RESUMO
O presente artigo teve por objetivo analisar o processo de luta e de resistência vivenciado por catadores de materiais recicláveis, vinculados à Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (ASMARE), localizada em Belo Horizonte (MG). Em termos metodológicos, adotou-se a História Oral e a Análise do Discurso, buscando analisar trajetórias de vida de associados da ASMARE. Os principais resultados apontam que o trabalho dos catadores ocupa um lugar de contradição na cadeia da reciclagem. Por um lado, existe a geração de renda e a produção de sentidos, que permitem a ressignificação do trabalho dos catadores como agentes ambientais, por outro, as condições em que se inserem ainda são precárias e de invisibilidade social. A árdua ocupação com o trabalho da reciclagem cria o desafio de os catadores lidarem com a constante ambivalência de sua condição, em que o trabalho ressignificado ainda disputa espaço com o preconceito e com a exclusão social.
Palavras-Chave:
Catadores de materiais recicláveis; Associação; História oral
ABSTRACT
This article aimed to analyze the process of struggle and resistance experienced by recyclable waste pickers, linked to the Association of Paper, Cardboard and Recyclable Waste Pickers (ASMARE), located in the city of Belo Horizonte, Brazil. In methodological terms, Oral History and Discourse Analysis were adopted, seeking to analyze the life trajectories of ASMARE members. The main results indicate that the work of the pickers occupies a contradictory place in the recycling chain. On the one hand, there is the generation of income and the production of meanings, which allow the resignification of the work of recyclable waste pickers as environmental agents; on the other hand, the labor conditions of these workers are still precarious and socially invisible. The arduous occupation with the work of recycling creates the challenge for the pickers to deal with the constant ambivalence of their condition, in which the resignified work still disputes space with prejudice and social exclusion.
Keywords:
Collectors of recyclable materials; Association; Oral history
RESUMEN
El artículo tuvo como objetivo analizar el proceso de lucha y resistencia experimentado por los recicladores, vinculados a la Asociación de Recolectores de Papel, Cartón e material reutilizable (ASMARE), ubicada en Belo Horizonte (MG). En términos metodológicos, adoptamos la Historia Oral y el Análisis del Discurso, buscando analizar las trayectorias de vida de los miembros de ASMARE. Los principales resultados indican que el trabajo de los recolectores ocupa un lugar contradictorio en la cadena de reciclaje. Por un lado, está la generación de ingresos y la producción de significados, que permiten la resignificación del trabajo de los recicladores como agentes ambientales, por otro lado, las condiciones en las que se insertan aún son precarias y socialmente invisibles. La ardua ocupación con el trabajo de reciclaje crea el desafío para los recicladores de hacer frente a la constante ambivalencia de su condición, en la que el trabajo resignado todavía disputa el espacio con prejuicios y exclusión social.
Palabras-clave:
Catadores de materiales reciclables; Asociación; Historia oral
INTRODUÇÃO
Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem. (Manuel Bandeira – O bicho)
O trecho do poema supracitado é de Manuel Bandeira e foi escrito em 1948, em um contexto em que o sujeito da narrativa sobrevivia dos restos de comida, possivelmente em um lixão. Passados 70 anos, ainda que esta realidade não tenha mudado, um novo ator social tem emergido da interface com o lixo, conhecido como catadores de materiais recicláveis, cuja situação social insere-se na dualidade da dimensão ambiental (FILARDI, et al., 2011Filardi, F.; Siqueira, E. S.; Binotto, E. Os catadores de resíduos e a responsabilidade socioambiental: a percepção sobre seu lugar social. Revista de Gestão Social e Ambiental, v. 5, n. 3, p. 17-35, 2011.).
Há mais de 50 anos, muitos trabalhadores encontram uma forma de sobreviverem daquilo que a sociedade descarta no meio ambiente. A relação que os catadores estabelecem com a sociedade pode ser entendida, quando se compreende que o espaço de atuação desses sujeitos tem um histórico de ligação com a rua e com os lixões. Nesse sentido, o catador que antes dormia na rua e era caracterizado como morador de rua, passa a ser visto como “trabalhador na rua” (DIAS, 2002DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.). Apesar de desenvolver um trabalho que tem um papel socioambiental importante para as cidades, historicamente, a atividade de catação é realizada a partir de relações informais, o que restringe o acesso dos catadores a uma série de direitos trabalhistas (IPEA, 2017IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A organização coletiva de catadores de material reciclável no Brasil: dilemas e possibilidades sob a ótica da economia solidária. Brasília, 2017.).
No cotidiano de trabalho dos catadores, o material reciclável não é apenas uma matéria-prima que se troca por dinheiro. Para esses trabalhadores, a catação de materiais ajuda a garantir a continuidade da vida. O material reciclável também gera reflexão, pois pode representar o fortalecimento, a conscientização e a preocupação com a realidade, muitas vezes, desumana, que os catadores vivenciam.
Neste contexto, as associações de catadores buscam lidar e conviver com relações de exclusão, impostas pela lógica de trabalho mercantil e pelo papel do Estado, este último, muitas vezes, distante. A ASMARE (Associação dos Catadores de Papéis, Papelão e Material Reaproveitável) foi a primeira associação de catadores do Estado de Minas Gerais, criada em 1990. Pelo seu crescimento e relativo sucesso, tem sido vista por muitos como um modelo para a criação de outros empreendimentos associativos de catadores no Brasil.
Segundo Dias (2002)DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002., ao carregarem a história vivida da ASMARE, os catadores são portadores de sua memória e sem ela não há como contar a história daquilo que foi produzido. A criação e a organização da associação representam a conquista da luta desses trabalhadores.
Neste sentido, a proposta deste trabalho é compreender como se deu o processo de lutas e resistências dos catadores de materiais recicláveis na trajetória da ASMARE. Para tal, a história oral, no âmbito das trajetórias de vida, é uma forma alternativa de mostrar a história dos sujeitos sociais, oferecendo a possibilidade de pessoas simples e comuns contarem a história daquilo que foi produzido por meio de suas vivências (LE GOFF, 1990Le Goff, J. História e memória. São Paulo: Ed. UNICAMP, 1990.; NEVES, 2001NEVES, L. A. Ensaio metodológico - memória e história: potencialidades da história oral. Anais... Encontro Estadual de História/Encontro Nordeste de História Oral, I/III, 2001.).
Enquanto justificativa, é importante destacar que, no campo dos Estudos Organizacionais, são caras as análises voltadas para o estudo da condição de vida de sujeitos marginalizados, seus processos de organização, de luta e de resistência, como no presente caso dos catadores de materiais recicláveis em análise. Além disso, buscou-se refletir sobre os discursos que os cercam, muitas vezes ocultando o caráter perverso de sua invisibilidade e de exclusão social.
Além desta introdução, este trabalho se organiza em mais quatro partes. A próxima seção realiza um resgate teórico focado em estudos que trataram sobre o tema dos catadores e seu processo histórico de luta. Na sequência, é apresentado o caminho metodológico que norteou a pesquisa. Em seguida, parte-se para a análise abrangendo a criação da ASMARE e a ressignificação do papel social do catador. Por fim, são tecidas algumas reflexões que este estudo permitiu alcançar.
1 O LIXO QUE VEMOS E O SER HUMANO QUE DESAPARECE
O ideário da modernidade, pautado na civilização e em um estilo de vida predominantemente urbano, levou vários agrupamentos a buscarem nas cidades uma forma de obter uma melhor condição de vida. Entretanto, se a promessa promoveu maior acesso a bens, ela se mostrou também nefasta, ao gerar uma intensa urbanização e o aumento do consumo não consciente.
Além disso, a proposta neoliberal, disseminada na maior parte do mundo globalizado, gerou maior acúmulo de capital, o que impulsionou a reestruturação produtiva. Essa lógica intensificou a precarização das relações de trabalho e acarretou no desemprego de um contingente expressivo de trabalhadores (CAVEDON; FERRAZ, 2006Cavedon, N. R.; Ferraz, D. L. S. “Tricotando as redes de solidariedade”: as culturas organizacionais de uma loja autogestionada de economia popular solidária de Porto Alegre. Organizações & sociedade, v. 13, n. 39, p. 93-111, 2006.).
Honorato (2014)Honorato, E. F. Ordem e subversão nas cidades: um estudo sobre a população em situação de rua de Belo Horizonte. Dissertação de mestrado – Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. destaca que entre os vários migrantes que vieram para a cidade de Belo Horizonte, entre eles estão aqueles que deixaram suas cidades em busca de trabalho ou de uma vida melhor na cidade. Aqueles que não encontraram oportunidades formais de trabalho e que não tiveram condições de retornar às suas cidades natais, e acabaram tendo de encontrar formas alternativas de sustento nas ruas.
Em Belo Horizonte, no início da década de 1980, houve um grande crescimento da presença de pessoas em condição de moradores de rua, devido ao acirramento da crise da oferta de trabalho, uma das consequências do chamado “milagre econômico” e da “década perdida” (JACOBI; TEIXEIRA,1997JACOBI, P.; TEIXEIRA, M. A. C. Criação do capital social: o caso da ASMARE. Cadernos de gestão pública e cidadania. v. 2, 1997.).
Como forma de sobrevivência, muitas pessoas em condição de moradores de rua passaram a procurar no lixo (do qual boa parte é material reciclável) uma fonte alternativa para suprir suas necessidades, configurando-se como catadores informais de materiais recicláveis.
Contudo, o lugar reservado aos catadores no imaginário social é o de pobre e marginal (DIAS, 2002DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.). Segundo Bastos e Araújo (2015)Bastos, H. M.; Araújo, G. C. Cidadania, empreendedorismo social e economia solidária no contexto dos catadores cooperados de materiais recicláveis. Revista Capital Científico-Eletrônica, v. 13, n. 4, p. 62-79, 2015., os catadores de materiais recicláveis vivem em uma condição de pobreza singular, pois, além de possuírem poucos recursos para sobreviverem, vivem sob o estigma da sujeira, por estarem em constante contato com o lixo.
Dessa forma, excluídos enquanto trabalhadores e cidadãos (além de não terem um trabalho formal, muitos não possuem carteira de trabalho e nem título de eleitor), a vida cotidiana e o trabalho são marcados pela exploração, estigmatização e perseguição (DIAS, 2002DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.).
Nesse sentido, a exclusão social se torna um sinônimo da perda de referência social, pois ela não pode ser entendida apenas como a impossibilidade da garantia da sobrevivência física, mas também como um sentimento de não se poder desfrutar de bens e oportunidades que as demais pessoas desfrutam (FERRAZ; CAVEDON, 2008Ferraz, D. L. S.; Cavedon, N. R. A exclusão e a inclusão social: depoimentos das praticantes da economia popular solidária. Cadernos EBAPE. BR. Rio de Janeiro. Vol. 6, n. 4, p. 1-18, 2008.). Segundo Magalhães (2016)MAGALHÃES, B. J. Liminaridade e exclusão: caracterização permanente ou transitória das relações entre os catadores e a sociedade brasileira? In: PEREIRA, B. C. J.; GOES, F. L. Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea, 2016., a exclusão social no Brasil deve ser caracterizada como uma ruptura e uma fragilização dos vínculos nas várias dimensões da vida social.
A exclusão social é um conceito em disputa, o que não é diferente quando se fala de marginalização. A concepção do que seja a marginalidade e a caracterização das pessoas que são enquadradas como marginais, frequentemente, gera distinções entre os autores que estudam a temática. Coelho (1978)Coelho, E. C. A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade. Revista de Administração Pública, v. 12, n. 2, p. 139, 1978. ressalta que, independentemente das opções semânticas do termo, o entendimento de população marginal normalmente se centra naquela que é formada pelas pessoas que se encontram em situação de desemprego, subemprego ou pobreza.
Os catadores também estão inseridos em um contexto que Costa (2004)COSTA, F. B. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004. chama de invisibilidade pública, isto é, uma espécie de desaparecimento psicossocial de algumas pessoas em meio às demais. É por isso que Torres (2008)TORRES, H. R. As organizações dos catadores de material reciclável: inclusão e sustentabilidade. O caso da associação dos catadores de papel, papelão e material reaproveitável, ASMARE, em Belo Horizonte, MG. Dissertação de mestrado – Universidade de Brasília. Brasília, 2008. defende que a condição de excluído ou invisível não é resultante da vontade individual, mas da ruptura dos vínculos sociais.
Mesmo exercendo um papel importante na sociedade, o contexto dos catadores geralmente é marcado por descaso, preconceito e violência, assim como descrito por um ofício5 5 Ofício GAB 3679/558/79. da Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) que, em 1979, descrevia o estereótipo desse catador como sendo um “[...] mendigo, via de regra, que nada mais é que um preposto, explorado e desamparado, dos donos de depósito de papéis velhos, que se enriquecem à sua custa, à margem da lei”.
Segundo Dias (2002)DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002., de modo geral, as diferentes sociedades ao longo da história têm uma relação de afastamento e de desprezo com os resíduos por ela produzidos e, dessa forma, os estigmas relacionados ao lixo são também transferidos para as pessoas que trabalham ou estão próximas. Corroborando com isso, Filardi et al. (2011)Filardi, F.; Siqueira, E. S.; Binotto, E. Os catadores de resíduos e a responsabilidade socioambiental: a percepção sobre seu lugar social. Revista de Gestão Social e Ambiental, v. 5, n. 3, p. 17-35, 2011. apontam que o significado social que se atribui historicamente ao lixo, como algo de que se deve manter distância, dificulta uma mudança cultural e, consequentemente, uma ação conjunta que altere a lógica do descarte.
O conceito de lixo está associado à ideia daquilo que já foi usado e não possui mais utilidade para ser consumido ou reaproveitado, dessa forma, incorpora-se o entendimento de que está associado ao que não tem valor, utilidade ou é indesejável (PINTO et al., 2012Pinto, M. D. R., Pereira, D. R. D. M.; Freitas, R. C. D. F. Fatores sociais, econômicos e demográficos associados à geração de lixo domiciliar na cidade de Belo Horizonte. REUNA, v.17, n. 2, p. 27-44, 2012.). Nesse sentido, o lixo tende a ser visto como algo sujo, desprezível, geralmente não importando a sua destinação e nem o percurso que o mesmo terá até chegar ao seu “destino final”. Apesar de já existirem algumas iniciativas importantes que procuram ressignificar essa visão sobre o lixo, como as cooperativas e as associações de catadores, Baptista (2015)BAPTISTA, V. F. As políticas públicas de coleta seletiva no município do Rio de Janeiro: onde e como estão as cooperativas de catadores de materiais recicláveis? Revista de Administração Pública, v. 49, n. 1, p. 141-164, 2015. chama a atenção para o fato de que foi somente após implicações de ordem social, econômica, cultural e ambiental que o lixo começou a ser dotado de valor, como material reciclável.
A coleta do material reciclável é a alternativa que os catadores encontram para acessar uma condição de vida mais digna em comparação à que viviam anteriormente, pois é desse material que conseguem retirar seu sustento. Já não se trata do lixo renegado, mas do material reciclável que pode trazer alguma satisfação e alívio por satisfazer as necessidades humanas mais básicas (MIURA; SAWAIA, 2013MIURA, P. O.; SAWAIA, B. B. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de ação. Psicologia & Sociedade, v. 25, n. 2, p. 331-341, 2013.).
Dessa forma, o material reciclável não é apenas uma matéria-prima que se troca por dinheiro, pois, para esses catadores, ele também é visto como uma maneira de garantir a continuidade da vida. No contexto dos catadores, o material recolhido pode representar o fortalecimento do coletivo, a conscientização socioambiental e a preocupação com a realidade desumana em que estão inseridos (MARTINS et al., 2016MARTINS, I. G.; MOTA, L. L. R.; SEGALA, N. B.; SILVA SANTOS, T. N.; CABRAL, L. R. Reciclando as relações de gênero: a divisão sexual do trabalho de lideranças feministas na política de resíduos sólidos no Distrito Federal. In: PEREIRA, B. C. J.; GOES, F. L. Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.).
Segundo Baptista (2015)BAPTISTA, V. F. As políticas públicas de coleta seletiva no município do Rio de Janeiro: onde e como estão as cooperativas de catadores de materiais recicláveis? Revista de Administração Pública, v. 49, n. 1, p. 141-164, 2015., quando falamos de lixo, muitas vezes, vemos o seu aspecto mais superficial e não atentamos muito para algumas reflexões, tais como: Quem fará o trabalho sujo? Quem fará o trabalho insalubre, de estar em contato com materiais que podem causar doenças? Mesmo com a visão, muitas vezes limitada, sobre o material reciclável e o que ele pode gerar em termos sociais mais amplos, para as pessoas que sobrevivem dele, há outro entendimento: ele passa a significar a garantia de suas necessidades mais básicas, assim como de novas possibilidades afetivas e de trabalho (MIURA; SAWAIA, 2013MIURA, P. O.; SAWAIA, B. B. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de ação. Psicologia & Sociedade, v. 25, n. 2, p. 331-341, 2013.). A questão do material reciclável não é importante apenas como uma forma de gerar valor na cadeia, pois ela nos leva também a refletir sobre os padrões de consumo e de produção na sociedade, assim como seus impactos socioambientais (PEREIRA; TEIXEIRA, 2011Pereira, M. C. G.; Teixeira, M. A. C. A inclusão de catadores em programas de coleta seletiva: da agenda local à nacional. Cadernos EBAPE. BR, v. 9, n. 3, p. 895-913, 2011.).
Por isso, Ferraz e Cavedon (2008)Ferraz, D. L. S.; Cavedon, N. R. A exclusão e a inclusão social: depoimentos das praticantes da economia popular solidária. Cadernos EBAPE. BR. Rio de Janeiro. Vol. 6, n. 4, p. 1-18, 2008. atentam para o fato de que não é apenas a viabilidade econômica que está em jogo, mas também questões que envolvem o desenvolvimento desses sujeitos que, mesmo excluídos, podem almejar o reconhecimento de direitos humanos mais básicos. Essa condição de exclusão social e de figuras desqualificadas para o mercado formal de trabalho demonstra que, com várias adversidades, os catadores lutam dia-a-dia por sua sobrevivência, tendo de reinventar formas alternativas para sobreviver (COSTA; PATO, 2016Costa, C. M.; Pato, C. A constituição de catadores de material reciclável: a identidade estigmatizada pela exclusão e a construção da emancipação como forma de transcendência. In: PEREIRA, B. C. J.; GOES, F. L. Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.).
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa se caracteriza por sua abordagem qualitativa, pois procura interpretar e explicar uma determinada realidade social que se constrói por meio das interações e das relações sociais, onde cada sujeito que dela faz parte a compreende pela realidade que vivencia (VENÂNCIO et al., 2015VENÂNCIO, A. C. L.; CAMARGO, D.; ROCHA, F.; CHAERKI, K. F.; ROMAGNANI, P; BARRETO, S. C. Metodologia das práticas. Anais... III Congresso de Estudos Organizacionais, 2015.).
No que diz respeito à coleta e à análise de dados, partiu-se da história oral, adotando mais precisamente a vertente de trajetórias de vida como método, que foram resgatadas a partir dos relatos orais e da memória dos sujeitos sociais, no caso, os catadores de materiais recicláveis da ASMARE. Segundo Neves (2001)NEVES, L. A. Ensaio metodológico - memória e história: potencialidades da história oral. Anais... Encontro Estadual de História/Encontro Nordeste de História Oral, I/III, 2001., a história oral pode ser entendida como um procedimento metodológico, que tem como objetivo a construção de narrativas, testemunhos, versões e interpretações sobre a história em suas múltiplas dimensões, tendo como suporte empírico as fontes orais e documentais.
A escolha pelas trajetórias de vida neste trabalho se justificou pelo fato de se buscar acessar uma maior riqueza de informações que não foram registradas nos documentos oficiais da ASMARE ou dos órgãos públicos, mas que seguem preservados nas memórias dos catadores que fazem parte da história dessa associação. Desta forma, entre os meses de outubro a dezembro de 2017, foi realizada a coleta de nove (9) relatos orais, com o uso de gravador. Abaixo, é apresentada a relação dos entrevistados, com seus respectivos tempos de participação na ASMARE. Além disso, ressalta-se a importância política de se acessar a história da ASMARE a partir das narrativas de sujeitos que comumente não se enunciam nos documentos oficiais de órgãos públicos como a prefeitura ou a SLU. Assim, defende-se aqui o uso do depoimento oral não apenas como uma possibilidade alternativa de narrar os acontecimentos históricos, mas como um ato de resistência frente a uma sociedade que se legitimou por meio da escrita, principalmente em termos dos documentos oficiais, negando a escrita da História aos sujeitos e às comunidades que não se utilizam de tal técnica.
Foi assumida junto aos sujeitos de pesquisa a garantia de confidencialidade. Portanto todos os nomes presentes neste artigo são fictícios.
Quanto ao tratamento dos dados, adotou-se a Análise do Discurso como técnica de análise do corpus da pesquisa. A Análise do Discurso é entendida como uma prática social de analisar, interpretar e compreender os discursos produzidos, assim como as construções ideológicas presentes. Como o discurso é um recurso linguístico dotado de sentidos e significados, é preciso analisá-lo levando em consideração as suas condições histórico-culturais de produção social (BRANDÃO, 2002BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2002.).
Dentre as diversas vertentes da Análise do Discurso, optou-se pelas contribuições de Bakhtin (1999)Bakhtin, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999., que compreende a linguística como uma dimensão social e ideológica, resultante da relação entre consciência individual e interação social. Pelo fato de os catadores não serem sujeitos abstratos em seus discursos, mas situados na história da cidade de Belo Horizonte, na história da ASMARE, é preciso estudar as condições de produção discursiva, considerando que o discurso não é neutro. Além disso, como os membros da Associação possuem valores, defendem um determinado ponto de vista e tem uma visão de mundo, a formação ideológica pode evidenciar o papel que têm na produção dos discursos.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
3.1 LUTA E RESISTÊNCIA POR SOBREVIVÊNCIA
A história da criação e da existência da ASMARE se confunde com a trajetória de vida de muitos catadores. O contexto social no qual estão inseridos traduz um pouco do que é ser catador, assim como de onde falam e a quem essa fala se direciona. As falas dos catadores estão inseridas em um contexto histórico, que cria as condições necessárias para a sua existência.
(01) Minha família veio para a capital do estado procurando uma melhor condição de vida, na busca de ajudar os parentes que deixamo lá na roça. Mas as coisas foram mais difíceis do que imaginava. Lá na roça, apesar da vida simples, minha família tinha cidadania. Mesmo no cabo da enxada, plantando e colhendo, nós era como cidadão, e perdemo isso quando viemo pra cidade. Passamos muita dificuldade pra sobreviver. E a rua foi a nossa casa. Depois que os meus pais morrem, eu comecei a catar papel pelas ruas da cidade. Eu catava e colocava na cabeça, pois, naquela época, eu não aguentava puxar o carrinho. Com a renda do material, eu nunca mais passei fome. E até hoje eu estou nessa luta. Os vinte associado que ajudaram a formar a associação se conheceram na rua, onde partilharam comida e ficavam catando papel na rua Rio de Janeiro, como se fosse uma família (Maria de Fátima).
(02) Eu sou um ex-morador de rua, né. Eu sou mineiro, mas nasci em Caratinga. Vim para Belo Horizonte com um ano de idade, então a minha vida toda foi aqui. Nós temos uma vida muito difícil. A minha mãe criou a gente sem pai e nós trabalhamos na rua o tempo todo. Vendendo objetos na rua... foi uma vida muito difícil até que eu cheguei aqui, onde é a ASMARE hoje (Antônio).
Os fragmentos (01) e (02) demonstram de forma muito evidente a origem social de dois (2) catadores, o que não difere muito dos outros membros da associação. A maior parte veio de outras cidades em busca de uma melhor condição de vida na capital mineira, corroborando as constatações de Honorato (2014)Honorato, E. F. Ordem e subversão nas cidades: um estudo sobre a população em situação de rua de Belo Horizonte. Dissertação de mestrado – Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. sobre o fluxo migratório e a consequente geração de moradores de rua.
A catadora Maria de Fátima relata que, ao chegar a Belo Horizonte, ela perdeu a cidadania que possuía quando morava na roça. Essa afirmação liga-se ao processo de marginalização (COELHO, 1978Coelho, E. C. A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade. Revista de Administração Pública, v. 12, n. 2, p. 139, 1978.) e de invisibilidade pública (COSTA, 2004COSTA, F. B. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.), vivenciado por aqueles que se veem não apenas sem os meios para garantir a própria sobrevivência, mas também obliterados do acesso aos direitos básicos, somado à negação de seu status de sujeito. Assim, para muitas famílias migrantes, a rua deixa de ser apenas um espaço público onde os pedestres exercem o seu direito de ir e vir, passando a se transformar também em seu lócus de moradia, de trabalho e de sobrevivência.
O ato de catar papel, para boa parte desses catadores, não é uma escolha de trabalho ou de atuação profissional, mas, uma questão de necessidade e de sobrevivência. No trecho (01), a catadora fala que, quando começou a catar papel, ela nem aguentava puxar o seu instrumento de trabalho. Isso deixa implícito que ele ainda era uma criança quando começou a realizar essa atividade, o que foi (e ainda é) uma realidade para muitos deles. A renda obtida com a venda do material possibilita não apenas saciar a fome, como descrito no trecho, mas também serve como elemento que dá esperança na luta desses homens, mulheres (e crianças).
(03) Naquela época, ninguém falava de meio ambiente, catador, coleta seletiva ou recicragem. Tudo era considerado lixo, até mesmo aqueles que sobrevivem dele. A visão que as pessoa tinha dos catadores era de que eles estavam sujando a cidade. Os fiscais da prefeitura não dava muita trégua e sempre estavam perseguindo a gente. Hoje, todo mundo pode catar o material, mas, naquela época, fiscal prendia e polícia batia. A associação surgiu desse enfrentamento e cada tijolo desse lugar representa um pouco dessa história de luta e sofrimento que a gente passou (Maria de Fátima).
No fragmento (03), é possível perceber que, na percepção do entrevistado, a sociedade tinha (e ainda tem) uma visão muito negativa do catador e do seu trabalho na cidade, chegando até mesmo a ser comparado ao lixo, isto é, algo desprezível e sem valor. Segundo Dias (2002)DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002., Bastos e Araújo (2015)Bastos, H. M.; Araújo, G. C. Cidadania, empreendedorismo social e economia solidária no contexto dos catadores cooperados de materiais recicláveis. Revista Capital Científico-Eletrônica, v. 13, n. 4, p. 62-79, 2015., o estigma é um preço que os catadores carregam por atuarem na rua.
A catadora Maria de Fátima diz também que, no passado, temáticas como meio ambiente, coleta seletiva e reciclagem eram desconhecidas para as pessoas. Isso tem sentido, pois, o discurso da sustentabilidade ou do desenvolvimento sustentável é algo recente em termos históricos, uma discussão que começou a ser feita no final dos anos 1960 e que foi incorporada por várias instituições, gestões empresariais e cidadãos somente a partir da década de 1990.
Pelo fato de os catadores já atuarem nas ruas do Brasil desde 1950, foram responsáveis pela reciclagem e por reinserirem o material no ciclo produtivo, transformando aquilo que se considera descartável e sem valor em fonte de renda e de trabalho. O que cabe questionar: como seria a reciclagem no Brasil sem o catador de material reciclável? Apesar disso, a figura desse catador é pouco lembrada quando se discute a temática. Segundo Gonçalves et al. (2002)GONÇALVES, D. M.; SANTOS, L. M. L.; CAPELARI, M. G. Relações de poder na economia solidária: um caso de autogestão em Londrina, Paraná, Brasil. Capital Científico, v. 10, n. 1, 2012., muito antes de a coleta seletiva ser defendida por ambientalistas e movimentos organizados, a separação do “lixo” já era feita de forma silenciosa e solitária pelos catadores.
Fica explícito também no discurso da Maria de Fátima que, além da visão negativa que a sociedade tinha de seu trabalho, trabalhar nas ruas não era fácil. A atuação da polícia e dos fiscais da prefeitura era considerada uma grande ameaça para os catadores, pois, poderia incorrer na apreensão do material recolhido e, até mesmo, em espancamentos. Contudo, apesar do contexto social desfavorável, ressalta-se um ponto positivo: os catadores, por estarem em uma condição muito parecida, acabaram se solidarizando uns com os outros. Mais do que isso, fica nítido na narrativa da entrevistada que a associação de catadores por eles erigida é ressignificada em sua memória como algo que vai muito além de uma organização laboral, mas que emerge como um símbolo de luta e de resistência dos catadores.
(04) Naquela época, a prefeitura não era nossa parceira. Era inimiga, pois sempre estava perseguindo a gente na rua. Mas foi difícil aceitar a pastoral. A gente achava que estava ali para nos prejudicar. Depois a gente passou a confiar neles. A gente sofreu muito. Ninguém valorizava nosso trabalho. A gente tinha família, filho pra criar. Sem a gente, a prefeitura não conseguiria limpar a cidade. A gente só queria uma vida digna (José).
No processo de formação da ASMARE, havia três (3) atores principais: os catadores, a prefeitura e a Pastoral de Rua. Em 1989, a prefeitura de Belo Horizonte desenvolveu as primeiras iniciativas de coleta seletiva, contudo elaboradas de maneira tímida e desconsiderando a realidade dos catadores. Na mesma época, um grupo de catadores ocupou uma área que era utilizada como estacionamento. O espaço passou a ser utilizado como moradia das famílias e para armazenar e separar o material coletado nas ruas (TORRES, 2008TORRES, H. R. As organizações dos catadores de material reciclável: inclusão e sustentabilidade. O caso da associação dos catadores de papel, papelão e material reaproveitável, ASMARE, em Belo Horizonte, MG. Dissertação de mestrado – Universidade de Brasília. Brasília, 2008.). Entretanto, um ano depois, um grupo de policiais e fiscais da prefeitura ateou fogo nos barracões e nos carrinhos dos catadores. Após esse ato, membros da Pastoral da Rua procuraram se informar sobre o acontecido (JACOBI; TEIXEIRA, 1997JACOBI, P.; TEIXEIRA, M. A. C. Criação do capital social: o caso da ASMARE. Cadernos de gestão pública e cidadania. v. 2, 1997.). A Pastoral de Rua tinha a ideia de que era preciso organizar a produção dos catadores e lutar pelo reconhecimento do trabalho enquanto categoria profissional (DIAS, 2002DIAS, S. M. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em parceria com a ASMARE. Dissertação de mestrado – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.). Por meio de suas articulações, fortaleceram a consciência de que tinham direitos, eram trabalhadores e que poderiam transformar em renda o material coletado. Nasceu assim, a Associação ASMARE, no dia 1 de maio de 1990. É importante ressaltar que, no primeiro momento, a postura da prefeitura junto aos catadores foi de rivalidade, perseguição e de inimizade, como descrito pelo catador José, no excerto (4). Muitos órgãos públicos não viam função social alguma na atuação de catadores. Em relação à ajuda da Pastoral, muitos catadores tiveram uma postura receosa, justamente pelo fato de que ninguém valorizava o trabalho deles, o que mudou com o passar do tempo. Foi essa imagem negativa do catador que a Pastoral da Rua procurou mudar, isto é, mostrar para a prefeitura e para a sociedade o papel importante que os catadores tinham na cidade.
No mesmo fragmento discursivo, José fala que o trabalho deles era essencial para ajudar a prefeitura na limpeza da cidade. A limpeza urbana é de responsabilidade do Estado e cabe ao município desenvolver ações para a sua efetivação, contudo, em alguns casos, essa atividade é realizada pelos próprios catadores, apesar do pequeno apoio do poder público que, em determinados momentos, é quase inexistente.
05) Bom, pelo que eu sei, isso aqui não era assim como você está vendo. Não tinha esse galpão. A prefeitura e os catadores que fizeram através de luta. O pessoal ficava lá na rua lá. A polícia chegava, batia... atirava, mas o pessoal resistiu. O pessoal resistiu e a prefeitura ajudou a construir isso aqui. E tivemos muitas parcerias e até mesmo um convênio. Foi tipo, você lembra da ditadura? Foi tipo isso. O pessoal resistia. Nós resistíamos (Joaquim).
(06) Olha, esse processo, todos nós que começamos aqui já tinha essa consciência. Que aqui não iria ser fácil. Aqui foi a primeira associação fundada de catadores de materiais recicláveis. Mas esse processo de mexer com o material, da sociedade entender que nós estava prestando um serviço social, só depois eles viram o valor nisso (Antônio).
Em muitos discursos dos catadores, a respeito da formação da associação, é recorrente falarem em um processo marcado por lutas e resistências, como fica evidente na fala de Joaquim. Ele chega a utilizar uma metáfora (recurso linguístico que dá a ideia de transporte) para comparar o período anterior à criação da ASMARE com a ditadura civil militar: “foi tipo, você lembra da ditadura?”. Isso deixa implícito que os catadores passaram por um momento de restrição de suas atuações na rua. Algo importante de ressaltar e que está presente na memória dos catadores que participaram da criação da associação é que, mesmo depois de a terem criado, a luta não cessou. Pois, segundo o catador Antônio, mostrar para as pessoas que o trabalho feito a partir do material reciclável tem seu valor social foi (ou ainda é) um processo muito difícil. Exige tempo, reflexão e muita resistência.
(07) Os catadores trabalham muito, né? Então tem que vender os papéis para poder ter o ganha pão deles também, né? Devia ter uma ajuda melhor. Não temos vale-transporte. Eu não pago mais passagem, mas eles precisam do transporte. Eu acho que poderia melhorar... ah... ter o vale-transporte para eles, que é o necessário... tinha, foi cortado. E... mais uma ajuda pra eles também, que precisam de ajuda. São todos catadores, lutam com muita dificuldade. Então precisam de ajuda maior da prefeitura (Rosária).
(08) Mas consciente eu sou e agradeço à ASMARE porque ela me tirou da rua. E eu trabalho hoje, tem meu pão de cada dia... queria estar num lugar melhor na verdade. [...] a nossa renda depende do que a gente vende. Porque todo material tem um preço. Por semana, porque aqui recebe por semana, uns cento e setenta, cento e oitenta reais. O meu maior desafio é o de sobreviver (Joaquim).
Algo presente em associações de catadores, assim como em outras organizações de empreendimento solidários, é que, geralmente, seus membros não possuem carteira de trabalho. Segundo Baptista (2015)BAPTISTA, V. F. As políticas públicas de coleta seletiva no município do Rio de Janeiro: onde e como estão as cooperativas de catadores de materiais recicláveis? Revista de Administração Pública, v. 49, n. 1, p. 141-164, 2015., o contexto dos catadores é o de trabalhadores que lidam com condições adversas em termos de garantias trabalhistas. Isso gera uma série de implicações que precarizam as condições de trabalho, pois inexistem os auxílios ou as garantias trabalhistas de que gozam os trabalhadores formais. Dessa forma, caso o catador associado tenha algum problema que o impeça de trabalhar, como uma doença, ele não receberá nenhum benefício durante o tempo que permanecer afastado, pois sua renda depende integralmente do montante de materiais que é capaz de coletar e de comercializar.
No trecho (08), o catador fala sobre o valor que recebe por semana. Em média, cada catador recebe R$ 700,00 por mês. Esse valor, que representava 73% do salário mínimo vigente à época, indica que grande parte dos catadores não atingem sequer a renda mínima necessária para suprir suas necessidades.
Apesar das limitações, a associação tem gerado contribuições para seus membros. Diferentemente de outras organizações, muitas associações tentam manter um laço de ajuda aos seus membros, como descritos nos trechos a seguir.
(9) Eu acabei de criar meus filhos aqui. Já tem dezoito anos que eu trabalho aqui. Hoje eles já estão criados e eu continuo trabalhando. Hoje eu tenho minha casa própria. Mas tudo isso eu devo à reciclagem. Eu acho uma grande ajuda. Porque a gente, quando passa dos 50 anos, já não consegue mais serviço. Então aqui é uma boa ajuda. Aqui é diferente. A gente consegue perceber o valor que as pessoas dão pro trabalho da gente. Não só aqui dentro. Hoje lá fora também é muito reconhecido o trabalho da ASMARE (Rosária).
Muitos catadores, por meio da renda gerada a partir do material coletado, conseguiram criar seus filhos com mais dignidade e, até mesmo, comprar a casa própria. Rosária diz que a associação é um bom lugar, pois lhe forneceu ajuda e lhe possibilitou perceber o valor do seu trabalho. Ela também deixa explícito que a ASMARE tem sido muito reconhecida por causa dessas ações.
(10) A gente trabalha com os excluídos, o que não é uma tarefa muito fácil. Hoje eu não bebo mais. Eu já cheguei a beber dois litros de cachaça por dia. Mas o álcool não é um problema da associação, ele é social. Não é apenas na ASMARE que o catador usa droga. O catador trouxe o seu vício da rua. Na associação, a gente recebe moradores de rua, recebe pessoas que estão cumprindo pena e vêm até à associação, por meio de medida judicial, para trabalhar como forma de cumprimento de pena. Quando o catador chega na associação, ele não sabe puxar carrinho, catar papel ou separar o material. Na associação, ele tem a oportunidade de aprender sobre tudo isso. As pessoas só gostam de trabalha com gente pronta, aquelas que são capacitadas, e excluem os diferentes. Na associação, os associados são esses diferente, os excluídos pela sociedade. Isso gera muito sofrimento, porém é um sofrimento que dá resultado, pois a associação pode ajudar essas pessoas de alguma forma (Maria de Fátima).
No fragmento discursivo (10), é possível ter maior dimensão das condições em que as pessoas chegam para trabalhar na associação e de como a ASMARE tem se tornado um espaço de acolhida, capaz de inserir indivíduos que são paulatinamente excluídos do mercado formal de trabalho. Segundo Maria de Fátima, o perfil dos associados é o de pessoas excluídas socialmente. Os associados que trabalham na ASMARE, geralmente, são pessoas que estão em condição de moradores de rua e, em alguns casos, recebem indivíduos condenados a penas alternativas que, por meio do trabalho, realizam sua reabilitação. Nesse sentido, a associação procura dar oportunidades para que essas pessoas que estão à margem da sociedade possam desenvolver alguma atividade produtiva.
3.2 O SENTIDO DE SER CATADOR PARA O CATADOR
Em meio às várias visões que se pode ter dos catadores, na percepção dos associados da ASMARE, a representação do que é ser catador está relacionada com a sua atividade laboral e em diversas passagens se confunde com a ideia de agente ambiental, como se observa nos trechos seguintes.
(11) Ser catador é ser um meio ambientista, ambientalista, né? Um agente do meio ambiente. Porque, além de estar cuidando do espaço, digamos assim, além de estar ajudando a prefeitura, tá cuidando do meio ambiente. Porque tá tirando, eles falam lixo, mas eu não falo lixo, o reciclável da rua. Então, tá ajudando... reciclar é tudo. Só não o orgânico. O orgânico, para quem não sabe, tipo casca de fruta, verdura, essas coisas, serve de adubo. É bom pra colocar no pé das árvores, né (Joaquim).
(12) Pra mim, o que era e o que continua sendo, é um trabalhador para o meio ambiente. Que hoje muita gente não caiu a ficha de ter essa consciência de que o material reciclável que se tá trabalhando para se manter e também contribui para o meio ambiente. É algo que poucas pessoas entendem. Eu tenho certeza de que se não fosse os catadores, a prefeitura não daria conta de pegar todo o material que fica na rua. A gente ajuda na limpeza, né? A gente ajuda o meio ambiente, né? Muitas coisas que iria ser jogada fora, a gente recicla para manter o lugar mais limpo, né? (Roberto).
A consciência ambiental está marcadamente presente nos discursos dos catadores. Apesar de carregarem o estigma de “catadores de lixo”, podemos observar que o trabalho deles tem um caráter de conscientização, como se fosse um serviço voltado para a melhoria do ambiente, revisitando a discussão da necessidade de um planeta sustentável. É nesse sentido que os associados se veem como ambientalistas, como agentes do meio ambiente que, por meio de seu trabalho, auxiliam o poder público na manutenção da limpeza urbana. Além disso, é válido citar o papel que a reciclagem possui na desaceleração dos processos de extração de recursos naturais, ao retroalimentar o ciclo produtivo com materiais reutilizáveis.
Segundo Bakhtin (1999)Bakhtin, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999., pelo fato de o discurso ser carregado de um sentido vivencial, compreendemos e reagimos somente às palavras que nos despertam ressonâncias ideológicas concernentes à vida. Dessa maneira, quando o catador diz que se vê como agente ambiental, ele fala porque incorporou o discurso que só faz sentido no contexto no qual ele vive e atua. Além disso, nos fragmentos discursivos (11) e (12), é possível perceber também algo relevante na atuação do catador: o seu papel educativo.
No carrinho está escrito “Meu carro não polui”. O sentimento de ser um agente do meio ambiente, para muitos catadores, representa o seu papel social na cidade. Em vários lugares do país, é possível ver esses carrinhos que, geralmente, trazem alguma mensagem com caráter explicitamente político. As pautas, normalmente, dizem respeito aos aspectos que fazem parte do cotidiano dos catadores, tais como, coleta seletiva, gestão e consciência ambiental, sustentabilidade, atuação do poder público e da sociedade civil. Na imagem da Figura 1, por exemplo, há uma crítica sobre a poluição do ar gerada a partir da combustão de veículos automotores. É uma atitude pequena, mas com um potencial reflexivo substancial.
A consciência ambiental desses catadores revela que, apesar do esforço para garantir sua renda no final do mês, o aspecto socioeducativo nunca se perde. A atitude contribui para reduzir o problema do lixo e tem um caráter pedagógico, o que pode provocar mudanças no comportamento das pessoas. Segundo Silva (2014)SILVA, C. M. Trabalho, cidadania e reconhecimento: a rede Cataunidos e o protagonismo sociopolítico de catadores de recicláveis na RMBH. Tese de doutorado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2014., a ideia de se ver como agente ambiental é um instrumento político que muitos catadores utilizam para pedir a comerciantes, empresários e moradores a separação e doação de materiais recicláveis. Além disso, procuram demonstrar a importância da coleta seletiva, que contribui para a separação correta dos resíduos urbanos, para o aumento da reciclagem e para a vida útil dos aterros sanitários.
(13) Quando eu vim pra rua, eu não sabia o que era ser um cidadão. Então eu aprendi e não posso esquecer o que é ser um cidadão. O que é ser um cidadão? Ser cidadão é ter todos os direitos que todo mundo tem. É poder ir e vir. Entrar num supermercado e poder comprar (Antônio).
(14) Esse material representa muita coisa. Ele representa trabalho, renda, cidadania, autoestima, tudo. Quando você tem trabalho, casa... você é um cidadão, quando perde isso, você perde a cidadania. Ser catadora hoje é um trabalho que aumenta a autoestima. No passado, eu comecei a recolher o material por causa da fome, hoje eu faço pela cidadania, pelo meio ambiente. Apesar de ter melhorado, até pouco tempo o catador era considerado como lixo. Ninguém olhava para os catadores, ninguém pegava na nossa mão ou sentava para conversar. Nessa época, a gente andava de cabeça baixa, pois tinha vergonha do mundo e das condições de trabalho. Depois da associação e das conquistas, a gente pôde erguer a cabeça e se considerar um cidadão igual a qualquer outra pessoa (Maria de Fátima).
(15) Ah... hoje ela [a sociedade] vê como algo mais digno. Hoje é mais falado sobre a reciclagem, né, e antes não era. Antes as pessoas não dava muita atenção para os catadores de papel. Agora hoje eles sabem que isso aqui é uma forma de trabalho. A gente tá trabalhando, né? Assim, às vezes alguém olha de olho torto, né? Nem todo mundo gosta, mas a gente não dá muito ideia não (Rosária 01).
Pelo contexto histórico de exclusão social, os catadores percebem no material recolhido uma forma de garantir a sua sobrevivência e de se inserirem na sociedade. Por estarem em uma condição de marginalização e de vulnerabilidade social, associam a concepção de cidadania com a questão da inserção econômica (SILVA, 2014SILVA, C. M. Trabalho, cidadania e reconhecimento: a rede Cataunidos e o protagonismo sociopolítico de catadores de recicláveis na RMBH. Tese de doutorado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2014.). A renda que é gerada por meio do material recolhido dá o direito de poder comprar algo, de ter uma casa, de manter o trabalho, ou seja, percebe-se o acoplamento da noção de cidadania como sinônimo de poder de consumo. Ou seja, aqui se percebe que a consciência sobre a trajetória de luta política dos catadores, em alguns momentos, se choca com a reprodução da lógica neoliberal traduzida no poder de consumo, como explícito na fala do catador Antônio ao destacar que ser cidadão é “entrar num supermercado e poder comprar”.
Com base nos excertos analisados fica evidente que, por um lado, a imagem do catador como agente ambiental pode contribuir para o resgate de sua autoestima e para a produção de sentidos a partir do trabalho de reciclagem. É importante destacar que essa ressignificação da função dos catadores como agentes ambientais representa de fato um avanço, que, até certo ponto, os reintroduz como sujeitos na sociedade. Por outro lado, é preciso atentar para o lugar e para a posição em que se coloca a figura do catador em termos de ação.
Souza (2006)SOUZA, R. M. O discurso de protagonismo juvenil. Tese de doutorado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, o discurso de protagonismo e de participação social pode anular a capacidade de ação política dos sujeitos pela produção discursiva, que limita sua fala autônoma e transgressora. Nesse sentido, os catadores, ao reproduzirem o discurso da sustentabilidade, que os coloca como agentes da educação ambiental ou ressignificadores do lixo, podem perder de vista suas reais condições de vida e o elevado grau de precarização de seu trabalho, por se sentirem, ao menos em parte, reinseridos como sujeitos na sociedade que historicamente lhes negou tal status. A consequência de todo esse processo pode se desdobrar no enfraquecimento da luta política como possibilidade de mudança e de reivindicação por condições mais dignas de existência.
Nesse sentido, os relatos orais até aqui analisados evidenciam a complexa ambivalência, que oscila entre a marginalização que os catadores ainda vivenciam cotidianamente e a sua tímida (re)inserção na sociedade, na qualidade de sujeitos consumidores e/ou agentes ambientais. Assim, tais discursos traduzem a complexa interligação entre consciência individual e interação social, muitas vezes, sustentando efeitos discursivos e fomentando regimes de verdade que necessitam ser constantemente problematizados. Portanto, não se busca aqui esvaziar a importância dos catadores como agentes ambientais, mas insistir na premência da luta política, cujo papel é o de incessantemente reposicionar os diversos discursos no campo político das relações de poder. Afinal, uma vez reconhecidos como agentes ambientais, os catadores devem se valer desse discurso para o recrudescimento da luta pelo reconhecimento de suas garantias trabalhistas junto a um Estado que se exime de realizar serviços de limpeza urbana sob sua responsabilidade legal, na medida em que os terceiriza informalmente e se apropria indevidamente do trabalho dos catadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve por objetivo analisar o processo de luta e de resistência dos catadores de materiais recicláveis na trajetória da ASMARE. Assim, foi possível evidenciar que antes da formalização da associação de catadores prevalecia um embate entre o poder público e os sujeitos que sobreviviam da coleta de materiais recicláveis na capital mineira. Esse contexto foi marcado não apenas pela falta de reconhecimento do trabalho dos catadores pelo Estado, como também pela hostilidade e pela perseguição orquestrada por agentes públicos. A tessitura de um trabalho conjunto entre catadores e prefeitura se deu a partir da mediação da Pastoral da Rua, que buscou ressignificar o papel e a importância dos catadores para a cidade.
A formalização, por meio da criação de cooperativas e associações de catadores propiciou um maior acesso a políticas públicas e a recursos financeiros. Nas últimas décadas, houve um crescimento relevante de cooperativas e associações, contribuindo para o fortalecimento da luta coletiva dos catadores. Apesar disso, segundo o IPEA (2017)IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A organização coletiva de catadores de material reciclável no Brasil: dilemas e possibilidades sob a ótica da economia solidária. Brasília, 2017., esses empreendimentos coletivos ainda possuem muitas carências e problemas estruturais, o que é um obstáculo no processo histórico de luta desses trabalhadores, como é o caso dos membros da ASMARE.
Paralelamente, foi possível observar que o papel social do catador tem sido ressignificado através da articulação de sua função aos discursos de sustentabilidade e de proteção ao meio ambiente, o que, ao menos parcialmente, permite a construção de uma imagem menos estigmatizada dos catadores ao projetá-los como agentes ambientais. Porém, é importante destacar que, por trás de um discurso que evoca a sustentabilidade e o meio ambiente, opera claramente a lógica neoliberal de um Estado mínimo, que se omite de suas responsabilidades ambientais e trabalhistas, ao terceirizar a coleta dos materiais recicláveis sem o devido suporte e reconhecimento legal para aqueles que são invisibilizados em meio ao lixo da metrópole.
Assim, enquanto os catadores atribuem a produção de sentidos na inclusão social, os discursos que os cercam, muitas vezes, ocultam o caráter perverso de sua invisibilidade em um contexto geralmente marcado por descaso, preconceito e violência. Dito de outra forma, o catador que está presente no discurso, muitas vezes, não é sujeito de sua ação e, por vezes, reproduz um discurso que camufla e o mantém numa situação de marginalidade. Aqui é importante não perder de vista os fatores sociais e políticos que materialmente aprofundam as dificuldades dos catadores e restringem sua emancipação. Contudo, é igualmente importante atentar para os riscos implícitos nos discursos da Sustentabilidade, que, uma vez internalizados pelos catadores, podem levar a posturas politicamente passivas e pouco combativas.
Não é por menos que as teorias da exclusão social atentam para o fato de que a superação das condições econômicas, apesar de fundamental, não é a única dimensão que deve ser contemplada (FERRAZ; CAVEDON, 2008Ferraz, D. L. S.; Cavedon, N. R. A exclusão e a inclusão social: depoimentos das praticantes da economia popular solidária. Cadernos EBAPE. BR. Rio de Janeiro. Vol. 6, n. 4, p. 1-18, 2008.), já que a exclusão não é resultante da vontade individual, mas da ruptura dos vínculos sociais (COSTA, 2004COSTA, F. B. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.; TORRES, 2008TORRES, H. R. As organizações dos catadores de material reciclável: inclusão e sustentabilidade. O caso da associação dos catadores de papel, papelão e material reaproveitável, ASMARE, em Belo Horizonte, MG. Dissertação de mestrado – Universidade de Brasília. Brasília, 2008.).
Em síntese, este estudo logrou evidenciar que o trabalho dos catadores ocupa um lugar de contradição na cadeia da reciclagem. Se por um lado, esse trabalho assume o papel de uma forma de inclusão econômica e de elevação da autoestima dos envolvidos, por outro, as condições em que ele é produzido são precárias, o que constitui um grande desafio a ser superado pelos catadores (DAGNINO; JOHANSEN, 2017DAGNINO, R. S.; JOHANSEN, I. C. Os catadores no Brasil: características demográficas e socioeconômicas dos catadores de material reciclável, classificadores de resíduos e varredores a partir do Censo demográfico de 2010. Mercado de Trabalho. n. 62, p. 115-125, 2017.). No tocante às contribuições aos Estudos Organizacionais, este estudo buscou resgatar, a partir de relatos orais, trajetórias sociais de catadores que trazem perspectivas que não podem ser acessadas pela tradicional via dos documentos oficiais. Assim, espera-se incentivar o uso da história oral e das trajetórias de vida como uma via privilegiada para contar a história dos sujeitos sociais e de suas organizações. Por meio da oralidade, há possibilidades de acessar o conhecimento e os saberes desses sujeitos, articulando, assim, outras dimensões mais amplas para o entendimento dos fenômenos sociais. Além disso, é válido apontar para construção de agendas de pesquisas voltadas a uma apreciação crítica de temas como organizações e luta social frente à responsabilidade do tratamento dos resíduos nas grandes metrópoles, bem como as suas formas e limitações à luz das teorias de exclusão social.
Por fim, ressalta-se que o contexto de atuação do catador pode não ser mais o mesmo daquele apresentado por Manuel Bandeira em O bicho, contudo há outra questão tão problemática quanto: ao andarmos pelas ruas e calçadas, nas cidades e em muitos outros lugares, muitas vezes, tão perto de nós, assistimos diária e cotidianamente essa situação que insiste em permanecer. A miséria, a desigualdade e a transfiguração do ser humano em objeto coisificado não são processos apenas reais, mas também permanentes. O que mais entristece não é a sua ocorrência, mas o fato de ter se tornado comum e tão natural aos olhos de quem vê. Contudo, trajetórias de luta, como aquelas narradas pelos catadores da ASMARE, evidenciam que a desnaturalização da miséria e a ressignificação de seus sujeitos passa por processos de mobilização e pela sua organização em coletivos de resistência. A mudança não será obtida através da benevolência de um Estado reificado ou de seus representantes, mas da luta política enquanto movimento constante, levada insistentemente ao centro de uma sociedade de sujeitos.
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Ofício GAB 3679/558/79.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
-
Recebido
26 Abr 2019 -
Aceito
23 Out 2019