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REVISTANDO A FISIONOMIA APÓS A CATÁSTROFE: LIÇÕES DE IGNORAR A CIÊNCIA

O final de abril de 2024 inaugurou mudanças sem precedente na sociedade gaúcha. Desde então, até o início de junho, uma sequência de semanas de chuvas muito acima dos padrões históricos em boa parte dos municípios - atingindo especialmente a Serra, o Vale do Taquari e a Região Metropolitana - trouxe, juntamente com inundações e deslizamentos de terras, a perplexidade geral sobre como sobreviveríamos a tantos desafios. Surfistas invadiram Porto Alegre e cidades próximas resgatando pessoas e animais, num cenário jamais imaginado - tanto quanto o de avistar pessoas deixando suas residências com malas feitas às pressas, fugindo a pé ou em barcos, devido ao avanço das águas sobre bairros onde enchentes antes não haviam ocorrido. Foram semanas intermináveis acompanhando níveis de rios e condições de barragens e estradas; buscando abrigo e mantimentos para aplacar a catástrofe ambiental e humana que atingiu diretamente em torno de 580 mil pessoas. Em meio à insegurança sobre os rumos dos desdobramentos de um cenário assustador, começávamos a fechar a edição 30, volume 2 da REAd, não sem os percalços da falta de energia e internet e as incertezas sobre como mitigar nossas perdas emocionais - muito mais derradeiras e indeléveis que as monetárias, as quais ultrapassaram R$ 3 bilhões.

Muitos equívocos de gestão pública, desinformação massiva e especulações sobre causas e efeitos depois, chegamos a julho ainda sem uma clara noção coletiva de que nada será como foi até aquele final de abril. A palavra reconstrução tornou-se uma solução discursiva para os que só enxergam o produtivismo e lamentam os dias perdidos, sem olhar bem de perto para o sofrimento dos que viram muitos hectares de terra se esfacelar em instantes, e para lares, ambientes de trabalho e organizações que as águas derrubaram e a lama desabilitou. Mas, como refletiu nosso ecologista maior no seu clássico “Manifesto Ecológico Brasileiro - fim do futuro?”, “[u]samos todos as mesmas roupas, nos comportamos todos da mesma maneira, seguimos as mesmas modas e cometemos as mesmas asneiras” (Lutzenberger, 1999LUTZENBERGER, J. Manifesto ecológico - fim do futuro? 5ª. ed., Porto Alegre: Ed. Movimento, 1999., p. 50). À medida que mimetizamos o artificial que nos une e nos desconectamos do ambiente natural que afastamos do cotidiano, perdemos a noção de limites dos ecossistemas e sequer percebemos que antecipamos a cada ano a data em que tecnicamente entramos no “cheque especial” da razão entre gasto e ritmo de reposição dos recursos - isso sem considerar os não renováveis, para os quais não temos paralelo desse “cheque especial” ou overshoot day (Rees, 2023REES, W. E. The Human Ecology of Overshoot: Why a Major ‘Population Correction’ Is Inevitable. World 2023, 4, 509-527. https://doi.org/10.3390/world4030032.
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).

A asneira número um no contexto e na pós-catástrofe ambiental rio-grandense foi a combinação de ignorância e o descaso. Estávamos todos em banho-maria, acreditando ou apostando que algum acordo climático ou providência divina conseguiria frear o avanço das consequências da chamada mudança acelerada - esse tal Antropoceno que luta contra miríades de requisitos científicos para ser reconhecido como uma nova era geológica (Rull, 2024), embora, na prática, tenha mostrado todas as evidências de que é um conjunto irrevogável de fatos e fenômenos. Para trilharmos um novo paradigma que nos permita a preparação mais que a mitigação das mudanças do clima e seus efeitos, é necessário olhar bem para o passado. A história de como evolui a ciência nos diz que a profusão de informações, fatos, dados, embora irrefreável, pode dificultar a tarefa da abertura de novos paradigmas. Segundo Kuhn (1962), essa profusão leva ao acúmulo de erros, o que vimos sobejamente acontecer com o tratamento da informação, da gestão pública e do conhecimento nos dias mais tensos do desastre climático. Falhas triviais em infraestrutura, alertas desencontrados à população se somaram ao já conhecido fenômeno da propagação de notícias falsas em redes sociais.

Assim como a ciência consolidada se enrijece em teorias e pressupostos baseados em décadas e até séculos de provas, a quebra de paradigmas para um novo degrau na ciência exige muito trabalho empírico para que um novo horizonte científico se descortine (Kuhn, 1962). Os sinais - “invisíveis” para a maioria da população e provavelmente para muitos gestores - do colapso sul-rio-grandense estavam presentes há pelo menos 16 anos numa clareza franciscana, em Língua Portuguesa, publicada em Estudos Avançados sobre como evoluiriam os padrões de precipitação nas bacias do Prata e de outros rios do Sul do Brasil, com base em registros históricos e em modelos do Quarto Relatório Científico do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC, em 2007. Em “Água e mudanças climáticas”, Marengo (2008)MARENGO, J. A. Água e mudanças climáticas. Estudos Avançados 22, p. 83-96, 2008, https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000200006.
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alerta para um cenário de tendência de aumento de precipitações no Sul do Brasil, assim como reproduz os cenários possíveis de elevação das temperaturas médias da atmosfera e os respectivos efeitos para as atividades econômicas, com base no Relatório Stern (2006)STERN, N. Stern Review. The Economics of Climate Change, UK, 2006. 267p., outro ilustre desconhecido ou ignorado documento na agenda de gestores públicos. Com tantos sinais lançados para um futuro que já chegou, ainda nos faltou uma visita ao passado. Provavelmente alguns aprenderam um pouco, e muitos nada aprenderam ou sequer leram o livro de maior importância da nossa história natural e o que ele tem para nos alertar sobre o que nos veio de sobressalto: num recôndito apêndice da primeira edição de “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, lançada em 1942, o padre jesuíta Balduíno Rambo nos advertiu que a fisionomia da paisagem é determinada pela forma como as águas têm vazão. Esse alerta, fruto de décadas de estudos empíricos da nossa paisagem, foi reiterado na segunda edição (Rambo, 1956RAMBO, B. A fisionomia do Rio Grande do Sul: ensaio de monografia natural, 2ª. ed., v 6. Porto Alegre: Livraria Selbach, 1956.), mas quase nenhum respaldo restou, nas políticas, planos e programas de governo ao apelo para que se impedisse a devastação do meio natural. Água, Vida na Água e suas dinâmicas é um retórico ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) de um dominó de 17 quadradinhos coloridos onde nossos olhos batem para, da distância emocional e ética que tomamos dos oceanos e demais águas, nos lembrar que ali deve haver algo muito importante à nossa sobrevivência, mas que não estamos enxergando. O maio de 2024 no estado mais setentrional do Brasil provou que esse algo existe e é exatamente o chamado à nossa conexão ao ambiente natural.

Chegamos às vésperas de prestar contas do nosso “cheque especial” ecológico com as metas dos ODS ainda bastante tímidas quanto ao seu possível cumprimento até 2030. Faltam apenas quatro anos e poucos meses e, enquanto esse “ecojuízo” final se aproxima, nos perguntamos reiteradamente como nossos gestores, públicos e privados, como as inovações e os sistemas de trocas humanas, podem lançar alguma luz nessa contagem regressiva. Abrimos a presente edição estendendo nossa reflexão com o trabalho de Daniel Hank Miri e Janaína Macke, Ecossistema de inovação e teoria das trocas sociais: uma revisão sistemática da literatura. O artigo nos convida a refletir sobre a importância das trocas sociais e sobre como o relacionamento entre atores organizacionais possibilita alavancar os ecossistemas de inovação, destacando a escassez de estudos que relacionem as duas temáticas - teoria das trocas sociais e ecossistemas de inovação. Na sequência, Yan Miguel Lopes e Dimária Silva e Meirelles questionam What are Edtechs? A systematic literature review, em que buscam aprofundar a visão dessas instituições para além de seu papel de intermediárias de troca de conhecimentos. As education technologies são também modelos de negócios que propiciam o uso de tecnologias disruptivas, abrindo um potencial de criatividade quanto a formas de ensinar e aprender em diversos contextos.

O terceiro artigo desta edição identifica e aprofunda as barreiras e oportunidades para a implementação de tecnologias da manufatura avançada em pequenas e médias empresas (PMEs). Nesse estudo, intitulado Modelos de maturidade para avaliar o desenvolvimento de PMEs diante da indústria 4.0: reflexões para uma agenda de pesquisa, Alexsandra Matos Romio e Debora Bobsin sistematizam a literatura sobre modelos de maturidade e a contextualizam no escopo das PMEs. À medida que empresas desses portes tentam incorporar os avanços das tecnologias digitais, tornam-se claras as limitações que enfrentam, o que é destacado pelas autoras. Finalmente, uma agenda de pesquisa é proposta para futuros estudos.

No quarto artigo, abre-se espaço a um trabalho empírico que avalia os resultados, para o crescimento geral de empresas de Santa Catarina, de uma política pública do governo do estado local voltada a empresas de telecomunicações. Em Análise do impacto do programa de fomento às empresas prestadoras de serviço de comunicação multimídia (PSCM) no crescimento das empresas em Santa Catarina, Ricardo Lonzetti, Nickolas Andrade de Assis, Emerson Luis de Oliveira Gomes e Marcello Beckert Zappellini concluem que a política adotada pelo governo catarinense tem efeito positivo no crescimento das empresas e previne efeitos indesejados como elisão e evasão fiscal. Igualmente com um viés técnico quantitativo, o estudo de Álaze Gabriel do Breviário, Willians Ribeiro Mendes, Bruno José Canassa e Abraham Souza Oliveira Filho mostra a possibilidade de se gerarem resultados financeiramente benéficos a partir da fusão hipotética de dois bancos. Em Sinergias bancárias: uma fusão hipotética de dois bancos públicos brasileiros, os autores aplicam o método do Fluxo de Caixa Descontado e consideram os cenários pessimista, realista e otimista das fusões, analisando variáveis críticas.

Lançando mão de um conjunto de análises variadas e detalhadas, Claudio Luiz Ariani Fontes e Marluce Dantas de Freitas trazem uma importante contribuição para a área de Marketing e responsabilidade social corporativa com O novo luxo na atualidade e o engajamento das melhores marcas globais do mercado da moda na internet. O estudo mostra como empresas de marcas renomadas da moda mundial, cada vez mais presentes e versáteis em redes sociais, organizam suas estratégias para conquistar consumidores atentos às questões de responsabilidade social e aos aspectos éticos. A intangibilidade do valor e a sofisticação desses mercados é destacada no trabalho.

Dois artigos voltados às relações humanas fecham essa edição bastante atravessada pela reflexão sobre essas relações em meio a um contexto real de quase perda das bases de infraestrutura que permitem a sobrevivência da sociedade. O penúltimo artigo, Benefícios e desafios da amizade no ambiente de trabalho: revisão sistemática e agenda de pesquisa, ressalta as características da amizade, como: informalidade, voluntariedade, sincronia com normas comunitárias e objetivos socioemocionais. No estudo, Michel Barboza Malheiros, Vanessa Piovesan Rossato, Roger da Silva Wegner e Taís de Andrade sugerem o olhar para novas situações envolvendo a amizade no ambiente de trabalho, aprofundando as investigações sobre aspectos negativos desse tipo de relação. Os autores notam que faltam estudos sobre os possíveis antecedentes da amizade em uma variedade de contextos organizacionais. Já as autoras Gisele Gomes, Jacinta Sidegum Renner e Dagmar Elisabeth Estermann Meyer exploram o tema da presença feminina em conselhos administrativos empresariais. Em Mulheres nos conselhos de administração na perspectiva de gênero: uma revisão integrativa, as autoras propõem uma revisão da literatura da qual emergem como categorias aspectos como barreiras para a ascensão, marcos regulatórios e estabelecimento de cotas, entre outras. Elas concluem que os estudos sobre a participação de mulheres nos conselhos de administração não aprofundam a percepção das próprias mulheres sobre seus papéis, limitando-se geralmente a análises quantitativas e ao viés da liderança da mulher sob a ótica tradicional, masculina.

Aproveitamos para lembrar aos nossos leitores e aos potenciais autores que estamos migrando para as normas da American Psychiatric Association (APA) a partir da próxima edição. Além disso, implantamos, já na corrente edição, informações sobre a transparência quanto ao rastreamento das etapas intermediárias dos fluxos dos artigos, indicando as datas não apenas de submissão inicial e de aceite, mas as datas de ressubmissão. Com isso, aos poucos, esperamos publicizar em maiores detalhes os nossos procedimentos, fomentando a atração de autores e avaliadores comprometidos com a qualidade da REAd. Enfim, desejamos a todos uma excelente leitura.

REFERÊNCIAS

  • KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
  • LUTZENBERGER, J. Manifesto ecológico - fim do futuro? 5ª. ed., Porto Alegre: Ed. Movimento, 1999.
  • MARENGO, J. A. Água e mudanças climáticas. Estudos Avançados 22, p. 83-96, 2008, https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000200006
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142008000200006
  • RAMBO, B. A fisionomia do Rio Grande do Sul: ensaio de monografia natural, 2ª. ed., v 6. Porto Alegre: Livraria Selbach, 1956.
  • REES, W. E. The Human Ecology of Overshoot: Why a Major ‘Population Correction’ Is Inevitable. World 2023, 4, 509-527. https://doi.org/10.3390/world4030032
    » https://doi.org/10.3390/world4030032
  • RULL, V. The ‘Anthropocene’: alea iacta est. Science & Society EMBO Reports , v. 25, 2004, p. 943 943.
  • STERN, N. Stern Review The Economics of Climate Change, UK, 2006. 267p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024
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