RESUMO
Objetivos:
compreender as histórias de vida e o itinerário de travestis e transexuais nos serviços de saúde.
Métodos:
estudo de abordagem qualitativa, ancorada no referencial metodológico da História Oral. Foram realizadas entrevistas, sendo tematicamente analisadas.
Resultados:
emergiram dois temas: 1) gênero e sexualidade nas histórias de vida; e 2) as trajetórias nos serviços de saúde. Estes revelaram os desafios no processo de reconhecimento da identidade de gênero perante a família e sociedade. Os relatos mostram os dilemas que transexuais e travestis enfrentam no atendimento à saúde, o que acaba por gerar o afastamento dessa população dos serviços.
Considerações Finais:
demonstrou-se que a História Oral pode ampliar o conhecimento, especialmente, sobre as histórias de vida e trajetórias nos serviços de saúde de travestis e transexuais; além disso, foram oferecidas informações que podem auxiliar gestores e profissionais de saúde na tomada de decisão ou no cuidado em relação a essas pessoas.
Descritores:
Pessoas Transgênero; Identidade de Gênero; Saúde das Minorias; Assistência Integral à Saúde; Sistema Único de Saúde
ABSTRACT
Objectives:
to understand the life stories and itineraries of transvestites and transsexuals in health services.
Methods:
study with a qualitative approach, anchored in the methodological framework of Oral History. Interviews were conducted and thematically analyzed.
Results:
two themes emerged: 1) gender and sexuality in life stories; and 2) the trajectories in health services. These revealed the challenges in the process of recognizing gender identity before the family and society. The reports show the dilemmas that transsexuals and transvestites face in health care, which ends up generating the removal of this population from services.
Final Considerations:
it has been demonstrated that Oral History can increase knowledge, especially about life histories and trajectories in the health services of transvestites and transsexuals; in addition, information was offered that can assist managers and health professionals in making decisions or caring for these people.
Descriptors:
Transgender Persons; Gender Identity; Minority Health; Comprehensive Health Care; Public Health
RESUMEN
Objetivos:
comprender las historias de vida y el itinerario de travestis y transexuales en los servicios de salud.
Métodos:
estudio de abordaje cualitativo, basado en el referencial metodológico de la Historia Oral. Han sido realizadas entrevistas, siendo temáticamente analizadas.
Resultados:
emergieron dos temas: 1) género y sexualidad en las historias de vida; y 2) las trayectorias en los servicios de salud. Estos revelaron los desafíos en el proceso de reconocimiento de la identidad de género delante la familia y sociedad. Los relatos muestran los dilemas que transexuales y travestis enfrentan en la atención a la salud, lo que acaba por generar el alejamiento de esa población de los servicios.
Consideraciones Finales:
se ha demostrado que la Historia Oral puede ampliar el conocimiento, especialmente, sobre las historias de vida y trayectorias en los servicios de salud de travestis y transexuales; además, han sido ofrecidas informaciones que pueden auxiliar gestores y profesionales de salud en la toma de decisión o en el cuidado en relación a esas personas.
Descriptores:
Personas Transgénero; Identidad de Género; Salud de las Minorías; Asistencia Integral a la Salud; Sistema Único de Salud
INTRODUÇÃO
A transexualidade foi considerada por muito tempo um tipo de transtorno mental atrelado à identidade de gênero(11 Arán M, Murta D, Lionço T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva[Internet]. 2009 [cited 2019 Mar 20];14(4):1141-9. Available from: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2009.v14n4/1141-1149/pt
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). Somente em 2018, na 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), publicada pela Organização Mundial da Saúde, que o “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero” deixou de ser incluído na classificação e, dessa forma, de ser visto como uma patologia(22 World Health Organization (WHO). International Classification of Diseases: 11th Revision (ICD-11) [Internet]. 2018[cited 20 Jan 2019]. Available from: https://www.who.int/classifications/icd/en/
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). O debate foi ampliado, assim como o conceito de gênero, entendido enquanto algo além do sexo biológico, cromossomos ou órgãos genitais, e constituído, sobremaneira, pela percepção e expressão social das pessoas(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. 2015[cited 20 Jan 2019];1:194. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
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).
Conforme os Princípios de Yogyakarta, a identidade de gênero é compreendida como a experiência pessoal e individual em relação ao gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo biológico(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. 2015[cited 20 Jan 2019];1:194. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
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). Como forma pessoal de compreensão do corpo, a identidade de gênero pode abarcar modificações físicas (envolvendo ou não procedimentos cirúrgicos) e nas formas de expressão de gênero, como vestimentas e modo de falar. O conceito “transgeneridade” é um termo abrangente que engloba as muitas identidades de gênero e inclui as pessoas que não se identificam com o sexo biológico; já o termo “cisgeneridade” abarca as pessoas que se identificam com o sexo do nascimento.
Contudo, esse novo entendimento ainda não transformou a realidade das pessoas que se assumem transexuais e travestis. Elas ainda passam por processos de estigmatização que acabam por gerar atos de violência e muitas vezes até a morte(44 Pacheco RAS, Pacheco IS. Direito, violências e sexualidades: a transexualidade em um contexto de direitos. Estud Socio-Juríd. 2016; 18(2):203-28. doi: 10.12804/esj18.02.2016.07
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-55 Braga IF, Oliveira WA, Silva JL, Mello FCM, Silva MAI. Family violence against gay and lesbian adolescents and young people: a qualitative study. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl-3):1220-7. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0307
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). Somando-se a isso, essas pessoas são excluídas do convívio social, das instituições de ensino, do mercado de trabalho e também dos serviços de saúde, tendo seus direitos enquanto cidadãs(ãos) negados por completo(44 Pacheco RAS, Pacheco IS. Direito, violências e sexualidades: a transexualidade em um contexto de direitos. Estud Socio-Juríd. 2016; 18(2):203-28. doi: 10.12804/esj18.02.2016.07
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).
Essa discriminação, baseada na identidade de gênero ou expressão de gênero diferente daquela que foi definida no nascimento, é denominada “transfobia”(66 Snelgrove JW, Jasudavisius AM, Rowe BW, Head EM, Bauer GR. Completely out-at-sea with two-gender medicine: a qualitative analysis of physician-side barriers to providing healthcare for transgender patients. BMC Health Serv Res[Internet] 2012[cited 20 Jan 2019];12(110):1-13. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3464167/pdf/1472-6963-12-110.pdf
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). Uma de suas consequências é o distanciamento dessa população dos serviços de saúde, principalmente daqueles oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no caso do Brasil, e muito desse afastamento se deve à falta de estratégias que tornem o acesso dessas pessoas mais fácil e confortável(77 Santos ABD, Shimizu HE, Merchan-Hamann E. Processo de formação das representações sociais sobre transexualidade dos profissionais de saúde: possíveis caminhos para superação do preconceito. Ciênc Saúde Colet. 2014; 19(11):4545-54. doi: 10.1590/1413-812320141911.15702013
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). Elas muitas vezes se automedicam, com o intuito de evitar a discriminação e o preconceito aos quais estão expostas ao chegarem aos serviços onde possivelmente serão atendidas/os por profissionais que não possuem qualquer conhecimento sobre as suas especificidades e necessidades(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. 2015[cited 20 Jan 2019];1:194. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
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).
Apesar de avanços na esfera de seus direitos, as barreiras encontradas por transexuais e travestis para ter acesso ao sistema de saúde são múltiplas e multifatoriais, indo além da discriminação, como insultos verbais, muitas vezes se dando por meio de processos mais sutis, como a criação de ambientes desconfortáveis e deficientes às necessidades dessas pessoas(66 Snelgrove JW, Jasudavisius AM, Rowe BW, Head EM, Bauer GR. Completely out-at-sea with two-gender medicine: a qualitative analysis of physician-side barriers to providing healthcare for transgender patients. BMC Health Serv Res[Internet] 2012[cited 20 Jan 2019];12(110):1-13. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3464167/pdf/1472-6963-12-110.pdf
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). Podese afirmar que a falta de preparo dos profissionais também está relacionada a não possuírem nenhuma disciplina sobre gênero e sexualidade ou mesmo discussões sobre o tema durante sua formação, o que leva a um total desconhecimento e a atitudes preconceituosas, até mesmo violentas, no atendimento aos transgêneros(77 Santos ABD, Shimizu HE, Merchan-Hamann E. Processo de formação das representações sociais sobre transexualidade dos profissionais de saúde: possíveis caminhos para superação do preconceito. Ciênc Saúde Colet. 2014; 19(11):4545-54. doi: 10.1590/1413-812320141911.15702013
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).
Na literatura científica nacional, também é notória a lacuna em campos como o da enfermagem que discutam a saúde de transexuais e travestis. Nesse sentido, reconhece-se como essencial o desenvolvimento de estudos com o objetivo de subsidiar o atendimento a essas pessoas, que passam por diversas situações de vulnerabilidade social e vivenciam soluções precárias para lidar com o sofrimento físico e psicológico causados pela insatisfação e estranhamento com seus corpos(88 Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis (Rio J.) [Internet]. 2009[cited 21 Jan 2019];19(1):43-63. Available from: http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-525975
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).
Além disso, evidências científicas têm a possibilidade de auxiliar os profissionais de saúde na compreensão sobre esses processos de vulnerabilidade, os quais podem ampliar quadros de adoecimento e, principalmente, sofrimento(99 Sampaio LLP, Coelho MTAD. Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface Comun Saúde Educ. 2012; 16(42):637-49. doi: 10.1590/S1414-32832012000300005
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). O acesso dessa população ao sistema de saúde também deve ser facilitado por políticas públicas, que carecem de evidências para se organizar adequadamente(1010 Cardoso MR, Ferro FL. Saúde e População LGBT: demandas e especificidades em Questão. Psicol Ciênc Prof. 2012; 32(3):552-63. doi: 10.1590/S1414-98932012000300003
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).
OBJETIVOS
Compreender as histórias de vida e o itinerário de travestis e transexuais nos serviços de saúde.
MÉTODOS
Aspectos éticos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Nº do Parecer CAAE: 64169717.3.0000.5504.). Os(as) colaboradores(as) assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido antes das entrevistas.
Tipo de estudo
Trata-se de uma pesquisa qualitativa fundamentada no referencial metodológico da História Oral, que permite acessar as experiências sociais de pessoas ou grupos. A História Oral valoriza grupos sociais excluídos e marginalizados; e, por meio dela, minorias discriminadas vêm ganhando espaço para que suas vozes, desprezadas por outros documentos, possam ser ouvidas e suas experiências validadas em contraposição ao silenciamento vivenciado diariamente na sociedade(1111 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.). O roteiro COREQ foi utilizado para o relato da coleta de dados.
Procedimentos metodológicos
Cenário do estudo
A pesquisa foi realizada em uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, com aproximadamente 220.000 habitantes, sendo sua densidade demográfica de 195,15 hab./km²(1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). População estimada em 2010, São Carlos, São Paulo [Internet]. 2010 [cited 20 Jan 2018]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama
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).
Fonte de dados
Os critérios de inclusão para a participação foram: ser homem transexual ou mulher transexual ou travesti; ser maior de 18 anos; e ter vivenciado atendimento em serviços de saúde. Inversamente, os critérios de exclusão para a participação na pesquisa foram: não ter experiência de atendimento em serviços de saúde; e estar em situação de vulnerabilidade que impedisse a participação no estudo. Foi utilizado o método bola de neve para contato com os(as) colaboradores(as). O primeiro participante foi contatado durante um evento acadêmico desenvolvido por curso de graduação de Enfermagem de uma universidade federal que discutiu as questões de saúde e diversidade.
Realizou-se contato com cinco colaboradores(as); uma não respondeu ao convite. No total, participaram deste estudo quatro colaboradores(as), cuja caracterização é apresentada no Quadro 1. Seus nomes foram mantidos de acordo com a metodologia da História Oral, que valoriza a identidade de cada um deles e sua vontade. Principalmente em relação a essa temática, em que o nome é uma conquista social, optou-se por mantê-lo mediante anuência e escolha dos(as) participantes.
Coleta e organização dos dados
Os dados foram coletados entre abril de 2017 e fevereiro de 2018. As entrevistas, como ponto de partida da coleta de dados em História Oral, foram conduzidas mediante roteiro construído com questões amplas a fim de abranger a história de vida e as experiências dos(as) colaboradores(as) nos serviços de saúde. As perguntas disparadoras e instruções norteadoras foram as seguintes: “Conte-me um pouco sobre a sua história de vida”; “Conte-me suas experiências no SUS. Como foram?”; “Como você se sentiu em relação ao atendimento da equipe de saúde?”. Nesse contexto, as perguntas possuem o papel de estimular e permitir que os(as) colaboradores(as) se sintam à vontade na escolha dos fatos e impressões a serem relatados(1313 Meihy JCSB, Ribeiro SLS. Guia Prático de História Oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto; 2011.). A combinação da História Oral de Vida com a História Oral Temática foi escolhida para este estudo. É possível associar as duas técnicas a fim de ressaltar alguns dados objetivos e essenciais para a pesquisa sem que se perca a riqueza presente na narrativa de vida(1111 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.).
Dessa forma, nesta pesquisa, receberam destaque as questões específicas sobre as vivências dos(as) colaboradores(as) nos serviços de saúde. A primeira autora, estudante de graduação em Enfermagem de uma universidade pública, após receber treinamento, executou todas as entrevistas. Os(as) colaboradores(as) ficaram à vontade para escolher o local de realização, entretanto foi dada a possibilidade de ocorrer em uma sala privativa na instituição de ensino superior à qual a primeira autora estava vinculada no período da coleta. Os(as) colaboradores(as) optaram por esse local, justificado pela facilidade de acesso e possibilidade de privacidade; e escolheram os dias e horários conforme as suas disponibilidades. As entrevistas tiveram aproximadamente de 30 a 120 minutos de duração, foram gravadas digitalmente e transcritas na íntegra.
O tratamento do conteúdo seguiu os passos propostos pelo referencial da História Oral, em que a transformação das gravações em documentos escritos exige cuidados rigorosos e deve passar pelas etapas de transcrição absoluta, textualização e, por último, transcriação. Na fase de transcrição absoluta, são preservadas todas as palavras ditas que foram escritas em seu estado bruto, sem qualquer tipo de alteração; logo, foram mantidas as perguntas, os erros de concordância, palavras repetidas e até mesmo os sons emitidos no momento de cada fala. Na segunda fase, a de textualização, foram retiradas as perguntas feitas pela entrevistadora, os sons e ruídos, e corrigidos os erros gramaticais a fim de tornar o texto mais claro e fácil de ler. Nessa fase, também foi escolhido o “tom vital” — uma frase retirada da própria entrevista — considerado pelos autores como um recurso que determina a essência daquele texto e faz com que a entrevista seja reorganizada com base no eixo definido. A última fase é a de transcriação, momento em que são incorporados outros elementos ao texto com o objetivo de recriar a atmosfera da entrevista e seu contexto. Um recurso utilizado para isso foi o caderno de campo, que é um espaço no qual a entrevistadora registrou suas impressões e vivências em relação ao ambiente da entrevista e aos/às colaboradores(as). As versões finais de cada entrevista foram verificadas quanto à precisão e apresentadas aos(às) colaboradores(as) para que aprovassem e autorizassem seu uso, visto que é essencial, na perspectiva da História Oral, que eles(as) se reconheçam nas narrativas(1111 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.).
Análise dos dados
Entrevistas de História Oral exigem o desenvolvimento de um equilíbrio entre a análise detalhada e a manutenção do significado das contribuições dos participantes(1111 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.). Neste estudo, especificamente, procedeu-se a uma análise temática que buscou revelar não só a experiência dos participantes, mas também as interpretações dos pesquisadores. Para garantir a credibilidade da análise, os dados foram discutidos com uma segunda pesquisadora para serem validados. Além disso, as decisões analíticas foram registradas; e a confirmação, assegurada por meio do exercício da reflexividade e da codificação temática.
RESULTADOS
Ao utilizar como metodologia a História Oral de Vida, entende-se que as questões implicadas nas vivências das pessoas entrevistadas são imprescindíveis para a compreensão das dificuldades enfrentadas nos atendimentos em saúde. A leitura das narrativas permitiu encontrar muitos pontos de convergência, os quais foram organizados em temas que viabilizaram a interface entre a história de vida e as trajetórias nos serviços de saúde. Cada tema, por sua vez, foi representado pela voz dos(as) colaboradores(as), que o traduzem da forma mais representativa. Por fim, foram identificados dois temas nas histórias dos participantes: 1) gênero e sexualidade nas histórias de vida; e 2) as trajetórias nos serviços de saúde. Ambos estão sintetizados na Figura 1 e são detalhados a seguir.
Tema 1 – Gênero e sexualidade nas histórias de vida
1.1 As subjetividades e a sexualidade: “Destruíram as minhas subjetividades e moldaram aquilo que eles queriam que eu fosse!”
Descobrir-se trans se traduz na falta de representatividade e de visibilidade que carrega consigo angústias e sentimentos de não pertencimento a nenhum grupo, aspecto que amplia o isolamento social.
Eu nunca estive dentro de nenhuma norma. E isso gerou uma depressão e isolamento muito grandes, porque eu nunca coube em nenhum grupo, eu não cabia no grupo dos gays, eu não cabia no grupo das lésbicas, eu não cabia no grupo dos cis, eu não cabia no grupo das hétero, eu não cabia em nenhum grupo! Nenhum! Ninguém me queria, ninguém me desejava. (Erika)
Erika e Erick contaram o quanto suas subjetividades foram moldadas e exploradas pelos seus familiares de forma opressora, ainda no início de sua adolescência.
Eles fizeram a minha estética, o meu psicológico, o meu emocional, eles destruíram as minhas subjetividades e moldaram aquilo que eles queriam que eu fosse! E conseguiram [...] Eu era só uma menina adolescente se descobrindo, sem poder ser menina, negando toda a sua existência, negando as suas subjetividades. (Erika)
Então eu fui ficando mais sozinho. Hoje, tentando resgatar, penso que tinha a ver com a mudança corporal, mas que, naquele momento, eu não conseguia ler dessa forma, mas acho que tinha a ver com a leitura do mundo que começava a me ver cada vez mais em um enquadramento que eu não cabia, e era muito difícil agir, era muito difícil existir, porque era sempre o enquadramento que não dava, que não cabia. (Erick)
Erick trouxe dificuldades vivenciadas ao longo de seu processo de adolescer relatando a complexidade de não se reconhecer pelos padrões sociais e a necessidade de construir um autorreconhecimento sem referenciais:
Tem, também, uma questão física, de olhar o corpo inteiro, enquanto uma pessoa trans com algumas modificações apenas. É complexo porque as imagens que são reproduzidas o tempo todo pela sociedade não são de corpos trans, então você olha e tem que ficar se localizando às vezes, e isso me deu a certeza de que a disforia é externa. Então a minha leitura do meu corpo foi de uma leitura bem de empoderamento, tipo, sou um homem com peito, com vagina, com o útero. (Erick)
Em sua narrativa, Erick fez diversas reflexões sobre a masculinidade hegemônica e o quanto pode ser perigoso persegui-la, mesmo que de forma inconsciente:
Eu tive essa coisa de rejeitar o físico que não correspondia, eu não olhava no espelho de jeito nenhum, até os 1٦ anos eu tinha pavor de espelho. [...] É engraçado, porque olhar no espelho agora é me ver assim e ficar muito confortável, mas ao mesmo tempo, é sentir sempre um certo peso. Tanto que eu tenho repensado muito as questões estéticas, por que é sempre uma imagem da hegemonia, e uma imagem da opressão, e uma imagem de homem branco. É muito ambíguo ter me encontrado, mas não saber o que fazer com isso agora. Porque estar nesse papel e ser lido dessa forma te possibilita começar a agir de formas muito opressoras. E isso é uma armadilha difícil de perceber inclusive. (Erick)
1.2 Transfobia e violência: “Eles fazem o papel de inquisição, só que os instrumentos de tortura não eram físicos, eram psicológicos.”
Relacionado ao tema apresentado anteriormente, identificou-se o aspecto que, talvez, mais afete a saúde mental das pessoas transexuais e travestis: a transfobia ou o preconceito vivenciado diariamente por essa população que tem, nesses momentos, suas existências repetidamente questionadas.
Passo por um processo de depressão louca e aí eu desenvolvo anorexia, e aí eu começo a achar que sou uma pessoa gorda, e olha esse corpo! Eu sempre fui magricelíssima, e eu comecei a achar que era gorda e que ser gorda é um problema, e que eu não precisava comer que eu não podia comer, e eu não podia comer porque eu não tinha nada! Eu tinha que achar um problema na minha vida, eu tinha que achar uma distração! [...] E eu comecei a criar uma fobia social. As pessoas me davam pânico, até hoje elas me dão, na verdade. (Erika)
As vivências da infância e adolescência mostraram ser também carregadas de não aceitação e violência.
E eu vou para casa dessa tia e desse tio que são a inquisição contemporânea, é assim que eu os nomeio. Eles são inquisidores! Eles fazem o papel de inquisição! A gente vê a inquisição espanhola, a inquisição portuguesa, era exatamente isso, só que os instrumentos de tortura não eram físicos, eram psicológicos, mas que atingiam e levam à depressão e ao suicídio. (Erika)
Com 12 ou 14 anos, acho que foi o tempo mais tenso na minha vida, que eu estava mergulhado em uma depressão, bem forte. Porque eu não saía mesmo, não conseguia ter interação com outras pessoas. (Erick)
Nas narrativas, é possível verificar a influência da discriminação e da marginalização nos aspectos mais subjetivos que vão refletir direta ou indiretamente na saúde mental dessas pessoas, muitas vezes levando a distúrbios alimentares, quadros graves de depressão e até mesmo ao suicídio.
Tema 2 – As trajetórias nos serviços do Sistema Único de Saúde
Pautando-se nas narrativas apresentadas no tema anterior, notou-se que existem especificidades da história de pessoas transexuais ou travestis que são frequentemente desconhecidas, ignoradas e negligenciadas pelas instituições de saúde e pelos seus profissionais. Assim, esse tema focaliza tal questão de forma pormenorizada.
2.1 Falta de preparo teórico e de discussões na formação dos profissionais de Saúde: “A saúde não debate, não discute corpos trans.”
Os trechos retirados das entrevistas endossaram evidências sobre o despreparo dos profissionais de saúde para acolher e atender a população trans.
A gente sente que o SUS precisa de treinamento, de todos os funcionários, dos médicos, dos atendentes, do faxineiro até o cirurgião. A falta de preparo, eu acho que é a maior dificuldade; o preconceito, a gente consegue driblar, mas a falta de preparo é o que mais incomoda. Acho que as pessoas, até dos cargos um pouco maiores como enfermeiros, médicos saem da faculdade e não têm esse preparo, esse cuidado de tratar as pessoas com respeito e da maneira que eles querem. Eu acho que os agentes comunitários têm um pouco mais de preparo, um pouco mais de cuidado porque eles têm que estar em contato 24 h com o público, então eles têm um manuseio um pouco maior com a questão T. (Gustavo)
Os(as) colaboradores(as) problematizaram o processo de formação desses profissionais, ressaltando que a discussão sobre gênero e sexualidade ainda é incipiente ou optativa nos cursos de saúde:
A saúde não discute diversidade de gênero e sexualidade. A saúde não treina os seus profissionais e não humaniza os seus profissionais para lidar com as diferenças, que nem é diferença, que eu detesto esta palavra. Não é nada de diferente! São multiplicidades! São múltiplas! São outras formas. São outras configurações anatômicas e fisiológicas, que é diferente. (Erika)
2.2 Uso do nome social nos serviços de saúde: “Prefiro ficar em casa com dor e me automedicar do que ir ao SUS, por causa do constrangimento do nome civil.”
A questão do nome social também emergiu nos relatos; apesar do direito reconhecido por lei, os profissionais ainda possuem dificuldades para compreender/efetivar esse cuidado e responsabilidade:
O médico foi entregar minha biópsia para moça que estava atendendo, e ele me chamou de ela várias vezes, e eu fiquei me perguntando dessa dificuldade dele de entender que ele vai ter que dizer para as pessoas que eu sou um homem, que ele vai ter que defender isso também, enquanto médico! Então para não ter problema, é mais fácil vir com a biópsia do útero e falar que é dela, porque ele não tem que ficar explicando. (Erick)
2.3 Atendimento permeado por julgamentos, preconceitos e transfobia e o despreparo do serviço
Nas narrativas, percebe-se a existência de um grande estigma sobre transexuais e travestis, que são pessoas associadas, de imediato, a infecções sexualmente transmissíveis pelos profissionais de saúde.
Mas a saúde não está preparada. Aí, você chega em um atendimento, e você já está morta, e você tem que brigar pelo nome, tem que brigar pelo direito, tem que falar com o médico e o médico mal olha na sua cara, o médico está mais preocupado com seus exames de HIV/aids, sífilis, gonorreia, herpes e hepatite do que com a sua gripe. (Erika)
Nos trechos a seguir, evidencia-se a existência de profissionais, em geral médicos, como ginecologistas e endocrinologistas, que se recusam a atender transexuais e travestis.
É questão de nome, é questão de equipe médica, equipe de enfermagem, equipe técnica, de toda a equipe não preparada para receber essas pessoas. Clínico ri da cara de travesti, a endocrinologista se nega a atender travesti no posto de saúde, ginecologista se nega a atender homem trans no posto de saúde. E isso é real! A gente sabe que existe! Com seus direitos de se negar, jurídicos, ele pode se negar a atender uma pessoa se ele der qualquer desculpa, porque ninguém vai averiguar se a versão da travesti é verdadeira ou não. (Erika)
Outro agravante que compromete o atendimento desse público é a total falta de conhecimento e de sensibilidade dos profissionais durante as consultas, ora ignorando as especificidades de cada indivíduo, ora exotificando e patologizando.
Mas em relação ao acompanhamento médico, eu tentei uma vez ir a uma ginecologista, mas o atendimento foi muito pavoroso, eu fiquei bem apavorado, porque ela me tratou o tempo todo como uma pessoa doente, patologizou mesmo. Eu entrei no consultório e ela já abriu o CID e escreveu lá. E foi uma coisa pavorosa, perguntou quando eu virei mocinha! E ela trabalha com pessoas trans há 10 anos. Então para mim foi tudo muito imperdoável. (Erick)
2.4 Questões de disforia, dificuldade de aceitar o próprio corpo ou parte dele, que impedem o acesso de travestis e transexuais à saúde e o sentimento de não precisar dos serviços
Além de todas as questões que dificultam ou até mesmo impedem o acesso de transexuais e travestis aos serviços de saúde, ainda existe a questão da disforia. Ela, para algumas pessoas, é muito forte. Entretanto, em um sistema cis-heteronormativo — aquele pautado na ideia socialmente construída de que as existências consideradas normais são as cisgêneras e heterossexuais e tudo que foge a essa regra torna-se patológico —, é uma questão nunca pensada e continua reforçando o afastamento dessa população. Somando-se a isso, outro ponto importante levantado na narrativa é sobre o horário de atendimento dos postos de saúde, o qual não leva em conta as profissionais que trabalham na madrugada, como foi muito bem exemplificado nas falas a seguir:
A relação é sempre essa: preguiça, vergonha de ter que ir de manhã, porque o posto não funciona à noite e elas têm uma coisa de não sair de dia por causa de expressão de barba, por causa de ter que se maquiar, por ter que arrumar cabelo. Tem que estar às ٦ horas da manhã na fila de um SUS, e elas trabalharam até às ٥ horas na rua, então não vão porque o SUS é aquele horário. Não vão porque vão ficar na fila com mães, com idosos, com criança, com todo mundo e todo mundo vai olhar e vão ser uma piada. São todas essas questões que dificultam muito o acesso, e quando acessam já estão muito doentes. (Erika)
Eu não sabia que eu era gente, que eu poderia ter direito de exigir alguma coisa do outro. Eu achava que tudo que me viesse era o que tinha para mim. Eu sou travesti! É o que eu costumo dizer sempre, sou travesti! E isso é vida de travesti! Elas dizem isso até hoje, isso é vida de travesti. (Erika)
A eminência da morte: pensamento que foi afirmado e exemplificado pela fala da Erika:
Travesti tem pressa, porque a expectativa de vida é tão curta, que a gente precisa viver! Eu não vou ficar 3 meses esperando atendimento numa fila do SUS, para médica nem olhar na minha cara. (Erika)
2.5 Experiências positivas de atendimento no SUS
Apesar de toda a dificuldade apresentada e presente no atendimento de transexuais e travestis pelos serviços de saúde, algumas experiências positivas também foram relatadas. Muitas delas, atreladas aos profissionais sensibilizados e capacitados para o atendimento.
Até agora que foi quando eu fiquei bem doente ano passado, e fui na médica, fiz o papanicolau com a enfermeira que foi muito bom e eu falo isso para os meninos. A questão não é essa, não é a questão do exame, que já existe toda uma coisa em cima desse exame, existe um medo. Eu tenho 27 anos e foi a primeira vez que eu fui fazer. Mas o fato de ter sido tratado o tempo todo como Erick, ter sido tratado como eu sou, foi tranquilo. Não tive nenhum problema com exame, foi ótimo. (Erick)
Mas esses dias atrás que eu precisei ir no posto, a mulher pediu o meu CPF, que tem o nome social, pegou lá e digitou e me deu o prontuário. Eu fiquei olhando, e ela não colocou nenhum nome civil, ela colocou só o nome social. Foi perto do meu bairro, foi maravilhoso. (Bianca)
Uma profissional considerada referência no atendimento em saúde das pessoas transexuais e travestis é uma psicóloga, que foi mencionada em três das quatro entrevistas como o caminho para um atendimento qualificado e como promotora de um suporte emocional essencial no processo de transição do sexo designado ao nascimento para o gênero que o(a) representa. Ela oferece grupos de apoio para homens e mulheres transexuais e travestis e acaba coordenando o atendimento de saúde dessas pessoas, encaminhando para os serviços especializados.
Aqui na cidade, tem um ambulatório, o que é capacitado para atender a população T, que a psicóloga trabalha, ela atende pessoas com todos os problemas possíveis e imagináveis e acaba que muitas vezes não tem vaga, mas eu acho que é o único lugar que os funcionários estão preparados, porque ela tem o cuidado de conversar com os funcionários. (Gustavo)
É que a gente tem sorte de tê-la; acho que, se não tivesse, não seria tão bom assim. Ela sempre foi uma parte importante, porque ela é muito incrível. Ela é como se fosse a gente, ela toma nossa dor. E eu acho ela muito incrível por isso. (Bianca)
DISCUSSÃO
O objetivo deste estudo foi compreender as histórias de vida e o itinerário de travestis e transexuais nos serviços de saúde. Nesse sentido, verificaram-se experiências de violência e de discriminação como parte do cotidiano dos(as) participantes. No que se refere ao itinerário desse público nos serviços de saúde, foi evidente a falta de preparo dos profissionais e dos serviços para atender às suas demandas e necessidades. Todavia, experiências positivas nos serviços de saúde também foram referidas, sinalizando mudanças na área.
Notou-se que, apesar de uma maior abertura das expressões de gênero nos últimos anos, há, ainda, uma definição binária subordinada, pautada nas características biológicas. Nos corpos, estão inscritos marcadores subjetivos; as marcas da identidade de gênero que se inscrevem sobre os corpos estão intimamente ligadas com o contexto histórico, político e cultural. Os corpos trans colocam em jogo a heteronormatividade, vistos como corpos incoerentes em relação às normas sociais hegemônicas, o que muitas vezes provoca uma repulsa social(1414 Longaray DA, Ribeiro PRC. Travestis e transexuais: corpos (trans) formados e produção da feminilidade. Rev Estud Fem. 2016; 24(3):761-84. doi: 10.1590/1806-9584-2016v24n3p761
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v2...
). Essas ideias repercutem na vida dos(as) participantes e são materializadas quando eles(as) se referem a situações de violência e discriminação. Com base nas narrativas, percebeu-se que a transfobia perpassa o cotidiano dessa população nos mais diversos ambientes de convivência social(66 Snelgrove JW, Jasudavisius AM, Rowe BW, Head EM, Bauer GR. Completely out-at-sea with two-gender medicine: a qualitative analysis of physician-side barriers to providing healthcare for transgender patients. BMC Health Serv Res[Internet] 2012[cited 20 Jan 2019];12(110):1-13. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3464167/pdf/1472-6963-12-110.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
).
Pesquisadores apontam que a transfobia, o bullying e a desaprovação parental da expressão de gênero são fatores frequentemente associados às tentativas de suicídio, o qual, segundo o “Dossiê: Geografia dos Corpos de pessoas trans”, escrito pela RedeTrans, é uma das principais causas de morte de travestis e transexuais, sendo que a maioria dos casos acontece com pessoas do gênero feminino entre 15 e 29 anos(1515 Nogueira SNB, Aquino TA, Cabral EA. Dossiê: a geografia dos corpos das pessoas trans. Rede Trans Brasil [Internet]. 2017[cited 2019 Jan 15]. Available from: http://redetransbrasil.org.br/arquivo-do-monitoramento/a-geografia-dos-corpos-trans/
http://redetransbrasil.org.br/arquivo-do...
). Mesmo considerando esses dados alarmantes, sabe-se que os dados são subnotificados e faltam pesquisas e debates sobre o assunto(1616 Bauer GR, Scheim AI, Pyne J, Travers R, Hammond R. Intervenable factors associated with suicide risk in transgender persons: a respondent driven sampling study in Ontario, Canada. BMC Public Health. 2015; 15:525. doi: 10.1186/s12889-015-1867-2
https://doi.org/10.1186/s12889-015-1867-...
).
Quando a temática chega no campo da saúde e, especificamente, nos serviços, aspectos do discurso hegemônico são nítidos e estampam o desconhecimento sobre as especificidades do público LGBTTQIA+, em especial da população abordada neste estudo; isso demonstra a necessidade de uma política nacional voltada para ela, que deveria reger a assistência prestada pelos profissionais(1717 Duarte MJO. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis[Internet] 2014 [cited 2019 Jan 20];1(27):77-98. Available from: http://portaldepublicacoes.ufes.br/temporalis/article/view/7209
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). Esse desconhecimento, muitas vezes acompanhado pelo desinteresse, como salientado nas entrevistas, é reforçado durante a formação dos mais diversos profissionais de saúde. Isso porque a temática é invisibilizada por parte de docentes e discentes, por exemplo, nos cursos de Medicina, Psicologia e Enfermagem, que acabam por sustentar e reforçar os discursos cisheteronormativos e biologicistas, os quais comprometem a assistência prestada e afastam transexuais e travestis do atendimento em saúde(1818 Guimarães RS, Vergueiro V, Marcos MA, Fortunato I. (Org.). Gênero e cultura: perspectivas formativas. Vol. 2. São Paulo: Edições Hipótese; 2018.).
Diante de tais reflexões, é essencial que, durante a formação em saúde, haja um aprofundamento sobre sexualidade e identidade de gênero, com um olhar para além das questões biológicas, buscando abarcar as esferas sociais, culturais, afetivas e psicológicas que permeiam essas vivências. É preciso que os currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em saúde acompanhem e promovam as novas abordagens para além da cisgeneridade e da heteronormatividade. É necessário ainda que tais discussões sejam feitas de forma ampliada, perpassando transversalmente pelas disciplinas como saúde mental, saúde reprodutiva, obstetrícia, saúde do homem, saúde da mulher, saúde da criança e saúde do idoso, a fim de proporcionar a compreensão de como se dá em cada fase a existência dessas pessoas, rompendo com o silenciamento e com os padrões, responsáveis pelo afastamento e adoecimento mental desse público(1818 Guimarães RS, Vergueiro V, Marcos MA, Fortunato I. (Org.). Gênero e cultura: perspectivas formativas. Vol. 2. São Paulo: Edições Hipótese; 2018.). Por outro lado, gestores e profissionais que já atuam podem utilizar os dados desta pesquisa para sensibilizarem suas equipes sobre as dificuldades já presentes na história de vida dessa população, as quais não devem ser acrescidas de dificuldades relacionadas ao acesso aos serviços e cuidado em saúde.
Além do desconhecimento e ignorância em relação à realidade desse público e da existência desses corpos que fogem à norma biologicista e hegemônica, o preconceito, o estranhamento e a repulsa por parte dos profissionais de saúde em lidar com tais corpos produzem omissão, indiferença e negligência no atendimento a esse público, interferindo na produção do cuidado. As situações em que os olhares curiosos e permeados por julgamento recaem sobre a população retratada e trazem consigo atitudes discriminatórias, “brincadeiras” de mau gosto e outras situações vexatórias são reais no dia a dia dessas pessoas e são reproduzidas no sistema de saúde pelos profissionais(1717 Duarte MJO. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis[Internet] 2014 [cited 2019 Jan 20];1(27):77-98. Available from: http://portaldepublicacoes.ufes.br/temporalis/article/view/7209
http://portaldepublicacoes.ufes.br/tempo...
).
Em uma pesquisa realizada com travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, as entrevistadas relataram que os serviços de saúde acabam sendo reprodutores das violências simbólicas vivenciadas socialmente e que, em vez de promoverem o acolhimento e o atendimento integral e equânime, de acordo com os princípios do SUS, encaixam as usuárias em mecanismos de patologização e exclusão, valendo-se sempre da cis-heteronormatividade(1919 Souza MH, Malvasi P, Signorelli MC, Pereira PP. Violence and social distress among transgender persons in Santa Maria, Rio Grande do Sul State, Brazil. Cad Saúde Pública. 2015; 31(4):767-76. doi: 10.1590/0102311X00077514
https://doi.org/10.1590/0102311X00077514...
). Somando-se a todas essas barreiras e obstáculos colocados por profissionais e serviços, para o acesso de transexuais e travestis aos serviços de saúde, existe um estilo de vida imediatista próprio das travestis, que estão sempre convivendo com a possibilidade da morte, o que as impede de realizarem grandes planos futuros, e acabam por negligenciar o autocuidado e a sua saúde, tornando-se ainda mais vulneráveis(2020 Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Mapa dos assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017 [Internet]. Brasília: (ANTRA); 2018 [cited 2019 Mar 15]. 121 p. Available from: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf
https://antrabrasil.files.wordpress.com/...
).
Outra questão que aparece com bastante força nas narrativas é o desrespeito ao nome social nos serviços de saúde, sendo, invariavelmente, posto como um dos pontos principais para o afastamento de transexuais e travestis dos serviços. Isso, aliado aos episódios de discriminação e transfobia, corrobora a não efetivação do acesso desse público ao cuidado em saúde. Tal aspecto é colocado como a barreira inicial para acessar o sistema, já que o desconforto de serem chamadas(os) por um nome que não os(as) representa e que ainda traz diversas memórias e sofrimentos os(as) impede de se sentirem seguros(as) e respeitados(as) nesse ambiente(2121 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Difficulties experienced by trans people in accessing the Unified Health System. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(8):2517-26. doi: 10.1590/1413-81232015218.14362015.
https://doi.org/10.1590/1413-81232015218...
). Atendimento digno e respeito à identidade de gênero são o primeiro passo para que o acesso de usuárias e usuários trans seja garantido, tornando possível o cuidado em saúde(2121 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Difficulties experienced by trans people in accessing the Unified Health System. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(8):2517-26. doi: 10.1590/1413-81232015218.14362015.
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).
Essa discussão parece óbvia, mas mesmo com o direito ao uso do nome social em todos os órgãos públicos da administração direta e indireta do estado de São Paulo (Decreto Estadual 55.588/2010), na maioria das situações o desrespeito à identidade dos(as) usuários(as) está atrelado a uma total falta de conhecimento da existência e da possibilidade de uso do nome social. É, portanto, fundamental haver a capacitação dos profissionais e uma vigilância ostensiva para que sejam respeitados os direitos dessas pessoas e sua condição humana(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. 2015[cited 20 Jan 2019];1:194. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).
Limitações do estudo
Mesmo tendo em conta as potencialidades do estudo, vale destacar que os resultados devem ser interpretados considerando suas duas principais limitações. Primeiramente, o delineamento do estudo pode ter sido influenciado pelo viés de recordação, presente e documentado em estudos que utilizam os métodos de História Oral. Assim, são estimulados outros estudos na área da saúde com diferentes desenhos ou estratégias de coleta de dados sobre a experiência de pessoas transexuais ou travestis. A segunda limitação se refere ao fato de o estudo explorar as vivências e experiências de um pequeno grupo, que pode não refletir a realidade da população da qual faz parte. Ligado a isso, não foram examinadas as percepções de outros informantes, como os profissionais da saúde, aspecto que pode ser investigado em pesquisas futuras.
Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública
A temática explorada nesta pesquisa é recente, e poucos estudos foram divulgados sobre como a área ou os serviços de saúde vêm lidando com as mudanças paradigmáticas relacionadas às questões de gênero. Os achados indicam que profissionais da saúde, incluindo os(as) enfermeiros(as), eram reticentes ou não possuíam a formação adequada para prestar o atendimento/cuidado a transexuais e travestis. Tendo em vista o lugar privilegiado que esses profissionais ocupam nos serviços de saúde, eles podem atuar como protagonistas no cuidado a essas pessoas e na educação permanente/formação dos demais profissionais. Compreender as experiências de vida dessa população e como a prática profissional pode caminhar em defesa da vida são contributos deste estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A História Oral de Vida nos permitiu adentrar e conhecer a realidade e as vivências de pessoas transexuais e travestis de maneira ampla por meio de suas narrativas. Ao perpassar por suas histórias, contadas de maneira única por cada colaboradora e colaborador, e ao ouvir as vozes muitas vezes abafadas e ignoradas pela sociedade cis-heteronormativa em que vivemos, é possível ampliar o olhar para a saúde dessa população com base nas suas necessidades e especificidades reais, pontuadas e analisadas por quem de fato vive essa realidade cotidianamente. O ponto forte deste estudo reside na identificação de obstáculos e percalços enfrentados por esse público na busca por atendimentos qualificados e respeitosos em saúde. Os resultados apresentados podem iluminar os caminhos para que profissionais, docentes e discentes dos cursos da saúde busquem oferecer uma assistência universal, integral e equânime de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde.
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FOMENTOInstituição de fomento: FAPESP/Processo: 17/00034-3
AGRADECIMENTO
Agradecemos aos/às participantes que fizeram este trabalho possível.
REFERENCES
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3Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. 2015[cited 20 Jan 2019];1:194. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
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Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Out 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
18 Jun 2019 -
Aceito
11 Maio 2020