Open-access Deliberação moral de enfermeiros no processo de cuidar de crianças

RESUMO

Objetivo:  Compreender a deliberação moral de enfermeiros diante de um problema ético envolvendo o aleitamento materno.

Método:  Estudo qualitativo, fundamentado no referencial teórico-metodológico da bioética deliberativa. A coleta de dados foi através de entrevista orientada por vinheta e os resultados foram organizados por análise temática.

Resultados:  Os enfermeiros tendem a assumir cursos de ações intermediários, todavia, são encontrados cursos de ação extremos.

Considerações finais:  Quando tendem a cursos de ação extremos, os enfermeiros acercam-se das decisões voltadas para o bem-estar da criança, em detrimento das necessidades da mãe, enquanto mulher trabalhadora.

Descritores: Bioética; Saúde da Criança; Enfermeiros de Saúde da Família; Aleitamento Materno; Tomada de Decisões

ABSTRACT

Objective:  To understand the nurses’ moral deliberation in the face of an ethical problem involving breastfeeding.

Method:  Qualitative study based on the methodological theoretical framework of deliberative bioethics. Data collection was through a vignette-based interview and results were organized by thematic analysis.

Results:  Nurses tend to take over intermediate courses of action, although extreme courses of action are found as well.

Final considerations:  When they tend to take extreme courses of action, nurses approach decisions focused on the child welfare to the detriment of the mother’s need as a working woman.

Descriptors: Bioethics; Child Health; Family Nurse Practitioners; Breastfeeding; Decision Making

RESUMEN

Objetivo:  Comprender la deliberación moral de los enfermeros que enfrentan un problema ético relacionado con la lactancia materna.

Método:  Investigación cualitativa, basada en el marco teórico metodológico de la bioética deliberativa. La recolección de datos se realizó mediante una entrevista basada en viñeta y los resultados se organizaron mediante el análisis temático.

Resultados:  Los enfermeros tienden a tomar cursos de acción intermedios, sin embargo, se encuentran cursos de acción extremos.

Consideraciones finales:  Cuando tienden a tomar cursos de acción extremos, los enfermeros abordan las decisiones sobre el bienestar del niño, en detrimento de las necesidades de la madre como mujer trabajadora.

Descriptores: Bioética; Salud del Niño; Enfermeros de Familia; Lactancia Materna; Toma de Decisiones

INTRODUÇÃO

Na bioética e na enfermagem, há uma variedade de métodos para compreender a tomada de decisão e a análise dos problemas éticos. Para o presente estudo, foi eleito o modelo de Deliberação Moral (DM) (1). Esse método possibilita acolher a demanda das pesquisas em bioética e integrar a perspectiva empírica com a perspectiva normativa na construção do conhecimento, contribuindo para que o pesquisador realize a descrição e a crítica dos resultados encontrados, com o intuito de propor cursos de ação para a prática (2).

Por se tratar de um método, a DM é constituída como um procedimento de análise para a tomada de decisões práticas (3). Estrutura-se nas seguintes fases: apresentação do caso clínico e discussão dos aspectos clínicos e éticos do caso; identificação dos problemas morais apresentados; eleição do principal problema moral; identificação dos cursos de ação possíveis (extremos, intermediários e ótimo); deliberação sobre o curso de ação ótimo; decisão final (1). Esse itinerário permite que, diante de um problema ético, seja feita a necessária investigação sobre os fatos, valores e deveres, a fim de deliberar o curso de ação ótimo para lidar com a situação em questão (2). Cada uma das saídas para o caso clínico é considerada como um curso de ação (1).

A partir da DM, é ampliada a incerteza dos profissionais para tomar uma decisão ética e a corresponsabilização das equipes multiprofissionais, pois a abordagem apropriada da complexidade de situações eticamente problemáticas permite ponderar as circunstâncias específicas de cada caso (4). Os resultados alcançados fazem parte de um processo dinâmico, sempre inacabado, consequentemente passível a mudanças, e que requer revisões e retomadas (5).

A atenção à saúde da criança é uma dimensão do cuidado em que podem emergir problemas éticos, e a Estratégia Saúde da Família (ESF) pode ser um local de eleição para a análise deliberativa efetuada pelos enfermeiros.

A Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno (ATSCAM) propõe modelos de atenção que integram ações de promoção, vigilância, prevenção e assistência em quatro linhas de cuidado prioritárias: Promoção, Proteção e Apoio ao Aleitamento Materno; Prevenção de Violências e Promoção da Cultura de Paz; Incentivo e Qualificação do Acompanhamento do Crescimento; e Desenvolvimento e Atenção à saúde do recém-nascido. Para que se efetive a oferta de uma atenção integral à saúde da criança, as ações e as linhas devem estar inter-relacionadas na prática (6).

As linhas de cuidado estão inseridas no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS) e promovem o acompanhamento sistemático das crianças menores de cinco anos por meio do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e a ESF. Buscam desenvolver o vínculo com as famílias, o acolhimento, a corresponsabilidade e a resolutividade dos serviços. Tudo isso é somado ao benefício do plano das ações, destinado aos principais problemas da população e com a referência da realidade local (7).

O acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança deve ser realizado regularmente nos primeiros anos de vida e é responsabilidade do enfermeiro e do médico. Dentre as orientações previstas para essa consulta, destaca-se o reforço do Aleitamento Materno Exclusivo (AME) (8).

O aleitamento materno é classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de cinco formas: Aleitamento Materno Exclusivo (AME); Aleitamento Materno Predominante (AMP); Aleitamento Materno (AM); Aleitamento Materno Complementado (AMC); e Aleitamento Materno Misto ou Parcial (AMM). O AME é preconizado até o sexto mês de vida do lactente. Depois desse período, a manutenção do AM pode seguir até os dois anos de idade da criança, associado à alimentação complementar (9). Para as crianças que não estão em aleitamento materno, é possível utilizar o leite de origem animal (leite de vaca diluído em água) ou as fórmulas infantis (leites industrializados) (10).

As questões que envolvem a manutenção do aleitamento materno têm sido objeto de diversas investigações brasileiras, baseadas em diferentes perspectivas como direitos reprodutivos (11), vulnerabilidade programática e cuidado (12). Há também estudos internacionais com enfoque no conceito de autonomia materna (13) e na relação entre Autonomia Relativa e Comportamento de Aleitamento Materno (14). Todavia, não foi encontrado estudo algum sobre a manutenção do AME abordado enquanto problema ético no processo de cuidar da criança.

OBJETIVO

Compreender a deliberação moral de enfermeiros diante de um problema ético envolvendo o aleitamento materno.

MÉTODO

Aspectos éticos

Este estudo atendeu as normativas éticas da Resolução 466/2012 e foi aprovado conforme parecer emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia.

Tipo de estudo

Estudo qualitativo, fundamentado no referencial teórico-metodológico da bioética deliberativa, contendo coleta de dados com entrevista orientada por vinheta (com um problema ético) e resultados organizados pela análise temática.

Procedimentos metodológicos

Cenário de estudo

A pesquisa contou com a participação de 14 Enfermeiros (E) atuantes na ESF, tanto em zona rural, como em zona urbana, no município de Feira de Santana, estado da Bahia.

Fonte de dados

A seleção dos entrevistados foi intencional, com a perspectiva de alcançar um grupo heterogêneo. Para representar a variabilidade dos enfermeiros na ESF e considerar possíveis peculiaridades intervenientes na abordagem do fenômeno em estudo, foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: maior e menor tempo de formação; gênero; área de atuação (zona rural e zona urbana); e, no caso de mulheres, ter engravidado durante o período de trabalho na Unidade de Saúde da Família (USF). A saturação teórica de dados foi utilizada para finalizar as entrevistas, ou seja, estas foram encerradas após a coleta do material necessário para compreender a deliberação moral das enfermeiras (15).

Nesse sentido, participaram da pesquisa 14 enfermeiros da ESF, dos quais 12 do sexo feminino e dois do sexo masculino, com variação etária de 31 a 64 anos. O tempo de conclusão da graduação foi de dois a 32 anos e o tempo de trabalho na ESF, de sete meses a 18 anos.

Coleta e organização dos dados

A técnica de coleta de dados adotada foi a vinheta, que consiste em uma breve descrição de dada situação, onde os entrevistados são convidados a apresentar suas possíveis reações, e ao pesquisador, é facultado fazer questionamentos do tipo aberto ou fechado (16).

O tema da vinheta (aleitamento materno) foi escolhido a partir da frequência com que os problemas éticos eram identificados pelos enfermeiros no contexto da saúde da criança, através do preenchimento de um inventário na fase quantitativa do estudo (17). A vinheta apresentada foi:

Dona JSM, cadastrada na ESF Z, foi acompanhada pela enfermeira MC durante o planejamento familiar e depois no pré-natal. Durante o pré-natal, foi orientada, desde a primeira consulta, sobre o papel do aleitamento materno exclusivo no crescimento infantil até o sexto mês de vida da criança. Depois do nascimento do seu filho, ela passou a levá-lo para as consultas de Acompanhamento do Crescimento e Desenvolvimento infantil (ACD) com a mesma profissional. Quando a criança fez dois meses, Dona JSM solicitou que a enfermeira orientasse o nome de um leite artificial para a alimentação da criança, pois voltaria a trabalhar e não poderia mais continuar amamentando.

As entrevistas foram realizadas individualmente, nas USF e na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), atendendo ao interesse dos enfermeiros. Ao final da exposição da vinheta, questionava-se: O que você recomendaria para a resolução do problema e por quê? A duração média das entrevistas foi de dez minutos.

A análise temática empregada foi a organização dos dados, por ser eficaz nos discursos diretos e simples (18).

Análise dos dados

O referencial teórico-metodológico para a análise dos resultados baseou-se no método da DM, especificamente na fase da deliberação sobre os deveres (1), a partir dos autorrelatos com as reações dos participantes ante a vinheta. A bioética deliberativa de Gracia traz a categoria analítica da prudência. Na análise dos resultados com adoção deste referencial, são desvendadas as relações mediadoras. Com os achados, é possível realizar um diálogo hermenêutico e problematizador que interroga as presunções dos discursos. O objetivo não é emitir julgamentos do tipo ‘certo’ e ‘errado’, mas traçar as tendências das respostas e reações à vinheta, o que favorece a tomada de consciência acerca da sensibilidade ética das ações e decisões (2). Em outras palavras, se delibera sobre os achados.

RESULTADOS

Cursos de ação

A partir das recomendações das enfermeiras para resolução do problema ético apresentado na vinheta, os cursos de ação foram agrupados em seis tendências, a saber: Orientações para a manutenção do AME; Envolvimento da equipe multidisciplinar; Indicação de nome de leite artificial/animal; Orientações para garantia de direitos trabalhistas; Orientações para o AMM; e Inserção em grupo de gestantes.

As orientações para manutenção do AME incluíram cursos de ação como: orientar a forma correta de ordenhar o leite materno; armazenar o leite em geladeira; orientar cuidados higiênicos com os utensílios utilizados para coleta, armazenamento e oferta do leite à criança; orientar a forma e os horários para a cuidadora da criança ofertar o leite ordenhado durante o período de trabalho da mãe; e levar a criança ao trabalho da mãe.

[...] eu ia tentar manter o leite materno, mesmo que não seja a criança amamentando diretamente ao seio materno. Ela, retirando o leite e ofertando ele pasteurizado [...] (E14)

Para não ter custo nenhum, a mãe pegar o próprio leite. E está armazenando em casa, porque se a gente for mandar dar um [leite de marca comercial, é muito caro então elas não vão dar, eu mesmo não oriento [...]. Porque ninguém tem condição, compra uma lata e pronto, então o ideal seria guardar o próprio leite e armazenar, é colocar em banho-maria e amamentar essa criança. (E12)

Entre as sugestões de Envolvimento da equipe multidisciplinar, a figura do médico (não necessariamente o pediatra) e da nutricionista foram evidenciadas, com frequente referência da interconsulta como um curso de ação adotado na prática dos enfermeiros.

[...] mas o leite artificial para mim seria a última demanda, ou quando é em casos em que a mãe não pode de forma alguma amamentar, mas essa orientação de fornecer nomes, porque assim, na verdade é uma fórmula que você tá fornecendo. Então, tem que ser com orientação médica. Então, aí seria uma interconsulta, entre a médica, a nutricionista e a enfermeira, pelo menos assim acontece na minha unidade, (E14)

A Indicação de nome de leite artificial/animal apresentou dois cursos de ação: uso de fórmula infantil, com predomínio da recomendação do nome de duas marcas comerciais (E3, E6, E7, E11); e uso de leite animal (leite de vaca, cabra). A indicação estava sempre acompanhada de orientações sobre os cuidados com o uso desses leites.

[...] eu oriento ou o (leite de marca comercial) só, de acordo com a condição do paciente, muitas vezes meu paciente também não tem condição de nenhum dos dois e aí só pode o (leite de marca comercial), eu justifico que não é tão indicado por conta de ressecamento, mais aí eu faço, a gente se adapta de acordo com a condição também do paciente, vai depender também da condição do paciente. Sempre aquele jeitinho brasileiro, mas não fica desassistido. (E3)

[...] Eu aconselho o leite de vaca, leite de vaca não, como é? O leite de cabra, só que o leite de cabra, ele não tem ferro, é mais fraco, aí com seis meses em diante já tem que trocar pelo leite normal mesmo. Depende da situação, cada situação dependendo da condição mesmo da pessoa, se não tem condição e ela vai introduzir mesmo de qualquer forma, a gente tem que aconselhar (E9)

O curso de ação que trata das Orientações para garantia de direitos trabalhistas, leva em consideração o valor do bem-estar da criança, como se pode observar no extrato abaixo:

[...] encontrar um meio de dar amamentação exclusiva o maior tempo possível, mesmo que ela volte a trabalhar, que ela negocie com seu empregador o horário de amamentação, até mesmo a sair mais cedo, compensando a hora que ela tem direito. Pra amamentar seu filho [...] (E11)

Nas Orientações para o AMM, o curso de ação sempre objetiva manter uma relação harmoniosa com a mãe e, consequentemente, garantir que o aleitamento materno seja ofertado ao lactente.

[...] as vezes, a mãe pede pelo menos pra dar um leite à noite pra ela descansar, quando eu vejo que eu vou perder o leite materno, aí eu vou e incentivo a dar o leite pra ela poder descansar [...] pelo menos uma mamadeira de madrugada, o resto seria o peito, porque ela quer descansar, pelo menos é uma forma pra ela não deixar de dar durante o dia a mama (E1)

Apenas uma enfermeira apresentou como curso de ação a Inserção em grupo de gestante, transcrito abaixo:

[...] importância do grupo de apoio que ela pode tá fazendo, não sei se ela faz, no pré-natal, que é o grupo de gestante, e o grupo de mães, que é uma rotina que a gente tem aqui na unidade, com o apoio do pessoal do NASF, nutricionista, fisioterapeuta, que estimula troca de experiências entre as mães e entre gestantes, que podem ajudar ela a aderir esse aleitamento materno pelo tempo preconizado. (E10)

Tendência dos cursos de ação das enfermeiras

O problema ético fundamental eleito para análise da tendência dos cursos de ação foi Como manter a alimentação adequada da criança sem desconsiderar as necessidades laborais da mãe?

Os cursos de ação extremos foram os seguintes: insistir na manutenção do aleitamento materno exclusivo (bem-estar da criança); e orientar o nome de outro leite artificial/animal (atendimento das necessidades laborais da mãe). Esses resultados foram sintetizados na Figura 1:

Figura 1
Problema ético, valores em conflito e cursos extremos de ação, Feira de Santana, Bahia, Brasil, 2016

Um dos participantes justifica a escolha pelo curso extremo de ação, como em:

[...] é o padrão instruído pelo Ministério da Saúde, que está escrito nos livros, então, eu sigo o padrão que é necessário seguir, mesmo olhando a necessidade da mãe trabalhar, pois existem métodos que ela pode fazer, para continuar fazendo o aleitamento, mesmo com os dois meses, sem prejudicar a criança, para não fazer nenhum efeito para ela [...] (E13)

Dentre os cursos intermediários, encontramos: orientar a ordenha do aleitamento materno (bem-estar da criança); e buscar garantia de direitos trabalhistas (atendimento das necessidades laborais da mãe), como demonstrado neste depoimento:

Primeiro passo, se no trabalho dela, ela poderia levar a criança para continuar amamentando, se não é, orientaria deixar o leite materno, e aí, a pessoa que fosse cuidar da criança ia dando em “banho maria” nos horários, e se de tudo, ela dissesse que não tinha nenhuma dessas condições que pudesse levar à frente, aí eu orientaria o quê ? O leite artificial de acordo com a idade da criança, no caso [leites de marcas comerciais] primeiro semestre, apropriado mesmo pra idade infantil, e observar se a criança ia ter alguma reação ou não. (E6)

As desconsiderações e o desrespeito aos direitos trabalhistas por parte dos empregadores, fazem emergir sentimentos de impotência, e cursos de ação que buscam ajudar a mãe trabalhadora na defesa desses direitos, como evidenciado em alguns discursos:

A mãe precisa trabalhar e isso é uma coisa que infelizmente a gente não tem como questionar, isso é uma coisa que passa da gente, são leis, são normas de cada empresa, às vezes tem empresas que, com quem trabalha em regime de CLT, que tem a questão da licença maternidade, mas tem outras que não, que não respeitam muito isso. (E8)

Eu aconselho, no final do pré-natal, a essas mães ficarem no emprego o máximo que elas puderem, até o final de sua gestação, pra que ela possa passar o período de pós-parto com o filho. Então, eu sempre aconselho a contar esses casos mesmo de algumas, no final da gestação, sentirem indispostas. Aí, a gente tenta ver um atestado, aconselha ela a aguentar um pouco mais, a conversar com o seu empregador, a mudar de setor, pra que fique mais confortável pra essa gestante, mas que ela possa ficar com esse período a mais com o seu filho. (E11)

Porém, foi encontrado um discurso em que os direitos trabalhistas serviram como justificativa para manutenção do AME:

[...] eu penso o seguinte, a mãe que está amamentando, no mínimo ela tem direito a 4 meses, 120 dias para voltar a trabalhar, tanto é que algumas prefeituras e firmas estão dando até seis meses para a mãe ficar mais tempo com essa criança, então, eu não vejo motivo para uma criança com dois meses mudar a amamentação. Eu não faria isso não, nem faria outra orientação. Aleitamento materno exclusivo, eu sou fiel a isso. (E4)

As justificativas para a insistência na manutenção do AME estão associadas às evidências científicas acerca dos benefícios dessa prática para a criança (aspectos nutricionais, do crescimento/desenvolvimento e afetivos), como nos depoimentos a seguir:

Primeiro, porque substâncias adequadas para o bom desenvolvimento da criança, vitaminas, sais minerais, ureia, potássio, até água, depois disso, por ser de grátis, tem os benefícios que imuniza a criança contra algumas doenças respiratórias, digestivas, e outras coisas. Vai fortalecer a mandíbula da criança, para as mães também tem os benefícios, vai imunizar contra o câncer de colo de útero e câncer de mama e outros, por isso sou adepto do aleitamento materno. (E4)

Porque eu acredito no leite materno, não só na questão do alimento material, ali do leite, mas também a questão do contato, é todo um conjunto, [...] o aleitamento, o ato em si, ele tem esse contato do olhar, do carinho, do toque, eu acredito nesse conjunto, nesse alimento, seja físico quanto espiritual, não sei se a gente pode dizer assim, nessa ligação [...] (E1)

DISCUSSÃO

Na busca por compreender a deliberação moral de enfermeiros diante de um problema ético na prática da saúde da criança na ESF, foi observado que eles tendem para os cursos de ação intermediários. Esse achado é similar aos resultados de um estudo realizado com enfermeiras paulistas, frente a um problema ético envolvendo um paciente adulto (19).

Frente ao conflito entre os dois valores, bem-estar da criança versus atendimento das necessidades laborais da mãe, a preocupação em preservar o valor bem-estar da criança foi predominante entre os entrevistados.

Um estudo de revisão concluiu que a tomada de decisão ética de enfermeiros é complexa. Ela envolve a análise e comparação dos cursos de ação identificados como possibilidades a partir de elementos multidimensionais de âmbito externo e interno, com uso do conhecimento científico e da sensibilidade ética na construção das respostas (20).

Essa complexidade ficou evidente no contexto do AM como parte da saúde da criança, foco do presente estudo. Ficou clara a necessidade de incluir o conceito de direito reprodutivo como norteador das práticas dos profissionais de saúde, com a intenção de compreender o AM como um processo psicossociocultural e não somente biológico (11).

Os cursos de ação extremos que priorizaram o valor bem-estar da criança em detrimento do valor atendimento das necessidades laborais da mãe foram apresentados por dois participantes do estudo.

O problema ético da vinheta implica a autonomia da mãe, mas o que isso significa? É possível considerar/aceitar essa autonomia frente à condição de prioridade gozada pelas crianças? É possível falar em autonomia da mãe frente à premência de ela depender do emprego para sustentar seu filho? Na perspectiva bioética, sim. Desse modo, pesquisadoras canadenses, em estudo de revisão, formularam o seguinte conceito de autonomia da mãe no contexto do aleitamento materno: “habilidade materna de tomar decisões autônomas usando seu controle, agência, independência e raciocínio ético precedidos de competência materna, disponibilidade de apoio, natureza do ambiente e alternativas disponíveis na amamentação” (13).

Coaduna com esse conceito, o alerta de autores brasileiros, quando apresentam a necessidade de revisar e avaliar frequentemente as práticas profissionais defensoras do AM sobre o “quanto é possível de autonomia em relação ao aleitamento materno, e se as pessoas, de fato, têm condições de tomar suas decisões e têm todo o apoio que elas precisam nas decisões que tomam” (12).

Ao observar um estudo sobre a prática do AME no sul do Brasil, há sugestão da falta de clareza conceitual sobre o AME entre as mulheres investigadas, que demanda a promoção do aleitamento com a abordagem de crenças e valores, assegurando o diálogo efetivo e a compreensão junto às mães (21).

Em uma investigação sobre visita domiciliária no contexto da saúde da criança, os profissionais (enfermeira e médica) demonstraram dificuldade em aceitar a recusa das mães a amamentar e apresentaram atitudes autoritárias na defesa do AM. Entretanto, é necessário analisar as emissões de juízo de valor e o reconhecimento da mulher como pessoa, com vistas a compreender suas demandas (22).

A sugestão é trocar a frustação e a raiva pelo aprendizado e diálogo, criando um espaço em que usuários e profissionais encontrem saídas práticas e almejadas para diminuir as vulnerabilidades de mulheres e crianças (12). O enfermeira, enquanto parte da equipe da ESF, é responsável por sua clientela e pelo envolvimento com a história de vida de cada usuário, e por conseguinte, enfrenta o desafio de uma prática profissional ética (23).

Considerando a bioética deliberativa, a obrigação moral é “salvar” os dois valores implicados (da criança e da mãe), pois não é possível estabelecer uma hierarquia de valores validados universalmente, nem é aceitável renunciar a valores importantes. Ou seja, os valores de bem-estar da criança e atendimento às necessidades laborais da mãe são igualmente essenciais. Desse modo, a opção eticamente prudente é optar por cursos de ação que protejam e concretizem os dois valores.

As questões trabalhistas em torno da prática do AM são variáveis essenciais. Em um estudo sobre a atuação do enfermeiro de USF frente ao retorno da mãe ao trabalho, também foram encontradas orientações vinculadas à questão do direito à amamentação no trabalho até os seis meses e retirada do leite por ordenha com posterior armazenamento (24).

Todavia, como revelam os discursos de alguns entrevistados do presente estudo, na prática, os direitos trabalhistas ainda não são integralmente respeitados. Existe uma relação frágil e difícil “entre o mundo social e o universo público da cidadania da mulher”, com a não efetivação das normativas legais que asseguram, legalmente, a igualdade de gênero (11).

O curso de ação inserção em grupo de gestantes pode ser uma estratégia coerente para a solução do problema, visto que em estudo realizado na Republica do Chade, foram encontradas evidências de associação entre a autonomia motivacional no nível da comunidade e a probabilidade de amamentação exclusiva (14).

A orientação para inserção de leite artificial foi um curso de ação frequente entre os entrevistados. Esse achado é coerente com os resultados de uma pesquisa realizada com dados secundários da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), em que o consumo de fórmulas infantis em menores de seis meses foi de 23%. Além disso, a região nordeste é uma das duas regiões brasileiras onde o consumo de leite não materno foi frequente em crianças menores de seis meses (25).

Outros cursos de ação acessíveis no contexto da ESF não foram explorados, como por exemplo: conhecer a estrutura familiar, com o objetivo de acionar uma rede de colaboração para as demandas da mãe; agregar a figura paterna como coparticipante para promover o bem-estar da criança; e verificar a existência/disponibilidade de banco de leite e visita domiciliária como espaço singular de cuidado.

Todos os cursos de ação apresentados para os problemas éticos no contexto da saúde da criança devem buscar preservar ao máximo os valores em conflito, com a expectativa de alcançar o maior bem dos envolvidos (3). Mesmo considerando a possibilidade de cometer equívocos, é necessário buscar decisões eticamente mais justificáveis e assumir suas consequências (5). Como na enfermagem, a ética de máximo não está limitada a atender as normativas ético/legais da profissão, mas avança na busca do bem maior do usuário, as ações dos enfermeiros devem se guiar pela ética de máximos e não meramente pela ética de mínimos (26).

Eleger decisões prudentes frente a problemas éticos, demanda dos enfermeiros a capacidade de reflexão diária, ou seja, parar e pensar, com vistas a promover e proteger a saúde do núcleo familiar como uma unidade de cuidados, tal como preconiza a ESF e na busca do maior bem do usuário.

Limitações do estudo

As limitações deste estudo estão associadas à escassa produção científica sobre a temática, o que dificulta a discussão e comparação dos resultados.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

As contribuições inéditas dos achados colaboram com o avanço da área da enfermagem, já que evidenciam a existência de novas matizes do cuidado ofertado pelos enfermeiros às crianças, no contexto da APS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de problema ético, no contexto da saúde da criança, os enfermeiros de USF deliberam na direção de conciliar os valores em conflito (bem-estar da criança e atendimento das necessidades laborais da mãe). A tendência dos cursos de ação apresentados aproxima-se do espaço intermédio. Quando tendem ao extremo, fica evidente a preocupação predominante com o bem-estar da criança, em detrimento das demandas da mãe por questões laborais.

A singularidade dos problemas éticos na puericultura está vinculada à vulnerabilidade própria da criança e às variáveis que estruturam e/ou desestruturam a família, o que requer habilidade deliberativa dos enfermeiros, pois esse método se fundamenta na prudência.

A expectativa é que as novas reflexões apresentadas nesta pesquisa sejam inseridas na prática laboral dos enfermeiros brasileiros e que o método da bioética deliberativa seja compartilhado entre esses profissionais, como forma de qualificar a assistência de enfermagem no processo de cuidar de crianças.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) pela concessão de bolsa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2018
  • Aceito
    23 Set 2018
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