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O trabalho em Enfermagem e a construção de uma sociedade democrática

No Brasil, o trabalho em enfermagem é realizado por expressivo contingente de trabalhadores, que, de acordo com o último levantamento realizado pela Associação Brasileira de Enfermagem, somava 1.856.683 profissionais, em sua maioria mulheres, distribuído em três categorias profissionais: Enfermeiros, Técnicos e Auxiliares de Enfermagem que atuam na rede pública e privada de saúde. Com baixos salários em relação a outros trabalhadores da área, cumprem extensas jornadas e rodízio de escalas (inclusive noturnas), vivenciam relações autoritárias e convivem constantemente com dor, perda e morte de pacientes, o que torna este trabalho difícil(11 Felli VEA, Baptista PCP. Saúde do Trabalhador de Enfermagem. Barueri, SP: Manole; 2015.).

Os aspectos de importância, necessidade, desgaste, penosidade, realização, satisfação, entre outros que compõem a natureza do trabalho em si, também estão presentes no exercício da enfermagem. São características decorrentes da relação entre capital e trabalho – relação entre pessoas detentoras de saberes e fazeres que exercem dado ofício mediado por pessoas que detém os meios para que aquelas realizem suas ações e atividades de produção.

O Brasil é um país organizado geopoliticamente como República Federativa, tendo como modelo econômico vigente o capitalismo, em que as relações entre capital e trabalho ocorrem na base da obtenção de maior lucro ou acumulação possível. Por isso se assiste a uma série de inovações nessas relações, a fim de beneficiar modalidades cada vez mais favoráveis à ascensão do capital em detrimento do trabalho e respectivos trabalhadores.

A proposta temática do 69º Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBEn) almeja discutir o tipo de democracia que existe no Brasil, possíveis influências na situação da enfermagem brasileira e a democracia que a Associação Brasileira de Enfermagem defende: inclusiva, livre e justa. A sociedade democrática pode ser entendida como uma ordem social e política que garante a seus membros igualdade de status social, podendo ser exercida em dois modelos: democracia competitiva ou participativa. O primeiro modelo citado é próprio das sociedades industrializadas, enquanto o segundo exige uma sociedade esclarecida e capaz de participar coletivamente da tomada de decisões a serem concretizadas pelo poder executivo.

A democracia competitiva representa um método de seleção de uma elite política capaz de tomar decisões legislativas e administrativas necessárias para o bem-estar da coletividade. As características-chave dessa democracia são a existência de um ambiente de concorrência entre elites e partidos políticos rivais, um corpo independente e bem treinado de administradores e limites constitucionais e práticos do alcance efetivo da decisão política(22 Santos RC. A democracia capturada: poder econômico poluidor da democracia brasileira: sistemas de controle. [Dissertação]. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. 2017[cited 2017 Jan 14];112 f. Available from: http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/3121
http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/te...
). Nesse tipo de democracia, a principal competição é entre os membros da elite pelo VOTO de um eleitorado mal informado e/ou emocionalmente orientado, uma cultura política que incentiva o surgimento de camadas de peritos e gestores tecnicamente qualificados, além da concorrência pelo Poder e por vantagens entre os Estados no sistema internacional(22 Santos RC. A democracia capturada: poder econômico poluidor da democracia brasileira: sistemas de controle. [Dissertação]. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. 2017[cited 2017 Jan 14];112 f. Available from: http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/3121
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).

A democracia participativa, tal como descrita por Habermas, justifica o exercício do poder político pautado no debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação. Advoga que a legitimidade das decisões políticas advém de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e da justiça social, conferem um reordenamento na lógica de poder político tradicional(33 Habermas J. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. Beno Siebeneichler F. (Trad.), V. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.).

De qualquer modo, somente haverá de fato uma sociedade democrática se a igualdade social for garantida pela justiça distributiva dos três conjuntos de direitos para todos os cidadãos: direitos civis, políticos e sociais. Os direitos sociais, entre os quais o direito ao trabalho, são os que devem garantir que todos tenham condições materiais tidas como imprescindíveis para o pleno gozo dos outros direitos, e por isso se concretizam a partir de intervenção do Estado na ordem social para diminuir as desigualdades sociais, tendendo a possuir um custo excessivamente alto e a se realizar em longo prazo. É o caso de políticas públicas de saúde, educação e assistência social, por exemplo.

Particularizando um pouco, vê-se que o trabalho em Enfermagem nos coloca de frente com a desigualdade de qualificação característica de uma democracia competitiva: nível médio e nível universitário, que originam duas funções diferentes no mesmo campo de conhecimento, no qual se reconhece que essa divisão do trabalho pode só na superficialidade do discurso ser tida como técnica ou intelectual. No íntimo, é uma divisão social, posto que nem todos alcançam o nível universitário num país de profundas desigualdades sociais.

Essa diferença é um dos elementos que dificultam o reconhecimento por essas duas categorias profissionais de que o trabalho que desenvolvem é propício à busca de uma sociedade democrática para além da competição entre os membros da elite, diretamente para uma democracia participativa, sendo este o modelo defendido e desejado, para o qual o trabalho em Enfermagem pode contribuir e cujo potencial pode ser visto em três dimensões: a primeira, no exercício da saúde coletiva, pela capacidade que tem de adentrar o domicílio e nele desenvolver trabalho de orientação para promover e proteger a saúde e prevenir doenças, o que revela iniquidades sociais que têm o poder de impelir a comunidade a se organizar para lutar pelos seus direitos; a segunda pela ação educativa que pode mudar perspectivas de vida e até mesmo contrariar os interesses do setor produtivo em saúde, tanto pela educação em saúde como pela formação de novos profissionais dentro desta perspectiva crítica; e a terceira pela ação de cuidar em situação de adoecimento, com todo o aparato técnico, científico e tecnológico que acumulou desde a sua constituição como profissão no século XIX, quandopassa a intervir organizadamente na pessoa, sua família e coletividade.

Pela justificação social que a mantém no mundo como essencial, o escopo da Enfermagem não é, nunca foi e, enquanto for enfermagem, não será a cura de ninguém, mas o CUIDAR das pessoas no seu contexto e circunstância de vida, inclusive nas necessidades em saúde individual e coletiva. Nesta condição, a Enfermagem resumida a procedimentos não é capaz de participar da construção de uma sociedade democraticamente inclusiva. Para que possa contribuir, a formação política é essencial para que a Enfermagem possa se desenvolver plenamente, porque os profissionais dotados de consciência política lutarão pelos direitos sociais para si e para os outros, aqueles de quem cuidam.

Neste processo, o aprimoramento técnico é necessário e desejável pela compreensão de que o ato de cuidar precisa ser atualizado, resolutivo, com o maior benefício e o menor risco, sendo a pesquisa a principal fonte de aprimoramento quando seus resultados impactama prática social cotidiana. Nesta perspectiva, a busca pelas melhores evidências de cuidados de enfermagem pode deixar de ser estratégia competitiva para se tornar fonte de um cuidado de enfermagem mais adequado. Neste sentido é que deve caminhar a Enfermagem, e aqui se pode dizer: os cidadãos usuários são nossos maiores e melhores aliados.

O 69º CBEn é mais uma realização da Associação Brasileira de Enfermagem por meio da Seção Alagoas, com apoio de todas as Seções e Regionais. Com o tema central “O trabalho de enfermagem na construção de uma sociedade democrática”, propõe provocar amplo e profundo debate entre os participantes sobre o trabalho em enfermagem no Brasil, especialmente em um contexto de desmonte de direitos trabalhistas e previdenciários, bem como da política e do sistema público de saúde do estado brasileiro – o SUS, espaço essencial de exercício pleno de direitos, dos saberes e fazeres que nos competem.

REFERENCES

  • 1
    Felli VEA, Baptista PCP. Saúde do Trabalhador de Enfermagem. Barueri, SP: Manole; 2015.
  • 2
    Santos RC. A democracia capturada: poder econômico poluidor da democracia brasileira: sistemas de controle. [Dissertação]. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. 2017[cited 2017 Jan 14];112 f. Available from: http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/3121
    » http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/3121
  • 3
    Habermas J. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. Beno Siebeneichler F. (Trad.), V. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017
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