Open-access Vulnerabilidade em saúde das jovens transexuais que vivem com HIV/aids

RESUMO

Objetivos:  analisar a vulnerabilidade em saúde das jovens transexuais femininas que vivem com HIV/aids.

Métodos:  estudo qualitativo, descritivo e exploratório, fundamentado no referencial teórico de Representação Social e conceito de vulnerabilidade; desenvolvido com seis mulheres transexuais em um hospital de referência para HIV/aids. Analisaram-se as entrevistas individuais, gravadas e transcritas na íntegra, no software IRaMuTeQ, pela Análise de Similitude.

Resultados:  elencaram-se as categorias temáticas a partir do referencial de Ayres: 1) Processos relacionais que operam na vulnerabilidade individual ao HIV/aids; 2) Produção e reprodução da dimensão social da vulnerabilidade ao HIV/Aids; 3) Condições dadas de precarização do cuidado e o impacto da vulnerabilidade programática.

Considerações Finais:  as jovens transexuais femininas que vivem com HIV/aids vivenciam contexto de vulnerabilidade em saúde associado a falta de conhecimento e dificuldades para a efetivação do autocuidado. Evidenciaram-se representações de abjeção social e despreparo da equipe da saúde que compõe a Atenção Primária em Saúde em promover assistência qualificada para a execução do cuidado efetivo e humanizado.

Descritores: Enfermagem; Infecções por HIV; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Vulnerabilidade em Saúde; Pessoas Transgênero

ABSTRACT

Objectives:  to analyze the health vulnerability of young female transgender living with HIV/AIDS.

Methods:  qualitative, descriptive, and exploratory study, based on the theoretical reference of Social Representation and concept of vulnerability; developed with six transgender women in a reference Hospital for HIV/AIDS. We analyzed the individual interviews, recorded, and transcribed in full, in the IRaMuTeQ software by Similitude Analysis.

Results:  the thematic categories are listed based on the Ayres reference: 1) Individual dimension of vulnerability to HIV/AIDS; 2) Social dimension of vulnerability to HIV/AIDS; 3) Programmatic dimension of the vulnerability.

Final Considerations:  the young female transsexual living with HIV/AIDS experience a context of vulnerability in health associated with a lack of knowledge and difficulties for the realization of self-care. The study evidenced the representations of social abjection and unpreparedness of the health team that compose the Primary Attention in Health in promoting qualified assistance for the execution of the effective and humanized care.

Descriptors: Nursing; HIV Infections; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Health Vulnerability; Transgender Persons

RESUMEN

Objetivos:  analizar la vulnerabilidad en salud de las jóvenes transexuales femeninas que viven con VIH/sida. Métodos: estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio, fundamentado en el referencial teórico de Representación Social y concepto de vulnerabilidad; desarrollado con seis mujeres transexuales en un hospital de referencia para VIH/SIDA. Se ha analizado las entrevistas individuales, grabadas y transcritas en su totalidad, en el software IRaMuTeQ por el Análisis de Similitud.

Resultados:  se ha seleccionadas las categorías temáticas a partir del referencial de Ayres: 1) Procesos relacionales que operan en la vulnerabilidad individual al VIH/sida; 2) Producción y reproducción de la dimensión social de la vulnerabilidad al VIH/sida; 3) Condiciones dadas de precarización del cuidado y el impacto de la vulnerabilidad programática.

Conclusiones:  las jóvenes transexuales femeninas que viven con VIH/SIDA experimentan un contexto de vulnerabilidad en salud relacionado a la falta de conocimiento y dificultades para la efectuación del autocuidado. Ha sido evidenciadas representaciones de abyección social y falta de preparación del equipo de salud que compone la Atención Primaria en Salud en promover asistencia calificada para la ejecución del cuidado efectivo y humanizado.

Descriptores: Enfermería; Infecciones por VIH; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Vulnerabilidad en Salud; Personas Transgénero

INTRODUÇÃO

Evidencia-se a necessidade de perceber as mulheres transexuais jovens como cidadãs que apresentam seus direitos violados, já que essa tomada de consciência contribui no enfrentamento das vulnerabilidades preestabelecidas na sociedade. Diante disso, preconizam-se ações humanísticas para o empoderamento e protagonismo dessas pessoas mediante a superação dos estigmas, (re)construção conjunta das suas redes sociais de apoio e dos seus projetos de vida(1).

A identidade de gênero é referida como o gênero com o qual uma pessoa se identifica e se expressa, que pode divergir (transgênero) ou não (cisgênero) do gênero que lhe foi atribuído no seu nascimento, definido pelo sexo biológico. Esse conceito não prediz a orientação sexual, visto que esta consiste na vivência da sua sexualidade (heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual ou assexual). Dentre as pessoas transgêneros, há as travestis e mulheres transexuais, que, respectivamente, constroem uma expressão de gênero feminina e o reconhecimento como mulher transexual(1-3).

Existe um contexto de vulnerabilidade das mulheres trans decorrente da transmisoginia (discriminação familiar, escolar, nos serviços de saúde e penitenciário, a partir de arbitrariedades, assédios e falta de apoio, que contribuem com a busca de aquisição de renda por meio da prostituição). O Brasil está em primeiro lugar no ranking de assassinatos às travestis e transexuais: dos 331 casos de assassinatos registrados entre outubro de 2018 e setembro de 2019, a maioria ocorreu no Brasil (130), seguido por México (63) e Estados Unidos da América (30). De janeiro de 2008 a setembro de 2019, o total de casos relatados em 74 países foi de 3.314(4).

Considera-se também o grau de vulnerabilidade associado a xenofobia (a migração está associada ao bullying, violência e criminalização), racismo, sexismo, misoginia e crimes de ódio, sobretudo às mulheres transexuais que são profissionais do sexo. Nos EUA, a maioria das pessoas transgênero assassinadas são mulheres transexuais negras e/ou nativas americanas (90%). Na França, Itália, Portugal e Espanha, 65% das vítimas de assassinatos registrados eram mulheres transexuais migrantes da África e da América Central e do Sul(4).

Percebe-se a violência transfóbica no contexto de vulnerabilidade individual, social, comunitária e estrutural. A violência extrema e negação dos direitos referentes à participação cívica das pessoas transexuais (em especial, travestis e mulheres transexuais) resulta na aquisição de renda por meio do trabalho sexual(5-6). Salienta-se que o trabalho sexual oportuniza a socialização, amizade, expressão do glamour, feminilidade e aceitação, que se configuram em redes de apoio para a expressão da identidade de gênero e enfrentamento da transfobia, mas que também as expõem a riscos(1,7).

Identificaram-se, com o boom da epidemia da síndrome de imunodeficiência adquirida (aids), as associações probabilísticas do HIV com os grupos populacionais como estratégia para prevenção da doença, todavia a ideia de “grupo de risco” não foi suficiente para explicar o acometimento do HIV e só contribuiu com o “isolamento sanitário” e “morte social” de grupos estigmatizados(8).

Passou-se a considerar o “comportamento de risco” como fator preponderante para a infecção a partir das práticas sexuais do indivíduo, mas esse conceito remete à “culpabilização individual” e não considera, por exemplo, o empoderamento e o processo de pauperização da doença. Emergiu, então, o conceito de vulnerabilidade, a fim de ampliar a compreensão da susceptibilidade, que versa sobre os fatores individuais (grau de conhecimento, informações, possibilidades e interesses para aplicabilidade de ações preventivas), sociais (contexto político, econômico e social) e programáticos (instituições sociais e da saúde) na determinação social do processo saúde-doença(8). Reitera-se o enfrentamento do HIV/aids como fator de vulnerabilidade na Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), visto que o preconceito contribui com o exercício clandestino da sexualidade e com situações desfavoráveis à segurança e prevenção de doenças(9-11).

Nesse contexto, os enfermeiros não são preparados em sua formação para cuidar de pessoas transgêneros(12). Ressalta-se, entretanto, o compromisso ético e função da enfermagem em reconhecer e gerir ações de educação em saúde que considerem o contexto de vulnerabilidade das mulheres transexuais jovens que vivem com HIV. Diante disso, seguiu-se a questão norteadora: Qual o contexto de vulnerabilidade das jovens transexuais femininas que vivem com HIV/aids?

OBJETIVOS

Analisar a vulnerabilidade em saúde das jovens transexuais femininas que vivem com HIV/aids.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da UFPE (CCS/UFPE) e seguiu as normas estabelecidas pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre as diretrizes e normas que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos. Garantiu-se o anonimato das participantes; conforme solicitado, substituíram-se os nomes sociais pelo termo “Borboleta”, símbolo das mulheres transexuais que representa o processo de metamorfose, liberdade e superação.

Tipo de estudo

Estudo qualitativo, descritivo, exploratório(13), fundamentado nos referenciais teóricos e metodológicos da Teoria das Representações Sociais, proposta por Sergi Moscovici(14), e no conceito de vulnerabilidade desenvolvido por Ayres(15). O primeiro referencial versa sobre o saber construído pelo senso comum a partir dos processos de ancoragem e objetivação(14). O segundo trata da compreensão das dimensões da vulnerabilidade a partir dos aspectos individuais, sociais e programáticos(15).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

Desenvolveu-se o estudo no ambulatório de um hospital de referência para pessoas com HIV/aids, localizado na cidade do Recife, Pernambuco (PE), Brasil. Optou-se por esse local para atender ao critério de intencionalidade, visto que o referido hospital é responsável por 60% das demandas no estado de Pernambuco, além de propiciar acompanhamento multiprofissional de saúde a, em média, 3 mil pessoas por mês, principalmente indivíduos jovens e adultos(16). Assim, tal cenário reuniu características necessárias para o desenvolvimento da pesquisa ao integrar a população de interesse.

Fonte de dados

O estudo é constituído por mulheres transexuais jovens, que compuseram a amostra por meio do critério de saturação das respostas, selecionadas por inclusão progressiva. Foram observados o aprofundamento das falas e o alcance da abrangência e diversidade para a compreensão detalhada do objeto de estudo, no intuito de embasar os questionamentos elencados sem se preocupar com a generalização(17).

Entrevistaram-se seis mulheres transexuais jovens, sendo considerada a definição de “jovem” da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Ministério da Saúde(18), a saber, período que se estende dos 15 aos 24 anos de idade; contudo, para minimizar possíveis vieses, incluíram-se jovens acima dos 18 anos de idade. Os estigmas relacionados à temática podem ter limitado o quantitativo de participantes, no entanto a condução efetiva das entrevistas viabilizou a qualidade dos resultados obtidos para o alcance da saturação das respostas.

Elegeram-se as participantes por amostragem do tipo conveniência, a partir dos seguintes critérios de inclusão: ser transexual; se identificar como sendo de gênero feminino; não ser transgenitalizada; ser heterossexual; ser soropositiva para o HIV ou estar em tratamento para aids; e ter parceiros casuais. A aproximação com as participantes deu-se por intermédio da equipe multiprofissional. Excluíram-se as pessoas com deficiência auditiva, visto que a pesquisadora não apresentava domínio da Língua Brasileira de Sinais.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados no período de abril a junho 2017. Inicialmente, realizou-se o contato com a instituição para a obtenção da anuência sobre utilização do local. Esclareceu-se previamente a equipe de saúde a respeito da finalidade da pesquisa, objetivo proposto e procedimentos para a coleta de dados. O convite para integrar a pesquisa se deu na sala de espera do hospital. Uma vez aceito, conduziram-se as participantes para uma sala reservada pela instituição para realização da entrevista individual.

O roteiro da entrevista semiestruturada foi composto por três tópicos norteadores: 1) Fale-me sobre sua história de vida (infância, família, amigos, companheiros, colegas de trabalho, fatos marcantes, escola, trabalho, serviços de saúde); 2) Fale-me o que significa para você conviver com o HIV/aids; 3) Como você percebe as relações sociais no cotidiano das jovens transexuais que vivem com HIV/aids? As entrevistas, gravadas em aparelho digital, tiveram duração média de uma hora e 10 minutos, sendo transcritas e, posteriormente, submetidas à análise.

Ressalta-se que o encontro propiciou a comunicação verbal para obtenção de êxito nas informações, com aprofundamento a fim de dispor representações (agir, pensar e sentir) sob as influências da dinâmica social em grupos que vivenciam contexto de vulnerabilidade(13). Permitiu-se adentrar à construção do conhecimento e percepções, visando conhecer, com abrangência, a pessoa em meio a sua história de vida e interação social na elaboração das representações e concepções de sentido(19-20).

Análise de dados

Processou-se o corpus de análise mediante a técnica de análise lexical, com o auxílio do Software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ). Foi obtida a análise textual dos dados pelo método da Análise de Similitude, que se baseia na teoria dos grafos e permite a identificação das co-ocorrências entre as palavras mais significativas na estrutura que apresenta conexidade entre os termos; assim, obteve-se corpus textual norteado pela hierarquização entre os vocábulos e suas adjacências(21).

Validade e confiabilidade/Rigor

Assegurou-se o rigor metodológico a partir de reuniões regulares com os integrantes do grupo de pesquisa, composto por graduandos, pós-graduandos e pesquisadores, que desenvolvem estudos na área de educação em saúde, vulnerabilidades, orientação sexual e identidades de gênero nos cenários do cuidado da enfermagem. Foram discutidas as técnicas de coleta de dados, os métodos de amostragem, produção, análise e interpretação dos dados. Transcreveram-se as entrevistas no mesmo dia após a coleta dos dados para evitar possíveis perdas de informações do corpus. O processamento e análise dos dados foram viabilizados de forma congruente com a metodologia realista crítica e epistemologia construtivista que embasaram este estudo. Conduziu-se a conduta e o relato deste estudo em concordância com os Critérios Consolidados para Relatórios de Estudos Qualitativos(22 23).

RESULTADOS

Participaram do estudo seis mulheres transexuais vivendo com HIV/aids, que tinham em média 21,6 anos de idade. Referiu-se o tempo médio de diagnóstico entre 14 a 19 anos de idade e a renda familiar mensal de menos que um salário mínimo a três salários mínimos (SM/2017 = R$ 937,00). Com relação ao nível de escolaridade, duas possuíam ensino fundamental incompleto; uma, fundamental completo; duas, ensino médio completo; e uma, superior completo. Das seis mulheres, quatro trabalhavam no mercado informal como profissionais do sexo; uma, no cargo de cabelereira; e a outra, em apoio pedagógico.

Realizou-se a discussão das categorias temáticas pré-definidas, à luz do conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres, após a interpretação da conexidade entre os termos mais frequentes estabelecidos pela análise de similitude do corpus: preconceito, família, problema, depressão, infância, prostituição, mulher, transexual, gay, escola, HIV, sexo, prevenção, tratamento, preservativo, respeito, doença, exame, saúde, remédio, enfermeiro, médico, nome social, consulta, posto de saúde, trabalho, hospital.

Processos relacionais que operam na vulnerabilidade individual ao HIV/aids

Relataram-se as experiências individuais de autocuidado, conhecimentos e práticas sexuais: “Prevenir é usar camisinha, só” (Borboleta 1). Foram evidenciados os interesses e limites para a prática preventiva no cotidiano, a utilização do preservativo e os significados associados à prevenção do adoecimento: “[...] A prevenção do HIV para mim significa que estou me prevenindo de outras doenças. Me previno no sexo anal, no oral não [...]” (Borboleta 2).

Destacaram-se o contexto de trabalho sexual e limites para negociação do preservativo com os clientes: “Meus clientes não sabem que tenho HIV, alguns pedem para não usar camisinha” (Borboleta 1). Foi relatado o impacto produzido pela notícia da soropositividade do HIV associada ao grau de informações sobre a sua infecção:

[...] quando eu recebi essa notícia que eu tinha HIV/aids tudo para mim é a mesma coisa, porque o povo diz que HIV é o vírus, a aids é a bactéria, a doença, para mim é tudo a mesma coisa, você não tem cura de nenhum, a partir do momento que pega o vírus, fica com ele pelo resto de sua vida [...] (Borboleta 6)

Revelaram-se as situações psicoemocionais e materiais ligadas à rejeição e situações de violência intrafamiliar: “Eu fui criada pela minha tia até os quatorze anos, eu apanhava da minha tia para arrumar a casa, apanhava muito mesmo [...]” (Borboleta 5); “[...] Minha mãe sempre teve problema psicológico, quem me criava mais era a minha irmã mais velha, e fui estuprada pelo marido dela [...]” (Borboleta 2). Foram destacadas as relações familiares desde a infância e as dificuldades relacionadas à juventude transexual:

Minha história de vida é tão triste, minha infância só foi boa até quando minha mãe estava viva, até os meus 9 anos. Quando minha mãe morreu, foi tudo ruim [...] conheci esse mundo LGBT, comecei a me vestir como mulher, a minha família não quis me dar dinheiro para comprar roupas. (Borboleta 4)

Com 16 anos, eu já sabia que não queria ser mais homem, não queria ser mais gay, eu queria me vestir de mulher, eu queria ser transexual; foi muito difícil, foi muitas idas e vindas, saí de casa com 16 anos [...] (Borboleta 6)

Produção e reprodução da dimensão social da vulnerabilidade ao HIV/aids

A influência da identidade de gênero foi associada à falta de suporte social, político, estrutural e moral, com aquisição de renda por meio do trabalho sexual: “Meu trabalho é difícil, faço programa, é muita discriminação [...] faço programa, tenho relações sexuais, oral, anal, passivo e ativo [...]” (Borboleta 6); “Sou garota de programa, fico na esquina, espero o cliente; e geralmente eles perguntam quanto é, e eu digo que depende do que eles querem fazer, cada coisa tem um preço [...]” (Borboleta 5). As ruas e o trabalho noturno se configuram em um espaço possível para a expressão da identidade de gênero, sentimento de socialização e inclusão no mercado de trabalho, mesmo que informal:

[...] Meus clientes não sabem que tenho HIV, alguns pedem para não usar camisinha, mas eu não cedia, não gosto. Uma vez ou outra que fiz, ainda fiquei com um peso de arrependimento, por emoção, quando a coisa tá meio assim, sabe? Não deu tempo e foi isso. No grupo, é muita tiração de onda, perturbação, todo mundo fala que tem, ninguém sabe quem tem e quem não tem, aquele bate boca [...] (Borboleta 1)

[...] comecei a me vestir como mulher, a minha família não quis me dar dinheiro para comprar roupas, aí comecei a trabalhar na prostituição, peguei HIV com 14 anos [...] (Borboleta 4)

[...] há uns 6 anos atrás, 7 anos atrás, era mais difícil, e eu só achei a prostituição e que eu fiz... Quando eu me transformei em travesti, eu já fui direto para a prostituição, trabalhei na prostituição, vivi na prostituição e eu só pensava nisso, porque é um dinheiro que vem fácil, aí a gente fica feliz porque todo mês você tirando quase quatro mil, toda semana [...] (Borboleta 6)

Evidencia-se a descontinuidade do ensino profissionalizante e superior da maioria das participantes e as relações raciais que atenuam o contexto de vulnerabilidade social. A transformação dos corpos e legitimação da identidade de gênero diverge da cisnormatividade presente na sociedade, o que dificulta o acesso das pessoas transexuais ao mercado de trabalho formal:

Eu me transformei em menino, aí comecei a trabalhar, trabalhei em três empresas, sem preconceito nenhum, normal, mas me vestindo de menino, aí eu deixei o meu cabelo crescer [...] como você está vendo, meu cabelo está grande, aí eu fui procurar emprego, só que mesmo eu não me vestindo de mulher, como meu cabelo estava grande, eu não consigo arrumar emprego [...] (Borboleta 6)

[...] Tenho medo de não aguentar (emprego formal) e querer voltar (para o trabalho sexual), porque tem a questão da humilhação. Eu conversei com uma menina um dia desses, que trabalhou em uma churrascaria, e contrataram ela de novo agora. Ela tinha saído porque o gerente que era irmão do dono tava tratando ela por “ele”, tava todo cheio de preconceito para o lado dela, o tempo todo, e o dono adorava ela, todo mundo adorou ela, ela já tinha trabalhado lá e só saiu por conta dele. Eu não aguentaria essas coisas [...] (Borboleta 5)

Não consegui arrumar emprego, estou sofrendo preconceito para arrumar emprego hoje por conta do meu cabelo, como ele tá grande, e por conta que tomei muito hormônio meu corpo ainda é meio feminino, eu tenho quadril [...] (Borboleta 6)

Condições dadas de precarização do cuidado e impacto da vulnerabilidade programática

Verificou-se a dimensão programática da vulnerabilidade com ênfase na assistência em saúde, visto que se destacaram as limitações desses serviços no que se refere aos recursos humanos, materiais, éticos e assistenciais:

A área da saúde nunca tem médico, nunca tem enfermeiro, têm que ir para UPA 24 horas, quase morrendo que eles atendem ou mandam procurar o hospital [...] (Borboleta 2)

Os serviços de saúde é bem difícil, no SUS, aqui no ambulatório, o atendimento é bom, mas no posto de saúde não, aqui para marcar também demora [...] Não atendem as minhas necessidades [...] (Borboleta 3)

[...] no posto de saúde eu não vou, porque se eu sinto alguma coisa, prefiro vir para o hospital, porque tem tudo aqui, melhor do que estar indo no posto de saúde, não vou mais hoje no posto de saúde [...] (Borboleta 6)

Referenciou-se a inclusão para assistência por meio da alta complexidade, o hospital, para preferência por atendimento e busca dos remédios para tratamento do HIV/aids. Foram relatadas situações de discriminação permeada pelo desrespeito na garantia de direitos do reconhecimento do nome social. Percebem-se fragilidades institucionais de atenção à saúde:

[...] discuti com a enfermeira lá dentro porque eu fui para tomar o remédio [...] ela perguntou meu nome, disse o nome social, aí quando ela volta para pegar o papel ela me chama pelo nome de registro, aí eu corrigi ela dizendo meu nome social, aí ela disse que não, a injeção estava para outro nome, aí eu disse “olhe no final”, aí ela me pediu desculpa... Eu toda maquiada, de batom, cabelão, com roupa de mulher, aí ela deu o remédio [...] (Borboleta 5)

Aqui no ambulatório, sou bem acolhida, graças a Deus. Os profissionais me tratam direito aqui, só quando no papel tem meu nome de registro e ao lado o nome social [...] só queeles deveriam colocar o nome social em cima, quem vai ler o final para depois ler o começo? [...] Teve um dia que me chamaram pelo nome de registro, eu fiquei sentada como se nada tivesse acontecido, e continuou chamando, mesmo com o nome social ao lado marcado de amarelo [...] (Borboleta 5)

DISCUSSÃO

No ideário social, a epidemia da aids foi associada às práticas sexuais consideradas “desviantes” de determinados grupos sociais, sobretudo pessoas LGBT. Sabe-se, porém, que a aids não se situou apenas entre grupos específicos, mas se popularizou acometendo homens e mulheres, cisgênero e/ou transgênero, heterossexuais, homossexuais e bissexuais, sob diferentes facetas da vulnerabilidade e susceptibilidade ao HIV. Ressalta-se o estigma referente ao HIV/aids às mulheres transexuais, que culmina em rejeição social e representações de “abjeção” às pessoas consideradas fora dos padrões cis-heteronormativos(24).

Evidenciou-se a compreensão das vulnerabilidades às singularidades atreladas aos fatores de exposição ao HIV/aids(25). Diante disso, emergiram as dimensões individuais, sociais e programáticas à luz dos aspectos históricos e sociais, a fim de elucidar os múltiplos fatores associados ao acometimento pela epidemia(8). Referenciou-se a dimensão individual da vulnerabilidade mediante o grau de conhecimento, disponibilidade de informações e atitudes diante das dificuldades que podem interferir nas condutas protetivas(15).

Quanto às significações do HIV/aids para mulheres transexuais, elas demonstraram e reforçaram a falta da qualificação da informação sobre os riscos a que estão expostas. As verbalizações referenciam o estigma social relacionado tanto à identidade de gênero, que culmina em exclusão social, quanto à condição presente no cotidiano das mulheres transexuais de viver com o HIV, inclusive nas instituições da saúde.

Destacou-se, em outro estudo semelhante, a demanda por políticas voltadas à educação em saúde para diminuição das vulnerabilidades das mulheres transexuais no Caribe e América latina. Foi associado o baixo conhecimento das mulheres transexuais sobre HIV às menores taxas do uso de preservativo. Mais de dois terços das mulheres transexuais acreditavam que uma pessoa poderia contrair o HIV por picadas de mosquito (70,61%); 73,08% relataram que o HIV poderia ser transmitido por meio do compartilhamento de alimentos; 55,13% acreditavam que havia várias formas para transmitir/contrair o HIV; 44,87% acreditava que o HIV era transmitido apenas por sexo anal; 79,49% sabiam que o HIV poderia ser transmitido por sexo oral; e 79,49% acreditavam que aqueles com HIV morreriam em breve(26).

No tocante à rede de apoio, foram relatadas as relações familiares fragilizadas e a precarização de vínculos a respeito da escolarização e empregabilidade. Ressaltou-se que a expressão da identidade de gênero transexual culmina em negação de direitos sociais, dificuldade de inclusão no mercado de trabalho formal e preconceitos institucionais, fatores limitantes para o bem-estar e qualidade de vida. A maioria das participantes referiram a busca pelo trabalho sexual como principal fonte de renda para sobrevivência por causa das escassas oportunidades de trabalho que são ofertadas.

Observa-se o contexto de conflitos familiares em razão da expressão da identidade de gênero transexual feminina no período da juventude, que contribui com as fragilidades de vínculos de apoio e culmina na exclusão social. Foi constatado maior grau de vulnerabilidade à marginalização, em virtude da falta de suporte emocional, estrutural e financeiro da sua rede de apoio(27).

Sabe-se que a falta de apoio emocional, de serviços da saúde transespecíficos e de compartilhamento de informações tornam o contexto social das mulheres transexuais permeada por vulnerabilidades que se relacionam não só com o aspecto biomédico, mas também com uma perspectiva social e política. Deve-se focalizar uma prática de pesquisa aberta a novos “modelos interpretativos” do complexo saúde-doença-cuidado, capaz de articular métodos, estratégias e técnicas de investigação, por meio do resgate à historicidade sociopolítica relativa aos direitos humanos(28).

Compreende-se a dimensão social do impacto dos aspectos sociopolíticos e econômicos para a oferta de recursos que influenciam a determinação do processo saúde-doença(15). Em um estudo realizado com mulheres transexuais profissionais do sexo, observou-se que o uso inconsistente do preservativo, infrequentes triagens para HIV e para infecções sexualmente transmissíveis (IST) e elevado consumo de drogas durante o trabalho sexual foram mais altos se comparados a profissionais do sexo cisgênero. As mulheres transexuais profissionais do sexo possuíam maiores taxas de HIV (12,4%) e sífilis (28,3%) do que as mulheres cisgênero — respectivamente, 11,1% e 23,7%. Ressalta-se a emergente necessidade de intervenção tanto por causa do descontrole da morbidade individual quanto do alto potencial de transmissão para clientes e outros parceiros sexuais(29).

Foi evidenciada a exposição às ISTs decorrente do não uso do preservativo nas relações sexuais das profissionais do sexo a partir das formas de prevenção descontextualizadas e da barganha por parte dos clientes para a realização de fetiches sexuais, associado à precária qualidade de informação e necessidade de sobrevivência. Aspectos como baixa autoestima, medo, ansiedade, estigma, dificuldade de acesso aos serviços básicos (educação, saúde) estão relacionados diretamente à qualidade de vida das mulheres transexuais vivendo com HIV/aids, ainda mais quando se analisam os aspectos de adesão à medicação e acompanhamento nos serviços de saúde(30).

Relataram-se as práticas com os clientes de sexo oral, anal, receptivo e ativo permeadas por discriminação e subordinação às exigências deles. Corroborou-se, assim, o estudo realizado na China com 220 trabalhadoras sexuais transgênero em que se evidenciou uma elevada prevalência do HIV a partir de práticas sexuais desprotegidas. Referiu-se a alta prevalência do sexo anal sem preservativo com parceiros sexuais, não clientes, do sexo masculino(31).

Em outro estudo prospectivo realizado com 199 mulheres transexuais de Nova York, foi observada a relação da raça/cor na infecção pelo HIV. As mulheres transexuais negras e hispânicas estatisticamente estavam mais envolvidas no trabalho sexual e mais expostas ao sexo anal receptivo desprotegido, com maior susceptibilidade às ISTs(32).

Foram relatadas as representações de abjeção(24)que propiciam a exposição à violência psicológica, verbal, física e sexual, além das precárias experiências individuais de autocuidado, conhecimentos e práticas sexuais, baseadas na incipiência do conhecimento sobre prevenção do HIV/aids. O contexto social excludente foi destacado como motivo do trabalho sexual para aquisição de renda, no entanto as possibilidades para práticas sexuais seguras se tornaram limitadas.

Em estudo realizado no Canadá com as mulheres transexuais profissionais do sexo, constataram-se experiências de violência provocadas por clientes em virtude da transmisogenia. A violência transfóbica caracteriza as experiências do trabalho sexual com maior risco, em comparação com profissionais do sexo cisgênero. Por vezes, o corpo das mulheres transexuais representa “produto de comercialização” para satisfação sexual dos homens cisgênero(33).

A dimensão programática consiste na capacidade resolutiva dos serviços de saúde para minimizar problemas por meio da implementação de políticas e ação dos setores/atores sociais(15). Evidenciou-se a dimensão programática da Atenção Primária à Saúde e as fragilizações na prestação de cuidados direcionados às especificidades das mulheres transexuais que vivem com HIV/aids.

As participantes deste e de outro estudo realizado na República Dominicana verbalizaram as limitações para inclusão nos serviços de saúde de base comunitária. Destacou-se, em estudo semelhante, que 73,08% das trabalhadoras do sexo transgênero relataram dificuldade em obter atendimento médico(26).

Sendo assim, são imprescindíveis esforços da saúde pública para detecção e tratamento das infecções a partir da implementação da política de redução de danos e da educação em saúde acerca do preservativo em todas as relações sexuais, além de proporcionar maior acesso à Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) para prevenção do HIV(29). Reitera-se a emergência por outros estudos que versem sobre estratégias de saúde de base comunitária e práticas de justiça social para o enfrentamento dos riscos e mortes (físicas e simbólicas), da invisibilidade e estigma às mulheres transexuais(24).

Limitações do estudo

Acredita-se que a temática abordada está inserida em contexto social permeado por preconceitos e estigmas, o que pode ter limitado o quantitativo de participantes, a verbalização e colaboração das mulheres transexuais com a pesquisa.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Este estudo embasará a educação em saúde, a fim de proporcionar a articulação de informações necessárias para práticas de saúde consideradas seguras, de forma horizontal. Nesse sentido, considerará aspectos já presentes no contexto das mulheres transexuais jovens e, com base nesse saber, aproveitará a oportunidade de reflexão dessas pessoas a partir da sua própria vivência para que se possam adotar abordagens sexuais seguras e promover a prevenção das ISTs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As jovens transsexuais femininas que vivem com HIV/aids vivenciam contexto de vulnerabilidade em saúde associado a conhecimentos insuficientes e dificuldades para a efetivação do autocuidado. Foi mostrado o despreparo da equipe da saúde que compõe a Atenção Primária em Saúde em promover assistência qualificada, que considere o estilo de vida, condições sociais e a educação permanente para a execução do cuidado efetivo e humanizado.

Observou-se que o preconceito da sociedade é potencializado às mulheres transexuais pelo fato de assumirem a prostituição como trabalho profissional e pela condição de viverem com o HIV, tudo isso envolvendo estigma, tabus sociais e exclusão.

Sugere-se a problematização da vulnerabilidade em saúde das mulheres transexuais. Tendo em vista os inúmeros estigmas relacionados à soropositividade desde os primeiros relatos da doença na sociedade e à luta por protagonismo da comunidade LGBT, tais aspectos precisam ser discutidos para que novas perspectivas sejam direcionadas, debatidas e (re)formuladas com vistas à integralidade do cuidado.

  • FOMENTO
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Projeto PROCAD (CAPES nº: 23.038.000.984.2014-19).

Referências bibliográficas

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Editado por

  • EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
  • EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2019
  • Aceito
    23 Mar 2020
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