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Abuso sexual, aborto e saúde pública no brasil: quando o julgamento moral acentua as iniquidades

Eis aqui um editorial acadêmico-político que tem como objetivo convocar o campo científico a refletir sobre os perigos das decisões relativas ao direito ao aborto sob réguas morais, uma vez que não há evidências de que tal perspectiva se traduza em práticas de cuidado, proteção à infância e equidade de gênero - elementos tão urgentes e necessários à enfermagem. Sendo ainda mais concretos, este editorial aborda - e, de antemão, repudia - o Projeto de Lei (PL) 1.904/2024, apresentado à Câmara dos Deputados Federais, com o intuito de modificar o Código Penal Brasileiro.

Tais mudanças equiparam o aborto na gestação com mais de 22 semanas a homicídio, independentemente das circunstâncias, ao mesmo tempo em que também criminaliza a realização de pelos profissionais de saúde. A aprovação desse PL tornaria letra morta a legislação que prevê o direito ao aborto para os casos de risco de vida para a gestante, os casos de fetos com diagnóstico de anencefalia e, como ponto central deste editorial, em casos de estupro para parte expressiva da população. Ademais, ao equiparar o aborto a crime de homicídio, uma vítima de estupro que se submeteu a procedimentos de aborto poderá ter decretada uma pena de reclusão que atinge 20 anos, enquanto que o perpetrador do estupro poderia ter pena de reclusão de seis a dez anos.

Ocorre que o aborto legal em gestações com mais de 22 semanas é recurso utilizado por pessoas que enfrentam barreiras de acesso ao sistema de garantia de direitos (inclusive, o sistema de saúde). Essencialmente, crianças menores de 14 anos utilizam este recurso, já que o estupro na infância é fenômeno, no geral, consequente de práticas sistemáticas e duradouras de abuso sexual no ambiente familiar. Ademais, uma faixa expressiva da população é signatária de uma visão de mundo conservadora que interdita o discurso em favor da educação em saúde sexual na escola e do diálogo sobre a sexualidade humana na infância e adolescência. Como resultado, especialmente as meninas possuem conhecimento limitado sobre as mudanças corporais que acontecem desde a pré-puberdade, e o diagnóstico da gravidez pode ser feito tardiamente(11 Santos BRS, Magalhães DR, Mora GG, Cunha A. Gravidez na adolescência no Brasil: vozes de meninas especialistas [Internet]. Brasília: Instituto dos Direitos da Criança e do Adolescente - INDICA. Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF; 2017[cited 2024 Jul 1]. Available from: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/gravidez-na-adolescencia-no-brasil-vozes-de-meninas-e-de-especialistas
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).

Dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) informam 470.947 registros de violências contra crianças do sexo feminino e menores de 14 anos no Brasil entre 2013 e 2022. Desses registros, 138.636 (29,43%) foram por estupros, dos quais os alegados autores foram o pai (11,99%; n=16.625), o padrasto (13,24%; n=18.355), o irmão (2,78%; n=3.853), outros cuidadores (0,80%; n=1.116) e amigos e conhecidos (25,50%; n=35.361). Apenas 13.196 (9,52%) dos registros de estupro foram cometidos por desconhecidos nessa faixa etária. Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos a uma vida com saúde, dignidade e respeito.

Constata-se que a família e o domicílio, lugares idealizados como protegidos e seguros, têm, na verdade, servido como lugar privilegiado para a perpetração de abusos e sua sistemática ocultação. Deste modo, não é difícil imaginar que parte das gestações somente seja publicamente revelada com 22 semanas ou mais. Ainda assim, por vezes, o discurso moralizante de “proteção à infância” usado para condenar o aborto não ganha a mesma proporção para os casos das crianças vítimas de estupro, já que, mesmo com consentimento, toda relação sexual com menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável no Brasil. Foram 219.055 partos de crianças menores de 14 anos registrados no Sistema de Nascidos Vivos do Ministério da Saúde entre 2013 e 2022.

Tal cenário demonstra que o estupro de vulneráveis é dado da realidade e tem sido tratado de modo moralizante e negligenciado, e o PL que deu causa a este editorial, ao desconsiderar toda a complexidade do fenômeno, contribui para intensificação de iniquidades. O bem e o mal, tão utilizados no debate sobre as violências, não são fenômenos ontológicos, eles são políticos e, consequentemente, delineados no cotidiano da vida em sociedade(22 Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras; 1999. 344p.). No que tange à vida das meninas e mulheres, essas violências se interseccionam com outros marcadores, como o de raça/cor. Mulheres negras e indígenas têm mais chances (três vezes e 16,84 vezes, respectivamente) de serem internadas por causas relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério, quando comparadas às mulheres brancas, conforme taxas de internações calculadas a partir do Sistema de Informação Hospitalar e do Censo Demográfico de 2022.

Assim, a intensificação de dispositivos punitivos para a prática do aborto não fará esse fenômeno deixar de existir. Ainda que a obediência ao regramento jurídico e social tenha significado para a sociedade, ela não necessariamente tem correspondência direta com a maneira como as pessoas se comportam em uma situação real e particular(33 Dahia SLM. Da obediência ao consentimento: reflexões sobre o experimento de Milgram à luz das instituições modernas. Soc Estado. 2015;30(1):225-41. https://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100013
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). Desse modo, é pequena - se é que é realmente existente - a utilidade da pergunta se somos “contra ou a favor do aborto” ou o cerceamento desses direitos. Na realidade concreta onde a vida opera, mas de modo distinto em oportunidades, o aborto faz parte do cotidiano de brasileiros de diferentes matrizes ideológicas, tal como demonstra a Pesquisa Nacional de Aborto(44 Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. National Abortion Survey - Brazil, 2021. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(6):1601-6. https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023
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). Operá-lo como um direito humano é uma necessidade urgente para a produção de políticas de cuidado mais equânimes, universais e decidas por mulheres.

  • FOMENTO
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil (Processos no. 312056/2022-2 e no. 306367/2022-0), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (PROCIENCIA/UERJ).

REFERENCES

  • 1
    Santos BRS, Magalhães DR, Mora GG, Cunha A. Gravidez na adolescência no Brasil: vozes de meninas especialistas [Internet]. Brasília: Instituto dos Direitos da Criança e do Adolescente - INDICA. Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF; 2017[cited 2024 Jul 1]. Available from: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/gravidez-na-adolescencia-no-brasil-vozes-de-meninas-e-de-especialistas
    » https://www.unicef.org/brazil/relatorios/gravidez-na-adolescencia-no-brasil-vozes-de-meninas-e-de-especialistas
  • 2
    Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras; 1999. 344p.
  • 3
    Dahia SLM. Da obediência ao consentimento: reflexões sobre o experimento de Milgram à luz das instituições modernas. Soc Estado. 2015;30(1):225-41. https://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100013
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100013
  • 4
    Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. National Abortion Survey - Brazil, 2021. Ciênc saúde coletiva. 2023;28(6):1601-6. https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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