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Espiritualidade e religiosidade no vivido do sofrimento, culpa e morte da pessoa idosa com cancer

RESUMO

Objetivo:

compreender a espiritualidade e a religiosidade na vivido do sofrimento, culpa e morte da pessoa idosa com câncer.

Método:

pesquisa qualitativa fundamentada na Análise Existencial de Viktor Frankl. Foram realizadas 20 entrevistas fenomenológicas com pessoas acima de 60 anos, submetidas a tratamento quimioterápico na Unidade de Oncologia de um hospital da cidade de Salvador, Bahia, Brasil, no período entre agosto e outubro de 2018.

Resultados:

desvelaram-se as seguintes categorias: Vivencia a espiritualidade e a religiosidade face à tríade trágica e ao vazio existencial; Utiliza a espiritualidade e a religiosidade como estratégias de resiliência. Após apreensão dos aspectos ônticos, foi possível a compreensão ontológica da espiritualidade e da religiosidade diante do sofrimento, culpa e morte vivenciadas no cotidiano da pessoa idosa com câncer.

Considerações finais:

a espiritualidade e a religiosidade foram compreendidas como estratégias de enfrentamento utilizadas no vivido instável da pessoa idosa com câncer, proporcionando conforto e resiliência.

Descritores:
Idoso; Espiritualidade; Religião; Neoplasias; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

to understand spirituality and religiosity in the experience of suffering, guilt, and death of the elderly with cancer.

Method:

qualitative research based on Viktor Frankl’s Existential Analysis. Twenty phenomenological interviews were conducted with people over 60 years old undergoing chemotherapy treatment at an oncology unit of a hospital in the city of Salvador, Bahia State, Brazil, between August and October 2018.

Results:

the following categories emerged: Experiences spirituality and religiosity in the face of the tragic triad and existential emptiness; Uses spirituality/religiosity as resilience strategies. After apprehension of ontic aspects, it was possible the ontological understanding of spirituality and religiosity in the face of suffering, guilt, and death experienced in the elderly with cancer’s daily life.

Final considerations:

spirituality and religiosity were understood as coping strategies used in the unstable experience of the elderly with cancer, providing comfort and resilience.

Descriptors:
Aged; Spirituality; Religion; Neoplasms; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

comprender la espiritualidad y la religiosidad en el sufrimiento, la culpa y la muerte de los ancianos con cáncer.

Método:

investigación cualitativa basada en el análisis existencial de Viktor Frankl. Se realizaron veinte entrevistas fenomenológicas con personas mayores de 60 años, sometidas a tratamiento de quimioterapia en la Unidad de Oncología de un hospital en la ciudad de Salvador, Bahía, Brasil, entre agosto y octubre de 2018.

Resultados:

se revelaron las siguientes categorías: Experimente la espiritualidad y la religiosidad frente a la tríada trágica y el vacío existencial; Utiliza la espiritualidad y la religiosidad como estrategias de resiliencia. Después de la comprensión de los aspectos ónticos, fue posible la comprensión ontológica de la espiritualidad y la religiosidad frente al sufrimiento, la culpa y la muerte experimentados en la vida cotidiana de los ancianos con cáncer.

Consideraciones finales:

la espiritualidad y la religiosidad se entendieron como estrategias de afrontamiento utilizadas en la experiencia inestable de las personas mayores con cáncer, que proporcionan comodidad y resistencia.

Descriptores:
Anciano; Espiritualidad; Religión; Neoplasias; Enfermería

INTRODUÇÃO

O processo de mudança do perfil demográfico no Brasil apresenta-se com crescimento do número de idosos. O envelhecimento é um processo natural e sofre influências intrínsecas e extrínsecas representadas por aspectos particulares da trajetória de vida e da coletividade(11 Garbaccio JL, Tonaco TAB, Estêvão WG, Barcelos BJ. Aging and quality of life of elderly people in rural áreas. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [cited 2019 Jan 16];71(Suppl 2):724-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v71s2/0034-7167-reben-71-s2-0724.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v71s2/003...
). Ser idoso não é apenas uma questão cronológica, visto que em grupos de pessoas idosas há inúmeras diferenças na forma que percebem, sentem e enfrentam essa etapa da vida(22 Chaves LJ, Gil CA. Older people’s concepts of spirituality, related to aging and quality of life. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2015 [cited 2019 Jan 15];20(12):3641-52. Available from: https://www.scielo.br/pdf/csc/v20n12/en_1413-8123-csc-20-12-3641.pdf
https://www.scielo.br/pdf/csc/v20n12/en_...
). Há pessoas que envelhecem com boa qualidade de vida e saúde, com poucas patologias, bons níveis de controle de estresse e satisfação com a vida. Em oposição, há outras que experimentam inatividade, comorbidades e sintomas depressivos, que comprometem a qualidade de vida na velhice.

Com o aumento da expectativa de vida e, consequentemente, aumento da população idosa, as doenças crônicas se tornaram mais presentes, ficando diretamente ligadas ao envelhecimento e à queda da mortalidade(33 Oliveira PF, Queluz FNFR. A Espiritualidade no Enfrentamento do Câncer. Rev Psic IMED [Internet]. 2016 [cited 2019 Jan 13];8(2):142-55. Available from: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistapsico/article/view/1314/1036
https://seer.imed.edu.br/index.php/revis...
). Neste sentido, destaca-se, entre as doenças crônicas, o câncer(44 Mendes TR, Boaventura RP, Castro MC, Mendonça MAO. Occurrence of pain in cancer patients in palliative care. Acta Paul Enferm [Internet]. 2014 [cited from Jan 10];27(4):356-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v27n4/en_1982-0194-ape-027-004-0356.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v27n4/en_19...
-55 Freire MEM, Costa SFG, Lima RAG, Sawada NO. Health-related quality of life of patients with cancer in palliative care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2018 [cited 2019 Jan 16];27(2):1-13. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v27n2/en_0104-0707-tce-27-02-e5420016.pdf
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).

O avançar da idade se constitui como um fator de risco para o desenvolvimento do câncer; dentre os mais comuns na terceira idade estão: câncer de próstata, mama, pele não melanoma, tumor de cólon e reto, neoplasias de pulmão, câncer de estômago e colo uterino(66 Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (BR). Estimativa 2016: Incidência de câncer no Brasil [Internet]. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Rio de Janeiro (RJ): INCA; 2014 [cited 2018 Mar 02]. Available from: http://www.inca.gov.br/estimativa/2016/estimativa-2016-v11.pdf
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). No Brasil, estima-se que em 2030, a carga global de câncer será de 21,4 milhões de casos novos e 13,2 milhões de mortes, em consequência do crescimento e do envelhecimento da população(77 Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (BR). Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil [Internet]. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Rio de Janeiro (RJ): INCA; 2017 [cited 2018 Mar 02]. Available from: http://www.inca.gov.br/estimativa/2018/estimativa-2018.pdf
http://www.inca.gov.br/estimativa/2018/e...
).

A pessoa idosa, por vezes, já possui outras comorbidades, e quando é diagnosticada com o câncer, perpassa por modificação das percepções, bem como imposição de se conviver com uma doença que carrega uma série de incertezas e modificações no existir. As alterações orgânicas, advindas dessa nova condição, impõem um novo modo de estar-no-mundo e se relacionar com ele. Além disso, o diagnóstico de câncer carrega consigo estigmas que podem ter um efeito devastador, ou seja, remete à ideia de morte, ao medo de mutilações e desfiguramento, além de implicações relacionadas à perda da produtividade e das capacidades físicas das pessoas(88 Jonas LT, Silva NM, Paula JM, Marques S, Kusumota L. Comunicação do diagnóstico de câncer à pessoa idosa. Rev Rene [Internet]. 2015 [cited 2018 Jan 16];16(2):275-83. Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/2726/2110
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
).

Mesmo com a evolução dos estudos sobre a temática e novos mecanismos terapêuticos, o câncer ainda é uma doença temida e estigmatizada e, por isso, causa um grande desajuste biopsicossocioespiritual. Consequentemente, algumas pessoas idosas encontram na espiritualidade, ou em suas crenças, apoio para entender o sofrimento, além de identificar estratégias para lidar com os agentes estressores e pensamentos decorrentes da situação vivida(99 Nery BLS, Cruz KCT, Faustino AM, Santos CTB. Vulnerabilities, depression, and religiosity in the elderly hospitalised in an emergency unit. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0184. doi: 10.1590/1983-1447.2018.2017-0184
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).

A religiosidade e a espiritualidade são importantes recursos utilizados no enfrentamento do câncer em todo o mundo, embora sejam pouco exploradas nas diferentes culturas(1010 Nejat N, Whitehead L, Crowe M. The use of spirituality and religiosity in coping with colorectal cancer. Contemp Nurse [Internet]. 2017 [cited 2019 Apr 24];53(1):48-59. doi: 10.1080/10376178.2016.1276401
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). Associações entre resiliência, sofrimento e espiritualidade foram evidenciadas, concluindo que a dimensão espiritual de pessoas com câncer deve ser incluída nas intervenções de saúde, visto que parece estar relacionada a um maior crescimento existencial, adaptação à doença, bem-estar funcional e qualidade de vida(1111 Cheng Q, Liu X, Li X, Wang Y, Mao T, Chen Y. Improving spiritual well-being among cancer patients: implications for clinical care. Support Care Cancer [Internet]. 2019 [cited 2019 Apr 25];27(1):1-7. doi: 10.1007/s00520-019-4636-4
https://doi.org/10.1007/s00520-019-4636-...
-1212 Paredes AC, Pereira MG. Spirituality, distress and posttraumatic growth in breast cancer patients. J Relig Health. 2017;57(5):1606-17. doi: 10.1007/s10943-017-0452-7
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).

Embora os termos “religiosidade” e “espiritualidade” sejam frequentemente utilizados como sinônimos e estejam intimamente relacionados, possuem significados diferentes. A religiosidade envolve um conjunto de crenças, linguagem e práticas dogmáticas que se alicerçam em uma tradição acumulada, com seus símbolos, rituais, cerimônias e explicações próprias acerca da vida e da morte. No entanto, a espiritualidade é universal e não se limita a práticas religiosas; envolve valores pessoais e íntimos, constituindo-se naquilo que impulsiona a vida e, como tal, promove o crescimento pessoal e a ressignificação das experiências vividas e existenciais, norteando o sentido da vida(1313 Sampaio AD, Siqueira HCH. Influência da Espiritualidade no Tratamento do Usuário Oncológico: Olhar da Enfermagem. Ensaios Cienc Cienc Biol Agrar Saúde [Internet]. 2016 [cited 2019 Jan 14];20(3):151-8. Available from: https://www.redalyc.org/pdf/260/26049965006.pdf
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).

A tríade trágica, manifestação da característica antropológica, é composta por sofrimento, culpa e morte(1414 Frankl VF. O sofrimento de uma vida sem sentido: caminhos para encontrar a razão de viver. São Paulo (SP): É realizações. 1 ed. 2015. p. 128.). Diante da doença oncológica, sofrimento, culpa e morte perpassam no vivido da pessoa idosa, visto que há relação entre a pessoa no mundo com a tensão existencial do homem, estando entre “ser” e “dever ser”. Assim, quanto mais a pessoa se sente privada de sentido na vida, maiores são as probabilidades do vazio existencial(1414 Frankl VF. O sofrimento de uma vida sem sentido: caminhos para encontrar a razão de viver. São Paulo (SP): É realizações. 1 ed. 2015. p. 128.). Para a Análise Existencial de Viktor Frankl, referencial teórico-filosófico do estudo, é possível transformar o sofrimento em conquistas e em realizações humanas, a partir da autotranscedência, ou seja, da dimensão espiritual.

A espiritualidade é a característica mais específica do homem, e a dimensão espiritual é composta pelas dimensões existencial e transcendental. Com isso, a espiritualidade e a religiosidade demarcam seu papel no vivido do ser humano, como estratégias de resiliência utilizadas diante das adversidades impostas pelo adoecimento. Elas podem ressignificar o sentido da vida e despertar para atitudes otimistas e de responsabilidade na busca de superar o vazio existencial instalado(1515 Frankl VF. Em busca e sentido: um psicólogo no campo de concentração. 40 ed. São Leopoldo (SP): Sinodal; Petrópolis (RJ): Vozes. 2016. p. 184.). O vazio é descrito como um sentimento que se instala no ser, ocasionado pela falta de sentido da vida, deixando-o em um profundo tédio e com a sensação de que a vida não possui valor(1616 Frankl VF. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida (SP): Ideias e Letras. 21 ed. 2017. p. 176.).

Destarte, metas que contemplem a espiritualidade e a religiosidade poderão ser traçadas, no desafio de promover o encontro e/ou ressignificações de propósitos da existência que implicam na qualidade de vida. Desse modo, delineou-se como questão investigadora do estudo: qual o sentido da espiritualidade e da religiosidade no vivido do sofrimento, culpa e morte da pessoa idosa com câncer?

OBJETIVO

Compreender a espiritualidade e a religiosidade no vivido do sofrimento, culpa e morte da pessoa idosa com câncer.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo obedeceu aos preceitos éticos da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que discorre sobre as diretrizes e normas que regulamentam as pesquisas com seres humanos(1717 Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Conselho Nacional de Saúde. Brasília, 2012 [cited 2019 Jan 14]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/ráspolis/2012/Reso466.pdf
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). Todos os participantes que contribuíram com a pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que informava sobre os riscos e benefícios, bem como sobre a garantia de anonimato e a possibilidade de desistência em qualquer momento da entrevista, sem que isso lhe causasse danos ou prejuízos. Para garantir o anonimato, os participantes foram identificados através da letra E, seguida por um número de ordem de realização das entrevistas. A pesquisa encontra-se vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisa do Idoso da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo fenomenológico fundamentando nos pressupostos teóricos da Análise Existencial de Viktor Frankl, norteado pela ferramenta COREQ(1818 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care [Internet]. 2007[cited 2019 Jan 15];19(6):349-57. Available from: https://academic.oup.com/intqhc/article/19/6/349/1791966
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). A fenomenologia foi adotada como uma oportunidade de descrição da forma como o ser humano pode compreender a si próprio e de como ele interpreta a própria existência, longe de padrões preestabelecidos no seio das hipóteses psicodinâmicas ou socioeconômicas(1515 Frankl VF. Em busca e sentido: um psicólogo no campo de concentração. 40 ed. São Leopoldo (SP): Sinodal; Petrópolis (RJ): Vozes. 2016. p. 184.). O artigo originou-se da dissertação de Mestrado intitulada “Sentido da espiritualidade e da religiosidade no vivido da pessoa idosa com câncer”.

Cenário do estudo

O local do estudo foi um Hospital filantrópico referência em atendimento oncológico na Bahia, na cidade de Salvador, Bahia. Esse hospital possui um movimento diário de mais de 3.000 mil atendimentos em seus ambulatórios, além de possuir total cobertura pelo Sistema Único de Saúde em sua atuação. Realiza uma média de 3.200.000 procedimentos anuais(1919 Liga Baiana Contra o Câncer (BR) Hospital Aristides Maltez: Histórico Institucional [Internet]. Salvador (BA): LBCC; 2018 [cited 2018 Jan 08]. Available from: http://www.lbcc.org.br/hospital.php
http://www.lbcc.org.br/hospital.php...
).

A unidade hospitalar selecionada para o estudo foi a Oncologia Clínica, onde se realiza dispensação de medicamentos aos pacientes acompanhados e infusões de ciclos de quimioterapia. A escolha da referida unidade se deu por atender a muitas pessoas idosas, e por estas possuírem agendamento de retorno à unidade para cumprimento das sessões de quimioterapia, possibilitando maior contato com as pesquisadoras.

Participantes do estudo

Os participantes foram 20 pessoas idosas com câncer. A escolha dessas pessoas foi intencional e no momento em que se encontravam na unidade para infusão de quimioterápicos, ou para dispensação dos medicamentos orais.

Os critérios de inclusão adotados foram: 1. Pessoas idosas de 60 anos e mais, por considerar importante abranger as informações em diferentes faixas etárias; 2. Possuir capacidade de estabelecer o processo de comunicação verbal, avaliada através da aplicação do Mini Exame do Estado Mental (MEEM); 3. Possuir tratamento quimioterápico oral ou venoso; 4. Em casos de terapia venosa, pessoas idosas que estejam na 2ª sessão, em diante. Tal inclusão se deu pelo fato de que, na 1ª sessão, a pessoa idosa poderia estar ansiosa ou na expectativa do desconhecido; 5. Ter conhecimento do diagnóstico da doença oncológica. Como critérios de exclusão: 1. Desconforto emocional ou orgânico no período de coleta das informações, que impediria a captação das mensagens.

O MEEM é caracterizado como um teste neuropsicológico que verifica, de maneira rápida, fácil, e simplificada, o estado cognitivo de pessoas adultas e idosas(2020 Melo DM, Barbosa AJG. O uso do mini exame do estado mental em pesquisas com idosos no Brasil: uma revisão sistemática. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2015 [cited 2018 Sep 20];20(12):3865-76. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v20n12/1413-8123-csc-20-12-3865.pdf
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). Foram excluídas seis pessoas idosas elegíveis para o estudo: uma, por recusar os diálogos de aproximação; duas, por não terem conhecimento do diagnóstico de câncer, a pedido da família; duas, pela impossibilidade de aplicação do MEEM, por déficit cognitivo avançado (Alzheimer); e uma, por apresentar discurso desconexo no dia da entrevista.

Por se tratar de um estudo fenomenológico, a delimitação do número de participantes se deu quando os sentidos dos depoimentos dos participantes começaram a demonstrar regularidade, sendo suficiente para responder o objetivo traçado e desvelar o fenômeno investigado(2121 Reis CCA, Sena ELS, Menezes TMO. Experiences of family caregivers of hospitalized elderlies and the experience of intercorporeality. Esc Anna Nery[Internet]. 2016 [cited 2019 Jan 15];20(3):1-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n3/en_1414-8145-ean-20-03-20160070.pdf
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).

Coleta e organização dos dados

Utilizou-se como técnica para construção das informações a entrevista fenomenológica, a qual busca, por meio de um movimento de compreensão, acessar o vivido do ser humano e desvelar os sentidos e significados da vida cotidiana(2222 Moreira RCR, Lopes RLM, Santos NA. Entrevista fenomenológica: peculiaridades para la producción científica en enfermería. Index Enferm [Internet]. 2013 [cited 2018 Sep 20];22(1-2):107-10. doi: 10.4321/S1132-12962013000100024
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). O que é resgatado pelos participantes durante o diálogo aberto é o próprio discurso já processado por eles. Esse discurso foi estruturado com base no que o fenômeno é para si próprio, ou seja, as vivências que estão codificadas e armazenadas na consciência(2323 Guerrero-Castañeda RF, Menezes TMO, Ojeda-Vargas MG. Características de la entrevista fenomenológica en investigación en enfermería. Rev. Gaúcha Enferm [Internet]. 2017 [cited Sep 20];38(2):1-5. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v38n2/0102-6933-rgenf-1983-144720170267458.pdf
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).

As entrevistas acontecerem entre agosto e outubro de 2018 na própria unidade de Oncologia Clínica, de maneira reservada, o que garantiu o sigilo das informações. Importante salientar que foi realizado previamente ao início das entrevistas um momento de ambientação, que se caracteriza como processo de aproximação do pesquisador com o campo de pesquisa, etapa fundamental em pesquisa fenomenológica.

Um gravador digital foi utilizado para garantir a transcrição fidedigna e interpretação das informações, além da observação não participante, a fim de captar gestos, expressões e outros elementos da comunicação não verbal. O tempo para resposta foi livre, ficando a pesquisadora ao inteiro dispor dos participantes.

Análise dos dados

Após a realização das entrevistas, foi realizada a análise vaga e mediada das vivências. Tal estratégia não consente com a compreensão imediata da pessoa idosa com câncer. Foi necessário seguir o modelo fenomenológico-empírico de Giorgi adaptado por Vietta(2424 Vietta EP. Configuração triádica, humanista-existencial-personalista: uma abordagem teórica-metodológica de aplicação nas pesquisas de enfermagem psiquiátrica e saúde mental. Rev Latino-Am Enferm [Internet]. 1995 [cited 2019 Jan 15];3(1):31-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v3n1/v3n1a04.pdf
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). A análise foi justificada pelo modo fenomenológico que se estuda a vivência com experiência consciente, em que o pesquisador faz um mergulho profundo nas falas coletadas e empenha-se em captar, discernir e desvelar o que é específico em cada vivência, a fim de compreender o fenômeno proposto.

Destarte, a análise fenomenológica percorreu seis passos: 1. Apreensão do significado das falas dentro da estrutura global; 2. Releitura do texto, quantas vezes foram necessárias, com vista à identificação de unidades de significado entendidas aqui como locuções de efeito. Estas revelaram, no conteúdo verbal expresso pelos participantes, aspectos significativos de suas percepções para compreensão e análise de suas vivências; 3. Identificação e classificação dos aspectos que apresentam convergências de conteúdo, procurando o que se mostrava constante nas falas de cada um; 4. Agrupamento das locuções ou de seus significados em subcategorias que, em seguida, foram reagrupadas por comparação entre os conteúdos dos discursos construindo as categorias empíricas que compõem a estrutura do fenômeno; 5. Apresentação destes agrupamentos em quadros representativos para melhor visualização dos resultados; 6. Análise compreensiva dos dados significativos destes agrupamentos(2424 Vietta EP. Configuração triádica, humanista-existencial-personalista: uma abordagem teórica-metodológica de aplicação nas pesquisas de enfermagem psiquiátrica e saúde mental. Rev Latino-Am Enferm [Internet]. 1995 [cited 2019 Jan 15];3(1):31-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v3n1/v3n1a04.pdf
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) tendo como base a interpretação do conteúdo à luz do referencial teórico de Viktor Emil Frankl.

RESULTADOS

Caracterização das pessoas idosas participantes do estudo

Das 20 participantes do estudo, 13 são do sexo feminino e sete do sexo masculino. A idade média foi de 71,4 anos, em uma faixa etária que variou entre 61 e 89 anos, sendo cinco longevos. Quanto ao estado civil dos participantes, 11 são casados, sete viúvos e dois são solteiros. Quanto à religião, 12 participantes são católicos; quatro são protestantes; dois não têm religião; um é testemunha de Jeová; e um segue a umbanda (religião afro-brasileira). Houve uma variação de dois meses a oito anos de diagnóstico de câncer. Quanto à escolaridade, de maneira geral, os participantes não estudaram ou estudaram poucos anos, sendo que cinco são analfabetos. Apenas uma pessoa idosa possuía o ensino superior completo.

A leitura minuciosa e exaustiva das vivências compartilhadas pelos participantes do estudo, somada à percepção sobre os contextos que os envolve, possibilitou a elaboração de categorias, com as unidades de significado extraídas das falas, para compreender o sentido da espiritualidade e a religiosidade diante do sofrimento, culpa e morte no vivido da pessoa idosa com câncer. Neste processo, a pessoa idosa com câncer desvelou-se como ser que:

Vivencia a espiritualidade e a religiosidade face a tríade trágica e ao vazio existencial

A consciência do diagnóstico de câncer, junto às incapacidades para os afazeres do dia a dia e as reações adversas apresentadas aos medicamentos quimioterápicos, revelam o vazio existencial, mantendo a pessoa idosa com câncer na visão sombria da vida. Questões relacionadas ao sofrimento foram descortinadas pelos participantes e, nesses momentos, o chamar pela divindade, ter a confiança no amparo de algo maior, sagrado e transcendente foi manifestado, conforme os depoimentos a seguir:

Lembro que fiquei com câncer todos os dias. Acredito na fé em Deus e vou levando em frente. (E3, mulher, católica, 74 anos)

Toda vida eu trabalhei, e agora eu não estou trabalhando. Isso aí, eu vejo os outros trabalhando e eu não trabalho. Essa doença é terrível. Precisa a gente ter muita fé para vencer. (E4, mulher, católica, 69 anos)

E4 corrobora com E3, afirmando recorrer à fé em Deus para dar continuidade à vida. Os relatos abaixo trazem o sofrimento de maneira intensa, corrosiva e dolorosa:

A pior coisa é você viver por cima de sofrimento. Eu me sinto triste, angustiada, a gente se sente humilhada, não é? Eu não me sinto feliz não. Eu peço a Deus que tenha misericórdia. (E5, mulher, católica, 65 anos)

Após a quimioterapia, eu fico com o corpo ruim, tudo dói, até a unha dói, as mãos, o corpo, e não consigo dormir. Sinto tontura, vontade de vomitar, levo noite e dia com isso. São três dias assim. (E8, mulher, católica, 73 anos)

Dá vontade de sumir do mundo, mas aí eu peço a Deus forças. Durante o dia, eu fico só na cama, porque minhas pernas doem e eu sinto vontade de vomitar. Me bate uma tristeza, não dá vontade de nada. Eu estou sofrendo demais: é agonia, falta de sono, e quando eu estou tomando isso aqui [quimioterápico], fico tremendo, a pressão fica alta e dá muita agonia. (E15, mulher, evangélica, 63 anos)

A dor transparece em E5 pela forma enfática que descreve sentir-se angustiada e humilhada pelos inconvenientes trazidos pela doença oncológica, pedindo a Deus pela misericórdia.

E8 e E15 sofrem no dia a dia com os desconfortos em decorrência dos efeitos colaterais dos quimioterápicos (sintomas dos mais leves aos mais limitantes) que prejudicam as atividades que eram exercidas normalmente, deixando-as na condição passiva.

Com os desafios do cotidiano, os pensamentos evocados pelos participantes também se direcionam à culpa. Nesse contexto, o sentimento de culpa é fundamentado pelo diagnóstico de câncer, e apontam os hábitos de vida, o descuido de si e o não cumprimento de orientações médicas, como motivo da doença, conforme relatos abaixo:

A doença veio por facilitação minha. O médico me dizia que eu não podia pegar peso e nem tomar sol. Eu saia do consultório e pagava o sol todo na rua vendendo. Isso me acabou, foi minha teimosia mesmo, falta de paciência de ficar parado. (E6, homem, católico, 70 anos)

Eu poderia ter me cuidado melhor A doença foi culpa minha, toda culpa minha, não procurei logo um médico. (E12, homem, sem religião, 64 anos)

E6 relata a insistência em situações que o deixou exposto e culpa-se pelo acontecimento negativo, entendendo o câncer como um retorno. E12 experiencia o processo de adoecimento como uma punição por não ter cuidado de sua saúde.

O diagnóstico e o vivido com o câncer provocam impacto profundo na vida da pessoa idosa, podendo ser vivenciado como sinônimo da morte. Enfrentar a doença passa a ser entendida como uma luta entre a vida e a morte. Se a finitude era pouco refletida, nesses momentos, o ser-no-mundo desenvolve a consciência de tal, e o pensamento sobre a morte e o morrer transitam cotidianamente, conforme as falas que seguem:

Eu não durmo, eu passo a noite acordada, penso que vou falecer, penso em meus filhos e neto. (E9, mulher, católica, 62 anos)

Com essa doença, eu peço tanto a Deus para não morrer. Eu procuro nem pensar que vou morrer. Se eu tenho essa doença, tenho que me conformar e confiar na cura de Deus. (E13, mulher, católica, 71 anos)

Tenho medo! A doença é algo que pode tirar a minha vida. Você já pensou nisso? Por isso eu venho ao tratamento, me apego na fé em Deus para não desistir. Penso também como será lá no outro mundo depois da morte, a gente nunca viveu lá! (E14, mulher, católica, 66 anos)

E9 tem seu sono prejudicado pelos pensamentos relacionados à possibilidade de morte diante da doença. E13 procura não pensar sobre essa possibilidade e prefere conferir a confiança na cura proveniente de Deus.

E14 acredita que morrer é ausentar-se desse mundo, implicando a sua entrada em um outro não familiar. Diante do medo do desconhecido, também recorre a Deus, pedindo ajuda para seguir a vida. Pensamentos como este demonstram que a espiritualidade e a fé demarcam território no vivido com o câncer, emergindo crenças/convicções espirituais sobre a passagem do mundo material para o mundo espiritual.

No início, quando eu soube da doença, pensei que iria morrer. Eu tinha uma cliente, ela apareceu com um nódulo na mama, pois ela morreu. Aí eu me apavorei. Eu disse: pronto, eu vou morrer também! Eu tenho pavor da morte [elevou o do tom de voz e chorou]. Não quero nem saber da morte. Quero não! (E10, mulher, umbandista, 65 anos)

A fala acima expressa que, ao ser diagnosticada, E10 pensou que iria morrer de imediato, principalmente com a morte de uma conhecida, por um problema de saúde semelhante ao seu. Ao mesmo tempo, revela o pavor que tem da morte, com choro e elevação do tom de voz, e:

Utiliza a espiritualidade e a religiosidade como estratégias de resiliência no cotidiano

A espiritualidade e a religiosidade foram desveladas como estratégias utilizadas pelos participantes vivenciarem os desafios, desconfortos, sofrimentos e incertezas do processo de adoecimento. A força adquirida pela espiritualidade é reconhecida para enfrentar situações adversas da vida, a partir da conexão com o Sagrado e o Transcendente. Nos discursos abaixo, se observa que a fé reflete a busca pelo sentido da vida de quem vivencia o câncer e pensa na cura:

Tenho fé, peço muito a Deus. Eu acredito na fé em Deus e vou levando em frente. (E2, homem, católico, 61 anos)

Tem sido confiante, porque eu busco muito a Deus e ele tem me dado muita força, muita fé e por meio de muitas orações e dos meus filhos, parentes e amigos tem me ajudado muito nesse dia a dia. (E7, mulher, evangélica, 75 anos)

Tudo que eu faço vai para frente, porque tenho fé em Deus. (E16, homem, católico, 83 anos)

Fé não tem fim, é a esperança que não acaba. Sinto aquela emoção no coração e desabafo. (E18, homem, evangélico, 80 anos)

Para além da crença em Deus e entidades sagradas, a religião/religiosidade pode motivar, influenciar comportamentos e confortar a pessoa idosa com câncer, refletindo a importância na vida desses entes:

Quando eu sinto qualquer coisa da quimioterapia, fecho meu olhinho, começo a pedir a meu Deus. Quando penso que não, do jeito que veio, já foi. (E1, mulher, evangélica, 64 anos)

Eu peço, rezo muito, a reza que Jesus deixou, o Pai Nosso, O Creio em Deus Pai, a Salve Rainha. (E3, mulher, católica, 74 anos)

Faço minhas orações quando acordo, ao meio dia e, quando vou dormir. Leio a bíblia. (E20, homem, sem religião, 84 anos)

Eu só peço com fé, nos Santos, nos Orixás, neles todos! Tenho essa fé e cuido dos Santos. Eu acendo uma velinha, rezo. Cultivo! (E10, mulher, umbandista, 65 anos)

A manifestação do poder da fé é sentida por E1, pois ao fechar seus olhos e dialogar com Deus, sente a melhora dos sintomas advindos da terapia antineoplásica. E3 relata que gosta de rezar e realiza as liturgias específicas de sua crença. E10 traz que cultiva a sua fé nos Orixás.

Embora o número de participantes que frequentam instituições religiosas seja menor, ir à missa ou ao culto torna-se relevante para eles, lhes trazendo bem-estar, conforme evidenciado nas seguintes falas:

Eu congrego, vou à minha igreja. Tem culto sábado e segunda-feira, só não vou no dia da quimioterapia e uns dias depois, porque fico ruim. (E18, homem, evangélico, 80 anos)

Eu frequento a minha congregação. Vou duas vezes na semana, na quarta-feira e aos sábados. (E19, mulher, testemunha de Jeová, 82 anos)

Alguns participantes salientam a impossibilidade de se deslocarem à instituição religiosa, seja pela incapacidade do processo de envelhecimento ou pelos sinais e sintomas decorrentes do tratamento quimioterápico, porém buscam meios de estarem praticando a sua fé, conforme os depoimentos abaixo:

Ultimamente vou mais [à igreja] aos domingos cedo. Depois da quimioterapia, não posso tomar sol, nem posso estar na frieza, aí vou mais no domingo de manhã, vou na escola dominical, vou na santa ceia. Tudo isso é importante demais para mim (E1, mulher, evangélica, 64 anos)

Eu ia muito à missa, não perdia um domingo. Ultimamente não estou indo à igreja, mas ouço a missa pelo rádio. Eu não estou indo porque não tem quem me leve, não enxergo mais. Mas agora tem uma catequista que vai levar para mim o “Corpo de Cristo”, dia de sábado, para eu fazer a comunhão com Cristo. (E17, Homem, católico, 89 anos)

E1 relata que vai à igreja pela manhã cedo, pois não deve ficar exposta ao sol e nem ao frio, por conta do aumento da sensibilidade térmica, o que traz incômodos. Ainda assim, comenta sobre a importância da sua participação em atividades periódicas da igreja que frequenta. Para além das modificações nas práticas religiosas, E17 diz que, diante da sua impossibilidade de ir à igreja, uma catequista se dirige à sua residência uma vez na semana para levar a Hóstia que representa o Corpo de Cristo. Portanto, mostra-se a importância que o ato de estar em comunhão com Deus representa em sua vida.

DISCUSSÃO

O sentido da espiritualidade e da religiosidade no cotidiano da pessoa idosa com câncer que vive sofrimento, culpa e morte desvelou-se a partir da análise vaga e mediana dos depoimentos, chegando à compreensão ontológica.

O ser humano é visto dentro de uma estrutura dimensional concêntrica. O somático e o psíquico são reagrupados em torno de um núcleo, o espiritual. Estas dimensões estão articuladas, mas, no sentido da ontologia-existencial, se subdividem em esfera da existência e esfera da facticidade. Na facticidade, o ser humano possui as dimensões somática e psíquica. Na esfera da existência, é permeado pelo noético, o espiritual(2525 Frankl VF. Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. São Paulo (SP): Forense Universitária. 2014. p. 338.).

Os participantes permitiram desvelar o vivido na esfera existencial com sofrimento, culpa e morte, nomeada por Frankl de tríade trágica. O sofrimento é algo inevitável na vida das pessoas, sendo impossível não ter a liberdade de o enfrentar, visto que o ser humano necessita da tensão para ressignificar a sua existência. O não posicionamento responsável diante do sofrimento faz o ser ficar perdido, à deriva e inconformado(1414 Frankl VF. O sofrimento de uma vida sem sentido: caminhos para encontrar a razão de viver. São Paulo (SP): É realizações. 1 ed. 2015. p. 128.), mas é preciso olhar de frente ao sofrimento(1515 Frankl VF. Em busca e sentido: um psicólogo no campo de concentração. 40 ed. São Leopoldo (SP): Sinodal; Petrópolis (RJ): Vozes. 2016. p. 184.).

A culpa mostrou-se como a distância entre ‘quem eu sou’ e ‘quem eu poderia ser’. Para os participantes, ao mesmo tempo em que consideram a não opção da escolha, não conseguem eliminar o sentimento de culpabilidade. É próprio do ser humano sentir-se culpado, pois ele tem uma consciência e é guiado por valores. Ao considerar que fez algo errado ou deixou de fazer o que deveria ser feito, a pessoa se sente culpada e responsável por isso(2626 Pereira GA, Aquino TAA. A culpa e suas relações com a religiosidade e o sentido da vida. Rev Logos Existência [Internet]. 2016 [cited Jan 10];5:(2):204-19. Available from: http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/le/article/view/31974/16886
http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index....
).

A pessoa que não realizou as possibilidades de sentidos (dever-ser), ou reconhece que pouco fez das possibilidades e valores que a vida lhe proporcionou, deixa, de alguma forma, uma lacuna na sua existência, o que poderia suscitar uma culpa ontológica(1616 Frankl VF. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida (SP): Ideias e Letras. 21 ed. 2017. p. 176.). Quando presente nas falas dos participantes, a culpa é proveniente da não realização do cuidado com sua saúde quando mais jovens, ou até mesmo após alguma recomendação médica.

Ainda na tríade trágica, embora saibam que a morte faz parte da transitoriedade da vida, os participantes tomam consciência da finitude quando vivenciam o câncer e o tratamento quimioterápico. A transitoriedade constitui um problema que aflige a pessoa que possui uma doença incurável, a qual confronta não apenas o sofrimento e a culpa, mas também a morte iminente(2727 Frankl VF. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo (SP): Paulus; 2016. p. 224.). Os discursos desvelaram a relação do câncer com a morte, o que amedronta por vários questionamentos, inclusive sobre o desconhecimento do pós-morte.

Embora os participantes se mantenham envolvidos no padecimento, por vezes, não aderindo a atitudes conscientes diante da tríade trágica vivenciada, foi possível compreender que a espiritualidade e a religiosidade estão presentes no cotidiano desafiador, recorrendo a Deus e às suas crenças em momentos de aflição e desespero. A busca do Sagrado e o acesso à espiritualidade ocorrem diariamente como tentativas de enfrentamento diante do vazio existencial instalado.

As orações individuais, rezas específicas, leitura da bíblia e ida ao templo religioso foram expressas como estratégias de resiliência e enfrentamento no cotidiano. Alguns participantes realizam orações diariamente e se dirigem à instituição religiosa pela importância que a fé exerce diante das adversidades no vivido com o câncer.

A análise existencial não busca provas da existência de Deus, mas descreve a vivência do homem religioso. Tendo em vista que, para o homem religioso, o absoluto permanece na transcendência, torna-se necessária simbolização, em que a relação entre a imagem e o ser simbolizado é um fenômeno humano, específico do ser religioso(1616 Frankl VF. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida (SP): Ideias e Letras. 21 ed. 2017. p. 176.). A realização de liturgias e orações específicas com menção a imagens e símbolos de suas religiões reforça a vivência da fé dos participantes, tornando-os seres-com a religiosidade em busca da ressignificação do sentido da vida. Os participantes, através de suas práticas religiosas, encontram apoio para o enfrentamento das situações desafiadoras, deixando-os mais consolados.

O ser humano não moveria um dedo e até não respiraria se na base profunda de sua existência, no mais íntimo do seu ser, não possuísse uma confiança primária no sentido último. Dessa forma, a confiança no sentido e a fé no ser maior, por mais ocultos que sejam, são transcendentais e indispensáveis(1515 Frankl VF. Em busca e sentido: um psicólogo no campo de concentração. 40 ed. São Leopoldo (SP): Sinodal; Petrópolis (RJ): Vozes. 2016. p. 184.).

O homem religioso é o homem de audição mais aguda que o irreligioso. O homem religioso é capaz de assumir a sua vida como uma missão a ser cumprida, vivenciando esta missão como uma busca do encontro com esta instância, sendo capaz de completar a dinâmica ontológica. Na pessoa religiosa, quando a dimensão espiritual é acessada, permitindo ser conduzido por Tu e orientado na dinâmica da própria consciência, o ser responsável e o ser consciente se dão simultaneamente(1616 Frankl VF. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida (SP): Ideias e Letras. 21 ed. 2017. p. 176.).

A profundidade da relação espiritualidade e a religiosidade desvelado no vivido dos participantes com o sofrimento, a culpa e a morte reflete a intimidade entre o Eu e um Transcendente - o Sagrado - de diversos modos espirituais: por meio do monólogo profundo do ser humano com sua própria consciência, sendo Deus o seu parceiro íntimo, por meio dos ritos e símbolos religiosos que expressam uma dada linguagem espiritual, a partir de experiências sensíveis da vida(2525 Frankl VF. Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. São Paulo (SP): Forense Universitária. 2014. p. 338.).

Limitação do estudo

A limitação deste estudo está relacionada com a não generalização dos seus resultados para toda a população idosa com câncer, visto que se refere a um grupo de pessoas idosas com câncer em determinado local da Bahia. No entanto, os resultados possibilitam a discussão profunda das informações compreendidas, podendo ser aplicadas em pessoas idosas que vivenciam situações semelhantes às dos participantes da pesquisa.

Contribuições para a área da enfermagem

Os resultados do estudo contribuem para reflexões sobre a necessidade de a enfermeira atuar na dimensão espiritual da pessoa idosa, em vários cenários. Além disso, essas reflexões despertam que não somente aspectos biológicos e tecnicistas sejam visados na assistência à saúde, mas que aspectos espirituais possam ser inseridos na prática clínica. Essas reflexões poderão estimular a inserção das necessidades voltadas à espiritualidade e à religiosidade na Sistematização da Assistência de Enfermagem. Portanto, instituições de ensino poderão ampliar o olhar sobre a gerontologia, com foco na formação de profissionais de saúde que contemple a totalidade do ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A espiritualidade e a religiosidade se desvelaram como importantes estratégias de enfrentamento utilizadas pela pessoa idosa com câncer face ao sofrimento, culpa e pensamentos sobre a morte que perpassam no cotidiano instável. Esses recursos são capazes de proporcionar alívio nos momentos difíceis, força para superar os impactos emocionais, e podem ajudar na busca do bem-estar e na ressignificação do sentido da vida, diante do que não pode ser modificado.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Margarida Vieira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2019
  • Aceito
    07 Ago 2019
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