A identidade profissional da enfermeira na percepção de usuários da Atenção Básica

RESUMO

Objetivos:

compreender a percepção de usuários da Atenção Básica sobre a identidade profissional da enfermeira.

Métodos:

trata-se de um estudo exploratório, descritivo, transversal e de abordagem quantitativa norteado pela ferramenta STROBE. A amostra consistiu em 94 usuários agrupados de acordo com a cobertura de Estratégia Saúde da Família.

Resultados:

a identidade da enfermeira idealizada pelos participantes remonta ao passado da profissão. Os sujeitos, em 81,9%, vincularam o gênero feminino à profissão. Do total, 63,8% acreditavam haver subordinação da enfermeira, dos quais 90% entendiam subordinação aos médicos. A análise da percepção sobre atividades de responsabilidade da enfermeira revelou o predomínio de atividades assistenciais e não privativas.

Conclusões:

os achados indicam consciência parcial sobre a identidade e papel da enfermeira na Atenção Básica. Os principais déficits relacionaram às atribuições dessa profissional. A apropriação do papel da enfermeira foi maior na população com cobertura pela Estratégia Saúde da Família.

Descritores:
Enfermeiras e Enfermeiros; Papel do Profissional de Enfermagem; Prática Profissional; Atenção Primária à Saúde; História da Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to understanding the perception of Primary Health Care users about the professional identity of nurse.

Methods:

this is an exploratory, descriptive, cross-sectional and quantitative study, using the STROBE instrument. The sample included 94 users grouped according to the Family Health Strategy coverage.

Results:

the idealized identity of nurses dates back to the past of the profession. The subjects, in 81.9%, associate the female gender to the profession. 63.8% of them believed that the nurse is a subordinate, and from these, 90% believed they were subordinate to physicians. The analysis of the perception of the activities under responsibility of the nurse showed the predominance of assistance activities that are not exclusive to them. Conclusions: the findings indicate partial awareness about the identity and the role of nurses in Primary Health Care. The main deficits are related to the competences of this professional. The understanding of the role of the nurse was higher in the population under the coverage of the Family Health Strategy.

Descriptors:
Nurses; Nurse’s Role; Professional Practice; Primary Health Care; History of Nursing

RESUMEN

Objetivos:

comprender la percepción de usuarios de la Atención Primaria sobre la identidad profesional de la enfermera.

Métodos:

estudio exploratorio, descriptivo, transversal y abordaje cuantitativo norteado por la STROBE. Muestreo consistió en 94 usuarios agrupados de acuerdo con la cobertura de Estrategia de Salud Familiar.

Resultados:

identidad de la enfermera idealizada por los participantes remonta al pasado de la profesión. En 81,9%, vincularon el género femenino a profesión. Del total, 63,8% acreditaban haber subordinación de la enfermera, de los cuales 90% entendían subordinación a médicos. Análisis de la percepción sobre actividades de responsabilidad de la enfermera reveló el predominio de actividades no privativas y de cuño asistencial.

Conclusiones:

hallados indican consciencia parcial sobre la identidad y papel de la enfermera en Atención Primaria. Principales déficits relacionaron a atribuciones de esa profesional. Apropiación del papel de la enfermera fue mayor en la población con cobertura por la Estrategia de Salud Familiar.

Descriptores:
Enfermeras y Enfermeros; Rol de la Enfermera; Práctica Profesional; Atención Primaria de Salud; Historia de la Enfermería

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 foi denominado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Conselho Internacional de Enfermeiros como o Ano Mundial da Enfermagem, em celebração ao bicentenário de nascimento de Florence Nightingale e pela conclusão da campanha internacional Nursing Now, que objetivou avanços para a maior valorização e empoderamento dos profissionais deenfermagem(¹).

Ainda que seja a maior força de trabalho na saúde(²-³), a necessidade de valorização e de fortalecimento da enfermagem sempre estiveram como pauta prioritária para a categoria. Ainvisibilidade social assombra os profissionais de enfermagem ao longo de todos os séculos de existência e é uma das causas do baixo reconhecimento e status social(⁴).

A identidade de uma profissão é um fenômeno relacional multicondicionado e é produto de construção social(⁵-⁶). O exercício da profissão (o trabalho), o percurso histórico bem como a memória social atribuída aos sujeitos que a desempenham são elementos substanciais à estruturação do ideário sobre uma profissão.

A identidade da enfermagem, em especial da enfermeira, possuí uma série de atravessamentos e estereótipos que envolvem o histórico da profissão, a perspectiva de gênero, oexercício da profissão por categorias de diferentes níveis de escolaridade (enfermeira, técnica de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira/obstetriz(²,⁷)), além do modo como o trabalho na saúde foi estruturado no decorrer dos séculos — centrado, predominantemente, na figura do médico, com atribuição de papel coadjuvante às demais profissões(⁴-⁶,⁸).

No Brasil, a história da enfermagem moderna se funde com a trajetória da saúde pública e instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), ao passo que os triunfos e os obstáculos vivenciados por ambos são partilhados(²). O alvorecer da Atenção Básica (AB) como alicerce do SUS e como cenário de reorientação do modelo assistencial em saúde também trouxe implicações para o papel profissional e (re)construção identitária da enfermeira, considerando a reorganização da relação usuário-enfermeira, com maior proximidade, bem como o incremento no rol de práticas(¹-³,⁹-¹²).

A AB ocorre, preferencialmente, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), que se opõe ao modelo ambulatorial histórico e hegemonicamente estabelecido. As equipes de ESF produzem cuidado tendo como principais diretrizes a longitudinalidade, a territorialização e o cuidado centrado no sujeito, família e comunidade(¹⁰-¹³). A enfermeira é figura fundamental dentro da ESF, compondo as equipes mínimas, juntamente com técnico de enfermagem, agentes comunitários de saúde e médico(³,⁷,¹¹-¹⁴).

Dentre as numerosas responsabilidades assistenciais, administrativo-gerenciais e educativas conferidas à enfermeira na ESF(³,⁵), destacam-se a consulta de enfermagem (CE) e a visita domiciliar, atividades que reforçam a autonomia(⁶,¹³) e afetam a relação com os sujeitos, família e comunidade e, portanto, influenciam a imagem percebida sobre essa profissional(¹⁴-¹⁷).

Entretanto, a AB tem diferentes arranjos, com diferentes condições de acesso e níveis de resolutividade, e isso faz com que os seus usuários apresentem distintas experiências e maneiras de apropriação/consumo dos serviços ofertados. Logo, a forma como a AB opera pode afetar as relações e o vínculo entre usuários e profissionais(¹²-¹³), modulando, por consequência, a imagem subjetivamente construída sobre estes.

Dessa forma, considerando o protagonismo da enfermeira na AB e a potencialidade da ESF para (re)configuração identitária dessa profissional(⁶,¹³), ainda que em um cenário de baixa valorização e invisibilidade social(²,⁴-⁵,¹⁵-¹⁷), este estudo procura explorar o ideário social vinculado à imagem, identidade e papel profissional da enfermeira na narrativa de usuários da Atenção Básica, tendo como recorte a cobertura de ESF. Poucos estudos têm se debruçado sobre como a população que utiliza serviços de cuidados primários enxerga e percebe a enfermeira.

OBJETIVOS

Compreender a percepção de usuários da Atenção Básica sobre a identidade profissional daenfermeira.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Grande Rio Professor José de Souza Herdy - Unigranrio, conforme preconiza a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes foram esclarecidos dos objetivos da pesquisa e assinaram prévia e voluntariamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Osresultados deste estudo são um recorte inédito da pesquisa “A identidade e a representação social do enfermeiro na percepção da população usuária de um serviço público de saúde”, realizada no âmbito do curso de graduação em Enfermagem da Universidade do Grande Rio Professor José de Souza Herdy.

Tipo de estudo

Este é um estudo de natureza quantitativa, do tipo exploratório, descritivo e transversal. Seguindo a perspectiva de Prodanov e Freitas(¹⁸), a escolha pela abordagem quantitativa para exploração e descrição do objeto em análise decorre da possibilidade que este enfoque oferece para transformação das percepções em dados numéricos, objetivos, diretos e facilmente reprodutíveis. Utilizou-se da ferramenta Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) para delineamento.

Fundamentação teórica

Este estudo tem como fundamentação teórica a sociologia das profissões, proposta por Eliot Freidson. Esse teórico tem contribuído com o embasamento de vários estudos atuais sobre a autonomia e identidade das profissões em saúde, em especial da enfermagem(¹⁹-²¹). Na perspectiva do autor, são trabalhados aspectos de autonomia, status social, expertise/conhecimentos próprios e autorregulação(²⁰). Uma profissão reconhecida é aquela que tem escopo teórico-científico próprio, lugar/objeto de trabalho definidos, ideal de serviço e organização de categoria. Tais pressupostos guiaram a construção do roteiro de coleta de dados (questionário) e possibilitaram a discussão ampliada dos resultados.

Cenário e período

O cenário do estudo foi um Centro Municipal de Saúde (CMS) da rede de Atenção Básica do município de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro (RJ). A unidade em questão atendia munícipes de dois distritos caxienses (distritos de Imbariê e Xerém) e prestava assistência em clínica médica, saúde da mulher, puericultura e saúde mental, além dos programas de hipertensão, diabetes, tuberculose e hanseníase. O serviço não contava com equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF) e atuava como um ponto de atenção que integrava as ações da ESF para os usuários cobertos e promovia acesso em cuidados primários de saúde aos usuários não cobertos pela ESF. Oestudo foi realizado entre fevereiro e julho de 2016.

População e amostra: critérios de inclusão e exclusão

A população do estudo foi composta por usuários do CMS, cenário da pesquisa, e que passaram por consulta de enfermagem no período de coleta de dados. A amostragem foi por modalidade não probabilística e por conveniência, na qual os usuários que estavam disponíveis nos períodos em que os pesquisadores estavam presentes foram convidados com base nos seguintes critérios de inclusão: ter interesse voluntário em participar da pesquisa, possuir idade maior ou igual a 18 anos e menor que 86 anos, ser coberto por serviços de Atenção Básica, ter passado por alguma consulta promovida por enfermeira na Atenção Básica. Os critérios de exclusão foram: incapacidade de responder ao instrumento de pesquisa e recusa a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Foram abordados 95 usuários, e todos aceitaram participar do estudo. Houve a perda de um questionário por estar ilegível. Portanto, a amostra final contou com 94 sujeitos, o equivalente a 98,9% de respostas. Os sujeitos foram agrupados entre os “cobertos pela Estratégia Saúde da Família” (47sujeitos) e os “não cobertos pela Estratégia Saúde da Família” (47 sujeitos), considerando a hipótese de que a enfermeira exerceria papel diferenciado dentro da ESF, o que afetaria a percepção dos usuários sobre a identidade dessa profissional. O cenário de coleta de dados, um CMS, foi propício a essa tarefa, pois oferecia alcance privilegiado de sujeitos dos gruposestudados.

Protocolo do estudo: coleta e análise de dados

A coleta de dados ocorreu por meio de questionário estruturado autoaplicável, elaborado pelos autores. O questionário foi composto de perguntas fechadas com dados demográficos, como sexo, faixa etária e escolaridade, e 12 questões sobre a percepção do usuário em relação à enfermeira. Estas foram definidas tendo por base uma revisão narrativa de literatura sobre o objeto da pesquisa e os pressupostos da sociologia das profissões; foram estruturadas como múltipla escolha e agrupadas nas seguintes temáticas: idealizações em relação à identidade e perfil da enfermeira; percepções sobre a inserção e papel da enfermeira na equipe de enfermagem e na equipe de saúde; sentimentos e concepções sobre a consulta de enfermagem e sobre as ações realizadas pela enfermeira dentro dos serviços de saúde.

O questionário foi testado (pré-teste) com antecedência, com dez usuários na unidade de saúde da pesquisa, para avaliar a clareza dos termos utilizados, bem como a quantidade e ordem das perguntas. O resultado do pré-teste não foi utilizado para fins de publicação.

A análise dos dados foi realizada por meio do software Statistical Package for the Social Sciences 20 (SPSS^® Statistics), por meio do qual foram estabelecidas frequências absolutas e relativas (percentuais), média e desvio-padrão entre as principais variáveis nos grupos. Nadiscussão, houveinferência dos dados à luz da sociologia das profissões, que possibilitou compreensão da identidade, autonomia e exercício profissional da enfermeira. Os números, que não representam valores vazios, permitiram uma análise “paisagística” da realidade atualmente vivenciada pela enfermagem, com o levantamento de discussões ampliadas.

RESULTADOS

Do total de participantes (n = 94), 84% eram mulheres. A distribuição do gênero feminino foi maior em ambos os grupos: nos cobertos pela ESF, as mulheres responderam por 85,1% do total; e naqueles não cobertos pela ESF, a representação foi de 83%.

Os usuários que completaram somente o ensino fundamental foram 61,7% no grupo não coberto pela ESF, enquanto, no grupo coberto pela ESF, foram 42,6%. No grupo com cobertura de ESF, 57,4% dos sujeitos estudaram, no mínimo, o ensino médio. A faixa etária mais presente no serviço foi a de usuários com idade entre 46 e 55 anos. No grupo coberto pela ESF, os adultos jovens, de 18 a 35 anos, corresponderam a 42,5%.

Sobre a imagem da enfermeira, conforme a Tabela 1, ambos os grupos vincularam o gênero feminino à profissão, sendo que dentro do grupo não coberto pela ESF, essa vinculação foi superior. Nesse grupo, os usuários que também desconheciam ou que negavam a existência de diferenças nas atividades entre os profissionais da equipe de enfermagem foi superior. Ainda assim, a percepção de que a enfermeira é uma profissional de nível superior foi elevada nos dois grupos.

Os participantes, em 63,8% das vezes, acreditaram haver subordinação da enfermeira a algum profissional. No grupo não coberto pela ESF, a percepção sobre subordinação ocorreu em 70,2%. Outro aspecto visualizado na Tabela 1 é que o processo de trabalho da enfermeira também foi entendido como hierarquicamente inferior ao trabalho dos médicos, com a percepção de que a enfermeira é mais subordinada aos médicos do que à chefia de enfermagem.

Os participantes elencaram, ainda, alguns traços vinculados à identidade e ao perfil da enfermeira (Figura 1), segundo a frequência nos grupos.

A Figura 2 apresenta características vinculadas pelos participantes ao perfil profissional da enfermeira, em que se destacam a competência, o conhecimento técnico e científico e a disponibilidade.

A percepção sobre as atividades pelas quais a enfermeira seria responsável evidenciou maior referência àquelas como o cuidado de feridas, banho no leito em pacientes acamados, administração de medicamentos e cumprimento de ordens médicas. A Figura 3 expõe estas e outras atividades citadas pelos participantes da pesquisa, segundo a frequência absoluta.

Tabela 1
Idealizações da população estudada sobre imagem e perfil da enfermeira, em função da cobertura de Estratégia Saúde da Família, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016

Percepções	Cobertos pela Estratégia Saúde da Família		Não cobertos pela Estratégia Saúde da Família		Total
	n	%	n	%	n	Média	DP	%
imagem da profissão
Feminina	37	78,7	40	85,1	77	38,5	2,1	81,9
Neutra	7	14,9	4	8,5	11	5,5	2,1	11,7
Masculina	3	6,4	3	6,4	6	3	0	6,4
Diferença nas atividades da equipe de enfermagem
Sim	29	61,7	23	48,9	52	26	4,2	55,4
Não sei	7	14,9	11	23,4	18	9	2,8	19,1
Não	11	23,4	13	27,7	24	12	1,4	25,5
Escolaridade da enfermeira
Nível superior	40	85,1	33	70,2	73	36,5	4,9	77,7
Nível médio	6	12,8	10	21,3	16	8	2,8	17,0
Nível fundamental	1	2,1	4	8,5	5	2,5	2,1	5,3
Hegemonia das profissões na saúde
Sim	16	34,0	17	36,2	33	16,5	0,7	35,1
Não sei	6	12,8	6	12,8	12	6	0	12,8
Não	25	53,2	24	51,1	49	24,5	0,7	52,1
Subordinação da enfermeira
Sim	27	57,4	33	70,2	60	30	4,2	63,8
Não sei	6	12,8	3	6,4	9	4,5	2,1	9,6
Não	14	29,8	11	23,4	25	12,5	2,1	26,6
Profissional a quem a enfermeira é subordinada
Médico	23	85,2	31	93,9	54	27	5,7	90,0
Chefia de enfermagem	4	14,8	2	6,1	6	3	1,4	10,0

• n - frequência absoluta; DP - Desvio padrão.

Figura 1
Atributos associados à identidade da enfermeira pela população participante, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016

Figura 2
Características associadas ao perfil da enfermeira pela população participante, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016

A consulta de enfermagem foi um dos domínios explorados neste estudo. Conformemencionado na Tabela 2, o percentual de usuários que se sentiram confortáveis e muito confortáveis com a ideia de serem consultados por enfermeiras foi de 34,1%; e 41,5% demonstraram-se desconfortáveis ou muito desconfortáveis. O grau de conforto com a CE foi maior no grupo coberto pela ESF.

O sentimento de segurança durante a CE foi relatado por 54,2% dos sujeitos, considerando os que se sentiram seguros e muito seguros. Novamente o grupo coberto pela ESF apresentou maior sentimento de segurança ao serem consultados por enfermeiras. O sentimento de satisfação esteve presente em 56,4%. Nesse aspecto, a maioria dos sujeitos, em ambos os grupos, referiu satisfação, mas um menor grau de satisfação com a CE esteve presente no grupo não coberto pela ESF.

Figura 3
Percepção dos participantes sobre as atividades de responsabilidade da enfermeira, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016

Tabela 2
Percepções sobre a consulta de enfermagem em função da cobertura de Estratégia Saúde da Família, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016

Percepções sobre a consulta de enfermagem	Cobertos pela Estratégia Saúde da Família		Não cobertos pela Estratégia Saúde da Família		Total
	n	%	n	%	n	%
Sentimento de conforto com a ideia
Muito confortável	8	17,0	4	8,5	12	12,8
Confortável	10	21,3	10	21,3	20	21,3
Não me sinto confortável	15	31,9	14	29,8	29	30,9
De maneira nenhuma	5	10,6	5	10,6	10	10,6
Não posso avaliar	9	19,1	14	29,8	23	24,5
Sentimento de segurança durante a consulta de enfermagem
Muito seguro	11	23,4	7	14,9	18	19,1
Seguro	17	36,2	16	34,0	33	35,1
Não me sinto seguro	11	23,4	17	36,2	28	29,8
De maneira nenhuma	3	6,4	5	10,6	8	8,5
Não posso avaliar	5	10,6	2	4,3	7	7,4
Satisfação após a consulta de enfermagem
Muito satisfeito	12	25,5	12	25,5	24	25,5
Satisfeito	15	31,9	14	29,8	29	30,9
Não satisfeito	9	19,1	16	34,0	25	26,6
De maneira alguma	3	6,4	3	6,4	6	6,4
Não posso avaliar	8	17,0	2	4,3	10	10,6

• n - frequência absoluta.

DISCUSSÃO

Historicamente a imagem idealizada da enfermeira é atravessada pelo recorte de gênero, nãosendo possível pensar numa figura da enfermagem, aqui englobando toda a categoria, semvinculação às mulheres. Neste estudo, isso não foi diferente, considerando que 81,9% da população vinculou o gênero feminino ao profissional de enfermagem de nível superior. E, de fato, a enfermagem é uma profissão feminina, que foi construída por mulheres e que, majoritariamente, é realizada por mulheres(²-³,⁵).

No Brasil, dados da Pesquisa Perfil da Enfermagem(²²) evidenciam que 86,2% dos profissionais de enfermagem de nível superior são mulheres. Cabe destacar que, apesar de estar em curso, desde meados de 1990, um processo de maior entrada de homens numa atividade que até os anos 1980 era predominantemente feminina(²³), a enfermagem apenas se firma como profissão com o trabalho pioneiro e revolucionário de mulheres. No plano mundial, Florence Nightingale(⁸,²⁴) e, no plano nacional, Anna Nery, despontam como personalidades históricas notáveis e influentes, até os dias atuais, no ideário social sobre as enfermeiras.

Entretanto, como se vive numa sociedade estruturalmente machista e patriarcal, o trabalho realizado por mulheres por muito tempo não foi reconhecido como uma ocupação, sempre obtendo baixa valorização social e financeira(⁵,²⁵). O trabalho da enfermeira também sofre esse atravessamento, especialmente por ter um objeto de trabalho, o cuidado, representado como uma atividade feminina — já que, por tempos, acreditou-se que apenas as mulheres reuniam características compatíveis para a sua execução —, além do fato de que, em seu percurso histórico, sofreu com a falta de cientificidade e profissionalização(¹⁵,²³-²⁸).

O percentual dos sujeitos que negaram ou que desconheciam a existência de diferenças nas atividades da equipe de enfermagem é outro tópico que merece destaque, considerando que correspondeu a 44,6% da amostra. Embora seja habitual que qualquer profissional da enfermagem seja chamada/o de enfermeira/enfermeiro pela população(¹⁵), as atividades de enfermagem têm diferenças. Estas são baseadas no nível de complexidade e na habilitação técnica e legal de cadaprofissional(⁴-⁵).

Esse desconhecimento pelos usuários dos serviços de saúde sobre as diferenças dos profissionais que compõem a enfermagem é destacado também em trabalhos na literatura(¹⁴-¹⁷,²³,²⁸-³⁰). Alguns estudos apontam que esse desconhecimento também parte da própria equipe de enfermagem e dos demais profissionais da equipe de saúde(²,²⁸-²⁹). Além dessa falta de apropriação sobre quem são os profissionais de enfermagem, há, também, uma visão social obnubilada sobre suas atribuições e competências. O International Council of Nurses postula que o título de enfermeira deve ser protegido e reservado a quem está habilitado legalmente a exercer a enfermagem de nível superior como profissão(³¹).

O desconhecimento das atribuições e competências da enfermeira pode estar relacionado à falta de informação sobre o exercício da profissão(⁵,²⁶,²⁸-²⁹), o que, também, deixa margem para a incredibilidade, resultando em inseguranças e insatisfações por parte do usuário. Mesmo com a evolução da profissão da fase empírica para a fase técnico-científica, os usuários desconhecem a enfermeira como líder da equipe de enfermagem, capaz de avaliar e tomar decisões importantes.

Ainda que haja esse desconhecimento social, a análise sobre a percepção de escolaridade da enfermeira revelou um contraste no qual os participantes reconhecem que essa profissional detém nível superior, mas, ao mesmo tempo, entendem que ela é subordinada hierarquicamente aos médicos. Na visão desses sujeitos, a enfermeira está mais subordinada aos médicos do que a alguma chefia deenfermagem.

Na AB e especificamente na ESF, embora a enfermeira desempenhe suas atividades nucleares com maior autonomia profissional(⁶,²⁸-²⁹), ela também é incumbida de atividades de campo, que não são de responsabilidade exclusiva de nenhum profissional(³,¹⁴). Ademais, aconsulta de enfermagem na APS é utilizada como mecanismo de “desafogamento” à agenda médica(²⁹), fatores que são precedentes para a construção de uma identidade pouco definida(⁶,¹⁴,²⁶), especialmente sob o ponto de vista do usuário. Isso é vivificado quando a população coberta pela ESF, aqui estudada, da qual se esperaria maior domínio sobre o perfil da enfermeira, atribuiu-lhe mais traços como a subserviência e submissão do que a liderança.

Na atual crise social e sanitária associada a pandemia da COVID-19, alguns municípios brasileiros promoveram maior precarização e desvalorização do trabalho da enfermeira, seja reservando o uso de máscaras com maior proteção para os médicos(³²), seja oferecendo o regime de voluntariado aos profissionais de enfermagem, enquanto haveria remuneração para os médicos, seja até mesmo acirrando disparidades nos valores de remuneração — por exemplo, houve município que ofereceu remuneração pela hora trabalhada 400% superior para médicos, em detrimento de outros profissionais de nível superior, inclusive as enfermeiras(³³). Reverbera-se, assim, a percepção de que o trabalho da enfermagem seria ínfero, subordinado ao trabalho médico e aconteceria por caridade ou bondade, tal como percebido pela população participante.

Nos dois grupos aqui estudados, a bondade e caridade foram atributos associados ao perfil da enfermeira. Parte dos atributos remonta ao passado da enfermagem, na fase empírica, enquanto ainda não era uma profissão com conhecimentos científicos, mas que seguem vívidos no imaginário social atual. E vale dizer que as mídias têm papel importante na perpetuação desse ideário(¹⁵-¹⁷,³⁴).

Os atributos mencionados para a delimitação da imagem da enfermeira evidenciaram a valorização de determinados traços ligados à beneficência para o cuidado de outrem, em um perfil de cuidadora dócil e submissa(¹⁶-¹⁷). De acordo com as características mais estimadas pela população ao analisar o perfil profissional da enfermeira, também se observa que os usuários são exigentes e se preocupam com a qualidade final das ações dessa profissional, ao estimarem traços como a competência e o conhecimento técnico e científico.

O cuidado de feridas foi a atividade de responsabilidade da enfermeira mais citada pelos grupos estudados. Este achado segue de encontro a trabalhos na literatura em outras realidades que descrevem a assistência à pessoas portadoras lesões de pele e o conhecimento sobre coberturas especiais como áreas de expertise profissional da enfermeira com notável reconhecimento nacional e internacional(³⁵).

Sobre as ações desempenhadas pela enfermeira, aquelas de maior complexidade foram as menos referidas, revelando descrença na capacidade técnica da profissional para isso. Novamente se demonstrou a influência do histórico da profissão na percepção dos sujeitos participantes, que julgaram as ações baseando-se em concepções retrógadas sobre a habilitação da enfermeira. Ações relevantes respaldadas pela lei do exercício profissional(⁷), por resoluções do Conselho Federal de Enfermagem(¹⁰,¹²), por políticas nacionais(¹¹) e por programas do Ministério da Saúde foram as menos escolhidas, logo despercebidas e desconhecidas pelos usuários.

Há um contrassenso interessante ao analisar, de modo conjunto, as características associadas ao perfil e às ações que a enfermeira pode desempenhar: a população acredita que a enfermeira, mesmo sendo competente e detendo conhecimento técnico e científico, não estaria apta a dirigir serviços de saúde, realizar consultas ou prescrever medicamentos. O estigma social de auxiliar/ subserviente contribui com esse ideário(¹⁵-¹⁷,²³).

O estudo das atividades de responsabilidade da enfermeira também permitiu corroborar que os grupos participantes não têm total compreensão sobre o papel da enfermeira dentro da equipe de enfermagem e nos serviços de atenção à saúde, tendo em vista que atividades assistenciais elementares, não privativas e passíveis de delegação foram as mais elencadas. Embora caibam à enfermeira todas as atividades de enfermagem(⁷), na divisão social do trabalho, essa profissional é a líder da equipe de enfermagem(³⁶) e lhes são atribuídas atividades assistenciais de maior complexidade(⁷,¹⁰,³⁶), além de responsabilidades gerenciais, administrativas, de ensino e de pesquisa(¹²,³⁷).

A população coberta pela ESF demonstrou maior apreensão das atividades de responsabilidade da enfermeira, em especial quanto as atividades administrativas. A população não coberta pela ESF apresentou tendência a confundir as atividades comuns à equipe de enfermagem com as privativas da enfermeira, revelando potencial de desconhecimento das atividades realizadas por esta profissional no âmbito dos serviços de saúde. Figueiredo e Peres(²⁴) descrevem que é, principalmente, por meio das atribuições desempenhadas pela enfermeira que a imagem e a identidade desta profissional são construídas.

A consulta de enfermagem (CE) é uma das principais atribuições assistenciais desempenhadas pela enfermeira na AB(¹⁰). É uma atividade capaz de reconfigurar a identidade e evidenciar o papel profissional, por meio da interação com os sujeitos e comunidade. A CE é atribuição privativa da enfermeira e é prevista na Lei do Exercício Profissional da Enfermagem desde 1986(⁷), todavia, após quase 35 anos, não é naturalizada no ideário social(²⁸).

No presente estudo, a CE foi uma das atividades realizadas pela enfermeira menos referidas pelos participantes, mesmo sendo considerada a atividade assistencial de maior destaque nos serviços de cuidados primários(¹⁰). Todos os sujeitos participantes passaram por consulta de enfermagem anterior ao convite para participação, contudo a maior parte ainda acredita que esta não seja uma ação de responsabilidade da enfermeira. A educação em saúde, outra relevante função da enfermeira na AB no âmbito da promoção da saúde(¹⁰-¹¹), não foi descrita, podendo revelar que estas são práticas pouco comuns nos serviços de saúde frequentados pelos participantes do presente estudo.

A análise da percepção dos grupos sobre a CE revelou sentimentos de desconforto com a ideia, segurança durante a consulta e satisfação ao término da consulta. Embora os dois grupos tenham percepções aproximadas, no grupo coberto pela ESF houve uma percepção mais clara da realidade, que pode estar associada à habitualidade com a CE no âmbito do acompanhamento longitudinal. No entanto, cabe pontuar a necessidade de maior apropriação por parte dos usuários sobre o papel da consulta de enfermagem e da enfermeira nos serviços de cuidados primários.

A satisfação com a CE foi referida por 56,4% dos participantes. Mesmo no grupo coberto pela ESF, o grau de satisfação não foi elevado (57,4%). Em contrapartida, outro estudo(³⁸) realizado com gestantes em acompanhamento pré-natal revelou 84,3% de satisfação com a CE, ainda que as participantes revelassem resolutividade limitada.

A CE é mais do que um mero método de sistematização do processo de trabalho. É, sobretudo, uma ferramenta de ampliação da clínica que oportuniza um encontro entre sujeitos e que “não deve ser restrita a doenças, a programas de saúde e, tampouco a práticas mecanizadas e prescritivas”(⁶). Como menciona Peruzzo(⁴), ela também não é uma “subconsulta” ou um mecanismo de substituição da consulta médica, é um recurso baseado em evidências científicas com foco em resultados que possibilita, no contexto da AB, a ampliação do acesso, acolhimento, produção de vínculo e monitoramento longitudinal aos ciclos de vida(⁴,⁶,³⁸-⁴⁰).

A atuação da enfermeira na AB, junto da comunidade, abre possibilidade para a maior visibilidade das ações dessa profissional(¹²,¹⁵-¹⁷,⁴⁰) e, por consequência, oportuniza a valorização de suas ações. Mais do que o desconhecimento sobre quem é a enfermeira e quais atividades desempenha, a população também desconhece o valor dessa profissional e de suas ações nos serviços de saúde(⁶,¹⁶-¹⁷). A implantação das práticas avançadas pode ser uma estratégia para aumentar a visibilidade e valorização do trabalho da enfermeira(¹).

Limitações do estudo

Uma limitação neste estudo foi a amostra dos sujeitos na pesquisa. Como esta transcorreu em uma única unidade de saúde, os resultados indicam uma tendência, mas não uma verdade absoluta sobre a temática. O tempo de realização da coleta de dados também foi outra limitação: porse tratar de um trabalho no âmbito de um curso de graduação, levou a necessidade desse recorte temporal. Mostra-se a necessidade de replicação do estudo com maior amplitude amostral e temporal, em diferentes unidades de atenção à saúde com e sem Estratégia Saúde da Família, para, assim, descrever a imagem da enfermeira de forma mais extensiva.

Contribuições para a área da enfermagem

Mostra-se como contribuição a indicação da baixa visibilidade da enfermeira e suas funções na AB, mesmo diante da cobertura pela ESF. Desta forma, ampliam-se as possibilidades de intervenções pela própria categoria e pelos órgãos de representação profissional no sentido de elaborar estratégias de divulgação do trabalho da enfermeira à população.

Vivencia-se, nesta pandemia da COVID-19, o reforço da imagem da enfermeira “superheroína”. No cotidiano de trabalho real, ela luta com garra, mas sem poderes mágicos; lutacom embasamento técnico e científico, resiliência e competência. O imaginário da sociedade sobre o ser enfermeiro precisa ser modificado. A campanha Nursing Now para valorização e reconhecimento da enfermagem, lançada pela OMS, é apenas um dos caminhos a serem seguidos.

CONCLUSÕES

Evidenciou-se que a população tem consciência parcial sobre a identidade e papel da enfermeira na AB. Os principais déficits relacionaram-se a atribuições dessa profissional. Eaidentidade percebida pelos usuários é arraigada culturalmente em marcos históricos e sociais do passado daprofissão.

Embora a enfermeira tenha alcançado grandes progressos em seu escopo de conhecimento, com avanços técnicos, teóricos e científicos, além de incrementos na autonomia e liderança, aidentidade dessa profissional ainda é embargada por julgamentos inexatos quanto à sua capacidade e competência. Os dados demonstraram também o entendimento dos usuários de que a enfermeira exerce a função do cuidar, porém não possuí autonomia, pois sua atuação é subordinada às funções médicas, gerando assim subestimação e inferiorização da importância dessa profissional nos cenários dos serviços de saúde.

Recomenda-se a realização de novos estudos que se debrucem sobre como a população usuária de serviços de cuidados primários compreende a identidade e papel profissional da enfermeira em diferentes arranjos organizativos da AB. Diante do cenário de desmonte da ESF que se vive desde meados de 2016, reafirmado pela revisão da Política Nacional de Atenção Básica em 2017, os avanços alcançados na reorientação do modelo assistencial em saúde e na reorganização dos serviços correm riscos. A precarização do trabalho da enfermeira na AB torna-se um desfecho iminente e que trará maiores retrocessos à imagem e identidade dessa profissional.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa

EDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  25 Out 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  14 Set 2020
• Aceito
  27 Jun 2021