Alguns profissionais da enfermagem, no Brasil, têm a formação como enfermeiro e licenciado, contemplando a possibilidade de atuação como enfermeiro na Rede de Atenção à Saúde e em qualquer cenário, no qual haja a inserção de atividades que requerem a sua atuação, e como professor na educação profissional técnica de nível médio (EPTNM), modalidade da educação básica.
Essa formação vem sendo ofertada, especialmente, nas universidades públicas, por curso de bacharelado e licenciatura composto de forma integrada, com saberes das ciências biológicas e humanas, principalmente do campo da educação. Essa composição pode favorecer a apropriação de uma base sólida de conhecimentos que estruturam a práxis profissional. Trata-se, pois, da possibilidade de formação envolvendo dois campos profissionais: a enfermagem e a docência.
Historicamente, há frágil política de formação docente para a EPTNM no Brasil. A valorização da inserção de professores com formação consistente que contribuam para a formação emancipadora representa uma contradição. De um lado, nos moldes conservadores, basta o profissional de dada área que ensinará o fazer ao trabalhador técnico. Por outro lado, em perspectiva transformadora, a atuação do professor com visão ampla, nas dimensões político-sociais, pedagógicas e técnicas, potencializará o questionamento do status quo.
É nessa perspectiva que cabe à formação assegurar aos trabalhadores da saúde não somente as capacidades para a realização do cuidado humano, mas estimular uma consciência crítica de si e de sua realidade, o que implica também tomar como norte do trabalho formativo os fundamentos da Reforma Sanitária que, em síntese, fazem-se presente no binômio saúde-democracia(1).
Dado o contingente numérico dos auxiliares e técnicos de enfermagem que conformam a maioria da equipe de saúde, a atuação do enfermeiro licenciado na defesa de um projeto de formação a favor das necessidades sociais, do Sistema Único de Saúde (SUS) e da dignidade humana é de extrema importância. Essa defesa se mostra ainda mais relevante no atual cenário político-econômico, no qual o ideário neoliberal avança, encolhendo as políticas sociais a favor da mercantilização, intensificando as desigualdades sociais. Exercer a docência implica assumir um projeto de educação, saúde e sociedade que precisa ser traduzido nas decisões político-pedagógicas que vão além da sala de aula e dos conteúdos específicos a serem ensinados, inserindo-se nas relações sociais mais amplas.
Isso significa que há exigência de que o professor da EPTNM tenha uma formação como enfermeiro socialmente referenciada e com conhecimentos consistentes em distintas dimensões, que permitam o compromisso com o cuidado em saúde a partir dos princípios do SUS. É também necessário que o professor enfermeiro tenha amplo conhecimento sobre aspectos epistemológicos da educação, políticas de educação e currículo como produção histórica e desdobramentos didáticos advindos na especificidade da EPTNM e na área da saúde/enfermagem.
Essas ideias sobre os conhecimentos do campo educacional vêm ao encontro da categorização dos saberes que todo professor precisa dominar, devendo fazer parte do seu processo formativo: saber atitudinal; crítico-contextual; específicos; pedagógico e didático-curricular(2). Encaminhar a proposta de formação docente, todavia, na direção ora delineada, vem exigindo processos de enfrentamento e resistências, considerando as atuais políticas de formação de professores para a educação básica com predominante cunho pragmático, desvalorização da autonomia intelectual e da tomada de decisões dos professores, bem como o posicionamento do Conselho Nacional de Educação/MEC, que, ao analisar o documento que propõe novas Diretrizes Curriculares para a Enfermagem, em abril de 2021, desconsidera a licenciatura.
A formação do enfermeiro licenciado, por si só, não transforma as condições concretas de trabalho do professor ou o projeto formativo proposto nas escolas técnicas, uma vez que qualquer transformação do sistema educacional implica mudança estrutural e conjuntural na direção de uma sociedade democrática, justa e igualitária(3). Todavia, dialeticamente, a formação humana, compreendida como aquela que garante ao trabalhador uma formação completa que propicie a leitura do mundo e a atuação como cidadão integrado à sociedade política(4), é dimensão fundamental da transformação social.
Referências bibliográficas
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1 Bomfim MI, Rummert SM, Goulart VM. Educação profissional em saúde: o sentido da escola pública e democrática. Rev COCAR [Internet]. 2017[cited 2021 Oct 04];3(ed-Esp):322-43. Available from: https://paginas.uepa.br/seer/index.php/cocar/article/viewFile/1294/812
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2 Saviani D. Educação escolar, currículo e sociedade: o problema da Base Nacional Comum Curricular. Movimento Rev Educ. 2016;3(4):54-84. https://doi.org/10.22409/mov.v0i4.296
» https://doi.org/10.22409/mov.v0i4.296 -
3 Associação Nacional Pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope). Documento final do XX Encontro Nacional da Anfope - Política de formação e valorização dos profissionais da educação: resistências propositivas à BNC da formação inicial e continuada[Internet]. 2021[cited 2021 Oct 04]. Available from: http://www.anfope.org.br/wp-content/uploads/2021/04/20%E2%81%B0-ENANFOPE-%E2%80%93-Documento-Final-2021.pdf
» http://www.anfope.org.br/wp-content/uploads/2021/04/20%E2%81%B0-ENANFOPE-%E2%80%93-Documento-Final-2021.pdf - 4 Ciavatta M. A formação integrada: a escola e o trabalho como lugares de memória e de identidade. In: Frigotto G, Ciavatta M, Ramos M. Ensino Médio Integrado: concepções e contradições. 3ª ed. São Paulo: Cortez; 2012. p 83-106.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Mar 2022 -
Data do Fascículo
2022