecimento de suas existências com base no direito à diferença, sugere uma carga de significados negativos universalizados, cuja passividade não ameaçadora das relações de poder implica mais a noção de submissão, fragilidade política, subordinação, vulnerabilidade, desvalor etc., do que a ideia de um grupo de relevância social, desafiador dos princípios morais e valores individuais dominantes, hierarquizados e uniformizados, e que tem resistido às muitas ameaças sofridas ao longo da história sobre sua existência, autonomias e direitos.

A ideia de minorias a-histórica e sem contexto social e político, quando aplicada às sociedades latino-americanas, apresenta inúmeras questões quando lidas a partir da lente dos estudos decoloniais. Neste sentido, a decolonização questiona o lugar reificador e reprodutor de desigualdades e iniquidades que o conceito encarta. Quando falamos de minorias, também estamos sugerindo, ainda que não intencionalmente, uma condição individual e coletiva dos sujeitos, algo como se estivesse impregnado nas pessoas; minorias como algo que se é. Enquanto, na verdade, estamos diante de uma relação desigual de poder que “minoriza” e subalterniza pessoas. Não são as mulheres, negros, indígenas, crianças, adolescentes etc. que são minorias; estes grupos são minorizados e subalternizados nas relações de poder que, cotidianamente, vão lhes lembrando o quanto eles continuam sendo “o outro” em um contexto de colonialidade do saber, do poder e do ser.

A ausência de problematização do conceito de minorias, nessa perspectiva, resulta em uma aparente forma cristalizada nas pesquisas sócio-jurídicas, com uma linguagem que transita entre a igualdade formal, a qual, por força da denotação abstrata, pode abranger os mais variados grupos sociais, até uma linguagem contextualizada em referência a um padrão hierárquico superior, dominante, cujo projeto igualitário enfatiza propostas de inclusão.

Por este motivo é que a proposta da inclusão por si só não resolve a limitação do conceito nas pesquisas sociojurídicas, uma vez que o Direito positivo tende a adotar os conceitos e a história como um dado já construído em outras ciências. Como resultado, não se conhecem as implicações políticas que possam estar por trás dos conceitos, a não ser por meio dos padrões sociais dominantes colonizadores que lhe atribuem um significado mais restrito, ou por meio do padrão da norma humanitária internacional e da norma constitucional, que o absorvem como um ideal abstrato, uniforme e genérico a ser alcançado (D’SOUSA, 2006). Neste sentido, a utilização do conceito de minorias, descontextualizado das lutas que os grupos sociais travam no dia-a-dia, só se legitima mediante as suas muitas justificativas e ressalvas que lhe tentam atribuir algum sentido de adequação.

Desse modo é que esta reflexão apresenta-se crítica à episteme dominante, tanto por ter se expandido como a única base conceitual possível, como também por inviabilizar que outras categorias possam emergir a partir de contextos sociopolíticos específicos, as quais poderiam ampliar as possibilidades de pensar as existências e direitos.

Assim, este estudo recorre, de início, às teorias pós-coloniais, as quais demonstram a insuficiência do conceito contemporâneo de minorias e a necessidade de se romper com o imperialismo cultural que o dissemina. Após, alcança nas teorias decoloniais, uma crítica fundamentada nos contextos sociopolíticos e históricos em que o próprio conceito foi produzido e na forma como o Estado Social foi pensado e os direitos foram sendo positivados. Para isso, faz-se uma construção histórico-jurídica da utilização do conceito de minorias em tratados internacionais, onde se origina, e sua correspondência ao direito à diferença nas convenções de Direitos Humanos, com a sua incorporação em normas jurídicas internas brasileiras, para problematizar, a partir da indignação epistêmica, a aplicação do conceito e a sua vitalidade em contextos dominados pela injustiça social e cognitiva. Desse modo, a metodologia aplicada a este trabalho utiliza a revisão bibliográfica, a reinterpretação conceitual histórico-social e a análise legal de como os direitos dos grupos sociais foram sendo construídos com bases em ausências (SANTOS, 2018SANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.), carências e descompassos com a realidade fático-social e política na contemporaneidade.

1. A crítica pós-colonial e a crítica decolonial

A crítica ao imperialismo cultural (americano ou europeu), o qual repousa “no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais” (BOURDIEU; WACQUANT, 2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n º 1, 2002, pp. 15 -33., p.15), tem forte expressão em teorias pós-coloniais, como a de Bourdieu e Wacquant5 5 Embora Bourdieu não se enuncie como pós-colonial, existem autores, tais como Julian Go (2018), que defendem que a perspectiva de sua análise sobre a Argélia não se limitou a uma crítica ao imperialismo francês, mas considerou o ponto de vista dos povos argelinos, em uma perspectiva pós-colonial. . De acordo com os autores, o conceito de minorias é um desses conceitos com os quais se argumenta, mas sobre os quais pouco se discute, como se ele fosse uma etiqueta universal, apta a ser colada em qualquer tempo e realidade social, subsumindo essa realidade a um lugar comum supostamente a-histórico e atemporal. Esse desenraizamento dos conceitos, como o de minorias, quando mundializado por intelectuais progressistas, tende a provocar o esquecimento das suas origens, estabelecendo as realidades complexas e controvertidas de uma realidade local como modelo e medida de todas as coisas. Nesse contexto, tais intelectuais progressistas:

[...] projetam sobre a humanidade inteira, com a boa consciência humanista característica de certa esquerda acadêmica, não só o senso comum liberal norte-americano, mas a noção de minority (seria necessário conservar sempre a palavra inglesa para lembrar que se trata de um conceito nativo importado na teoria - e ainda aí, originário da Europa) que pressupõe aquilo mesmo cuja existência real ou possível deveria ser demonstrada, a saber: categorias recortadas no seio de determinado Estado-nação a partir de traços “culturais” ou “étnicos” que têm, enquanto tais, o desejo e o direito de exigir um reconhecimento cívico e político. (BOURDIEU; WACQUANT, 2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n º 1, 2002, pp. 15 -33., p. 27).

A reflexão crítica dos autores não recai apenas sobre uma diferença de tradução (minority, em inglês, para minoria, em português, por exemplo), mas sobre “toda a diferença existente entre o sistema social no qual essas palavras foram produzidas e o novo sistema social no qual estão sendo introduzidas” (BOURDIEU; WACQUANT, 2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n º 1, 2002, pp. 15 -33., p. 30).

Esta mesma reflexão está presente na crítica decolonial de Walter Mignolo (2006MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006.) ao sublinhar que a modernidade europeia incorpora o pensamento territorial e a “monocultura do espírito”, sem ater-se para o fato de que fora do espaço europeu há uma diversidade de conhecimentos locais, que também se traduzem em conceitos locais sem pretensão de universalização. Por meio da racionalidade europeia é que vários conceitos foram criados para explicar experiências e formas de organização social, assumindo, posteriormente, uma projeção de universalidade, tais como ciência, democracia, direitos humanos, e ainda, neste conjunto, o conceito de minorias. Para Mignolo (2006, p. 683), o problema da universalidade de conceitos criados em contextos regionais está na dificuldade que exercem sobre a compreensão de pesquisadores (tanto da direita como os da esquerda), de que tais conceitos não são nem o ponto de chegada, nem o nome correto para designar uma prática cognitiva, uma realidade social ou um ideal universal de organização social”. Esses conceitos devem funcionar como conectores de diferentes experiências, perspectivas e histórias do conhecimento e das organizações sociais, e não como signos de denotação, que oferecem um nome para designar a totalidade de uma dada prática ou realidade social (MIGNOLO, 2006MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2006.).

Ainda que os autores pós-coloniais (Bourdieu e Wacquant) e decoloniais (Mignolo) tenham a mesma reflexão crítica sobre a origem do conceito de minorias, e o mesmo objetivo em questionar a crença da monocultura do conhecimento válido em suas teorias, ou seja, a ideia de que somente aqueles conceitos e conhecimentos construídos nos grandes centros acadêmicos europeus e norte-americanos são verdadeiros, a diferença entre a crítica ao imperialismo cultural de Bourdieu e Wacquant e a crítica decolonial de Mignolo é fundamental para os desdobramentos da reflexão proposta neste trabalho. Segundo os primeiros autores, a correção ao imperialismo cultural depende de um exercício auto-reflexivo do pesquisador europeu ou norte-cêntrico sobre os limites do seu próprio conhecimento (BOURDIEU; WACQUANT, 2002BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n º 1, 2002, pp. 15 -33., p. 28), reforçando assim, a noção de que “apenas aqueles que dominam o modelo de ciência hegemônica conseguem ser verdadeiramente inovadores” (SANTOS, 2018bSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124., p. 60). Esta é uma observação que não deixa espaço para que outros conhecimentos ou saberes possam contribuir também na reconstrução e inovação textual e conceitual.6 6 Boaventura de Sousa Santos ressalta que não existe espaço em Bourdieu “para que se considerem outros saberes capazes de corrigir ou ultrapassar as falhas ou fracassos do conhecimento científico anterior ou de lidar com outros conjuntos de questões” (2019, p. 60). Por outro lado, a crítica decolonial de Mignolo vem propor a conjunção desses saberes para além das fronteiras dos conhecimentos dominantes, para que possam ser reinterpretados e recebam novos significados e sentidos, isto é, um conhecimento que será pensado a partir da sua contextualidade, e em conjunção com os sujeitos com e para quem está sendo construído o conhecimento.

Embora Bourdieu e Wacquant reconheçam os limites culturais e políticos para a universalização dos conceitos produzidos na episteme dominante, não propõem os critérios de ruptura colonial que foram evidenciados e restaurados na teoria de Mignolo. Desse modo, mantém-se na reformulação do conhecimento feita dentro do próprio pensamento europeu e a partir dele. Para Mignolo, ao contrário, um desses critérios refere-se à injustiça cognitiva que se constrói por meio dessa epistemologia dominante, elaborada em processos de colonização, capitalismo e patriarcado, a qual tenta deixar nos conhecimentos que são produzidos a presença da dominação epistêmica. Por meio dos conhecimentos dominantes, os conhecimentos e saberes desses grupos colonizados são desqualificados e eles passam a pensar a partir da perspectiva dos conhecimentos do colonizador, e não mais a partir do seu contexto existencial, social e político, que lhes permitiu compreender o mundo e comunicá-lo, por meio de outras práticas, relações e interações não dominantes (FANON, 1961; FREITAS, 2020FREITAS, Raquel Coelho de. Indignação e Conhecimento: para se pensar-sentir o Direito das Minorias. Fortaleza: Editora UFC, 2020.). Portanto, é a partir da realidade colonizada que os novos conhecimentos devem ser reconstruídos e reinterpretados perante a base conceitual imposta.

Sem essa percepção, as pesquisas sobre ‘minorias’ podem até apresentar uma construção mais progressista, como argumentaram Bourdieu e Wacquant, mas continuam sob os muitos graus de dependência epistêmica que a visão de Walter Mignolo pontua, o que compromete a compreensão da realidade local desses grupos, sua relação com outras lutas políticas e sociais, e com a construção dos direitos. No caso da América Latina, o diálogo entre as lutas regionais e as normas de Direito Internacional e vice-versa, deve passar pela compreensão dos contextos históricos de cada país, com seus regimes políticos, econômicos e jurídicos particulares, que deixam nas sociedades um modo de funcionamento da subjetividade que precisa ser discutido e reinterpretado (ROLNIK, 2018ROLNIK, Suely. Esferas de insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Edições, 2018.), antes de ser reproduzido no Direito.

2. Por que um conceito é tão importante para a compreensão da realidade?

Radha D’Sousa cita o filósofo Roy Bhaskar (1989), para lembrar que a natureza da vida humana e social depende de conceitos: “estes constituem uma herança histórica e desenvolvem-se graças ao nosso entendimento concreto em contextos sócio-espaço-temporais” (D’SOUSA, 2009D’SOUSA, Radha. As prisões do conhecimento: pesquisa ativista e revolução na era da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p.119-143., p. 128). Ainda segundo a autora (D’SOUSA, 2009), são os conceitos que incluem um sentido concreto no vocabulário político capaz de explicar a realidade. Quando descontextualizados, retiram a importância que têm para a reinterpretação e transformação social.

A generalidade e a-historicidade dos conceitos podem trazer um grande prejuízo na construção de teorias sociais e jurídicas. Em geral, essas teorias podem apresentar uma construção linear de direitos que anula as muitas modalidades de lutas dos grupos sociais e, consequentemente, as relações de poder e intersubjetividades que estão inseridas nessas relações. Por outro lado, como são teorias que, normalmente, compactuam com a construção desse conceito a partir da realidade local européia e norteamericana, para as quais o conceito foi, inicialmente, relacionado, evitam explorar o que está efetivamente em jogo no âmbito regional ou local, abrindo muitas possibilidades de significados que se revelam contraditórios e incompatíveis do ponto de vista filosófico e teórico (D’SOUSA, 2009D’SOUSA, Radha. As prisões do conhecimento: pesquisa ativista e revolução na era da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p.119-143.). Por fim, ao definir certos grupos como ‘minorias’, estabelecem uma relação de contraste com o grupo considerado padrão, oferecendo-lhes um nascimento já excludente, cuja modalidade de luta central será por inclusão em uma realidade excludente.

Essa realidade passa a ter significados diferentes para muitas pessoas em contextos diversos, sendo associado, com mais frequência, à linguagem da inclusão/exclusão. Para D’Sousa, a política da inclusão promove o ideal de encaminhar todas as pessoas para espaços democráticos supostamente neutros. Quando os alcançam, esse ideal traz a conformação da conquista inclusiva, sem o questionamento da existência conjunta de processos políticos de dependência e inter-relação entre inclusão/exclusão. Neste sentido é que D’Sousa chama a atenção para a possibilidade de as linguagens de inclusão anularem o campo político onde as alianças poderiam ser construídas na busca por mudanças estruturais baseadas em objetivos programáticos (D’SOUSA, 2009D’SOUSA, Radha. As prisões do conhecimento: pesquisa ativista e revolução na era da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p.119-143.).

Por sua vez, Grada Kilomba ressalta que “a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, de fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (2019, p. 14). Nem línguas, nem conceitos, nem ciência são neutros e desprovidos de intencionalidades políticas. Assim, não se trata apenas de refletir sobre o que dizemos quando falamos sobre minorias, mas, principalmente, sobre o que não está dito e acaba sendo cristalizado: as relações de poder que criam e determinam quem é considerado minoria e quem é considerado maioria.

Esses são aspectos que revelam como um conhecimento local, transformado em uma razão dominante, pode expandir-se e articular-se em outras localidades de modo a conduzir os novos conhecimentos nelas construídos, aos mesmos resultados esperados no padrão de sociedade liberal onde fora inicialmente elaborado.

Como trabalhar, então, o conceito de minorias? Seria necessária uma construção de outros conceitos não europeus ou norte-americanos para explicar a realidade dos grupos sociais subalternizados na América Latina? A funcionalidade do conceito já não significa aquilo que ele quer transmitir? Ou como questionou Santos (2018bSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.; p. 64), em sua reflexão decolonial: “Podemos construir um espaço comum alargado na base do reconhecimento da alteridade?”. Quando o conceito de minorias é reinterpretado a partir das lutas por direitos protagonizadas pelos movimentos sociais, este conceito passa a requerer um sentido novo, que se insere na base existencial de um sistema epistemológico, social, histórico e cultural. Neste sentido, a subjetividade que dá vida ao sistema de onde se extrai o conceito torna-se política (ROLNIK, 2019), cujo ponto de partida é, quase sempre, uma relação de poder material institucionalizada que repercute nas relações intersubjetivas sociais, construídas a partir das invisibilidades e/ou sub-representações políticas, econômicas e legais dos grupos sociais minorizados, e que influencia no modo como a sociedade os interpreta, os aceita e/ou os rejeita.

Entretanto, é importante lembrar que as teorias jurídicas que utilizam o conceito de minorias, em geral, não são impulsionadas por práticas sociais e jurídicas locais alinhadas aos movimentos sociais que lutam por direitos ou por sua efetividade, e, menos ainda, a partir de uma reflexão decolonial baseada na alteridade e na diversidade. Na teoria de Diego López de Medina (2016MEDINA, Diego E., “Por que falar de uma ‘Teoria pura do Direito' para a América Latina?”. Cadernos do Programa de Pós-Graduação Direito/UFRGS. Ed. Digital. Porto Alegre, vol. XI, n. 1, 2016, p. 3-49.) sobre as impurezas do direito e a importação de conceitos jurídicos, a qual possui afinidade com a teoria social de Bourdieu e Wacquant, essa transferência de conceitos para a América Latina, por exemplo, deve-se à história cultural da teoria jurídica latino-americana, cujo pensamento é caracterizado por marcadores geopolíticos, hierárquicos e binários como ‘centro e periferia’, ‘lugares de produção e lugares de recepção’, ‘jurisdições prestigiosas e não prestigiosas’, os quais ajudam a definir preliminarmente o sentido em que ocorre o fluxo de ideias e teorias, por meio de conceitos como “influência", "leitura equivocada", "transmutação", "imitação", "cópia e plágio” (MEDINA, 2015, p. 36). Como lugar de recepção do conhecimento, as instituições latino-americanas acabam conformando o Direito local às teorias externas europeias e norte-cêntricas, sem reconhecer que estas teorias têm suas bases nas circunstâncias materiais da vida das sociedades em que são geralmente elaboradas. E fazem parte de um projeto que invisibiliza e nega os próprios grupos sociais locais, mesmo aqueles resguardados na norma internacional como minorias, como é o caso dos povos indígenas, por exemplo.

3. Direito Internacional dos Direitos Humanos e o conceito de minorias

O tradicional conceito de minorias obteve vários desdobramentos teóricos desde o século XVII, visando acompanhar as demandas de alguns grupos sociais por proteção e direitos, orientados pela ideia de pertencimento e diferença, tais como os grupos selecionados pela “pureza de sangue” e nacionalidade.7 7 Outra consequência apontada por Mignolo sobre o princípio da “pureza de sangue”, utilizado para rearticular os povos das três religiões da época (judeus, mouros e cristãos), é que ele transferiu-se para o período republicano e se organizou de modo diferente e oposto a outro princípio que emergia dos debates de Valladolid, o "direito dos povos”. Embora estivesse no âmago colonial, buscando reconhecer as fronteiras do poder para os mouros e judeus, este princípio trazia as bases do imaginário moderno que buscava a universalidade do homem tal como a Europa, já consolidada, o concebia; que seria revelada após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (MIGNOLO, 2003, p.56) No âmbito do Direito internacional que aqui representa uma importante face do Direito na contemporaneidade, minorias é um conceito que precisa ser problematizado a partir da geopolítica, critérios raciais e demandas que constituíram o escopo da norma jurídica, com limitações e potencialidades. Uma dessas limitações era a própria ideia de maioria utilizada na funcionalidade da democracia liberal americana e europeia, associada à concepção de igualdade formal e universal, uma vez que esses eram modelos contraditórios entre si para acolher as demandas dos grupos sociais minorizados.

Segundo Unger (1979UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito na sociedade moderna, contribuição à crítica social. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1979.), que compreende a igualdade a partir da modernidade, a forma generalizada e uniforme da aplicação das regras através da igualdade de todos perante a lei, nada tinha a ver com as regras de organização do Estado-Nação. Como definir o conteúdo dessas regras é, muitas vezes, fazer opções por categorias de pessoas ou coisas, a formalidade trazida pelo direito liberal tornava-se inútil quando era desafiada pelos seus próprios pressupostos de impessoalidade e neutralidade do poder. Isso porque as próprias “hierarquias na sociedade afetam significativamente a situação de um indivíduo ou um grupo, sobretudo, em contextos familiares patriarcais, nas relações de mercado e de trabalho que influenciam a governabilidade”(UNGER, 1979UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito na sociedade moderna, contribuição à crítica social. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1979.; p. 187). A regra da igualdade uniforme e generalizada, neste contexto, apenas permite a distribuição dos bens e direitos que já estão distribuídos nas relações de mercado e patriarcais, e de governo, sem enfrentar opções entre os valores em conflito. Como a igualdade não resolve o problema das escolhas que orientam as relações sociais, “acaba criando um senso de ilegitimidade da ordem político-institucional para a população mais desigual e com identidades diferentes” (UNGER, 1979, p. 204), uma vez que se mostra inútil para lidar com situações de desigualdade e discriminação.

Com base nessa racionalidade igualitária do Estado-Nação, os grupos sociais minorizados obtiveram um limitado espaço de transformação por meio das instituições político-jurídicas nas sociedades europeias, pela via democrática liberal. Desse modo, só lhes restava a assimilação das regras de organização formal de neutralidade, igualdade e de universalidade se quisessem, de fato, pertencer a essas sociedades como cidadãos (SANTOS, 2018aSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.).

Assim é que a primeira conotação de ‘minorias’ referia-se ao aspecto quantitativo do grupo social em relação à população majoritária, diferenciados por critérios culturais, sem comprometer a igualdade liberal, uma vez que todos eram nacionais. Esses critérios abrangiam apenas os grupos religiosos, étnicos e linguísticos internos nos países europeus, em quantidade inferior à maioria da população nacional. Enquanto a igualdade formal e universal não resolvia os problemas das diferenças culturais dos grupos sociais, estes eram homogeneizados na condição de cidadãos por meio do vínculo da nacionalidade.

No decorrer do século passado, este foi o conceito institucionalizado pelo Direito Internacional, o qual estava associado ao liberalismo clássico por não cobrar uma intervenção maior na política econômica dos Estados para suprir as necessidades básicas de tutela e preservação desses grupos sociais em território europeu. Desse modo, a proteção legal dos grupos minoritários associados à religião, à etnia branca e grupos linguísticos orientava-se pelo modelo econômico liberal de não-intervenção, com a predominância dos direitos civis e políticos. Sob este aspecto, os direitos dessas minorias numéricas não contrariavam a ordem econômica capitalista que se instalava nos países, ao mesmo tempo em que não interferiam na organização social decorrente dos processos de colonização, mantendo-os particularizados e à parte (FREITAS, 2017FREITAS, Raquel; WOLKMER, Antônio. “O Impacto do Novo Constitucionalismo nos processos de construção da democracia na América Latina”. Revista da Faculdade de Direito - Universidade Federal de Minas Gerais, v. 70, 2017, p 595-632.; SANTOS, 2018aSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.).

Esse conceito clássico encontrou limites dentro do próprio Direito Internacional humanitário quando não permitiu que refugiados e imigrantes, quer fossem trabalhadores formais ou não, também estivessem protegidos pelos mesmos institutos legais, uma vez que pertenciam a uma outra categoria de pessoas para as quais os Estados teriam que promover políticas mais interventivas. Para os refugiados e imigrantes, as Nações Unidas criaram instrumentos jurídicos próprios, favoráveis à sua proteção, que não se confundiam com normas de proteção para os grupos minoritários.8 8 A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, traz a definição de quem é refugiado ou não e quais são os seus direitos e responsabilidades das nações que lhe concedem asilo; sem nenhuma referência à condição de grupo minoritário.

A própria Carta das Nações Unidas, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, não lidaram com a questão das minorias. Esse tema somente foi tratado no artigo 27 da Convenção Internacional para os Direitos Políticos e Civis da ONU(1966), que tornou-se obrigatória a partir de 1976, portanto, três décadas depois da Carta das Nações Unidas, trazendo o seguinte enunciado:

Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertinentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente, com outros membros de seus grupos, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

Neste período, a Comissão de Direitos Humanos começou a elaborar a Declaração dos Direitos das Minorias, sentindo a necessidade de se criar uma definição própria para minorias (DECHÊNES, 1985). O conceito clássico de minorias começou a ser reinterpretado no pós-guerra, pela Subcomissão das Nações Unidas para Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, mas foi em 1979, que o relator Francesco Capotorti apresentou uma definição restrita, condicionada aos três critérios presentes no escopo legal do art. 27, mencionado acima: I - grupo não dominante que possui e deseja preservar a sua etnia, tradições religiosas ou linguísticas; II - deve representar um número de pessoas suficiente na preservação das suas tradições e características; III - deve ser fiel ao Estado onde vincula a sua nacionalidade:

A minority is a group numerically smaller than the rest of the population of the State to which it belongs and possessing cultural, physical or historical characteristics, a religion or a language different from those of the rest of the population (CAPOTORTI, 1979CAPOTORTI, Francesco. Study on the rights of persons belonging to ethnic, religious and linguistic minorities / by Francesco Capotorti, Special Rapporteur of the Sub-Commission on Prevention of Discrimination and Protection of Minorities. Genebra: UN, 1979. Access: https://digitallibrary.un.org/record/10387. Arquivo :E_CN.4_Sub.2_384_Rev.1-EN.pdf, Genebra: UN, 1979.
https://digitallibrary.un.org/record/103...
, p.7).9 9 Tradução livre: Uma minoria étnica, religiosa ou numérica é um grupo numericamente menor que o resto da população do Estado ao qual ele pertence, e possui características culturais, físicas, ou históricas; uma religião ou uma língua diferente daquela do resto da população.

Em proposta alternativa à Subcomissão, o canadense Jules Deschênes (1985DESCHÊNES, Jules. Proposal on concerning a definition of the term minority. Genebra: ONU, 1985.) tentou deslocar o alcance do conceito para uma aproximação com o corpo social maior, no exercício da cidadania, cujo objetivo era “alcançar condições de igualdade tanto formal como material com o grupo majoritário”:

A group of citizens of a State, constituting a numerical minority and in a non- dominant. position in that State , endowed with ethnic, religious or linguistic characteristics which differ from those of the majority of the population, having a sense of solidarity with one another, motivated , if only implicitly, by a collective will to survive and whose aim is to achieve equality with the majority in fact and in law (DESCHÊNES, 1985DESCHÊNES, Jules. Proposal on concerning a definition of the term minority. Genebra: ONU, 1985., p. 30).10 10 Tradução livre: Minorias' são um grupo de cidadãos de um Estado, constituindo um grupo numericamente minoritário, além de não ocupar posição dominante naquele Estado. Possuem etnia, religião ou características linguísticas diferentes da maioria da população, sendo dotados de um senso de solidariedade uns com os outros, motivados, ainda que implicitamente, por um senso coletivo de sobrevivência, almejando alcançar condições de igualdade tanto formal como material com o grupo majoritário.

Desse modo, a definição é ampliada por Deschênes quando é relacionada ao conceito de cidadania, pela possibilidade de aproximação de “minorias” às lutas por igualdade material protagonizadas no plano individual liberal, devido à ausência de direitos. Talvez por esse motivo, esse conceito não tenha conseguido, assim como os anteriores, a aprovação dos membros da Subcomissão das Nações Unidas para Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, deixando em aberto a necessidade de ser reinterpretado, junto à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, para a operacionalização dos instrumentos jurídicos de Direitos Humanos. Isso deveu-se, especialmente, pela reinterpretação restrita de Capotorti ao utilizar o conceito de minorias “como nacionais”, e a proposta de Deschênes, de associar ao grupo social majoritário, e interpretar “minorias como cidadãos igualitários”. Além disso, ambas definições faziam referência implícita a outras minorias que não estavam inseridas nas normas internacionais, como aqueles grupos que desejam permanecer com características distintas da sociedade, ou alheios a ela (DESCHÊNES, 1985DESCHÊNES, Jules. Proposal on concerning a definition of the term minority. Genebra: ONU, 1985.).

O ponto em comum sobre as definições de minorias no DIreito Internacional, quer associadas à nacionalidade ou à cidadania liberal igualitária, estava na relação jurídica de pertencimento ao Estado que todas deveriam possuir, isto é, as minorias pertenciam a uma comunidade política, a um Estado-Nação, e, com isso, estava-lhes assegurado, formalmente, o status de cidadãos, de sujeitos de direitos. Assim, fundamental para a asseguração de direitos era a condição de pertencer a um corpo político e, como cidadãos, possuir outros direitos conferidos aos nacionais, como os econômicos, sociais e culturais. Embora esse fosse o objetivo buscado na norma internacional, restava clara a sua conotação liberal/individual que não atendia às realidades minorizadas nos países colonizados. Por essa razão, era um concepção dissociada da luta por direitos no âmbito interno dos países latinoamericanos, onde a concepção de sujeitos de direitos ainda estava sendo construída.

No Relatório sobre Direito à Educação e Minorias, elaborado pelo Minority Rights Group International, Patrick Thornberry (1991, p. 5) questionou essa definição restrita à etnia e ao pertencimento nacional devido ao déficit de representação político-institucional de outros grupos sociais com demandas sociais semelhantes, que não estavam sendo protegidos diretamente pelas normas existentes, mas sim, de forma subsidiária pelos instrumentos dos grupos minoritários mais tradicionais. Neste contexto é que o conceito de minorias, ao abrigar somente os grupos tradicionais étnicos e religiosos reconhecidos pelos países europeus, passou a ter um duplo efeito, de inclusão e exclusão social, onde as demandas dos grupos excluídos ao conceito, intensificadas a partir do final do século passado, passaram a exigir, dentre outras necessidades, o reconhecimento de outras identidades, para que houvesse uma “distribuição” de direitos com um alcance maior no âmbito doméstico dos países.

Santos (2018aSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124.) destaca que as normas humanitárias de Direito Internacional propagavam a crença de que a humanidade toda podia ser emancipada pelo seu projeto comum de defesa dos direitos individuais universais, para os quais só havia dois sujeitos jurídicos reconhecidos: o indivíduo e o Estado. Quando as normas humanitárias foram escritas, muitos indivíduos não foram protegidos porque estavam sob a dominação coletiva, cujos direitos individuais não traziam qualquer proteção (SANTOS, 2018aSANTOS, Nilma Gomes dos. “Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas”. Revista da ABPN, v. 10, n. 26, jul-out 2018, p.111-124., p. 298). Assim, este projeto começa a se tornar inoperante a partir do momento em que não se desassocia nem do capitalismo nem do colonialismo, que eram as marcas de muitos dos países europeus no século passado. E, com isso, não foi capaz de abdicar do conceito de sub-humano, como uma parte integrante da humanidade, que estava representado na realidade de muitos povos e nações colonizadas, e nas diferenças identitárias de muitos grupos sociais sobre as quais o Direito Humanitário Internacional projetava a invisibilização das exclusões coletivas (SANTOS, 2018a). Enquanto as normas de Direito Internacional buscavam a igualdade em direitos de todas as pessoas pela sua condição ontológica de seres humanos, a partir da percepção individual europeia, muitos grupos sociais afetados pelo capitalismo e pelo colonialismo resistiam na luta local pelo seu reconhecimento como sujeitos de direitos.

Por esta razão, fez-se necessário intensificar o diálogo da norma internacional com a norma constitucional de cada país, e verificar, no âmbito dos direitos positivados na norma interna, o alcance e limites da proteção internacional pretendida para as minorias e outros grupos sociais. Na relação entre a norma internacional e a norma constitucional de países da América Latina, ficou evidente não apenas o caráter eurocêntrico do conceito de minorias, como também a necessidade de se reconhecer os critérios particulares de pertencimento e diversidade a serem protegidos pela norma internacional, que deveriam reconhecer os direitos humanos a partir da ótica dos que tinham esses direitos negados. Assim, uma compreensão mais apropriada do conceito de minorias na América Latina cobrou uma aproximação do princípio da autodeterminação não apenas na relação vertical dos povos que foram sujeitos à colonização europeia, com reflexos na relação do indivíduo, ou da comunidade perante o Estado; mas também nas relações horizontais, no âmbito das relações privadas e de mercado, de afirmação de identidades de vários grupos sociais que foram sujeitos ao colonialismo, inclusive interno (CASANOVA, 2015CASANOVA, Pablo González. De la sociología del poder a la sociología de la explotación. Pensar América Latina en el siglo XXI. Buenos Aires: CLACSO, 2015, p. 129-156.), como os indígenas, e que demandam a institucionalização internacional do direito à autonomia e pertencimento para a promoção de uma inclusão igualitária e emancipatória.

Na prática, essa solução aponta uma ruptura que Mignolo denomina de política de identidade para os grupos considerados minorias no plano internacional e regional, a qual está embasada na suposição de que “as identidades são aspectos essenciais dos indivíduos que podem levar à intolerância” e ao perigo de posições fundamentalistas (MIGNOLO, 2008MIGNOLO, Walter. A Desobediência epistêmica: a opção descolonial e a identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, p. 287-324, 2008., p.289). Isto é, ao serem estabelecidas com base no fato de as pessoas serem negro ou branco, mulher ou homem, indígena, crianças e adolescentes, homossexual ou não, tais políticas de identidade escondem o fato de não serem isentas de neutralidade ao naturalizar as relações de domínio e poder que se instauram sobre essas condições humanas, sociais e econômicas. Ou seja, o padrão da política de identidade é sempre o homem branco, heterossexual e capitalista, que denota identidades tanto similares quanto opostas como essencialistas e fundamentalistas (MIGNOLO, 2008, p.289), portanto, não podem ser desassociadas da relação raça/etnia/classe, gênero/classe, trabalho/classe. Como alternativa decolonial, Mignolo sugere a identidade em política, que requer a compreensão de que as identidades dos grupos mais tradicionais e dos novos grupos que surgiram no final do século passado, foram artefatos construídos nos discursos europeus modernos baseados na matriz racial colonial e patriarcal. E a partir desta reinterpretação, inseri-las na construção de uma nova teoria política e experimentação de novas relações sociais, inseridas nas lutas e resistências, e até mesmo, resiliências, produzidas nas tensões das relações ocidentais coloniais, patriarcais e econômicas.

4. O conceito de minorias na norma constitucional: olhando para a realidade da América Latina

É importante destacar que o conceito de minorias não se encontra em nenhuma das Constituições mais atuais da América Latina (Colômbia, 1991/rev.2015; Equador, 2008; Bolívia, 2009), ou mesmo nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos mais recentes,11 11 Exemplificativamente: Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, de 1989; Convenção das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989 e Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007; Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965. os quais são resultado de muita luta de diferentes grupos sociais. Na verdade, parece ter havido uma reinterpretação de ‘minorias’ para os direitos de autodeterminação, reconhecimento à diferença e à diversidade dos grupos sociais nesses Tratados e Convenções internacionais e nas constituições dos Estados latinoamericanos. A realização desses direitos, no entanto, depende muito do espaço político-institucional destinado aos grupos com identidades e características específicas. Isso significa que a abertura de espaços político-institucionais deve reconhecer nas lutas sociais em defesas das identidades e autonomias, um conhecimento transformador a ser implementado na elaboração de políticas públicas, com impacto programático de transformação não só para o grupo específico, mas para todo o corpo social. Essa transformação implica não apenas a ocupação de espaços públicos, mas também projetos políticos igualitários e de fortalecimento da cidadania individual e coletiva por meio de uma mudança epistêmica, com reflexo nas instituições legais, políticas, sociais e econômicas que resultem em novos conceitos, percepções e pensamentos sobre as diversidades sociais e as desigualdades.

Nas sociedades latino-americanas, a reformulação político-institucional entre o público e o privado variou de uma tendência progressista em alguns países que adotaram o direito à diversidade e autonomias, para um giro ecocêntrico nos países andinos, onde o diferente deixa de ser o grupo social subalternizado na modernidade, para ser reposicionado e fortalecido como sujeito de direitos nas relações raciais e étnicas de poder contemporâneas (WOLKMER; LIXA, 2015; FREITAS; MORAES, 2017FREITAS, Raquel; WOLKMER, Antônio. “O Impacto do Novo Constitucionalismo nos processos de construção da democracia na América Latina”. Revista da Faculdade de Direito - Universidade Federal de Minas Gerais, v. 70, 2017, p 595-632.). Isso implicou também um giro decolonial por meio das constituições que instituíram um Estado plurinacional e adotaram o pluralismo jurídico, com o reconhecimento das autonomias e comunidades dos grupos étnicos e raciais, demonstrando que se tratavam de uma maioria numérica em seus países, minorizadas pelos processos de colonização; além de inserirem um modelo de democracia comunitária, com direito à diversidade no sentido pluriétnico (WOLKMER; FREITAS, 2017). Por meio do reconhecimento e valorização dos grupos étnico-raciais nos países andinos, o próprio conceito de minoria perdeu o seu sentido tradicional, restando patente o seu caráter de artificialidade resultante do modelo de escolhas institucionais no qual foi elaborado. Nesse contexto, não bastou uma crítica e um não uso do conceito. O que se observou, especialmente no que diz respeito às Constituições do Equador e da Bolívia, foi uma profunda reformulação das instituições jurídicas regionais e de cada país, a exemplo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano.

Desse modo é que a norma igualitária constitucional liberal e universalista na América Latina, revelada como um dos maiores impedimentos para a autodeterminação dos grupos sociais, precisou ser reinterpretada à luz de outros arranjos político-institucionais. Embora a igualdade material ainda seja um ideal para as sociedades latino-americanas, a sua concreção por meio de outras possibilidades político-institucionais e de políticas públicas resultantes das demandas dos movimentos sociais, pode possibilitar a reconstrução das diferenças identitárias e culturais, e desigualdades, de modo a romper com os conceitos e representações hegemônicas, de tradição monocultural e eurocêntrica ou norte-cêntrica, para promover um deslocamento nas relações de poder que afetam os grupos sociais subalternizados. Nestas lutas, encontram-se os registros de uma realidade que condiciona pessoas a se inserirem em um conceito forjado, que neutraliza todos os esforços políticos de mudança por meio da autonomia, a não ser pela via da subordinação e dependência política. Assim é que a inadequação do conceito de minorias com bases históricas, territoriais e temporais de lutas e resistências passou a requerer também a reconstrução de instituições e práticas sociais políticas, econômicas, jurídicas e, sobretudo, epistêmicas.

No Brasil, especialmente pós-Constituição de 1988, pode-se dizer que a política nacional de proteção para grupos étnicos-raciais, crianças e adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência, grupos que trazem orientações sexuais e identidades de gênero diversas etc., ainda que não sejam considerados minorias no contexto tradicional do termo, apresenta características aproximadas quanto à construção dos seus direitos, por denunciarem as bases do modelo negacionista, excludente e violento em que foram sendo positivados no contexto histórico e político. Primeiro, com a ausência e negação de direitos, que pode ser observada, por exemplo, nos direitos raciais, das crianças e dos adolescentes, das pessoas com deficiência,e outros. Segundo, através da preponderância das políticas de assimilação da cultura dominante, a qual deixava o grupo a depender do reconhecimento de sua identidade e autonomia, exercida de forma tutelada, no caso dos direitos indígenas. Terceiro, no reconhecimento contemporâneo formal de que todos os membros desses grupos minorizados são sujeitos de direito, estando este reconhecimento em descompasso com a construção dos direitos dominantes e, consequentemente, com a realidade concreta.

As consequências do reconhecimento formal e tardio, embora necessário, foi a construção de direitos sem simultaneidade alguma com os direitos construídos para os grupos dominantes, o que passa a direcionar a luta para uma constante efetivação de direitos dos grupos socialmente minorizados. Se todos são sujeitos de direitos e iguais perante a lei, como justificar, no Brasil os seguintes dados:

  • 78,9% das pessoas mortas pela polícia em 2020 eram negras, segundo dados do Anuário de Segurança Pública 2021 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021);

  • Em 2018, apesar de um crescimento de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados, resultado, inclusive, das alterações na lei de cotas e de verbas para candidaturas, ainda se observou uma proporção de 15% de mulheres e 85% de homens escolhidos para essa casa legislativa. Quanto às mulheres negras, que representam 27,8% da população brasileira, segundo o último Censo do IBGE (ainda de 2010), apenas 2,53% das cadeiras na Câmara dos Deputados estão ocupadas por elas (OXFAM, 2021).

  • Somente em 2019, segundo relatório publicado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram 244 conflitos em territórios indígenas, os quais envolveram assassinatos, expulsão e tentativas de expulsão de famílias indígenas, pistolagem e invasão a territórios.

  • Pelo 12º ano consecutivo, o Brasil foi o país no mundo que mais matou pessoas transexuais, de acordo com o Observatório de Assassinatos Trans (JUSTO, 2020).

Tais dados demonstram que, além das normas que asseguram direitos igualitários, há estruturas sociais, cognitivas e epistêmicas que mantém, institucionalizam e, de algum modo, legitimam o racismo, o machismo, o patriarcado, a colonialidade, dentre outras opressões. Questionar essas estruturas é papel do pesquisador crítico decolonial.

As consequências da máxima igualitária de assimilação e universalização do direito à igualdade recaiu não apenas sobre a subalternização de pessoas, culturas e saberes a um modelo social dominante, como também na disseminação de uma pseudo crença de que os não subalternizados eram livres para optar por esse modelo social. Por esta razão, torna-se fundamental compreender o colonialismo e a colonialidade na formação dessa racionalidade jurídica entranhada na norma constitucional, e dissipada na hierarquia das relações sociais. Essa é uma reflexão relevante por possibilitar aos grupos acadêmicos que pesquisam sobre os direitos e a realidade dos grupos sociais minorizados, a identificação dos bloqueios conceituais que reproduzem conhecimentos externos limitados e limitadores dos conhecimentos locais, com perspectivas e pensamentos desprovidos de uma reflexão crítica, ou mesmo sem o reconhecimento da sua influência na construção da racionalidade local e jurídica. Sem essa reflexão, torna-se mais difícil reconhecer os sujeitos como possuidores de direitos; e, mesmo quando o são, a implementação desses direitos passa a ser questionada devido a não aceitação social.

Esse é um tipo de injustiça que extrapola as injustiças sociais por manifestar-se também na forma cognitiva. Porém, esta injustiça não ocorre apenas sobre os saberes, mas, antes de tudo, sobre os corpos, atualizando, cotidianamente, as relações de violência colonial, transvestidas de violência epistêmica e jurídica. Por sua vez, é um tipo de injustiça, como observou Fanon, que pode causar também ação, quando o colonizado reproduz práticas opressoras contra si e contra outros oprimidos (FANON, 2008FANON, Franz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.).

A injustiça cognitiva está muito presente nas relações de poder que esses grupos enfrentam, sobretudo, no Brasil, quando envolvem questões raciais, étnicas, de gênero e idade. Além de inferiorizar ou invisibilizar esses sujeitos, desqualifica seus conhecimentos e participação social por serem produzidos por corpos políticos e geopolíticos inferiorizados. Seu maior comprometimento está em impor a definição da verdade sobre esses grupos sociais sob a perspectiva dominante como a única racional, que acaba decidindo sobre o que se indignar ou não se indignar em relação à própria condição existencial desses sujeitos.

Considerações finais

A crítica decolonial, que orienta o sentir-pensar-agir da indignação epistêmica, conduz-nos à percepção da ambigüidade latente do conceito de minorias: ao mesmo tempo em que reconhece direitos, tende a vulnerabilizar os grupos sociais ao ocultar as relações de poder que criam, reforçam e atualizam as injustiças sociais, econômicas e epistêmicas. O conceito fecha, enquadra e confina, mas também traz possibilidades. Ele torna-se ambíguo porque pode ser trabalhado de forma limitante ou transformadora, permitindo a convivência de espaços de direitos tolerados no âmbito do sistema capitalista-patriarcal-racista-heteronormativo-capacitista, os quais não alteram as estruturas profundas da dominação.

O conceito de minorias, como tem sido correntemente aplicado, desistoriciza, despolitiza e equipara diversas coletividades sociais sob uma mesma categoria subalternizada. A complexidade do real vai sendo assim reduzida, delimitada, enquadrada. Assim, restaria a esses coletivos buscarem o seu enquadramento no conceito de minoria para terem certo status político-jurídico supostamente compensador.

A não compreensão dos processos de subalternização, de ausência histórica de direitos, de descompasso no reconhecimento dos novos sujeitos de direitos, de subrepresentação política e econômica, resumindo, de injustiça social e cognitiva, podem levar o conceito a uma não realização, como se estivesse inserido em um sistema fechado, sem brechas ou rupturas, tratando-se de um conceito tautológico. Conceitos precisam se aproximar dos movimentos sociais para terem densidade jurídica devido às demandas sempre atualizadas por direitos. Os movimentos sociais expressam uma forte carga pedagógica, por trazerem outros corpos-sentimentos-racionalidades para o centro do debate e da construção do conhecimento jurídico, problematizando a noção única de sujeito, de humanidade e de Direito.

Desse modo, pesquisas sociojurídicas que se fundamentam no direito de diferentes grupos sociais não devem partir do lugar de classificação desses grupos como minorias ou maiorias, mas, conhecendo suas histórias de luta e suas epistemes, devem trazer para a arena do direito estatal os conflitos, ainda que ontológicos, de compreensão de mundo, na busca por promover uma decolonização do Direito.

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  • 1
    O debate em torno das categorias descoloniais e decoloniais não é apenas de mero preciosismo acadêmico. De acordo com Castro-Goméz e Grosfoguel (2007), o termo decolonial descreve melhor a especificidade do momento histórico atual em que o fim do colonialismo não implicou em uma libertação das periferias/antigas colônias de uma relação de subordinação frente aos centros mundiais. Trata-se, desse modo, de uma nova etapa do processo capitalista dentro de um contexto mais amplo de colonialidade global. Assim, de acordo com os autores: “De este modo, preferimos hablar del ‘sistema-mundo europeo/euro-norteamericano capitalista/patriarcal moderno/colonial’ (Grosfoguel, 2005) y no sólo del ‘sistema-mundo capitalista’, porque con ello se cuestiona abiertamente el mito de la descolonialización y la tesis de que la posmodernidad nos conduce a un mundo ya desvinculado de la colonialidad. Desde el enfoque que aquí llamamos ‘decolonial’, el capitalismo global contemporáneo resignifica, en un formato posmoderno, las exclusiones provocadas por las jerarquías epistémicas, espirituales, raciales/étnicas y de género/sexualidad desplegadas por la modernidad. De este modo, las estructuras de larga duración formadas durante los siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante en el presente” (CASTRO-GOMÉZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 13-14). Nesse sentido, os autores argumentam pela necessidade de uma segunda descolonização, a qual eles denominam de decolonialidade, de modo a reverter processos de hierarquia sociais que a primeira descolonização (o fim formal das relações coloniais) deixou inalterados: “[…] la segunda descolonialización —a la cual nosotros aludimos con la categoría decolonialidad—tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad que complemente la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y XX. Al contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un proceso de resignificación a largo plazo, que no se puede reducir a un acontecimiento jurídico-político” (Idem, p. 17). Por outro lado, Sílvia Cusicanqui considera que, muitas vezes, o debate decolonial está enredado em um discurso de alteridade profundamente despolitizando, sendo decorrente de estudos de pesquisadores latinoamericanos sediados em Universidades estadunidenses, mas que pouco possuem de práticas descoloniais, limitando-se a versões logocêntricas e nominalistas de descolonização: “Neologismos como “de-colonial”, “transmodernidad”, “eco-si-mía” proliferan y enredan el lenguaje, dejando paralogizados a sus objetos de estudio -los pueblos indígenas y afrodescendientes - con quienes creen dialogar. Pero además, crean un nuevo canon académico, utilizando un mundo de referencias y contrarreferencias que establece jerarquías y adopta nuevos gurús: Mignolo, Dussel, Walsh, Sanjinés”. (CUSICANQUI, 2010, p. 64-65). Apesar de conhecermos a controvérsia terminológica, utilizaremos os termos decolonialidade e decolonização.
  • 2
    A Controvérsia de Valladolid traz o primeiro debate moral acerca dos povos indígenas da América entre Bartolomé de Las Casas e Juan Guiné de Sepúlveda, entre 1550 e 1551, em que Las Casas rejeitava a escravidão indígena por serem todos filhos do mesmo Deus, enquanto Sepúlveda a defendia com base na doutrina aritotélica da escravidão natural; tese esta que expandia e justificava a escravidão em todas as terras conquistadas pelos europeus. Na defesa vencida de Las Casas, encontra-se a seguinte tese: “Também não eram bárbaros da terceira classe: não eram naturalmente escravos no sentido aristotélico. Eles tinham seus reinos e seus reis, polícia, repúblicas bem regidas e ordenadas, casas, fazendas, lares, leis, tribunais, etc. Por isso, sendo eles capazes de governar a si mesmos, não precisavam ser governados por outros. Da mesma maneira, sendo eles capazes de ser instruídos pacificamente na fé e nos sacramentos, nunca devia ser usada contra eles a guerra, só a persuasão.” (LAS CASAS apud GUTIERREZ, 2014, p. 230).
  • 3
    Las Casas denuncia este estado de violência contra os indígenas em seu livro Short Account of the Destruction of the Indies (1542): “This is a well-known and proven fact which even the tyrant Governors, themselves killers, know and admit. And never have the Indians in all the Indies committed any act against the Spanish Christians, until those Christians have first and many times committed countless cruel aggressions against them or against neighboring nations. For in the beginning the Indians regarded the Spaniards as angels from Heaven. Only after the Spaniards had used violence against them, killing, robbing, torturing, did the Indians ever rise up against them.” Disponível em: https://www.coreknowledge.org/wp-content/uploads/2017/02/CKHG-G5-U3-about-spanish-explorers.pdf. Acesso em 09 de ago. 2021.
  • 4
    Walter Mignolo, em seu livro Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e projeto liminar, analisa o circuito comercial que ligava o Mediterrãneo ao Atlântico, o qual associa-se a uma rearticulação do imaginário racial e patriarcal, cujas ideias de “pureza de sangue" e “direito dos povos” tornaram-se centrais. Enquanto a “pureza de sangue” se firmava como um princípio punitivo, que excluía os negros africanos de qualquer semelhança a pessoa humana, o “direito dos povos” era a primeira tentativa legal (de natureza teológica), de redigir um cânone de direito internacional, que fosse além do reconhecimento dos mouros e dos judeus, uma vez que buscava reconhecer também os ameríndios como vassalos do rei (MIGNOLO, 2004, p. 56-57)
  • 5
    Embora Bourdieu não se enuncie como pós-colonial, existem autores, tais como Julian Go (2018), que defendem que a perspectiva de sua análise sobre a Argélia não se limitou a uma crítica ao imperialismo francês, mas considerou o ponto de vista dos povos argelinos, em uma perspectiva pós-colonial.
  • 6
    Boaventura de Sousa Santos ressalta que não existe espaço em Bourdieu “para que se considerem outros saberes capazes de corrigir ou ultrapassar as falhas ou fracassos do conhecimento científico anterior ou de lidar com outros conjuntos de questões” (2019, p. 60).
  • 7
    Outra consequência apontada por Mignolo sobre o princípio da “pureza de sangue”, utilizado para rearticular os povos das três religiões da época (judeus, mouros e cristãos), é que ele transferiu-se para o período republicano e se organizou de modo diferente e oposto a outro princípio que emergia dos debates de Valladolid, o "direito dos povos”. Embora estivesse no âmago colonial, buscando reconhecer as fronteiras do poder para os mouros e judeus, este princípio trazia as bases do imaginário moderno que buscava a universalidade do homem tal como a Europa, já consolidada, o concebia; que seria revelada após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (MIGNOLO, 2003, p.56)
  • 8
    A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, traz a definição de quem é refugiado ou não e quais são os seus direitos e responsabilidades das nações que lhe concedem asilo; sem nenhuma referência à condição de grupo minoritário.
  • 9
    Tradução livre: Uma minoria étnica, religiosa ou numérica é um grupo numericamente menor que o resto da população do Estado ao qual ele pertence, e possui características culturais, físicas, ou históricas; uma religião ou uma língua diferente daquela do resto da população.
  • 10
    Tradução livre: Minorias' são um grupo de cidadãos de um Estado, constituindo um grupo numericamente minoritário, além de não ocupar posição dominante naquele Estado. Possuem etnia, religião ou características linguísticas diferentes da maioria da população, sendo dotados de um senso de solidariedade uns com os outros, motivados, ainda que implicitamente, por um senso coletivo de sobrevivência, almejando alcançar condições de igualdade tanto formal como material com o grupo majoritário.
  • 11
    Exemplificativamente: Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, de 1989; Convenção das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989 e Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007; Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2021
  • Aceito
    02 Fev 2022
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