Open-access Crise, trabalho e enfermagem: narrativa etnográfica da pandemia por coronavírus na Atenção Primária da Espanha

RESUMO

Objetivo:  narrar a experiência do enfrentamento de uma longa crise econômico-política e a vivência do processo da chegada da pandemia do coronavírus em um centro de saúde espanhol.

Métodos:  trata-se de estudo descritivo qualitativo com análise etnográfica, com coleta de dados por entrevistas, observação participante e registros em diário de campo.

Resultados:  a imersão no contexto permitiu identificar dois eixos de domínio: “a crise, o trabalho na comunidade e o território na Atenção Primária”; “da inevitabilidade do ser enfermeiro no enfrentamento da crise sanitária”.

Considerações finais:  a narrativa retrata a ético na pesquisa de campo, tensões e valores do trabalho da enfermagem em conjuntura de crise. A experiência dos enfermeiros é trazida em narrativas de insatisfação e dificuldades, porém com a sustentação de valores relacionados à garantia da assistência aos usuários e de cooperação e solidariedade na organização coletiva dos trabalhadores para enfrentamento da crise da COVID-19.

Descritores: Antropologia Cultural; Atenção Primária à; Saúde; Enfermagem; Infecções por Coronavirus; Enfermagem em Saúde Comunitária

ABSTRACT

Objective:  to narrate the experience of facing a long economic and political crisis and the experience of the arrival process of the coronavirus pandemic in a Spanish healthcare center.

Methods:  this is a descriptive qualitative study with ethnographic analysis, with data collection through interviews, participant observation and field diary records.

Results:  the immersion in the context allowed us to identify two axes of domain: “The crisis, work in the community and the territory in Primary Care”; “The inevitability of being a nurse in facing a health crisis”.

Final considerations:  the narrative portrays the ethics in field research, tensions and values of nursing work in crisis situations. Nurses’ experiences are presented in narratives of dissatisfaction and difficulties, but with the support of values related to guaranteeing assistance to users and cooperation and solidarity in the collective organization of workers to face the COVID-19 crisis.

Descriptors: Anthropology, Cultural; Primary Health Care; Nursing; Coronavirus Infections; Community Health Nursing

RESUMEN

Objetivo:  narrar la experiencia de afrontar una larga crisis económico-política y la experiencia del proceso de llegada de la pandemia de coronavirus en un centro sanitario español.

Métodos:  se trata de un estudio cualitativo descriptivo con análisis etnográfico, con recolección de datos a través de entrevistas, observación participante y registros de diario de campo.

Resultados:  la inmersión en el contexto permitió identificar dos ejes de dominio: “La crisis, el trabajo en la comunidad y el territorio en Atención Primaria”; “De la inevitabilidad de ser enfermero ante la crisis sanitaria”.

Consideraciones finales:  la narrativa retrata la ética en la investigación de campo, las tensiones y los valores del trabajo de enfermería en situaciones de crisis. La experiencia de las enfermeras se presenta en narrativas de insatisfacción y dificultades, pero con el respaldo de valores relacionados con garantizar la asistencia a los usuarios y la cooperación y solidaridad en la organización colectiva de los trabajadores para enfrentar la crisis del COVID-19.

Descriptores: Antropología Cultural; Atención Primaria de Salud; Enfermería; Infecciones por Coronavirus; Enfermería en Salud Comunitaria

INTRODUÇÃO

A grave situação de saúde pública causada pelo novo coronavírus (COVID-19) tem marco inicial na verificação do aumento do número de pneumonias graves na China ao término do ano de 2019. Considerando o rápido e alto potencial de disseminação e a pressão na capacidade de resposta dos sistemas de saúde para responderem aos casos graves da doença, a Organização Mundial de Saúde declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Pouco a diante, o organismo, em 11 de março de 2020, classificou a doença pelo coronavírus 2019 como uma pandemia(1).

Ainda que os problemas relacionados à COVID-19 no território nacional brasileiro tenham imposto um cenário extremamente difícil, considera-se que seja importante resgatar a vivência do início desta crise sanitária junto aos profissionais de saúde de outro país para colaborar na reflexão sobre o enfrentamento à epidemia. Retorna-se ao início do ano de 2020, quando uma das autoras estava em pesquisa de campo na Europa, epicentro da doença na época, sendo Itália e Espanha seus dois principais focos. Após releitura e reflexão analítica dos dados coletados, percebeu-se a importância de trazer essa narrativa de enfrentamento da COVID-19 no país de desenvolvimento da pesquisa, que foi a Espanha, no qual se buscou também apreender a vivência da grave crise político-econômica que afetou o continente europeu a partir de 2008.

Os elementos fundamentais para compreender o desfecho inicial da epidemia nos países europeus se relacionam à vulnerabilidade especial da população, em sua maioria composta por idosos, com presença de comorbidades crônicas, correspondendo na Espanha a 87,6% dos óbitos pela COVID-19(2). Aliado a este perfil, durante o período de estadia, observava-se a incapacidade de resposta do sistema sanitário que, assim como na maioria dos países, não dispunha do aporte necessário para o volume de atendimentos frente à rápida explosão do número de casos. As principais medidas sanitárias na Espanha se desenvolveram no âmbito hospitalar, como fechamento de Centros de Saúde de Atenção Primária e deslocamento dos profissionais para hospitais de campanha(3). As epidemias devem ser consideradas como fato social, inserindo-se no contexto amplo de produção e reprodução social(4). Não por acaso, as crises econômico-políticas se desdobram em crises sanitárias, sendo a epidemia uma das faces mais agudas das contradições deste modo de produção. Pode-se dizer que a pandemia de COVID-19 tem profunda relação com a crise estrutural do modo de produção capitalista(5) e possui impactos diretos de restrições para usuários e profissionais de saúde.

A demanda por cuidados se agrega, cumulativamente, aos impactos dos cortes orçamentários para os sistemas de saúde que implicam elevado desgaste emocional e sofrimento para os profissionais. Não obstante, a experiência de luta dos trabalhadores pela defesa da vida nas trincheiras dos sistemas de saúde manifesta a subjetivação de valores e organização coletiva para enfrentamento da crise. Em meio ao caos instalado pela pandemia no mundo e, mais especificamente, no cenário espanhol, a pesquisa de campo se realizava para tratar dos impactos da longa crise econômico-política do capitalismo no cotidiano dos profissionais de enfermagem na Atenção Primária espanhola. É a partir desta perspectiva que vamos narrar a experiência de enfrentamento da crise pelos enfermeiros e a vivência da pesquisa no início do processo mais agudo da epidemia da COVID-19 no país em questão. Trata-se de uma narrativa etnográfica a partir do imponderável atravessamento da epidemia da COVID-19 no cenário da pesquisa.

OBJETIVO

Narrar a experiência do enfrentamento de uma longa crise econômico-política e a vivência do processo da chegada da pandemia do coronavírus pela pesquisadora e profissionais de enfermagem em uma unidade de Atenção Primária na Espanha.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Os dados apresentados são produto da coleta de dados para realização da tese de doutorado sanduíche em andamento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil e na Universidade de Alicante, Comunidade Autônoma de Valência, Espanha, com o objetivo de compreender os impactos da crise econômico política, entre 2008 e 2019, no trabalho dos enfermeiros na Atenção Primária na Espanha e no Brasil. A coleta de dados estava sendo desenvolvida na Espanha, no momento que foi deflagrado a pandemia de COVID-19. Com isso, este artigo traz a narrativa da vivência de uma das autoras durante a coleta de dados, a partir da observação participante, entrevistas nas unidades de saúde espanholas e registros em diário de campo, sendo o objeto de discussão a experiência enfretamento das conjunturas de crise pelos profissionais e as problemáticas vivenciadas na Atenção Primária pela pandemia de COVID-19.

Atendendo a todos os preceitos éticos que regem as pesquisas com seres humanos, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(6). Além disso, foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade de Alicante na Espanha, de acordo com a Lei Orgânica 3/2018, de 5 de dezembro(7), e com o estipulado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu de 27 de abril de 2016(8).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, cujo recorte narrativo se baseia no método etnográfico. O que se busca é captar aspectos subjetivos relacionados ao ponto de vista, à visão de mundo e às relações que os indivíduos estabelecem, revelando a cultura local de um grupo(9). Não obstante, considerando o estudo de doutorado da pesquisadora principal, a narrativa procura compreender a experiência, a identidade e os sistemas e valores que os enfermeiros, enquanto trabalhadores da saúde na Atenção Primária, manifestam para enfrentamento das conjunturas de crise no contexto concreto de trabalho(10-11). Sendo assim, por um lado, é um desafio relativizar o etnocentrismo do pesquisador, favorecendo uma compreensão empática do grupo; mas, por outro, é importante dar sentido teórico crítico aos fatos observados e vivenciados pelo coletivo estudado(12).

O texto etnográfico pode ser obliterado pela impessoalidade distanciada do objeto, afastando-se dos aspectos dialógicos e situacionais do contexto, experimentados pessoalmente pelo pesquisador(13). Considerando esses pressupostos e o atravessamento da pandemia para os enfermeiros e para a pesquisadora, a narrativa também se apoia em uma interpretação relacionada à “tradução da nossa própria cultura para os outros”(14), de maneira a permitir a compreensão de nós mesmos no processo de interação com cenário.

Desenho do estudo

Para nortear o presente artigo, utilizou-se o instrumento do Equator denominado Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR)(15), que delimita um padrão para relatórios de pesquisa qualitativa.

Procedimentos metodológicos

Como instrumentos de coleta de dados, utilizaram-se diário de campo, roteiro de observação participante e de entrevista, sendo essas centrais para compreender a experiência do enfrentamento da crise, relacionando-a à pandemia a partir das seguintes perguntas: ¿Cómo ha afrontado usted los cambios generados por la crisis como enfermera comunitaria? ¿Qué recurso/s considera que ha/n podido contribuir a afrontar la crisis en APS? ¿Cómo ha contribuído? Ademais, buscou-se recuperar os registros dos diários de campo e memória das vivências pessoais na pesquisa utilizando a narrativa etnográfica como estratégia de compreensão de ser enfermeiro na Atenção Primária, diante de uma grave crise sanitária e a vivência da pesquisa de campo.

Cenário do estudo

O cenário foi na Comunidade Valenciana, localizada na Espanha, no mês de março de 2020, em uma unidade de Atenção Primária da localidade. O critério de escolha do cenário se relacionou às características sociais e demográficas do território, sob responsabilidade das equipes de Atenção Primária e por intermédio da proximidade ao cenário por contato anterior dos autores, sendo o mesmo escolhido para a coleta de dados na etapa do doutorado na Espanha.

Fonte de dados

O estudo contou, inicialmente, com a participação de dez enfermeiros e dois auxiliares de enfermagem que aceitassem a participar das entrevistas e estivessem há mais de um ano de trabalho, constituindo o foco da tese de doutorado, na unidade de saúde em questão. A princípio, o acompanhamento foi programado durante três dias com cada profissional ao longo da jornada integral de trabalho, utilizando-se de anotações das observações etnográficas do trabalho e do cotidiano de interação entre os profissionais contidas no diário de campo. Entretanto, foi possível o acompanhamento de quatro enfermeiros no campo, cujos nomes foram trocados, considerando necessária a interrupção frente ao decreto de Estado de Alarma através do Real Decreto nº 463/2020, de 14 de março de 2020(16), para gestão da crise sanitária causada pelo coronavírus no território e a suspensão de ensino e pesquisa nas unidades de saúde.

Coleta e organização dos dados

Além das conversas informais desenvolvidas no período de acompanhamento, foram realizadas quatro entrevistas em profundidade e observação participante com cerca de sessenta e três horas no total e escritos em trinta e seis páginas de anotações e registros em um diário de campo. As entrevistas formais foram gravadas e tiveram tempo médio de uma hora para cada uma das entrevistas. Em seguida, elas foram transcritas e os participantes foram identificados com nomes fictícios: Carlos, Pablo, Paola e Claudia, escolhidos aleatoriamente para preservar as suas identidades. As anotações do diário de campo serviram para complementar as falas. Ademais, foram oportunamente utilizados informes oficiais do Ministério da Saúde espanhol e notícias jornalísticas veiculados nas mídias do principal veículo de informação público na Espanha (Rede de Televisão Espanhola – RTVE) para contextualização do período e das falas.

Análise dos dados

Os resultados são apresentados em formato de narrativa, através da análise de domínios para reflexão dos dados. O objetivo dessa modalidade de análise é identificar domínios culturais, que são categorias de significados culturais(17) relacionadas à taxonomia do enfrentamento da crise no processo de trabalho, que já estava relacionada ao objeto primário de pesquisa do projeto de doutorado. Além disso, lançou-se mão do conteúdo autoetnográfico reflexivo para avaliação e conscientização das questões intersubjetivas no desenvolvimento da pesquisa(18).

Este texto se propôs a realizar uma primeira análise referente ao período da coleta de dados etnográficos na Espanha, buscando lançar luz sobre as contradições, as inquietações e a reflexão como pesquisadora no contexto de uma experiência cultural diferente do trabalho em saúde. A imersão no contexto do trabalho permitiu identificar dois eixos de domínio, que serão apresentadas no formato de relato sobre cenas, como estratégia para ilustrar o processo etnográfico: “A crise, o trabalho na comunidade e o território na Atenção Primária”; “Da inevitabilidade do ser enfermeiro no enfrentamento da crise sanitária”.

RESULTADOS

Contextualização do início da pandemia por coronavírus na Espanha

As notícias sobre a situação da pandemia na Espanha foram se desenvolvendo, assim como no restante do mundo, em um processo gradual com muitas incertezas através de informações sobre o caminho que a transmissão ia rumando, ao longo dos primeiros meses do ano de 2020. Em que pese as notícias do aumento da proximidade do contágio ao local onde estava, a atividade de pesquisa em campo não se apresentava como restrição para a coleta de dados naquele momento. Ainda que a entrada em campo não tenha sido de forma alguma obstaculizada por seus atores no início do mês de março, os acontecimentos foram desenhando um cenário de crescente tensão às vésperas da declaração do Estado de Alarma(16). No segundo dia de março, o cenário da pandemia de coronavírus na Espanha era de alerta, mas sem alarme: havia 119 casos confirmados no país, sendo 15 na Comunidade Valenciana, local onde estava para realização da pesquisa, segundo os informes oficiais do Ministério da Saúde espanhol(19). Em sua maioria, tratavam-se de casos importados, especialmente da Itália, os primeiros casos de contágio local havia sido reportado na semana anterior em Sevilla e Madrid(20).

Os noticiários solicitavam tranquilidade, mas com cautela, para evitar o pânico generalizado no enfrentamento à pandemia(21), considerando o temor relacionado às notícias do contexto italiano(22), o risco da sobrecarga do sistema de atenção à saúde(23) e as respectivas reações iniciais de esgotamento de máscaras, álcool gel e luvas nas farmácias(24) e o medo de falta de suprimentos nos mercados(25). Localmente, observava-se a preocupação em torno do cancelamento da tradicional festa valenciana das Fallas. Viria a ser cancelada? E se cancelada, segundo o julgamento do senso comum(12) na localidade e nas conversas informais entre os profissionais na unidade, estaria representando a gravidade da situação da pandemia no território espanhol. Não tardou muito em sair a noticia na Rede de Televisão pública Espanhola a decisão de suspensão do evento: “Las Fallas de Valencia se aplazan por el coronavírus”(26). A esta altura, o medo generalizado já seria algo inevitável, tendo em vista o alarme e a abordagem massiva da pandemia nos meios de comunicação no mundo.

Na Espanha, ao menos 15% do total de pessoas infectadas no país eram profissionais de saúde, condizente com a situação de escassez de equipamentos de proteção individual no início da epidemia(2). Neste período inicial, as medidas adotadas pelas autoridades sanitárias espanholas se centralizaram na vigilância epidemiológica e na assistência médico-hospitalar, em detrimento da atuação da Atenção Primária(3). A silenciosa chegada da pandemia na Espanha veio ao encontro do contexto de precarização no âmbito da Atenção Primária, já fragilizado pelo número insuficiente de profissionais de saúde, recursos para diagnóstico e de equipamentos de proteção individual(3). Tal fato não tardou em demonstrar seu profundo impacto na situação da força de trabalho em termos de número de profissionais infectados e falecidos que atuavam na linha de frente na Atenção Primária(3,27). É sobre cenas dos dias que antecederam a primeira declaração do Estado de Alarma(16) que se busca narrar a experiência dos enfermeiros e a vivência do início deste processo.

“Decifra-me ou te devoro”: a crise, o trabalho na comunidade e o território na Atenção Primária

Entre idas e vindas no caminho das visitas domiciliares, intervalos de consultas e conversas nos espaços coletivos do centro de saúde, foram se estabelecendo aproximações ao contexto cultural do trabalho dos enfermeiros na Atenção Primária na Espanha. O estranhamento da presença da pesquisadora, literalmente estrangeira, no cotidiano do serviço dos profissionais, foi se relativizando à medida em que o diálogo se estabelecia informalmente através do compartilhamento de informações de caráter geral sobre a cultura dos respectivos países de origem. Realidades distantes, tanto em termos de condições materiais como em termos do contexto cultural do trabalho, que, no entanto, forjou uma relativa integração ao cotidiano do grupo profissional por meio da complacência dos trabalhadores para com a pesquisadora. As experiências relacionadas aos efeitos da crise econômica política eram relatadas no contexto imediato de realização do processo de trabalho no serviço de Atenção Primária.

Ocupando o posto de enfermeiro de equipe na Atenção Primária há mais de 10 anos, Pablo apontava suas estratégias de adaptação diante das dificuldades associadas à crise econômico-política desde 2009. Da queda na qualidade de insumos utilizados nos cuidados até a diminuição da contratação de profissionais para substituição nos postos vacantes do serviço, Pablo relatava com insatisfação o aumento da carga de trabalho após aplicação do regime de austeridade fiscal espanhol. Nos diálogos estabelecidos entre a pesquisadora e enfermeiros, foram apontadas as estratégias individuais de adaptação da prática profissional, procurando mitigar os riscos para a saúde dos usuários, e a resiliência e a solidariedade entre os trabalhadores da saúde foram apontados como principais recursos para o enfretamento da crise econômica política:

[enfrentamos a crise] Trabajando más de lo que ha podido. Y sobretodo intentando que, que no le afectara el menos posible a los pacientes. (Pablo)

Hay dependido del personal. Ha dependido de los que estábamos. Lo mismo que estábamos antes, ese es los que estamos ahora […] No, no ha aumentado los recursos, ninguno. Ninguno, al revés: menos. Menos sustituciones […] te vas de vacaciones y no te sustituyen, o sea, que ha habido menos. (Paola)

Entretanto, o novo cenário de crise sanitária da COVID-19 se aproximava do contexto do trabalho no momento da realização da pesquisa no centro de saúde. Entre o primeiro e o terceiro dia no campo, o tema da pandemia ainda se restringia aos diálogos informais entre os trabalhadores. Nas interações e comunicações entre os profissionais de saúde, especialmente nos espaços de interação coletiva (refeitório, varandas privativas para os profissionais), podia se perceber a troca de informações sobre o que se havia sido descoberto em relação ao comportamento do “novo” coronavírus e a troca de impressões sobre a o enfretamento e a situação da pandemia em outros países.

Era o quarto dia de trabalho de campo, seis de março de 2020, quando a situação da pandemia começou a se manifestar no Centro de Saúde. Durante a realização de visitas domiciliares junto ao enfermeiro Pablo, foi observado que usuários e familiares manifestavam dúvidas e preocupações sobre a situação da pandemia. A resposta às questões se desenvolvia sob o chamamento de alerta aos usuários. Não obstante, era possível perceber que os dados concretos sobre a pandemia no âmbito local não estavam claros para os profissionais da Atenção Primária naquele momento. Ainda assim, mantiveram a postura de segurança e tranquilidade no repasse das orientações, mesmo que não dispusessem de muitas informações sobre a situação da vigilância epidemiológica no território.

No dia seguinte, foi possível perceber uma conversa sobre a pandemia na sala da coordenação de enfermagem do centro de saúde. Os enfermeiros Carlos e Pablo manifestavam preocupação com controle do coronavírus no país e estava patente a escassa informação sobre a situação concreta de incidência de casos no território e da comunidade. Dúvidas e angústias foram compartilhadas em relação à proteção dos profissionais na unidade, e questões sobre o acesso e uso dos equipamentos de proteção individual também eram apresentadas a todo momento. As informações relacionadas às restrições de mobilidade na Itália e da rápida expansão da pandemia na Espanha, triplicando os casos notificados em Madrid em poucos dias, e as medidas governamentais para conter a transmissão, podiam ser acompanhadas pelos principais noticiários da imprensa nacional(28).

Quatro dias antes da declaração do Estado de Alarma(16), havia sido programado acompanhamento das atividades da enfermeira Claudia na realização no território de abrangência da unidade. Neste ínterim, foi possível observar contradições na abordagem do território. Na Espanha, a territorialização se manifesta na delimitação administrativa da Zona Básica de Salud (ZBS), como espaço de localização dos serviços de Atenção Primária, todavia, com pouca expressão do caráter comunitário na orientação do processo de trabalho dos profissionais de saúde. Neste sentido, em uma das entrevistas sobre a temática da crise econômico-política, houve referências ao comprometimento do trabalho comunitário frente à redução de profissionais e ao acúmulo de atribuições e procedimentos internamente nas unidades de saúde, que vinham se desenvolvendo desde o marco da crise econômico política:

[…] solo tengo dos manos, si queda el mismo número de profesionales tendré que dejar de hacer algunos encargos para hacer nuevos. Y es un riesgo, porque en la Primaria lo que dejaría de hacer es la promoción y prevención de la salud. (Carlos)

Ao longo do processo da pesquisa, houve manifestações ambivalentes dos profissionais em relação à territorialização: relatos sobre o aumento da demanda de atendimentos e sobrecarga de trabalho, já que em um determinado período a adscrição se dava por base territorial apenas para o enfermeiro, quando, para o médico da Equipe de Atenção Primária, baseava-se no cadastro individual (cupo):

Lo tenía yo pacientes de varios médicos, según la organización [por territórios adscritos] […] yo estaba organizando, los enfermeros estamos organizados a la mejor por zonas geográficas del barrio y ellos estaban organizados por cupos. Entonces ellos tenían gente en muchas zonas, pero yo solo me dedicaba a una zona, a lo mejor me correspondía esta zona que tenía gente de 6 médicos. (Pablo)

Por outro lado, ressaltavam o papel da territorialização como recurso importante para o trabalho comunitário e para análise do contexto cultural onde as pessoas vivem:

[…] el ámbito comunitario es el ámbito de la Atención Primaria de Salud atender al individuo y adónde vive trabaja estudia, ¿vale? Pero tiene mucha más implicación de intervenir precisamente en ese nivel, en el nivel comunitario, fuera del centro, fuera del propio domicilio del paciente […] es decir actuar en ámbitos que son propios de la comunidad, que no son propios del centro sanitario o del entorno individual del paciente. (Carlos)

Antes da pandemia se manifestar concretamente no cenário, percebia-se esta inquietação em relação às contradições relacionadas ao trabalho comunitário. No momento anterior à irrupção da pandemia no local, eram compartilhadas pelos trabalhadores reflexões sobre as contradições relacionadas ao papel do território na Atenção Primária e nas relações (de classe) entre categorias profissionais interior da organização do trabalho entre enfermeiros e da médicos. Por outro lado, a relação entre os processos de trabalho e a ideia de uma vigilância da saúde baseada na compreensão da dinâmica de vida dos usuários na comunidade não era palpável no cotidiano do serviço, trazendo a seguinte indagação, não respondida: conhecer melhor o território poderia contribuir para uma melhor prevenção e assim, fazer com que se sentissem mais preparados para enfrentar a situação do coronavírus no local?

“Es lo que hay”: da inevitabilidade do ser enfermeiro no enfrentamento da crise sanitária

O oitavo dia de pesquisa foi programado para conhecer os impactos da crise econômico-política no processo de trabalho de uma das enfermeiras, Claudia. Nos dias anteriores, diversos relatos sobre impactos relacionados à disponibilidade de insumos, recursos humanos e demanda de atendimento haviam sido coletados. Tratava-se de observar o trabalho de Claudia na programação diária de atendimentos. Entretanto, o dia se iniciou com a notícia dada aos profissionais de saúde de suspensão de suas férias e de reorganização das atividades no centro de saúde, em decorrência da pandemia do coronavírus: cancelamento das atividades grupais e consultas realizadas apenas as de prioridades, sendo as demais realizadas por contato telefônico quando possível. Entre uma e outra consulta de enfermagem, foram estabelecidas conversas com Claudia, enfermeira obstétrica, que deixava patente a tensão sobre a situação da pandemia. Para a pesquisadora, a princípio, não era percebida a dimensão do problema que estava a acompanhar nos desdobramentos da situação de crise sanitária in loco junto aos enfermeiros no serviço de saúde. Apesar disso, era possível observar relatos sistemáticos de preocupação das usuárias, que iam desde o desabastecimento dos supermercados em algumas localidades até a insegurança relacionada ao momento do parto. No entanto, a continuidade da atenção se desenvolveu firmemente, com forte apelo ao aspecto relacional do trabalho para acolhimento e escuta ativa das angústias das usuárias. Pode-se dizer que a elevada exigência emocional da profissional se tornou evidente através do compartilhamento das suas próprias angústias com a pesquisadora entre as consultas. Tal exigência dizia respeito às preocupações sobre a proteção de sua família, dos profissionais de saúde em geral e das escolhas éticas que poderiam ter de ser tomadas no caso de sobrecarga do sistema hospitalar para atenção, resultando em um processo de distresse moral(29):

[…] tengo que tomar una decisión yo, sobre lo que hacer, si la [paciente] expongo al riesgo en tener que irse en la próxima semana u adelanto [a avaliação no hospital de uma condição que necesitaria hospitalização para realização do procedimento]: ¿y ahora que hacer? Eso es un riesgo también. (Claudia)

Os imponderáveis do fenômeno da pandemia se tornavam mais palpáveis, na medida em que se percebia possíveis casos de usuários sintomáticos no interior da unidade. Insegurança e incerteza sobre o que fazer e como lidar com os acontecimentos, que diziam respeito ao caráter pouco conhecido da doença do coronavírus no período, se tornaram, inequivocamente, o tom das ações. Vivenciando o exato momento do processo inicial da grave crise sanitária, a pesquisadora pode contextualizar a narrativa dos enfermeiros em relação aos aspectos que contribuíram para o enfrentamento da crise econômico-política em ato, e os custos para os trabalhadores:

[…] lo que ha salido para adelante durante la crisis, es el coraje de los trabajadores. Aquí la crisis se ha superado, en el sistema sanitario español, ha superado la crisis a base de los riñones de los trabajadores, así de claro. (Claudia)

Los recursos [para enfrentamento da crise] ha sido sobretodo los humanos. Los humanos y, aparte de los humanos, de los trabajadores de la sanidade […]. (Pablo)

No processo de avanço da crise sanitária, os debates sobre o impacto da pandemia no país se davam na medida em que as notícias eram recebidas, em velocidade acelerada através das mídias sociais pessoais dos trabalhadores. Opiniões sobre os possíveis eventos que proporcionaram aglomerações e a demora no reconhecimento da gravidade da disseminação do vírus no território nacional eram trazidos à cena nos diálogos. Além disso, foi possível observar reflexões na interação e conversas entre os profissionais em diversos espaços da unidade, principalmente sobre as condições de trabalho e a proteção para os trabalhadores da saúde. Frente às notícias sobre a contaminação e óbitos entre profissionais de saúde, a temática da segurança no trabalho estava no centro dos debates entre os enfermeiros, dialogando diretamente com as reflexões anteriores sobre os efeitos da crise econômica política nas condições de trabalho e da atenção aos usuários no sistema de saúde. Nos relatos sobre a experiência de enfrentamento da crise causada pela restrição orçamentária, o compromisso com a manutenção da assistência, principalmente a partir da compreensão da ampliação das necessidades de saúde da população nesta conjuntura, foi apresentado como um valor de sustentação fortemente subjetivado no trabalho dos enfermeiros, ainda que sob condições adversas:

[…] ¡intentando ayudar siempre! Todo lo que puedes y hasta dónde puedes, a cada persona. Cuándo llegas a un punto en que no puedes hacer más […] pues, si realmente te das cuenta de que no puedes hacer más, pues la asumes, pero no te rindes. Es decir, intentas ser profesional todos los días, intentas ver realmente la persona que tiene delante, cada vez que tienes una persona delante, y intenta comprender qué cosas son las que necesita. Y intentas aquellas que sí, que puedes darle, bueno, que le puedes ayudar, pues hacer dentro de las posibilidades y de los medios que tienes. (Carlos)

Por outro lado, a tensão na unidade em relação à pandemia era generalizada, implicando em considerável mudança nos comportamentos e posturas dos profissionais, visivelmente preocupados e em atenção exclusiva às necessárias adaptações do trabalho. Abordagens diretas, com questionamento direto sobre a segurança da pesquisadora também ocorrera às vésperas da suspensão das atividades de ensino e pesquisa pelo estado espanhol. A autorreflexão sobre a realização da coleta de dados no campo foi também incentivada pelo diálogo intercultural junto com os profissionais: o risco (inevitável?) da profissão se estabelecia dentro de um cenário que seria de pesquisa. Em que medida assumir a possibilidade de contraminar-se no campo, como pesquisadora, naturalizava o risco o risco ocupacional do ser enfermeira?

As mudanças no comportamento do grupo profissional foram percebidas como sinais de desconforto com o processo de investigação, em um cenário de incertezas e preparação para enfrentamento do grave desconhecido que se instalava. O contexto revelou-se em um dilema ético para a investigação. A dificuldade em dar prosseguimento às etapas de entrevistas parecia estar, de fato, desenhando a impossibilidade de continuidade da pesquisa. Diante desta situação, buscou-se a liderança reconhecida entre os enfermeiros para compartilhar a angústia e avaliação sobre a continuidade da pesquisa no cenário de crise sanitária, respeitando as relações de confiança entre pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Em uma conversa direcionada com Carlos sobre a questão ética da pesquisa, foram levantados obstáculos para despender atenção à pesquisadora neste contexto, apesar da manifestação verbal de reconhecimento da importância da investigação no cenário de mudança qualitativa de enfrentamento da crise. A ambivalência captada e as mudanças apresentadas no comportamento do grupo profissional balizaram a decisão de interromper a coleta de dados.

Aún ayer hablábamos sobre los efectos de 2008 sobre nuestro trabajo, hoy estamos viviendo un nuevo escenario que se cambió, es una crisis sanitaria y estás en el ojo del huracán. (Carlos)

DISCUSSÃO

A identidade profissional, entendida como um conjunto de valores e princípios morais, éticos e sociais, parte do sentimento de pertencimento ao grupo e a uma cultura profissional que, na enfermagem, se relaciona aos valores de planejamento e cuidado, sintetizados em uma prática social de proteção da vida(30-31). A diferença entre as realidades espanhola e a brasileira se faz sentir de imediato ao se acompanhar o cotidiano do trabalho e o território na Atenção Primária. Ainda que o eixo comum de atuação seja a identidade profissional e a finalidade do cuidado seja a atenção integral à saúde e de indivíduos, famílias e comunidades (localizadas geograficamente território determinado e adscritas a uma equipe composta por médicos e enfermeiros), o contexto material e o universo simbólico relacionados ao trabalho da enfermagem se desenvolvem de formas distintas e aderidas ao cotidiano e às relações objetivas e intersubjetivas produzidas no contexto vivido.

A coesão do grupo profissional foi um dos elementos mais visíveis na observação realizada dentro do contexto de trabalho dos enfermeiros na Atenção Primária na Espanha. Esta manifestação se apresenta no estabelecimento de estratégias de adaptação da prática para sustentar a assistência de enfermagem, com base nos pressupostos da identidade profissional(32), principalmente na organização coletiva para enfrentamento das dificuldades nos serviços como trabalhadores de saúde. Neste sentido, o grupo apresenta um sistema de valores relacionados a defesa da atenção à saúde aos usuários, sobretudo pela cooperação e solidariedade entre os trabalhadores para sustentação da assistência e na luta por melhorias nas condições materiais de trabalho diante das conjunturas de crise.

Vivemos em um período difícil para a humanidade, a pandemia representa uma tragédia para a humanidade no século XXI, todavia, não podemos afirmar que esta tragédia já não era anunciada(33). Não, justamente pelo fato de estarmos vivenciando um processo histórico de esgotamento do sistema sóciometabólico do capital global que já vem demonstrando a ativação de seus limites estruturais desde o final do século passado(5,34). Nesta perspectiva, é a própria irrefreabilidade e irrestringibilidade da expansão da acumulação capitalista(5) que demonstra sua vertente destrutiva nas condições de vida, trabalho e saúde da classe trabalhadora e mais, nas próprias condições de existência no planeta, considerando sua ação devastadora do ambiente natural com consequências diretas no surgimento de epidemias zoonóticas(33,35). Os processos epidêmicos são considerados uma das faces mais agudas do desenvolvimento do processo de acumulação capitalista, demonstrando o caráter estrutural da crise no capitalismo e sua respectiva determinação social do processo saúde doença(4,35).

Nesta chave de compreensão, a pandemia manifesta as condições de negação da liberdade e rebaixamentos do nível de subsistência de vida da classe trabalhadora, explicitando o caráter de classe do Estado(5,34,36), que, em detrimento dos direitos sociais, serviços e profissionais de saúde suficientes para atender aos usuários em suas necessidades de saúde acaba por manifestar “(...) la negación institucionalizada y sacramentada de los cuatro principios que hacen posible el buen vivir y la salud: la sustentabilidad, la soberanía, la solidaridad y la seguridad integral en los espacios y sujetos de la vida.”(33) A destruição ambiental, o desemprego crônico, a restrição da liberdade de amplas massas, especialmente entre as mulheres, negros, indígenas e imigrantes(5,33-35) geram consequências desastrosas para saúde dos usuários que buscam atendimento junto aos profissionais de saúde em serviços públicos sucateados pela austeridade fiscal(37-38). Sofrem também com os limites de sua atuação na tentativa de dar respostas individuais aos graves problemas sociais que afetam a saúde coletiva de um contingente cada vez maior da população(4,38-39). Observam com alguma perplexidade o impacto da COVID-19 na população já adoecida por um processo de precarização da vida que precede a pandemia(4,35,39). Diante do desfinanciamento da política de saúde, a pandemia coloca em xeque a dimensão ética e humanitária da crise.

Há que se recordar que o processo de crise já vem se manifestando com vigor desde 2008(37-38,40). “A crise em curso é uma crise capitalista, embora com determinações sanitárias.”(36) A maneira pela qual os serviços de saúde, especialmente os públicos, foram pegos vulneráveis para o enfrentamento da pandemia se relaciona ao desmonte dos serviços públicos e a expropriação dos direitos sociais: falta de equipamentos de proteção individual, escassez de leitos, falta de profissionais de saúde; com maiores impactos nos países periféricos(41-42). Ainda que o histórico Estado de Bem Estar Social, arraigado na consciência coletiva e pauta política da classe trabalhadora espanhola, tenha favorecido a resistência dos serviços públicos de saúde, o sistema têm sofrido duros golpes de desestruturação ao longo dos últimos 10 anos(43).

O sentimento de incertezas em relação aos acontecimentos atravessa o cenário na Espanha de forma contundente. Para os enfermeiros da Atenção Primária, a experiência do enfrentamento da crise econômico política se revela em ato durante a pesquisa de campo: é através dos “riñones de los trabajadores” que, mesmo sob visível tensão, organizaram-se coletivamente para apoiarem-se na produção de cuidado e na proteção de si, no grave cenário de irrupção da pandemia no local. Pode-se dizer que, em termos de cultura de trabalho(10-11), o valor da cooperação e da solidariedade entre os trabalhadores são palpáveis naquele contexto. É perceptível no contexto concreto a rápida e forte organização coletiva do grupo, considerando que, em termos de relações de classe, as condições de estabilidade e a menor incidência da hierarquização e divisão social do trabalho no interior da categoria favorecem o diálogo horizontal e as relações de solidariedade de classe entre os profissionais da enfermagem.

Por outro lado, as contradições associadas ao papel do território no trabalho comunitário são percebidas no enfrentamento da COVID-19 junto à população atendida pelas equipes. Este fato desperta a reflexão sobre a prática profissional na Atenção Primária brasileira. Considerando o contexto específico da desigualdade social e situação política no Brasil, a dificuldade no enfretamento do problema toma contornos maiores e proporcionalmente mais graves diante de tamanha precariedade na vida dos nossos usuários. Ademais, para a prática profissional cotidiana da enfermagem na Atenção Primária afigura-se a indagação: em que medida há tempo e condições materiais necessárias para acompanhar sistematicamente o contexto e dinâmica da vida comunitária dos usuários?

Em se tratando da realidade brasileira, o Agente Comunitário de Saúde (ACS) pode contribuir decisivamente trabalho de monitoramento e educação popular no território. Mas, frente ao desmonte acelerado do Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos 5 anos, com elevada perda de profissionais nas equipes(42,44), a orientação comunitária na Atenção Primária estaria em segundo plano como observado no contexto espanhol(45-46). Não obstante, a pandemia revela a importância do território e da orientação comunitária na organização do processo de trabalho na Atenção Primária, especialmente para atuação profissional na crise sanitária. Se o contexto de vida e a dinâmica da relação dos usuários com seu território não é reconhecido pelas equipes, a prática clínica isolada é incapaz de enfrentar eficazmente a pandemia e promover a saúde. Assim sendo, limita a potência de atuação dos profissionais de saúde para contenção da transmissão comunitária da COVID-19. Tal fato explica a dificuldade em acompanhar a dinâmica da transmissão e realizar o efetivo controle da pandemia nos territórios das comunidades, bairros e povoados.

Outra questão apontada e merece discussão foi a crise narrada durante o aumento dos casos e o momento de continuar a coleta dos dados e em parar a pesquisa, durante os primeiros momentos da pandemia. Em que medida a avaliação inicial da pesquisadora, enfermeira, se relaciona ao sistema de valores na enfermagem (“continuar ajudando”) e ao contexto de precarização do trabalho no país de origem? Todavia ainda cabe ratificar a relevância do exercício permanente de autorreflexão do pesquisador no decorrer da coleta de dados em observação participante. O uso da sensibilidade foi fundamental na percepção dos aspectos emocionais dos participantes envolvidos no contexto concreto da pesquisa de campo. Desta maneira reforça-se que o envolvimento dos sujeitos da pesquisa deve ser ativo, respeitando as relações de confiança e priorizando sempre a autonomia, a liberdade e a dignidade dos participantes. O diálogo intercultural envolvido na pesquisa etnográfica permitiu a autorreflexão sobre a prática profissional e a pesquisa de campo neste contexto de crise sanitária.

Es lo que hay” foi uma expressão ouvida de um dos enfermeiros ao se referir ao contexto concreto dos seu processo de trabalho após a crise de 2008. O uso desta expressão no texto se dá em referência ao cenário de precarização do trabalho e à sustentação e defesa da vida, sustentando no limite da própria sanidade profissional a atenção à saúde no difícil momento da pandemia de COVID-19. Somos nós profissionais de saúde e da enfermagem, em especial, que estamos no “olho do furacão” dentro do sistema de saúde, em franca desestruturação por sucessivas crises econômico políticas, buscando dar o melhor de si no enfrentamento da pandemia, mas vivendo duramente seus impactos sobrepostos e aprofundados na mais grave crise sanitária do último século causada pela COVID-19(33,42-43,47). Apesar da força dos valores que sustentam o trabalho dos enfermeiros na Atenção Primária em diferentes países, é necessário lutar por condições dignas para o trabalho da enfermagem através de sistemas públicos com garantia do direito universal à saúde para população. Desta forma, a revogação das medidas de austeridade e um novo projeto de vida, saúde e sociedade devem ser os principais focos de luta do conjunto da sociedade, considerando que afetam não só a capacidade de resposta dos serviços frente ao aumento das demandas de atenção, mas retiram a dignidade humana e o valor da vida da população.

Limitações do estudo

A possível limitação do estudo deve-se ao fato de ter sido realizado em um único cenário, do tempo de observação e as diferenças linguísticas. Diante da situação do rápido acontecimento da pandemia e a suspensão das atividades formativas e de pesquisa no período pelo governo espanhol, não foi possível dar prosseguimento da coleta de dados no interior das unidades e ampliar a pesquisa para outros cenários da Espanha. Não obstante, entende-se que são apontamentos que refletem a realidade do impacto das crises no trabalho da enfermagem no momento da pandemia.

Contribuições para a área da enfermagem e da saúde pública

Entende-se que este estudo possa contribuir para a reflexão da ética em pesquisa, na área da enfermagem e da saúde, principalmente para apontar os impactos da desestruturação dos serviços públicos de saúde e suas consequências no enfrentamento da grave crise sanitária global para a enfermagem e atenção à saúde da população. Acredita-se que traga contribuição para reforço à orientação comunitária no trabalho da enfermagem na Atenção Primária, assim como no reforço à valorização da categoria através de melhores condições de trabalho e de serviços de saúde públicos estruturados capazes de fazer enfrentamento às necessidades de saúde da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de ampliação das oportunidades para a pesquisa em nível internacional traz desafios para o pesquisador da área da enfermagem que independem da situação sanitária local encontrada, porém acabam sendo ampliados e podem se tornar problemas concretos quando o contexto muda tão rapidamente como no caso da introdução da COVID-19 na Espanha, trazida nesta narrativa etnográfica. A vivência da pesquisa em território estrangeiro no início da pandemia de COVID-19 se desdobrou em dilemas éticos durante a coleta de dados sobre o processo de trabalho na Atenção Primária à Saúde. As crises nos expõem como profissionais à insegurança no trabalho diante da gravidade da precarização dos serviços e da vida da população. Entretanto, é importante evidenciar a identidade profissional, os valores e a experiência de enfrentamento empregada pelos trabalhadores da enfermagem. Além disso, pode-se perceber que a capacidade de organização coletiva dos trabalhadores e os vínculos de solidariedade e cooperação na relação de classe são fundamentais no enfrentamento diante do aprofundamento da crise estrutural capitalista. Neste sentido, a lição a ser aprendida é global – ou se avança para o fortalecimento das condições de trabalho dos profissionais da Atenção Primária e da orientação comunitária, ou estaremos, cada vez mais, à mercê das ondas destrutivas regidas pelas relações excludentes do capitalismo vigente no mundo.

  • FOMENTO
    Este estudo foi realizado com apoio e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências bibliográficas

  • EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
    EDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2021
  • Aceito
    24 Jun 2021
location_on
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro