Acessibilidade / Reportar erro

Corpo do professor: discursos sobre subjetividade para pensar a formação de enfermeiros

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre o corpo do professor de enfermagem no discurso da subjetividade.

Método:

trata-se de um ensaio reflexivo sobre as reverberações teóricas e práticas do corpo do professor de enfermagem fundamentado no discurso deleuze-guattariano.

Resultados:

no plano teórico, o corpo do professor de enfermagem foi considerado como produtor de subjetividades e compreendido sem órgãos, onde circulam forças, desejos e afetos. No plano prático, foram discutidas estratégias pedagógicas desenvolvidas por professores, tais como jogos dramáticos, cenas simuladas, apresentação de linha de cuidado e portfólio vivo, caracterizadas por estimular os estudantes de enfermagem à valorização de dimensões políticas, cidadãs, criativas e solidárias.

Conclusão:

baseado nos discursos da subjetividade, o corpo do professor foi desmistificado como exclusivamente detentor do saber, e todos os participantes nas cenas de ensino foram considerados protagonistas ativos do conhecimento coletivizado.

Descritores:
Enfermagem; Educação; Ensino; Educação em Enfermagem; Educação Superior

ABSTRACT

Objective:

to reflect on the body of the nursing professor in the subjectivity discourse.

Method:

this is a reflective essay on the theoretical and practical reverberations of the nursing professor’s body based on the Deleuzoguattarian discourse.

Results:

in the theoretical framework, the body of the nursing professor was considered as a producer of subjectivities and understood without organs, surrounded by strengths, desires, and affections. In the practical framework, we discussed pedagogical strategies developed by professors, such as dramatic games, simulated scenes, presentation of the line of care and living portfolio, characterized by stimulating nursing students to value political, civic, creative, and supportive dimensions.

Conclusion:

based on the subjectivity discourses, the professor’s body was demystified as uniquely holder of knowledge, and all participants in the educational scenario were considered active protagonists of collective knowledge.

Descriptors:
Nursing; Education; Teaching; Nursing Education; Higher Education

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre el cuerpo del profesor de enfermería en el discurso de la subjetividad.

Método:

se trata de un ensayo reflexivo sobre las reverberaciones teóricas y prácticas del cuerpo del profesor de enfermería fundamentado en el discurso deleuze-guattariano.

Resultados:

en el plano teórico, se consideró el cuerpo del profesor de enfermería como productor de subjetividades y comprendido sin órganos, donde circulan fuerzas, deseos y afectos. En el plano práctico, se discutieron estrategias pedagógicas desarrolladas por profesores, tales como juegos dramáticos, escenas simuladas, presentación de línea de cuidado y portafolio vivo, caracterizadas por estimular a los estudiantes de enfermería a la valorización de dimensiones políticas, ciudadanas, creativas y solidarias.

Conclusión:

basado en los discursos de la subjetividad, se desmitificó el cuerpo del profesor como exclusivamente poseedor del saber, y todos los participantes en las escenas de enseñanza fueron considerados protagonistas activos del conocimiento colectivizado.

Descriptores:
Enfermería; Educación; Enseñanza; Educación en Enfermería; Educación Superior

INTRODUÇÃO

Este ensaio nasce da aceitação para iniciar reflexões sobre o elemento corpo do professor na formação de enfermeiros. Há mais de cinco anos os docentes, a cada semestre, em espaços institucionais diversificados, investigam o corpo que ensina o ofício de cuidar e sua relação agenciadora com os estudantes no processo de ensinar e aprender enfermagem. Tais agenciamentos são pensados a partir dos encontros cotidianos entre professores e estudantes de enfermagem, concebidos conceitualmente como um estado preciso de mistura de corpos em uma sociedade, reconhecendo todas as atrações e repulsões, simpatias e antipatias, alterações, alianças, penetrações e expansões que afetam uns em relação aos outros(11 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - Volume II. Rio de Janeiro: editora 34; 1995.).

O fato é que a busca por conhecimentos científicos no domínio da enfermagem é ininterrupta, e por maior que seja o estranhamento que envolve o discurso da subjetividade, sobretudo ao acatar o corpo do professor de enfermagem como elemento discursivo, é preciso disposição para lidar a diversidade de conceitos que podem permear esse objeto de estudo.

Em outras palavras, é necessário refletir sobre a subjetividade(22 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Rio Grande do Sul: Sulina; 2006.) presente no encontro do corpo do professor com o estudante nos cenários teóricos e práticos de ensino-aprendizagem da enfermagem, porque nessa íntima relação circulam poder, desejos e afetos capazes de interferir nos processos de formação e da vida, a ponto de gerar um produto: a construção do ser enfermeiro.

Certamente esses elementos subjetivos circulantes são extremamente difíceis de localizar, porque são veiculados no ambiente e estão presentes nos corpos sob a forma de energias físicas e mentais. Além disso, podem sofrer influências dos efeitos desencadeados pelas estratégias pedagógicas desenvolvidas pelo corpo do professor, ou ser alongamentos de instantes por ele vivenciados junto com os estudantes nos lugares onde a vida comumente é partilhada.

Essas ponderações sobre o cotidiano de formar enfermeiros se dobram para o interior das universidades e, ao tomar a subjetividade como referência discursiva, abrem passagem para o desenvolvimento deste ensaio reflexivo.

É exatamente através desse corpo permeado por uma multiplicidade de discursos subjetivos que perpassa toda a ação filosófica do pensamento que examina a natureza de sua atividade estabelecendo os princípios que o fundamentam. Isso caracteriza a consciência crítica – uma consciência que examina a própria constituição, os próprios questionamentos(33 Japiassú H, Marcondes D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006.).

Baseado nessas acepções, este ensaio apresenta algumas reflexões sobre as atividades docentes na área da enfermagem, orientadas pelo seguinte questionamento: no plano prático e teórico de formar enfermeiros, como pensar o corpo do professor no discurso da subjetividade?

No tocante à criação de reflexões, posiciona-se aqui o papel do ensaísta, entendido como aquele que é capaz de transgredir a forma tradicional de pensar a realidade ao apresentar fragmentos de reflexões, iniciais e parciais, sem a necessidade de teorizar um sistema completo de pensamento. Assim, o ensaio se aproxima das manifestações rápidas da consciência, do intuitivo como característica relevante para a formação do conhecimento. A objetividade sistematizada, como se apresenta na ciência, por exemplo, cede espaço às reflexões rápidas e baseadas em componentes da subjetividade do ensaísta, o que não implica associar o ensaio a uma aventura meramente subjetiva(44 Meneghetti FK. O que é um Ensaio-Teórico. RAC [Internet]. 2011[cited 2017 Jun 11];15(2):320:32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2a10.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2...
).

Dado esse interesse, as argumentações presentes neste ensaio são orientadas pelo objetivo de refletir sobre o corpo do professor de enfermagem no discurso da subjetividade. Rumo a esse objetivo, optou-se por organizar os argumentos sobre a prática de ensinar e aprender enfermagem, bem como os seus conteúdos nucleares, no pilar reflexivo apresentado a seguir.

PILAR REFLEXIVO: O CORPO DO PROFESSOR DE ENFERMAGEM NO DISCURSO DA SUBJETIVIDADE

A opção por refletir sobre corpo e subjetividade invariavelmente coloca gestores do ensino, estudantes e principalmente os professores de enfermagem em campos de conhecimentos desafiadores. As fundamentações teóricas e os achados práticos pedagógicos sobre esses dois núcleos reflexivos intensificam os debates a respeito a formação de enfermeiros, cujo foco é lançado nos processos de ensinar e aprender que sejam capazes de integrar, unir e associar saberes da esfera profissional com os fenômenos da vida.

Os discursos apresentados neste pilar reflexivo tangenciam o corpo como operador de uma matriz pedagógica no interior dos processos de ensino-aprendizagem. Não o corpo anátomo-fisiológico ou os bonecos de estudo que os docentes oferecem aos estudantes na academia. Fala-se de corpos que ensinam com suas (in) completudes, belezas, singularidades, emoções, sentimentos, sonhos e integralidade(55 Solano LC, Germano RM, Valença CN, Malveira FM. O corpo no processo ensino-aprendizagem a partir do paradigma da complexidade. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 11];20(3):399-403. Available from: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/1230/2892
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.p...
).

Nessa perspectiva, é necessário olhar atentamente para os corpos dos professores que se movimentam nos diferentes territórios institucionais do ensino e considerar neles os desejos, os processos de trabalho em saúde já vividos, as histórias, as práticas de cuidar desempenhadas, a formação acadêmica e a percepção profissional como dimensões subjetivas que entram em profundo diálogo com os estudantes de enfermagem ao ensiná-los e aprender com eles o ofício de cuidar.

Dessa forma, pensar o corpo do professor de enfermagem como produtor de subjetividades não é uma tarefa fácil de apreender em sua totalidade e nos convida a recorrer a um conjunto de experiências pedagógicas vivenciadas em duas instituições de ensino, uma pública e outra privada. Essas escolhas agregam um cuidado ensinado que perpassa pela relação do corpo do professor com o estudante no interior de duas bases organizativas de currículo: disciplinar e integrada.

Tendo isso em vista, é fundamental entender que o corpo do professor é atravessado por diferentes bases pedagógicas e apresenta uma multiplicidade de comunicações capazes de agradar em maior ou menor intensidade os estudantes de enfermagem. Portanto, pensar o corpo em um debate intelectual que toca a formação de enfermeiros, por natureza, é instigante e necessita de um arcabouço teórico no campo da subjetividade passível de ser contextualizado aos processos de ensino e gerência na formação superior de enfermagem para este novo século.

Isso porque os acoplamentos das unidades epistêmicas, corpo e subjetividade, aqui são permeados pela aposta filosófica no pensamento contemporâneo. Sim, pensar no limite entre os domínios do saber perpassa por reflexões que ainda não tinham sido suscitadas e que incidem diretamente nas variadas estratégias pedagógicas desenvolvidas por professores que vivenciam cotidianamente a formação de enfermeiros.

Nesses encontros, os corpos que ensinam expressam, no interior ou fora das universidades, a enfermagem como profissão, e muito provavelmente não mostram com clareza os mecanismos de suas próprias lutas, desejos e resistências para incluir estrategicamente nos territórios formadores dimensões que sejam políticas, sensíveis, criativas, cidadãs e solidárias.

Especificamente no plano prático, as estratégias pedagógicas podem provocar desarranjos nos modelos operantes instituídos de formar enfermeiros, pois sua centralidade desloca a atividade docente do datashow ou do quadro-giz para se localizar nas experiências da vida e nas relações estabelecidas entre os corpos no cenário de ensino-aprendizagem. Parece que essa prática de formar profissionais de saúde causa desconforto e tensões nos corpos que estão habituados a transmitir e receber verticalmente conteúdos curriculares.

Por isso, é preciso estimular no interior dos encontros pedagógicos o questionamento dos fenômenos da vida, como forma de resistir à fragmentação do saber e minimizar o reducionismo dos estudantes de enfermagem a meros receptáculos de conteúdo.

Em linhas gerais, os encaminhamentos práticos desenvolvidos por professores para remodelar esses roteiros tradicionais de ensino-aprendizagem no currículo disciplinar estiveram orientados por: jogos dramáticos, cenas simuladas, colagens, modelagens e ocupação de espaços geomíticos na sala de aula, tudo com um forte apelo para iniciação científica e produção acadêmica.

No currículo integrado, as experiências pedagógicas estiveram centradas em realização de linhas de cuidado nos serviços que compõem a rede do Sistema Único de Saúde (SUS), na apresentação de narrativas de práticas advindas dos cenários de ensino e em portfólios vivos.

Independentemente das correntes teóricas e filosóficas norteadoras dos processos de ensinar e aprender, a principal marca dessas experimentações pedagógicas é o desprendimento de elementos subjetivos que estão escondidos detrás dos corpos que se relacionam nas cenas de ensino-aprendizagem. Nesses encontros o estudante é estimulado pelo corpo do professor de enfermagem ao exercício da comunicação clara, objetiva, proveniente de um trabalho em equipe, com a construção de argumentos críticos, destreza manual e habilidade para o improviso(66 Tavares R, Figueiredo NMA. Arte e saúde: experimentações pedagógicas em enfermagem. São Caetano do Sul: Yendis; 2009.).

Pensando nos estudantes que aprendem e no que é feito pelos corpos dos professores para ensinar enfermagem, é pertinente refletir sobre a produção de subjetividades. Isso não é uma tarefa fácil e exige investimentos em conhecimentos filosóficos modernos, com uma ousada transposição discursiva para a prática de formar enfermeiros.

Fundamentalmente, pensar o corpo sem sua organização biológica no ensino de enfermagem conduz o pensamento para discursos filosóficos que tocam os processos de subjetivação, ou seja, formar é produzir. No caso, produzir enfermeiros, o que não se faz sem uma aventura na ideia deleuze-guattariana de produção de subjetividade(77 Deleuze G, Guattari F. O Anti - Édipo. São Paulo: Editora 34; 2010.).

Nessa lógica, emerge a inusitada ideia do corpo sem suas estruturas orgânico-funcionais. Na enfermagem, compreender esse provocante conceito requer habilidades para se equilibrar nas linhas teóricas da subjetividade e aplicar seus discursos filosóficos nos encontros estabelecidos entre os corpos dos professores e os estudantes nos espaços universitários.

Cabe ressaltar em um pequeno momento de pausa: não é negada aqui a dimensão biológica quando se fala do corpo do professor na formação superior de enfermagem. É bem certo que os enfermeiros precisam compreender o que é um órgão, suas integradas funções e seus desvios de atividade; mas ao mesmo tempo, por mais que se tente esgotar todos os conceitos morfológicos e fisiopatológicos, esses não dão conta do corpo e remetem aos elementos da subjetividade, presentes como impulsos interiores.

No plano teórico, isso coloca em relevo os produtos intelectuais oriundos da íntima parceria estabelecida entre Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em suas abordagens filosóficas o corpo é concebido conceitualmente no seu limite, ou seja, sem órgãos. Dessa forma, a relação deste ensaio reflexivo com a teoria ganha forma mediante a aposta no pensamento contemporâneo dos teóricos que fizeram do Corpo sem Órgãos (CsO) tema de um problema que atravessa alguns de seus escritos.

Para os autores, o CsO é povoado por intensidades e ao mesmo tempo é campo de imanência do desejo – o plano de consistência próprio do desejo. Ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior. Falta que viria torná-lo oco, e prazer que viria preenchê-lo(77 Deleuze G, Guattari F. O Anti - Édipo. São Paulo: Editora 34; 2010.). Pensar nos desejos, especificamente nas formas práticas de formar enfermeiros, exige cautela. Todo o cuidado ao transitar por essas vias subjetivas advém das alegrias e angústias por elas produzidas, que conduzem o sujeito que está sendo formado à alienação ou à descoberta de um ser profissional politicamente ativo.

Aqui, o desejo não está intrinsecamente ligado a uma individuação da libido. No plano da subjetividade a via do desejo que circula no CsO de professores e estudantes perpassa pelas ditas energias físicas e mentais que os atraem ou repelem nos encontros pedagógicos.

Diga-se que, em um primeiro contato pedagógico, as formas como o desejo é capturado aparentemente são invisíveis aos olhos. No entanto, à medida que os corpos se relacionam, as vias do desejo são intensificadas ou atenuadas, o que produz mecanismos de dominação ou libertação do corpo no cenário de ensino-aprendizagem.

Durante os encontros pedagógicos, o professor, muitas vezes sem se dar conta, é observado pelo estudante de enfermagem como o corpo biologicamente reduzido capaz de ensinar meramente pelas vias do desejo, que ganham concretude em sua gestualidade, oralidade, no posicionamento no espaço, nos movimentos corporais e faciais. Ainda no plano da expressão: as roupas utilizadas, o timbre de voz, a forma de sorrir, os olhos, enfim, os órgãos do corpo do professor, agem como portas abertas para intensificação daquilo que está sendo construído como produto profissional e social.

Dessa forma, o desejo é sempre o modo de construção de algo(88 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; 1996.). Construção do próprio enfermeiro, de coisas e processos. Esse espaço relacional professor-estudante certamente é responsável por posicionar os sujeitos na produção social de um mundo que, longe de juízo de valores, pode estar alicerçado no acolhimento das necessidades do outro, no egoísmo, na solidariedade, no autoritarismo, na cidadania, na petulância, no respeito à vida, na cobiça, na disponibilidade para cuidar, entre outros elementos.

É como se os fluxos do desejo que circulam o CsO do professor atingissem a superfície do estudante, para assim penetrar na sua existência humana e localizar aquilo que o corpo é e deseja ser. Sem dúvidas, o que está em reflexão no processo subjetivo de formar enfermeiros diz respeito a uma energia propulsora que fornece força aos corpos para acionarem mudanças.

Trata-se de uma educação induzida por desejos a partir de experimentações pedagógicas, em cujas relações o processo de ensino-aprendizagem não se realiza apenas com a quantidade de conteúdo teórico ou mesmo com ideias pré-estabelecidas pelos corpos dos professores, mas sim com estímulos para que os estudantes se tornem cidadãos com opiniões próprias, capazes de revelar emoções e assumir atitudes no coletivo(66 Tavares R, Figueiredo NMA. Arte e saúde: experimentações pedagógicas em enfermagem. São Caetano do Sul: Yendis; 2009.).

Nessa orientação, destaca-se o espaço social universitário como produtor de marcas profissionais de ordem subjetiva nos futuros enfermeiros. Daí a importância de o professor reconhecer o desejo que circula no interior dos seus corpos para estimular, nas diferentes estratégias pedagógicas, a partilha do bem comum: o conhecimento.

Na verdade muitos estudantes, sobretudo os recentemente apresentados à profissão de enfermagem, carregam expectativas, angústias e sofrimentos diante da escolha realizada. Todos esses anseios podem ser identificados pelo corpo do professor e trabalhados na universidade, nessas zonas intersubjetivas que são criadas quando os corpos se encontram e trocam informações.

A diminuição do distanciamento entre o corpo do professor e os estudantes no interior da universidade pressupõe uma remodelação no ensino de enfermagem caracterizada por parcerias, relações colaborativas e menos competitivas entre os pares. O que se percebe é a ideia do corpo subjetivo que se individua e, ao mesmo tempo, horizontalmente faz parte de um coletivo.

Com efeito, nos cenários de ensino-aprendizagem o corpo do professor tem um papel fundamental na libertação ou no aprisionamento dos estudantes, que podem ser estimulados ou apassivados mediante a intensidade das forças opressoras, dos desejos e afetos que entram em circulação no jogo do aprender e ensinar enfermagem.

Eis a lógica subjetiva: o corpo é capaz de afetar e ser afetado ao permitir que no interior do encontro ocorram os intensos movimentos de socialização coletiva de saberes e práticas. Nesse aspecto, o afeto é responsável por possibilitar desvios nas histórias dos indivíduos, porque o encontro de corpos produz efeitos singulares com respostas diferentes aos envolvidos em dado cenário e recorte temporal(99 Deleuze G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta; 2002.).

Essa relação estabelecida no ensino de enfermagem a partir da lógica dos afetos abre o diálogo para uma formação de enfermeiros que se sustenta no coletivo, caracterizada por parcerias que afloram sonhos e ampliam uma visão crítica do mundo em todos os envolvidos nessas experiências existenciais. Afetos construídos nas fissuras do hegemônico, nos seus vazios, nos seus conflitos e contradições surgem onde as respostas não estão prontas ou não são mais aceitas, onde há resistência ante o que se tem ou ante o instituído, por isso a ousadia, a criação, o fazer com o não saber, com a pergunta, com o desejo(1010 Ceccim RB, Merhy EE. Um agir micropolítico e pedagógico intenso a humanização entre laços e perspectivas. Interface[Internet]. 2009[cited 2017 Jun 11];13(Suppl-1):531-42. Available from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a06v13s1.pdf
http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a06v...
).

Ao encontrar esses fundamentos filosóficos é importante trazer para os planos prático e teórico incentivos para a formação de enfermeiros que não tenham limites para o desenvolvimento dos seus cuidados, futuros profissionais de saúde que sejam capazes de olhar e ver nos seus clientes a complexidade do ser humano expressada por desejos e necessidades básicas.

Mesmo não superando as abstratas ideias filosóficas de Deleuze e Guattari que versam sobre corpo e subjetividade, as buscas por reflexões estiveram centradas em descrições críticas a respeito de experiências de professores na formação de enfermeiros. Nas seções a seguir são consideradas as limitações e contribuições deste ensaio reflexivo para a área da enfermagem.

Limitações do estudo

Generalizar ainda não é possível. Nesse sentido, considera-se como limitação deste ensaio reflexivo o fato de as formulações discursivas terem sido produzidas a partir das análises advindas de experiências pedagógicas em dois cursos de graduação em enfermagem: um público, norteado por um currículo disciplinar; e o outro privado, orientado por um currículo integrado que utiliza metodologias ativas de ensino-aprendizagem.

À luz do texto, há que se considerar nas experiências pedagógicas do primeiro curso de graduação em enfermagem uma apropriação da sala de aula como laboratório vivo de pesquisa. Nesse contexto institucional, professores elaboram estratégias de ensinar-aprender que estimulam nos estudantes sensações muito próximas às dos clientes que recebem os cuidados de enfermagem.

Com a íntima parceria dos estudantes de graduação e pós-graduação stricto sensu, todos os protagonistas do processo formativo são instigados a sentir e pensar, olhar e ver, escutar e ouvir, refletir e escrever, como ações que transcendem o exercício específico da realização de um procedimento na área da enfermagem. Dessa forma, a inclusão do referido jogo dramático, das cenas simuladas, das modelagens e colagens apresenta como objetivos provocar o pensamento, potencializar reflexões e libertar questionamentos sobre a realidade da profissão no mundo moderno.

Para isso, destacam-se os conceitos centrais incluídos nas bases organizativas curriculares orientadoras dessas experiências pedagógicas desenvolvidas pelos professores: enfermagem, cuidado de enfermagem, processo de trabalho em enfermagem, sujeito-cidadão, saúde, processo saúde-doença, integralidade e interdisciplinaridade.

Particularmente no segundo curso de graduação em enfermagem, o que se evidencia como eixos e pressupostos estruturantes do currículo integrado são: semiologia ampliada do sujeito e da coletividade; política e gestão em saúde; ética e humanismo; construção e produção do conhecimento no domínio da enfermagem. Cabe ressaltar, ainda, que uma das principais características desse currículo diz respeito a sua organização, que parte do geral para o específico, aproximando estudantes e professores dos contextos reais em saúde.

Diante disso, as experiências pedagógicas adotadas pelos professores apontam para um contínuo movimento de reflexão sobre a formação de enfermeiros, alicerçada na integração entre o ensino e o serviço. Para isso, os estudantes são estimulados pelos professores a percorrer com os clientes a rede do SUS, como forma de produzir linhas de cuidados, narrativas de práticas e portfólios fundamentados em saberes e práticas no campo da enfermagem.

Em ambos os contextos de produção destas reflexões sobre o corpo, o que se evidencia são experiências de professores de enfermagem que ensinam em cursos de formação com currículos cujas bases organizativas e os processos de base pedagógica diferem. Daí o reconhecimento de que as subjetividades produzidas pelos corpos dos docentes estão implicadas, especialmente, nas estratégias de ensino e correntes teórico-filosóficas aplicadas no cotidiano de ensinar-aprender enfermagem. Assim, atesta-se que o caráter opinativo relacionado à formação de enfermeiros pode divergir de acordo com os contextos formadores nos quais estas experiências pedagógicas são pensadas e aplicadas.

Contribuições do ensaio reflexivo para a área da enfermagem

Como contribuição destas reflexões para o ensino da enfermagem destaca-se a discussão indissociável do processo de formação de enfermeiros e das bases filosóficas sobre corpo e subjetividade. Acredita-se que essa complexa zona de inseparabilidade conceitual é pauta prioritária para professores e gestores implicados nos modelos de formação e gestão em saúde.

Espera-se que esta análise crítica sobre as estratégias pedagógicas na sua relação subjetiva com os corpos que ensinam e aprendem o ofício de cuidar seja capaz de ampliar a forma de pensar os processos e a formação de enfermeiros. Corpos compreendidos na relação estabelecida entre o professor e o estudante de enfermagem que apresentam subjetividades encarnadas nos circulantes planos de forças, vias dos desejos e fluxos afetivos.

CONCLUSÃO

Para (não) concluir e intensificar essa abordagem filosófica no ensino e nas pesquisas de enfermagem, afirma-se: refletir sobre o corpo e a subjetividade na formação de enfermeiro envolve uma atitude de descobertas. Sim, foi preciso se equilibrar nos diagramas filosóficos de Deleuze e Guattari para assumir nestas reflexões as palavras de ordem: agenciamento, intensidades, CsO e desejos.

Toda essa terminologia foi canalizada para discursos práticos e teóricos que versam sobre a formação de enfermeiros, levando em consideração a esfera da subjetividade, sobretudo quando foram considerados os espaços relacionais dos corpos que ensinam-aprendem enfermagem e entre eles e a instância formadora.

Nessa ideia, os textos curriculares representados pelos corpos dos professores chegam aos estudantes com diferentes estratégias de aprender enfermagem. Além disso, os sentidos dos estudantes captam mensagens visuais e auditivas que podem ter relação com a sua futura atuação profissional a partir de um desejo colado em seus corpos.

Focalizando a prática de ensinar e aprender enfermagem, o que foi problematizado diz respeito à substituição dos discursos da vida, em prol de um arsenal de conteúdos que privilegiam tão somente a racionalidade científica, os mecanismos fisiopatológicos das doenças, seus sinais-sintomas e registros biológicos que desconsideram as necessidades básicas dos clientes.

Para enfrentar isso, foram ilustrados jogos dramáticos, cenas simuladas, colagens, modelagens e uso de espaços geomíticos utilizados por professores quando ensinam enfermagem no interior de um currículo disciplinar em uma universidade pública. Somam-se a isso as experiências pedagógicas desenvolvidas pelos docentes no currículo integrado de uma faculdade privada, as quais se canalizaram para a libertação de subjetividades a partir de narrativas de práticas, desenvolvimento de linhas de cuidados e apresentação de portfólios vivos. Cabe sublinhar que todas essas estratégias pedagógicas foram capazes de (re)criar os corpos dos professores e libertar as mentes dos estudantes de enfermagem no interior dos espaços geometrizados das universidades.

Com a certeza do inacabado, acredita-se que estas formulações discursivas possam contribuir com os processos de ensino-aprendizagem vivenciados em diversos contextos e beneficiar as posturas dos professores para o exercício de uma prática de enfermagem em que os sujeitos-clientes do cuidado e a profissão hoje e amanhã merecem.

Nessa orientação, é fundamental estimular pesquisas interventivas com os referenciais filosóficos aqui assumidos para, assim, pensar a formação de enfermeiros que seja capaz de desmistificar o corpo do professor como único e exclusivo detentor do saber, colocando todos os envolvidos na cena do ensino como protagonistas ativos da produção de conhecimento científico no domínio da enfermagem.

REFERENCES

  • 1
    Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - Volume II. Rio de Janeiro: editora 34; 1995.
  • 2
    Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Rio Grande do Sul: Sulina; 2006.
  • 3
    Japiassú H, Marcondes D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006.
  • 4
    Meneghetti FK. O que é um Ensaio-Teórico. RAC [Internet]. 2011[cited 2017 Jun 11];15(2):320:32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2a10.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2a10.pdf
  • 5
    Solano LC, Germano RM, Valença CN, Malveira FM. O corpo no processo ensino-aprendizagem a partir do paradigma da complexidade. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 11];20(3):399-403. Available from: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/1230/2892
    » http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/1230/2892
  • 6
    Tavares R, Figueiredo NMA. Arte e saúde: experimentações pedagógicas em enfermagem. São Caetano do Sul: Yendis; 2009.
  • 7
    Deleuze G, Guattari F. O Anti - Édipo. São Paulo: Editora 34; 2010.
  • 8
    Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; 1996.
  • 9
    Deleuze G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta; 2002.
  • 10
    Ceccim RB, Merhy EE. Um agir micropolítico e pedagógico intenso a humanização entre laços e perspectivas. Interface[Internet]. 2009[cited 2017 Jun 11];13(Suppl-1):531-42. Available from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a06v13s1.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a06v13s1.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2017
  • Aceito
    18 Nov 2017
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br