RESUMO
Objetivo: analisar as repercussões da transfobia na saúde de homens trans e pessoas transmasculinas.
Método: estudo qualitativo, realizado com 38 participantes, sendo 35 homens trans e três pessoas transmasculinas que frequentavam serviços de saúde especializado em trangeneridade na Bahia, Brasil. Realizaram-se entrevistas em profundidade entre os meses de junho de 2019 e fevereiro de 2020. Empregou-se a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo e interpretação baseada no conceito teórico de transfobia.
Resultados: a transfobia trouxe repercussões intra e interpessoais na vida e saúde de homens trans e de pessoas transmasculinas que frequentam serviços de saúde. Encontraram-se vivências de violências no espaço privado, esgarçamento de vínculos familiares; discriminação no espaço escolar; limitação nas oportunidades profissionais/trabalho; barreiras no autocuidado e acesso aos serviços de saúde; elaboração de estratégias de proteção da identidade trans; consequências da transfobia na saúde psicoemocional.
Conclusão: a transfobia configurou-se doença social que repercute nas distintas dimensões da vida e saúde. Causa danos na socialização dos homens trans e das pessoas transmasculinas, além dos espaços dos serviços de saúde, como também em ambientes familiares, escolas, universidades e no trabalho, os quais resultam em não adesão ao autocuidado, distanciamento dos serviços de saúde e sofrimento psicoemocional.
Descritores: Transexualidade; Minorias Sexuais e de Gênero; Saúde do Homem; Vulnerabilidade em Saúde; Cuidados de Enfermagem
ABSTRACT
Objective: to analyze the repercussions of transphobia on trans men’s and transmasculine people’s health.
Method: a qualitative study carried out with 38 participants, 35 trans men and three trans men, who attended specialized transgender health services in Bahia, Brazil. In-depth interviews were carried out between June 2019 and February 2020. The Discourse of Collective Subject technique was used and interpretation based on the theoretical concept of transphobia.
Results: transphobia has intra and interpersonal repercussions on the life and health of trans men and transmasculine people who attend health services. There were experiences of violence in the private space, fraying of family ties; discrimination in the school space; limitation in professional/work opportunities; barriers to self-care and access to health services; elaboration of trans identity protection strategies; consequences of transphobia on psycho-emotional health.
Conclusion: transphobia is a social disease that affects different life and health dimensions. It causes damage to the socialization of trans men and transmasculine people, in addition to health service spaces as well as in family environments, schools, universities and at work, which result in non-adherence to self-care, distancing from health services and psycho-emotional distress.
Descriptors: Transsexualism; Sexual and Gender Minorities; Men’s Health; Health Vulnerability; Nursing Care
RESUMEN
Objetivo: analizar las repercusiones de la transfobia en la salud de hombres trans y personas transmasculinas.
Método: estudio cualitativo, realizado con 38 participantes, 35 hombres trans y tres personas trans masculinas que asistieron a servicios de salud especializados transgénero en Bahía, Brasil. Se realizaron entrevistas en profundidad entre junio de 2019 y febrero de 2020. Se utilizó la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo y la interpretación basada en el concepto teórico de transfobia.
Resultados: la transfobia tiene repercusiones intra e interpersonales en la vida y salud de los hombres trans y personas transmasculinas que acuden a los servicios de salud. Hubo experiencias de violencia en el espacio privado, deshilachamiento de lazos familiares; discriminación en el espacio escolar; limitación en las oportunidades profesionales/laborales; barreras para el autocuidado y acceso a los servicios de salud; elaboración de estrategias de protección de la identidad trans; consecuencias de la transfobia en la salud psicoemocional.
Conclusión: la transfobia es una enfermedad social que afecta diferentes dimensiones de la vida y la salud. Provoca perjuicios en la socialización de los hombres trans y personas transmasculinas, además de los espacios de los servicios de salud, así como en los entornos familiares, escolares, universitarios y laborales, que se traducen en falta de adherencia al autocuidado, alejamiento de los servicios de salud y sufrimiento psicoemocional.
Descriptores: Transexualidad; Minorías Sexuales y de Género; Salud del Hombre; Vulnerabilidad en Salud; Atención de Enfermería
INTRODUÇÃO
Durante o desenvolvimento da sociedade e da ciência, o conceito de saúde e doença foi se transformando e sendo alterado constantemente. A transgeneridade, até recentemente, era considerada uma condição psicopatológica. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS), na 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), retirou a classificação de “transexualismo”, que considerava a transexualidade como uma doença mental(1). Com a mudança, o termo passou a ser denominado “incongruência de gênero”, inserido no capítulo sobre saúde sexual(2). Devido a essa histórica patologização da(s) transexualidade(s), homens e mulheres transexuais e travestis continuam suscetíveis aos impactos negativos decorrentes do não reconhecimento e legitimação de suas identidades pela sociedade, potencialmente gerador de sofrimento psíquico, adoecimento, violação de direitos, exclusão e discriminação.
No âmbito da demarcação das identidades de gênero, a cisgeneridade é baseada no entendimento de que o sexo biológico, representado pela conformação anatômica da genitália externa, a qual condiz com a identidade de gênero, sendo essa uma compreensão que necessita ser atualizada no que diz respeito à mudança da noção de que essa é uma identidade única e linear. Em outro prisma, sob uma perspectiva de subversão e transgressão aos sistema cis e heteronormativo, a transgeneridade é compreendida como o não reconhecimento pertencente ao gênero que lhe foi determinado ao nascer e às suas expressões sociais determinadas(3). Ainda prevalece na sociedade a imposição e estruturação da cisgeneridade heteronormativa, que normatiza a concordância entre sexo de nascimento, identidade de gênero e orientação sexual, descaracterizando as pessoas que assim não se reconhecem. Tais concepções e compreensões submetem as pessoas transgêneras diariamente a um contínuo processo estressor da transfobia e do adoecimento psíquico(3).
Assim, a transfobia tem repercutido deleteriamente na condição de vida e saúde de pessoas transgêneras em todo o mundo, que se configura um fenômeno tipificado pela discriminação, agressões e repúdio pela forma como as pessoas trans constroem suas identidades de gênero(4). Especialmente no Brasil, a transfobia tem sido responsável pela morte violenta de milhares de pessoas, decorrente do ódio atribuído à dimensão de gênero. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata pessoas travestis e transexuais no mundo, e ocupa o 68° lugar no ranking de países quanto à segurança para a população LGBT. Logo, a expectativa de vida dessa população no Brasil é de 35 anos, menos da metade da média da população nacional estimada em 75 anos(5), embora estudos nesse campo ainda sejam limitados no contexto latino-americano, o que revela uma lacuna no conhecimento científico sobre a temática.
As violências não se limitam às expressões físicas, mas podem se perpetuar na vida cotidiana, preconizando-a e expondo às vulnerabilidades sociais e à saúde, em todas as suas dimensões, atravessadas pelo estigma, isolamento, solidão e apagamento da existência e visibilidade trans(6). Por essas razões, faz-se necessário que ações estratégias de enfrentamento da transfobia possam implicar melhorias na formação, na prática clínico-assistencial, na pesquisa e na gestão do cuidado/serviços de saúde, com vistas a redirecionar o trabalho em enfermagem e em outras áreas da saúde no cuidado aos homens trans e às pessoas transmasculinas, ações dentre as quais inclui a promoção do acesso à uma transição de gênero assistida, segura, acolhedora e singularizada(7, 8). Logo, em convergência com a necessidade da implementação das ações supracitadas, este estudo revela contribuições diretas para a ciência e a prática em enfermagem. Sendo assim, este estudo foi guiado pela questão norteadora: como a transfobia repercute na saúde de homens trans e pessoas transmaculinas?
OBJETIVO
Analisar as repercussões da transfobia na saúde de homens trans e pessoas transmasculinas.
MÉTODOS
Aspectos éticos
Este estudo respeitou as recomendações éticas em todas suas fases. Para garantia do anonimato, os participantes foram identificados em coletiva através da figura metodológica denominada de DSC.
Referencial teórico-metodológico
Os resultados foram interpretados à luz da perspectiva teórico-política e socioantropológica das transgeneridades em saúde, mais especificamente com foco na transfobia, estruturada na análise de conceito proposta por Podestà(9), dedicado a designar e analisar as violências múltiplas cometidas contra as pessoas trans. Seu potencial de alcance pode afetar as travestis, pessoas não binárias e com outras identidades de gênero, decorrente da norma de gênero imposta pela cisgeneridade(9)
Tipo e cenário de estudo
Estudo qualitativo(10, 11). A pesquisa foi realizada em dois municípios do estado da Bahia, Brasil, e seguiu os critérios do Standards for QUality Improvement Reporting Excellence (SQUIRE 2.0) para a construção do protocolo de pesquisa.
Fontes de dados
Participaram 35 pessoas com identidade de gênero autor-referida como homens trans e três com identidade de gênero transmasculinas. Neste estudo, considerou-se homem trans pessoa cuja identidade ou expressão de gênero (masculino) é diferente do seu sexo (feminino) atribuído ao nascimento e pessoa transmasculina; pessoa cuja identidade possui alguma relação com ser homem ou com as masculinidades. Sob esse aspecto, ressalta-se que, na definição de homem trans e de pessoa transmasculina adotada pelos pesquisadores, não há qualquer referência ao sexo biológico. Tais definições foram elaboradas ancoradas na literatura científica acerca da temática(12).
A equipe de pesquisa foi composta de uma mulher trans, uma mulher cisgênera, um homem trans, uma pessoa não binária e dois homens cisgêneros, com formação de graduação em enfermagem e psicologia, especialização sob a forma de residência, mestrado e doutorado na área de enfermagem e saúde. Dois pesquisadores responsáveis pelo estudo já possuíam aproximação com parte do grupo investigado (primeiro grupo amostral), através de atividades de ensino e pesquisa em parceria da universidade e grupos com pautas voltadas à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais/Transgêneros, Queers, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não-Binários/Binárie e outras identidades (representadas pela identificação do +) (LGBTQIAPN+).
Os participantes foram acessados em diversificados espaços de pertença, tais como discotecas, bares, pontos de encontro, universidades, reuniões de coletivos e movimentos sociais, entre outros, e em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, no setor de Divisão de Atenção à População LGB-TQIAPN+, e em um ambulatório especializado no atendimento às pessoas trans, ambos no estado da Bahia, Brasil. Inicialmente, foram acessados por meio da estratégia de recrutamento consecutivo denominada de snowball(13), que possibilitou a criação de um primeiro grupo amostral denominado de “sementes” (dez participantes). Esse primeiro grupo foi estimulado a indicar novos participantes, que compuseram o segundo grupo amostral (28 participantes), o qual foi denominado de “filhos das sementes”.
A técnica empregada na seleção dos participantes possibilitou o alcance da amostragem teórica(14), a partir da densidade teórica dos dados coletados e a determinação da saturação teórica dos dados(15), que considerou os critérios de coocorrência, convergência e complementariedade dos dados. Foram excluídas do estudo pessoas com identidade agênero, travestis e que residiam em outros estados. Entre os 42 convites formulados, quatro pessoas se recusaram a participar do estudo, com a justificativa de ausência de tempo para a realização da entrevista.
Coleta e organização dos dados
A produção de dados ocorreu entre os meses de junho de 2019 e fevereiro de 2020, mediante entrevistas individuais em profundidade(16), agendadas segundo a disponibilidade dos participantes, realizadas em encontro único, guiadas por um roteiro semiestruturado composto pelas questões: fale-nos sobre você? Conte-nos sobre sua transição de gênero/transgeneridade? Descreva-se como o cuidado da sua saúde se dá? Diga-nos sobre suas experiências nos serviços de saúde? Realizaram-se entrevistas individuais no espaço acadêmico e nas instalações dos serviços de assistência social e de saúde, em local reservado, com garantia da individualidade, privacidade, preservação da imagem e anonimato das informações coletadas. Obtiveram tempo médio de uma hora, e foram gravadas, transcritas na íntegra, codificadas e organizadas mediante autorização dos participantes. Após as transcrições, as entrevistas foram disponibilizadas aos participantes, que avaliaram e concederam a anuência para a etapa de codificação e análise. Seguiram-se as recomendações dos critérios estabelecidos pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).
Análise dos dados
Os dados obtidos foram codificados e categorizados sob o suporte do software NVIVO®11, e, após validação pela equipe de pesquisa, foram submetidos à análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Essa técnica permite revelar figuras metodológicas a partir dos discursos, tais como expressões-chave (EC) e ideias centrais (IC), que compuseram os discursos-síntese (DS), o que possibilitou realizar a convergência e a complementaridade dos discursos a partir da leitura linha a linha e a busca das ocorrências, além de apreender os dados que expressaram o fenômeno de pensamento e a representação coletiva(17). A categorização obedeceu a uma segunda etapa de validação pela equipe de pesquisa.
As categorias foram organizadas e interpretadas a partir dos elementos propostos pelas teorias sociopolíticas e antropológicas que conceituam e explicam o fenômeno da transfobia(9), a saber: violências específicas, abjeções; sanções sociais naturalizadoras e normatizadoras; normatização de gênero dependente da cisgeneridade; punição e degradação da identidade social; e genocídio.
RESULTADOS
Os resultados são apresentados a partir dos dados de caracterização dos participantes (Quadro 1), de um modelo explicativo do fenômeno investigado e dos discursos-síntese, expressos por meio de Ideias-Centrais.
Características dos participantes do estudo - homens trans e pessoas transmasculinas. Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Caracterização dos participantes
Ressalta-se que, embora o estudo tenha focado no âmbito dos serviços de saúde, os discursos abrangeram outras dimensões da vida e sociabilidade transgênero, tais como ambiente familiar, escolar, universitário e laboral. Tal cenário encontra-se representado na Figura 1. Nela, representam-se a maneira cíclica como operam os fenômenos constituintes da transfobia e as repercussões de caráter interpessoal e intrapessoal provocados à vida e saúde de homens trans e pessoas transmasculinas, em um contexto permeado por múltiplas vulnerabilidades.
Modelo explicativo das repercussões psicossociais provocadas pela transfobia para homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Discurso-síntese 01: Repercussões interpessoais
As repercussões interpessoais percebidas pelos homens trans e pessoas transmasculinas identificadas no discurso dos participantes foram diversas e estão organizadas nessa categoria para revelar sua amplitude e complexidade.
Ideia central 1A: Violências no espaço privado com esgarçamento de vínculos familiares
Nesta IC, os participantes relataram sobre os conflitos vivenciados no espaço privado, atribuídos à recusa dos familiares em aceitarem a transgeneridade, os quais se sustentam nas crenças religiosas, nas noções de pecado e nas pressões exercidas por esses na tentativa de ajustar o corpo dos participantes à heteronorma. Esses conflitos são marcados por abusos físicos, abandono com expulsão da pessoa trans do ambiente familiar, rupturas do convívio e fragilização dos vínculos familiares, representados pelo Quadro 2:
Discurso do Sujeito Coletivo das violências no espaço privado com esgarçamento de vínculos familiares vivenciados por homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Ideia central 1B: Experiência do estigmatizado na elaboração de estratégias de proteção da identidade trans
Essa IC explicitou que os homens trans e as pessoas transmasculinas, ao perceberem as pressões para o enquadramento de sua identidade em uma norma rígida, e vivenciarem as violências tanto nos espaços privados quanto públicos, percebem as ameaças e buscam proteger tanto sua integridade física quanto emocional, adotando o autoisolamento, limitando os contatos sociais, agindo com o ocultamento das marcas do corpo que divergem da sua identidade de gênero (Quadro 3).
Discurso do Sujeito Coletivo da experiência de estigmatização e estratégias de proteção da identidade de homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Ideia central 1C: Discriminação no espaço escolar limita oportunidades profissionais
Nessa IC, os homens trans e as pessoas transmasculinas investigados recordaram das experiências de discriminação sofridas desde a infância em espaços escolares e o quanto essas vivencias impactaram negativamente sobre as suas emoções, produziram sentimento de vergonha e os desmotivou a estudar, o que contribuiu para o baixo desempenho educacional e formativo e a evasão dos espaços escolares e acadêmicos para seguir uma carreira profissional na vida adulta (Quadro 4).
Discurso do Sujeito Coletivo da discriminação no espaço escolar que limita oportunidades profissionais vivenciada por homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Discurso-síntese 02: Repercussões intrapessoais
Entre as repercussões intrapessoais provocadas pela transfobia na vida de homens trans e pessoas transmasculinas, foram destacados agravos à saúde física e mental, os quais comprometeram o autocuidado e o acesso ao sistema de saúde.
Ideia central 2A: As barreiras da transfobia para o auto-cuidado e acesso ao cuidado profissional
Essa IC evidenciou que a transfobia vivenciada nas instituições de saúde repercute sobre a motivação dos participantes para o autocuidado, estimulando a adotar medidas inseguras para o acesso a medicamentos de hormonização. Ademais, a ausência de serviços que considerem a singularidade das necessidades da população trans reduziu o nível de confiança dos homens trans e das pessoas transmasculinas investigadas. Isso impediu-os da formação de vínculos entre usuários e trabalhadores de saúde, o que implicou a baixa adesão aos cuidados de promoção à saúde e a negligência da atenção profissional aos cuidados durante os ciclos reprodutivos, na prevenção de cânceres relacionados ao aparato reprodutor e aos cuidados relacionados à hormonização (Quadro 5).
Discurso do Sujeito Coletivo das barreiras da transfobia para o autocuidado e acesso ao cuidado profissional vivenciadas por homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
Ideia central 2B: Consequências da transfobia sobre a saúde psicoemocional
Nessa IC, os participantes apresentaram as repercussões da transfobia sobre sua saúde psicoemocional. Apontaram a deflagração frequente de sentimentos de inadequação quanto ao corpo e autoimagem, autodepreciação e ideação suicida, e destacaram que há negação do nome com o qual se identificam nos espaços públicos. Por consequência, geram o afastamento dos mesmos, inclusive dos serviços que deveriam cuidar da saúde mental. Além disso, avaliaram a experiência como a mais vexatória e causadora de desconfortos já experenciada (Quadro 6).
Discurso do Sujeito Coletivo das consequências da transfobia sobre a saúde psicoemocional vivenciadas por homens trans e pessoas transmasculinas, Salvador, Bahia, Brasil, 2022
DISCUSSÃO
Este estudo investigou o discurso coletivo de homens trans e pessoas transmasculinas, e evidenciou que a transfobia provoca repercussões inter e intrapessoal que afetam fisicamente, socialmente e psicologicamente a vida e saúde de diferentes formas. A transfobia passa a ser demarcada pela manifestação do isolamento social, do estigma, do preconceito e da discriminação enquanto fenômenos múltiplos que podem influenciar de maneira concomitante. Esses fenômenos podem resultar em ações formuladoras de abajeção (ao formular uma condição de expressão de baixeza, desprezo e degradação da identidade) à transgeneridade(9), e contribuir para o surgimento de barreiras no acesso aos serviços de saúde, assim como de outros espaços de socialização, muitas vezes indispensável à vida cotidiana, como em ambientes educativos e de formação profissional em ambientes e/ou de trabalho, em repartições públicas e/ou privadas, em ambientes de lazer, assim como em espaços públicos(3, 7, 8).
Os achados do presente estudo também apontaram que a transfobia repercutiu em agravos à saúde física e mental dos investigados, motivados pela negação de direitos humanos essenciais, como no exercício livre, seguro e saudável da cidadania e da expressão das suas identidades, assim como pela violência institucional e degradação dos vínculos familiares, marcadas pelo afastamento do ambiente de convívio familiar e de habitação/abrigo. Tal conjunto de questões complexas apresentadas pode configurar diferentes aspectos da vulnerabilidade a que estão expostos os homens trans e as pessoas transmasculinas. Em decorrência da transfobia, indicam a necessária ampliação e fortalecimento do cuidado em enfermagem e das outras áreas da saúde às demandas e necessidades dessa população.
A ocorrência de violências específicas(9) deflagradas pela prática transfóbica provoca a insustentabilidade da convivência familiar, elevando as vulnerabilidades sociais/saúde, mediante a iniciação ao uso abusivo de álcool e outras drogas no decorrer da transição para o gênero autorreferido(18). Espaços familiares configurados por relações dialógicas fragilizadas, estressoras e violentas podem influenciar na saída de pessoas transgêneras dos espaços nucleares da família e vivência de danos patrimoniais e morais(19). Ademais, a não aceitação familiar pode resultar no suicídio de homens trans e pessoas transmasculinas, que desponda em níveis elevados, quando comparado com os homens cisgêneros(18,20). Tal cenário deve reforçar o trabalho em enfermagem de família, com avanços na problematização das transgeneridades em ações de planejamento familiar/reprodutivo, revisão do conceito de família, emprego ressignificado de instrumentos/aparelhos públicos e programas de saúde voltados aos adolescentes e às suas famílias, com vistas à melhoria da coesão, harmonia e do vínculo familiar no contexto da transgeneridade(21, 22, 23).
De acordo com pesquisa realizada com homens trans das cinco regiões do Brasil, 80,7% dos participantes alegaram ser a própria casa o ambiente de maior desrespeito que frequentavam(24). Com contextos demarcados pela religião, cuja lógica da pecaminosidade, ideia do “corpo sujo, indigno, pecaminoso e errôneo”, podem intensificar a transfobia perpetrada por membros da família contra a “pessoa gênero-divergente”. Essa realidade pode reverter em deflagração de sentimentos/emoções negativas, refletores da indignação e do impacto sofrido por parte daqueles que deveriam ser a fonte primária do apoio/suporte, da segurança/proteção e da expressão do afeto/amor(23, 24).
Diante disso, os domínios de atuação na prática clínica em enfermagem foram: segurança/proteção; controle do estresse; papéis e relacionamentos. Esse último foi tanto direcionado aos homens trans e às pessoas transmasculinas quanto aos seus familiares (desempenho de papéis sociais, interação social, relacionamento socioafetivo, tensão no papel de cuidador, conflito no papel de pai/mãe, relações familiares - processos familiares disfuncionais, vínculos prejudicados)(25). Destarte, necessitam ser fortalecidos na terapêutica de enfermagem junto às famílias de pessoas trans, em interface com as demais áreas da saúde e das ciências sociais/humanas, como psicologia, pedagogia, terapia ocupacional, serviço social.
A convivência de homens trans e transmasculinas no espaço societário tem se mostrado hostil e perversa, por vezes solitária, decorrente do estigma e discriminação que impõe o isolamento social(4, 18), em razão da sanção social naturalizada/normalizadora contra a transgeneridade(9). A busca pelo enfrentamento da estereotipia de gênero e do escasso amparo/suporte social tem sido experenciada em larga escala pela comunidade trans, que ainda carece de dispositivos públicos que garantam sua segurança e proteção social e humana.
Diante dessa circunstância difícil, emergem, muitas vezes, o medo de sofrer violência nos espaços em que transitam, o que gera maior restrição aos ambientes domésticos (para quem não se encontra em situação de rua), e a diminuição da interação o socioafetiva, livre direito de ir e vir/participar/conviver em sociedade(20). Sendo assim, recomenda-se que os profissionais de enfermagem e das outras áreas da saúde atuem diante do enfrentamento ineficaz, do sentimento de impotência e da resiliência prejudicada, que possam derivar da consequente estigmatização experenciada pelos homens trans, em diálogo com o poder público, formuladores de políticas públicas, gestores educacionais em saúde, ativistas, lideranças comunitárias e do movimento social organizado.
Frente a essas circunstâncias, homens trans e transmasculinas podem se tornar discretos, quase que invisíveis aos olhos das pessoas, em razão do receio de expressarem socialmente as suas identidades e estabelecerem as suas leituras corporais diante dos outros, mediante o temor da deslegitimação, constrangimento, humilhação e outras formas de violências e opressões sociais(23, 24). Sob essa problemática, os nossos achados deste presente estudo revelaram que tal fato pode relacionar-se com a maneira como os homens trans e as pessoas transmasculinas lidam com a autoimagem e a imagem corporal, como no caso das mamas, órgão que confere um comprometimento à “passa-bilidade” e à configuração do arquétipo corporal e à estética da figura masculina(23) no imaginário social. Diante disso, é salutar a criação de linhas de cuidado específicas para a atenção à saúde especializada, integral e equânime na rede de saúde disponível à população trans, além da qualificação das equipes de enfermagem na promoção do cuidado à saúde com vistas à valorização das identidades trans, à autoimagem/percepção e ao autoconceito.
A problemática da autoimagem transgênera, que pode ser deteriorada pela transfobia, pode ser potencializada com as fragilidades dos serviços públicos na oferta de ações que contribuam para a promoção da visibilidade trans, a saber: grupos de apoio; formação de coletivos; construção de redes afetivas com vistas à amizade entre a população trans usuária dos serviços (grupos de “pertença”) e a interação (“entre pares”) entre os trabalhadores, profissionais de saúde e os usuários(26). Desse modo, as equipes de enfermagem poderão ser úteis na construção e no acompanhamento dessas relações, além de incentivarem os homens trans e as pessoas transmasculinas a elevarem a autoestima e construir/manter o autocuidado, com vistas ao estabelecimento de hábitos de vida saudáveis.
As contribuições derivadas do suporte social também podem abrir um espaço oportuno para o incremento das intervenções de enfermagem voltadas à produção de tecnologias para a população trans(27), como o estabelecimento de roteiros de consulta de enfermagem e a criação de planos de cuidado, mediante a formulação de diagnósticos, resultados e intervenções de enfermagem voltados à identidade de gênero/transgeneridade.
O que tem sido descrito, até esse ponto, como exclusão social, heteronormatividade dos corpos, rejeição, assassinato e inúmeras outras violências físicas, mentais, simbólicas ou estruturais, compõe o genocídio de pessoas trans(8, 18). Face a esse contexto, dos 984 casos de assassinatos perpetrados contra pessoas transgêneras entre 2002 e 2016 no Brasil, revelados em uma pesquisa, 76,8% foram realizados em vias públicas, o que coloca essa parcela da população em um estado de vulnerabilidade perene(6), também apontado em outra investigação realizada na região Nordeste(24).
A luta constante entre a invisibilização das identidades trans e a rejeição da pessoa transgênera, reforçada também pelos nossos achados, chama a atenção para a união de esforços interprofissionais, transdisciplinares e intersetoriais quanto ao enfrentamento da violência, que é decorrente da cisgeneridade patriarcal hegemônica e compulsória. Isso tem levado ao aparecimento de patologias psiquiátricas com manifestações clínicas persistentes, as somatizações psicoemocionais de manejo difícil, diante de contextos de automutilação e suicidabilidade, além dos homicídios, que têm ceifado a vida dessas pessoas(3).
Decorre que há, no âmbito da manifestação da transfobia, uma linha tênue entre o que a violência é percebida e enfrentada nos serviços de saúde e em outras instituições. Tal problemática pode contribuir para a naturalização da violência (transfobia), ainda que possa se configurar autolesiva e/ou autolítica para a população trans. Destarte, a repercussão psicossocial transfóbica perpetrada nas repartições públicas e/ou privadas (instituições financeiras, setores jurídicos, organizações de trabalho) pode confirmar a negação e deslegitimação das pessoas transgêneras nesses espaços, facultar/reforçar a reafirmação da transfobia institucionalizada, diante da repetição, e ferir os princípios constitucionais legais já adquiridos, como uso do nome social, retificação de nome e gênero(4, 28). Desse modo, torna-se emergencial a ampliação da rede de atenção psicossocial e o trabalho em enfermagem em saúde mental direcionado aos homens trans e às pessoas transmasculinas.
A existência da transfobia nos serviços de saúde configura erro e infração grave à garantia dos princípios do SUS, que prevê a universalidade, a integralidade e a equidade na atenção à saúde(23). Embora haja, cotidianamente, o não cumprimento desses princípios e pressupostos contidos na Carta dos Direitos dos Usuários do SUS(23) (problemática perturbadora para a saúde de pessoas trans), a transfobia necessita ser encarada como um expressivo problema de saúde pública. Efeitos deletérios da transfobia implicam diminuição da sobrevida, precariedades na produção do cuidado em saúde, afastamento da população trans dos serviços de saúde e distanciamento dos espaços comunitários saudáveis de convivência (parques, praças, academias ao ar livre). Além disso, evidenciam-se comprometimento do crescimento/desenvolvimento infantil, danos na aprendizagem, déficits intelectuais, mediante a cisheteronormatividade(28).
A transfobia pode ocasionar dificuldade na inserção dos homens trans e das pessoas transmasculinas no mercado de trabalho formal, na manutenção da empregabilidade, renda e segurança financeira(29), impactando a subsistência de pessoas trans(28, 29, 30), diante da normatização institucional de gênero dependente da cisgeneridade(9). Nesse sentido, a precariedade financeira traz danos reais à saúde física: baixa qualidade de vida; acesso dificultado aos insumos necessários às mudanças corporais almejadas (aquisição de hormônios seguros e de qualidade); não cumprimento de agendas terapêuticas (consultas/avaliações clínicas, acompanhamento, exames diagnósticos, procedimentos corporais cirúrgicos ou não)(23). Diante disso, a necessidade de manter a renda pode implicar a adoção de estratégias que garantam a “passabilidade” tranasmasculina, por meio do ocultamento de quaisquer características lida socialmente como feminina, o que pode explicar o uso constante do dispositivo denominado de “binder”, utilizado por muitos homens trans e pessoas transmasculina para dispositivos para disfarçar as mamas, comprimindo-as, diante do temor pela punição e degradação da identidade nos ambientes de trabalho(9), como evidenciado neste estudo.
O abandono de pessoas trans dos ambientes escolares necessita de ampla atenção do setor saúde. Há evidências na literatura que apontam para a instituição escolar como promotora da transfobia, diante da ocorrência de rechaços, lixamentos e do bullying, o que implica abandono e evasão escolar, tanto das pessoas trans quanto das travestis(30, 31). Destarte, quando as escolas não dispõem de estratégias pedagógicas para lidar com a transgeneridade nesses espaços, deriva-se a instalação de uma cultura transfóbica, como evidenciado no presente estudo. Nesse sentido, contextos transfóbicos também poderão se perpetuar nos ambientes universitários, o que contribui para deslegitimar a presença e a permanência dessa população nas universidades.
Derivam dessa problemática supra descrita a necessidade perene da advocacia de direitos mínimos, o manejo de relações conflituosas entre colegas de classe, professores e funcionários e a gestão do sofrimento psíquico(30). Sendo assim, torna-se imprescindível a articulação dos profissionais de enfermagem junto aos aparelhos disponíveis na rede (escolares, universidades, centros formativos), considerando, principalmente, a população afetada, diante da iniquidade socioeconômica e educacional provocada dentro das repartições(30-32).
Diante do comprometimento do bem-estar psicológico das pessoas trans, especialmente no Brasil, ressalta-se a atenção por parte das autoridades públicas quanto ao avanço nos programas de saúde da população trans/travesti, como Processo Transexualizador no SUS(33), revisto pela Portaria no. 2.803/2013. A revisão dos protocolos clínicos/assistenciais ainda é permeada por contornos patologizantes, como determinação obrigatória de acompanhamentos psicológicos e psiquiátricos para a obtenção do laudo médico para iniciar a hormonização e o acompanhamento médico endocrinologista(32). Tal fato ascende um debate público necessário acerca da genocidade da população transgênero brasileira(9), diante de situações complexas como: burocratização do sistema de saúde; hormonização e cirurgias clandestinas; manutenção de redes ilegais de compra/venda de testosterona sem prescrição médica; charlatanismo médico e em saúde; distanciamento/relutância à atenção ginecológica(34); inseminação caseira; estigmatização(35); abando do acompanhamento psicossocial; e adoecimento mental (transtornos de ansiedade, humor e personalidade, crises maníacas, depressão)(36).
Por fim, é relevante enfatizar que a identidade de gênero compõe um dos aspectos da personalidade e integra a construção social da pessoa, carecendo de melhor compreensão, a fim de que a transgeneridade não seja patologizada e nem estigmatizada(37). Nesse sentido, convocam-se a categoria profissional de enfermagem e as demais áreas da saúde a dedicar atenção a essa problemática, estabelecendo estratégias de fortalecimento da formação(38) e a configuração de uma nova epistemologia de cuidado em enfermagem e saúde(39).
Limitações do estudo
As limitações deste estudo residem no uso de entrevistas como único recurso de acesso às narrativas sobre a experiência, o que pode ter ampliado a censura dos participantes em tratar de questões face a face com os pesquisadores, além de não permitir uma triangulação metodológica e o olhar sobre os diversos prismas da experiência. Além disso, não foram realizadas a ambientalização e a aculturação preliminar à coleta dos dados, o que pode ter impactado a construção de vínculos junto aos grupos amostrais e ter limitado o alcance da profundidade dos dados autorrelatados.
Contribuições para a enfermagem
O estudo aporta contribuições para o ensino e a formação em enfermagem, pois explicita aspectos essenciais para o cuidado e a assistência prestada às pessoas trans. Também aporta contribuições para a pesquisa, por evidenciar um conhecimento novo, e para a prática, por indicar necessidades de melhoria clínico-assistencial e para o campo da gestão/gerenciamento em enfermagem. Além disso, fornece subsídios para a emancipação política de homens trans e pessoas transmasculinas, estimulando o avanço de políticas públicas específicas nos sistemas de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transfobia compromete as relações inter e intrapessoal de homens trans e pessoas transmasculinas, com repercussões que afetam sua vida e, consequentemente, a saúde, nas dimensões física, emocional, afetiva e social, deixando-os em uma situação de alta vulnerabilidade. A riqueza e a saturação dos dados confirmam repercussões da transfobia e sinalizam para necessidade de divulgar e discutir aspectos que interferem na saúde vinculadas à diversidade de gênero, no sentido de ampliar a visão acerca de especificidades sobre pessoas trans, visando, sobretudo, atender aos princípios constitucionais e do SUS e mobilizar o cuidado de enfermagem para a emancipação com a intervenção das diferentes fontes de transfobia, especialmente a institucionalizada no sistema de saúde.
Os achados apresentam oportunidades para o campo da enfermagem e demais áreas da saúde atuarem diante das repercussões da transfobia diante do sofrimento de homens trans e pessoas transmasculinas. Além disso, conferiu subsídios a serem explorados, em níveis interdisciplinares, interprofissionais e intersetoriais, à problemática da transfobia, que extrapola a presença do público investigado nos ambientes dos serviços de saúde, alcançando outros espaços essenciais à vida humana em coletividade e, portanto, necessitam ser levados em consideração a partir de uma dimensão de saúde pública.
AGRADECIMENTO
Agradecemos a Dra. Fran Demétrio (em memória), por seus ensinamentos, solidariedade para com o campo da Enfermagem, vigilância e mobilização na defesa dos direitos humanos e essenciais das pessoas trans/transgêneros no Brasil, dentro da Universidade e fora dela.
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Editado por
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EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida FilhoEDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
12 Out 2022 -
Aceito
25 Mar 2023