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A ECONOMIA POLÍTICA DO DESENVOLVIMENTO RURAL NA CHINA: DA QUESTÃO AGRÁRIA À QUESTÃO AGROALIMENTAR

THE POLITICAL ECONOMY OF RURAL DEVELOPMENT IN CHINA: FROM THE AGRARIAN TO THE AGRI-FOOD QUESTION

RESUMO

Este artigo analisa a economia política do desenvolvimento rural na China e suas implicações globais de longo alcance. O argumento é que as recentes dinâmicas de desenvolvimento rural na China buscam responder a um conjunto de desafios desencadeados pelo deslocamento da “questão agrária” clássica para a “questão agroalimentar” contemporânea. A nova questão agroalimentar abarca três grandes problemáticas: acumulação de capital, reprodução social e poder político. A pesquisa recorre à bibliografia especializada, estatísticas oficiais e observações de campo. A análise da questão agroalimentar mostra-se bastante fértil para explicar o lugar da China na dinâmica do regime alimentar internacional contemporâneo e para examinar os rumos da sua atual formação econômico-social.

PALAVRAS-CHAVE:
China; acumulação de capital; reprodução social; poder político; regimes alimentares

ABSTRACT

This article analyses the political economy of rural development in China and its far-reaching global implications. The argument is that the recent dynamics of rural development in China seek to respond to a set of challenges triggered by the shift from the classic 'agrarian question' to the contemporary 'agri-food question.' The new agri-food question encompasses three major problematics: capital accumulation, social reproduction, and political power. The research draws on specialized bibliography, official statistics, and fieldwork observations. The analysis of the agri-food question proves to be quite fertile to explain China’s place in the dynamics of the contemporary international food regime and to examine the direction of its current socio-economic formation.

KEYWORDS:
China; capital accumulation; social reproduction; political power; food regimes

INTRODUÇÃO

A economia mundial é cada vez mais sinocêntrica. O ressurgimento da China como grande potência está no primeiro plano das principais transformações produtivas, comerciais, financeiras, tecnológicas e geopolíticas no século XXI (NOGUEIRA, 2021NOGUEIRA, I. O Estado na China. Oikos, v. 20, n. 1, p. 6-16, 2021.). O mesmo ocorre com o sistema agroalimentar global. A China é o maior produtor mundial de arroz, trigo, algodão, mel, fumo, madeira e produtos florestais, várias frutas, legumes e verduras, ovos, peixes e frutos do mar, carnes de porco, ovelha e cabra, bebidas e alimentos processados; o segundo maior produtor de milho, canola, chá e carne de frango; e o terceiro maior produtor de milheto, carne bovina e leite de búfala. É também o maior importador e o terceiro maior exportador de produtos agropecuários do mundo (FAO, 2021FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. Faostat. Rome: FAO, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.fao.org/faostat/en/ . Acesso em: 8 ago. 2021.
https://www.fao.org/faostat/en/...
). O Brasil, por sua vez, consolidou-se na posição de principal parceiro comercial agrícola da China e de importante receptor dos seus investimentos no agronegócio (entre outros setores) (CARIELLO, 2021CARIELLO, T. Investimentos chineses no Brasil: Histórico, tendências e desafios globais (2007-2020). Rio de Janeiro: Conselho Empresarial Brasil-China, 2021.). Pesquisadores brasileiros têm envidado esforços para compreender melhor os atores, as dinâmicas e as contradições envolvidas nessa parceria, principalmente em relação ao “complexo soja-carne Brasil-China” (ESCHER; WILKINSON, 2019ESCHER, F.; WILKINSON, J. A economia política do complexo soja-carne Brasil-China. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 57, n. 4, p. 656-678, 2019.; FARES, 2019FARES, T. M. The rise of state-transnational capitalism in the Xi Jinping era: A case study of China’s international expansion in the soybean commodity chain. Journal of Development Studies, v. 35, n. 4, p. 86-106, 2019.; OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, G. L. T. The south-south question: Transforming Brazil-China agroindustrial partnerships. PhD Dissertation (Philosophy in Geography) - University of California, Berkeley, 2017.; WESZ JR.; ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.; WILKINSON; ESCHER; GARCIA, 2022WILKINSON, J.; ESCHER, F.; GARCIA, A. S. The Brazil-China nexus in agrofood: What is at stake in the future of the animal protein sector. International Quarterly for Asian Studies, v. 53, n. 2, p. 251-277, 2022.; WILKINSON; WESZ JR.; LOPANE, 2016WILKINSON, J.; WESZ JR., V. J; LOPANE, A. R. M. Brazil and China: The agribusiness connection in the Southern Cone context. Third World Thematics, v. 1, n. 56, p. 726-745, 2016.). Alguns têm, inclusive, buscado estudar os dois países em perspectiva comparada (ESCHER, 2020ESCHER, F. Agricultura, alimentação e desenvolvimento rural na China e no Brasil: Uma análise institucional comparativa. Curitiba: Appris, 2020.; ESCHER; SCHNEIDER; YE, 2018ESCHER, F.; SCHNEIDER, S.; YE, J. The agrifood question and rural development dynamics in Brazil and China: Towards a protective ‘countermovement’. Globalizations, v. 15, n. 1, p. 92-113, 2018.; JANK; GUO; MIRANDA, 2020JANK, M.; GUO, P.; MIRANDA, S. H. (Eds.). Brazil-China partnership in agriculture and food security. Piracicaba: ESALQ/USP, 2020.; WILKINSON, 2009WILKINSON, J. Globalization of agribusiness and developing world food systems. Monthly Review, v. 61, n. 4, p. 38-49, 2009.). Todavia faltam no Brasil estudos sobre a economia política do desenvolvimento rural na China e suas implicações globais de longo alcance. Este artigo objetiva contribuir para estreitar essa lacuna.

Tendo em vista os regimes fundiários, as relações de trabalho e as formas de organização da produção, a história agrária da República Popular da China (RPC) pode ser dividida em sete fases distintas (EISENMAN, 2018EISENMAN, J. Red China’s green revolution: Technological innovation, institutional change, and economic development under commune. New York: Columbia University Press, 2018.; YE, 2015YE, J. Land transfers and the pursuit of agricultural modernization in China. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 314-337, 2015.; ZHOU; LIANG; FULLER, 2021ZHOU, C.; LIANG, Y.; FULLER, A. Tracing agricultural land transfer in China: Some legal and policy issues. Land, v. 10, n. 58, p. 1-16, 2021.). Entre 1949 e 1953, a revolução socialista promoveu uma reforma agrária radical, que distribuiu as terras para ex-arrendatários e trabalhadores rurais pobres, constituindo uma agricultura camponesa com base na pequena propriedade e no trabalho familiar. O latifúndio feudal foi eliminado, a produtividade agrícola melhorou e consolidou-se a “aliança operário-camponesa” sob a égide do Partido Comunista Chinês (PCC). Entre 1953 e 1961, um processo de coletivização avançou em quatro fases: a organização de “equipes de ajuda mútua”, a criação de “cooperativas de produtores agrícolas de nível inferior”, a união de terras, ferramentas e outros meios de produção particulares em “cooperativas de produtores agrícolas de nível superior” e, finalmente, a formação das “comunas populares”. Isso permitiu coordenar grandes projetos de construção de irrigação, escolas, hospitais e outras infraestruturas rurais, mas o Grande Salto Adiante estabeleceu metas de produção irrealistas que, somadas a desastres naturais, acarretaram uma fome devastadora. Entre 1962 e 1978, foram feitos ajustes institucionais estabelecendo um sistema de três níveis de comuna, brigada e equipe, permitindo lotes agrícolas particulares, feiras livres e empreendimentos artesanais, conhecidos como as “três pequenas liberdades”. Por meio do sistema de remuneração de “pontos de trabalho”, da “tesoura de preços” entre agricultura e indústria e de um capilarizado serviço de pesquisa e extensão rural, a chamada “revolução verde da China vermelha” introduziu novas tecnologias, iniciou um processo de integração vertical da produção e transferiu recursos para a industrialização, mas o aumento da produtividade agrícola pouco acima do crescimento populacional, os níveis de consumo reprimidos dos camponeses e a instabilidade da Revolução Cultural puseram em xeque o sistema de comunas.

Entre 1978 e 1993, o processo de reformas e abertura fomentou a descoletivização (completada em 1984) e sedimentou o “sistema de responsabilidade familiar” (SRF). A terra continuou propriedade coletiva, mas os camponeses passaram a ter direitos de contrato e uso da terra, podendo administrar a produção por iniciativa própria. O novo sistema de distribuição com compras públicas garantidas, combinando cotas estatais e preços de mercado, os termos de troca favoráveis à agricultura, a diversificação agrícola e pecuária e o boom da produção e do emprego não agrícola nas “empresas de vilas e aldeias” (EVAs) elevaram os níveis de produtividade, renda e consumo rural.

Nos anos de 1994 a 2006, as crescentes desigualdades entre campo e cidade, a cobrança de impostos e taxas excessivas e arbitrárias e as desapropriações de camponeses pelo mercado imobiliário motivaram protestos rurais. O relaxamento do hukou facilitou o afluxo de trabalhadores migrantes para as Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), mas a resposta para os “três problemas agrários” (agricultura, camponeses e campo) só chegou com a abolição dos impostos e taxas, o programa Construindo um Novo Campo Socialista (CNCS) e uma ampla gama de subsídios agrícolas e de serviços e infraestruturas rurais.

Entre 2006 e 2012, o governo passou a priorizar a “modernização da agricultura”, baseada no uso de tecnologias, insumos e equipamentos industriais, na especialização e intensificação agrícola e no aumento do tamanho das áreas e das escalas de produção, alegando os objetivos de garantir segurança alimentar, criar novos empregos e aumentar a renda rural. Finalmente, em 2013, foi instituído o direito de os camponeses realizarem contratos de “transferência de terra” para terceiros, alimentando a entrada de empresas de agronegócio, a introdução de relações capitalistas de produção e a diferenciação social rural (ESCHER, 2020ESCHER, F. Agricultura, alimentação e desenvolvimento rural na China e no Brasil: Uma análise institucional comparativa. Curitiba: Appris, 2020.; YE, 2015YE, J. Land transfers and the pursuit of agricultural modernization in China. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 314-337, 2015.; ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.; ZHOU; LIANG; FULLER, 2021ZHOU, C.; LIANG, Y.; FULLER, A. Tracing agricultural land transfer in China: Some legal and policy issues. Land, v. 10, n. 58, p. 1-16, 2021.).

Esse esboço das principais mudanças institucionais que moldaram a história agrária chinesa, ainda que breve e esquemático, suscita a seguinte indagação. Como as transformações, tendências e contradições observadas no sistema agroalimentar e nas relações sociais rurais chinesas afetam a sua trajetória de desenvolvimento econômico e ascensão internacional? O argumento é que as recentes dinâmicas de desenvolvimento rural na China buscam responder a um conjunto de desafios desencadeados pelo deslocamento da “questão agrária” clássica para uma nova “questão agroalimentar”. Esses desafios dizem respeito à articulação de um novo regime de acumulação de capital na agricultura e no sistema agroalimentar, às transformações nos padrões de reprodução social dos meios de vida das classes rurais e urbanas e aos reflexos de ambos no caráter do estado e suas políticas públicas de segurança alimentar e desenvolvimento rural.

A pesquisa recorre a uma abrangente revisão da literatura internacional em economia política dedicada a temas rurais e agroalimentares, principalmente artigos e livros científicos de especialistas chineses. Informações e dados estatísticos de fontes oficiais chinesas e internacionais também são utilizados. Observações colhidas em viagens pela China e trabalhos de campo conduzidos em áreas rurais de diferentes províncias durante os anos de 2014 e 2019 complementam a análise.

O artigo contém cinco seções, além desta introdução. A primeira seção expõe o referencial teórico-metodológico da questão agroalimentar contemporânea, composta por três problemáticas fundamentais - acumulação de capital, reprodução social e poder político. A segunda, a terceira e a quarta seções, tratam, respectivamente, de cada uma dessas problemáticas agroalimentares na recente trajetória chinesa de desenvolvimento e ascensão. A seção final sumariza conclusões e aponta direções de pesquisa.

1. DA QUESTÃO AGRÁRIA CLÁSSICA À QUESTÃO AGROALIMENTAR CONTEMPORÂNEA

Não pretendo fazer qualquer exercício de exegese da questão agrária nos clássicos do marxismo, senão apenas compreender o seu significado teórico geral e extrair insights metodológicos pertinentes para a análise histórico-comparada da China contemporânea. Marx (1996MARX, K. O capital: Crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural , 1996. v. 3.) superou as teorias da renda da terra de Smith e Ricardo e forneceu uma interpretação histórica da transição para o capitalismo por meio de sua análise da acumulação primitiva. Coube, porém, a seus continuadores elaborar apreciações propriamente teóricas sobre a questão agrária.

Para Engels (1993ENGELS, F. The peasant question in France and Germany. In: MARX ENGELS ARCHIVE. [S. l.: s. n.], 1993. (Trabalho publicado em 1894).), a questão era sobre as alianças estratégicas da classe trabalhadora em situações nas quais o campesinato é um fator essencial da população, da produção e do poder político. Se o campesinato passou a constituir uma força política relevante, a tarefa do proletariado seria de conquistar seu apoio contra os latifundiários e a burguesia na luta pelo socialismo. Para Kautsky (1988KAUTSKY, K. The agrarian question. London: Zwan Publications, 1988.) e Lenin (1977LENIN, V. I. The development of capitalism in Russia. Moscow: Progress Publishers, 1977.), a questão era sobre as formas, extensão e barreiras ao desenvolvimento do capitalismo na agricultura. Enquanto Kautsky enfatiza a superioridade técnica e financeira da grande exploração agrícola capitalista diante da progressiva subordinação da agricultura ao capital industrial, Lenin depreende do avanço da acumulação capitalista na agricultura uma tendência à diferenciação social do campesinato. E para Bukharin (1979BUKHARIN, N. Notes of an economist (the beginning of the new economic year). Economy and Society, v. 8, n. 4, p. 473-500, 1979.) e Preobrazhensky (1965PREOBRAZHENSKY, E. The new economics. Oxford: Claredon Press, 1965.), a questão era sobre a transferência de excedentes agrícolas (trabalho, alimentos, matérias primas, recursos financeiros) para apoiar a formação de capital e a industrialização. Contra a proposta de Preobrazhensky de impor métodos coercivos sobre o campesinato para promover a acumulação primitiva socialista e acelerar a industrialização pesada, Bukharin defende a aliança operário-camponesa e um processo gradual e contínuo de transformação estrutural articulando indústrias leve e pesada. A lição a ser tirada é que, apesar dos distintos sentidos atribuídos à questão agrária, um conjunto definido de problemáticas respalda o seu estatuto teórico específico no corpo do pensamento marxista.

A perspectiva histórico-comparada da questão agrária de inspiração clássica proposta por Byres (2016BYRES, T. J. In pursuit of capitalist agrarian transition. Journal of Agrarian Change, v. 16, n. 3, p. 432-451, 2016.) é outra referência decisiva. Ele investiga as diferentes “vias de transição agrária para o capitalismo” a partir das relações entre as classes sociais e o estado: capitalismo de cima para baixo na Prússia e capitalismo de baixo para cima nos EUA; capitalismo de baixo para cima mediado pelos latifundiários na Inglaterra e capitalismo demorado na França; capitalismo com reforma agrária controlada pelos latifundiários no Japão e capitalismo com reforma agrária controlada pelo estado na Coreia do Sul e em Taiwan. Duas possíveis críticas poderiam ser levantadas à sua linha de pesquisa: a de nacionalismo metodológico, por se concentrar nas vias nacionais como unidade de análise; e a de irrelevância para a atualidade, devido ao foco restrito a processos historicamente datados de transição para o capitalismo. Entretanto, essas críticas são descabidas, porque a análise histórica de Byres (2016BYRES, T. J. In pursuit of capitalist agrarian transition. Journal of Agrarian Change, v. 16, n. 3, p. 432-451, 2016.) não deixa de considerar a inserção internacional diferenciada dos países nem afirma que as suas questões agrárias teriam sido resolvidas com a transição para o capitalismo.

Em contrapartida, o autor critica o “determinismo histórico-mundial” presente em enfoques excessivamente concentrados nos processos de globalização e advoga uma “abertura metodológica” que permita a teoria informar problemáticas e caminhos para a investigação empírica sem dar respostas fechadas e pré-concebidas (BYRES, 2016BYRES, T. J. In pursuit of capitalist agrarian transition. Journal of Agrarian Change, v. 16, n. 3, p. 432-451, 2016.). Entretanto, é impossível deixar de notar que, embora úteis, essas recomendações em si são insuficientes, pois não fornecem uma abordagem que integre as escalas nacional e internacional e atualize os significados da questão agrária.

Quem vai pavimentar o caminho para uma abordagem histórica e teórica do lugar da agricultura e da alimentação na evolução da economia mundial e do sistema de estados são Friedmann e McMichael (1989FRIEDMANN, H.; MCMICHAEL, P. Agriculture and the state system: The rise and decline of national agricultures, 1870 to the present. Sociologia Ruralis, v. 29, n. 2, p. 93-117, 1989.). O núcleo analítico da sua abordagem é o conceito de “regime alimentar”. Tal conceito vincula “relações internacionais de produção e consumo alimentar” a “regimes de acumulação de capital” em três períodos distintos: o primeiro regime (1870-1914/30), erigido sob a hegemonia do Império Britânico e do sistema monetário do Padrão Ouro, a ideologia do livre comércio e a subordinação das periferias coloniais ou dependentes como fornecedores de alimentos e matérias primas para os centros imperialistas em industrialização; o segundo regime (1945-1973/85), erguido sob a hegemonia dos EUA e do sistema monetário de Bretton Woods, a ideologia anticomunista e desenvolvimentista da Guerra Fria e a subordinação das periferias através da difusão, com fins claramente geopolíticos, dos programas de “ajuda alimentar” e dos pacotes tecnológicos da “revolução verde”; e o terceiro regime (1995-hoje), marcado pela renovada hegemonia dos EUA e do sistema monetário do dólar flexível pós-Bretton Woods, a ideologia neoliberal, a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Acordo sobre a Agricultura (AoA), a globalização dirigida pelas corporações transnacionais, a financeirização da riqueza e a irrupção de um novo paradigma tecnológico.

Por um lado, o atual regime alimentar assenta-se na liberalização do comércio agrícola internacional, na restrição da capacidade dos estados em intervir e fazer políticas públicas e na proliferação de padrões privados de regulação. Por outro lado, a adesão da China à OMC, em 2001, ao mesmo tempo reafirma e contradiz a norma neoliberal e corporativa que preconiza o “livre mercado” como princípio supremo de governança e coordenação do regime alimentar (BELESKY; LAWRENCE, 2019BELESKY, P.; LAWRENCE, G. Chinese state capitalism and neomercantilism in the contemporary food regime: Contradictions, continuity and change. Journal of Peasant Studies, v. 46, n. 6, p. 1119-1141, 2019.; MCMICHAEL, 2020MCMICHAEL, P. Does China ‘going out’ strategy prefigures a new food regime? Journal of Peasant Studies , v. 47, n. 1, p. 116-154, 2020.; WESZ JR., ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.).

Fica evidente, portanto, que a questão agrária clássica sofreu deslocamentos históricos e teóricos e adquiriu novos significados, tornando-se realmente uma “questão agroalimentar”. Pressão demográfica, urbanização, poder corporativo, desigualdades, pobreza, subnutrição, obesidade, aquecimento global, mudança climática, consumo e produção responsáveis, energia limpa, saúde humana e sustentabilidade ambiental, entre outras coisas, são questões candentes da nossa época. Várias delas inclusive figuram entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável na Agenda 2030 da ONU.

Metodologicamente fiel ao espírito dos clássicos marxistas, proponho reformular a questão agroalimentar contemporânea em torno de três grandes “problemáticas”. A primeira é a “acumulação de capital”, que trata do lugar da agricultura e do sistema agroalimentar na dinâmica econômica, especialmente a integração intersetorial técnica e financeira das empresas de agronegócio e seu desempenho nos mercados interno e externo. A segunda é a “reprodução social”, que lida com a transição nutricional e suas implicações nos hábitos alimentares dos consumidores urbanos, bem como a mercantilização da agricultura e dos meios de vida rurais e seus efeitos sobre a diferenciação social. A terceira é o “poder político”, que exprime as contradições, conflitos, alianças e compromissos entre as classes rurais e as demais classes sociais na definição do caráter do estado e na orientação das políticas públicas de segurança alimentar e desenvolvimento rural (entre outras, como a econômica, a social e a externa). É claro que essa distinção entre as três problemáticas é essencialmente analítica, uma vez que, na prática, elas encontram-se mutuamente relacionadas e imbricadas.

Gaudreau (2019GAUDREAU, M. Constructing China’s national food security: Power, grain seed markets, and the global political economy. PhD Dissertation (Philosophy in Global Governance) - University of Waterloo, Ontario, 2019.) observa que, embora a presença da China seja cada vez mais frequente nas análises sobre o regime alimentar contemporâneo, a sua ausência no registro histórico durante o primeiro e o segundo regimes é notável. Essa é uma agenda de pesquisas ainda por explorar. Para os propósitos deste artigo, todavia, o que interessa reter é que a transição agrária chinesa, ocorrida no período englobado pelo segundo regime alimentar, não se deu nos marcos do capitalismo, e sim pela via da revolução socialista. Não obstante, o país passou por transformações econômicas, sociais e políticas muito profundas ao longo das últimas décadas, no período coberto pelo terceiro regime alimentar. Reconhecer tal fato tem implicações analíticas nada triviais. A questão agroalimentar na trajetória recente de desenvolvimento e ascensão da China é de caráter socialista ou capitalista? Socialismo ou capitalismo de que tipo? Em que sentido?

Essa é uma polêmica para a qual não pretendo dar uma resposta original ou categórica. Como simples hipótese de trabalho, a atual formação econômico-social chinesa pode ser pensada como um tipo especial de “capitalismo de estado”. Tal conceito, no entanto, não deve ser tomado no sentido dos liberais, que denunciam o capitalismo de estado chinês como anátema ao capitalismo de livre mercado ocidental por eles idealizado.1 1 A leitura liberal da China tampouco é homogênea. Yasheng Huang (2008) ilustra bem a visão ideológica liberal típica: elogia o “capitalismo empreendedor” dos anos 1980 e repreende o “capitalismo conduzido pelo estado” entabulado na década de 1990. Barry Naughton (2017), por sua vez, é mais pragmático e nuançado. Ele propõe um “checklist” com quatro critérios (capacidade, intenção, redistribuição e responsividade), avaliando que o país cumpre claramente os dois primeiros e pontua menos nos dois últimos, e conclui que a China é hoje uma “economia dirigida pelo governo” na qual o “ideal socialista ainda é influente”, mas “não pode ser considerada um país socialista até que faça um progresso muito maior no cumprimento de seus próprios objetivos políticos declarados de seguridade social universal, redistribuição de renda modesta e melhoria dos problemas ambientais” (NAUGHTON, 2017, p. 22). Afinal, como lapidarmente cravou Polanyi (2001POLANYI, K. The great transformation: The political and economic origins of our time. 2. ed. Boston: Beacon, 2001., p. 146), “a estrada do livre mercado foi aberta e mantida aberta por um intervencionismo contínuo, centralmente organizado e controlado”.

A referência ora reivindicada tampouco é isenta de controvérsias. Ela remete à experiência soviética durante a vigência da Nova Política Econômica (NEP), formulada por Lenin (2002LENIN, V. I. The tax in kind: The significance of the New Economic Policy and its conditions. In: LENIN INTERNET ARCHIVE. [S. l.: s. n.], 2002. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1921/apr/21.htm . Acesso em: 11 jun. 2022.
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) e Bukharin (1922BUKHARIN, N. The economic structure of Soviet Russia. International Press Correspondence, v. 2, n. 22, p. 164-165, 1922.). Para os líderes bolcheviques, o capitalismo de estado é concebido como um “estágio” dentro de um projeto de longo prazo de transição para o socialismo em que, posteriormente à conquista do poder político, o capital estatal e a direção e regulação dos capitais privados sob o controle do partido-estado desempenham uma função estratégica.2 2 O fato de todo o capitalismo ter estado é evocado para colocar em dúvida o valor analítico do conceito de capitalismo de estado. No entanto, ao invés de descartá-lo, o mais recomendável é aprimorá-lo, pois, além de ter uma longa história dentro e fora do pensamento marxista (SPERBER, 2019), é útil para compreender as mudanças do capitalismo contemporâneo (ALAMI; DIXON, 2020). A revisão de Resnick e Wolff (1993) sobre o uso da noção de capitalismo de estado na URSS dá guarida à leitura aqui proposta dos escritos de Lenin (2002) e Bukharin (1922) sobre o assunto. Além disso, não faltam marxistas chineses de verve leninista e gramsciana que interpretam a atual “economia socialista de mercado com características chinesas” recorrendo à tese do capitalismo de estado (HORESH; LIM, 2017; LI, 2018; LIU; TSAI, 2020). Essa noção bastante razoável permite cotejar, provisória e criticamente, a tese oficial do PCC de que a China hoje se encontra no “estágio primário do socialismo”, o qual só será superado por volta de 2050, quando terá se tornado “um grande país socialista moderno em todos os aspectos” (HONG, 2020HONG, Y. Socialist political economy with Chinese characteristics in a new era. China Political Economy, v. 3, n. 2, p. 259-277, 2020.), ao invés de tratá-la como mera justificação ideológica. Em contrapartida, pela noção de capitalismo de estado chinês certamente não se deve imaginar uma unidade monolítica comandada pelo alto do Zhongnanhai, e sim uma sociedade complexa, transpassada por conflitos e contradições contingentemente absorvidas e mediadas pelo partido-estado.

2. ACUMULAÇÃO DE CAPITAL: NOVOS ATORES CORPORATIVOS E RELAÇÕES CAPITALISTAS DE PRODUÇÃO NO MEIO RURAL

Acumulação de capital refere-se ao processo de valorização que resulta dos investimentos efetuados, da apropriação do mais-valor e da sua realização na forma de lucros, juros ou rendas e que se expressa no aumento do estoque de dinheiro e outros ativos. A agricultura, porém, apresenta riscos e descontinuidades naturais e biológicas que dificultam a sua transformação num ramo qualquer da indústria e obrigam o capital a adaptar-se “dentro dos limites mutáveis definidos pelo progresso técnico” (GOODMAN; SORJ; WILKINSON, 1990GOODMAN, D.; SORJ, B.; WILKINSON, J. Da lavoura às biotecnologias: Agricultura e indústria no sistema internacional. Rio de Janeiro: Campus, 1990., p. 1). Por isso, o capital subordina a agricultura por meio da integração técnica e financeira: a montante, elementos discretos dos processos de trabalho e produção rural são apropriados na forma de insumos (mecanização, sementes, fertilizantes, pesticidas, biotecnologia); e a jusante, o ramo de produção de alimentos busca reduzir o produto agrícola à matéria prima e substituí-lo por elementos industriais (ingredientes, aditivos, processamento). Transporte, distribuição e marketing completam o processo de encadeamento e a formação dos complexos agroindustriais que fazem os produtos chegarem às prateleiras do comércio varejista e ao prato do consumidor.

Yan e Chen (2015YAN, H.; CHEN, Y. Agrarian capitalization without capitalism? Capitalist dynamics from above and below in China. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 366-391, 2015.) distinguem duas dinâmicas de acumulação de capital em vigor na agricultura chinesa: a acumulação “pelo alto”, através da expansão de um conjunto de empresas do agronegócio que operam a montante, a jusante e dentro da agricultura; e a acumulação “por baixo”, através da diferenciação social do campesinato. Considerando essencialmente a primeira dinâmica (a segunda é assunto para a próxima seção), observa-se na China a formação de uma estrutura corporativa oligopolista composta por três camadas de empresas do agronegócio e mais uma quarta camada não oligopolista de pequenos e médios empreendimentos agrícolas (Quadro 1).

Quadro 1
Novos atores corporativos na agricultura chinesa

Na primeira camada estão as empresas estatais centrais diretamente controladas pela State-owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council (SASAC). Entre os 96 conglomerados empresariais administrados pela SASAC (cujo valor total dos ativos é estimado em US$ 30 trilhões) estão quatro gigantes do agronegócio: China Grain Reserves Corporation Group Ltd. (Sinograin), China National Agricultural Development Group Corporation (CNADC), China National Chemical Corporation (ChemChina) e China Oil and Foodstuffs Corporation (COFCO). A Sinograin foi criada em 2000 para administrar e operar as reservas de grãos e óleos comestíveis no país inteiro. Ela possui 23 filiais, seis subsidiárias e um instituto de pesquisa. A companhia implementa as políticas de preços mínimos, aquisições, armazenamento e formação de estoques. Cerca de 40% do comércio e 75% dos estoques de grãos estão sob a administração da Sinograin. Isso demonstra o papel estratégico da estatal na regulação do mercado de grãos e na governança da segurança alimentar nacional. A CNADC foi fundada em 2004 a partir da reestruturação e fusão da China National Fisheries Corporation com a China Animal Husbandry Corporation. Seu mandato é salvaguardar o fornecimento externo de proteína animal do país. A CNADC é a maior distribuidora de produtos biológicos veterinários e a principal importadora de carnes de gado, porco e aves da China. Por meio de fusões e aquisições domésticas e de expansão internacional, a estatal está a caminho de se tornar um player global do agronegócio de alta tecnologia e grande escala (ZHANG, H., 2019ZHANG, H. Securing the rice bowl: China and global food security. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.).

A ChemChina, criada em 2004, assumiu, em 2018, a 211ª posição no ranking da Fortune 500. É a maior fabricante de pesticidas não patenteados, herbicidas, inseticidas, bactericidas e reguladores de crescimento vegetal, com mais de 6.000 marcas registradas em 120 países. Em 2016, a ChemChina adquiriu a suíça Syngenta, por US$ 44 bilhões, com financiamento do Bank of China (41%), CITIC AgriFund (28%), HSBC (15%), Morgan Stanley (4,6%) e capital próprio (11,4%), passando a controlar 8% do mercado de sementes e 20% do mercado de pesticidas. Isso aconteceu no bojo de um processo de concentração e consolidação corporativa global, com a aquisição da Monsanto pela Bayer (29% do mercado de sementes e 26% do de pesticidas) e a fusão entre Dow e Dupont (25% do mercado de sementes e 16% do de pesticidas). Em 2017, o CITIC AgriFund comprou o negócio de milho da Dow AgroScience no Brasil. Em 2018, a ChemChina adquiriu a divisão de sementes da Nidera da COFCO e, em 2020, fundiu ativos com Sinochem, trazendo junto a israelense Adama. Essas e outras aquisições garantiram à ChemChina direitos de propriedade intelectual, recursos de germoplasma, insumos agroquímicos, bases de produção e uma rede de distribuição global, avalizando a sua ambição de tornar-se líder mundial no mercado de sementes (GAUDREAU, 2019GAUDREAU, M. Constructing China’s national food security: Power, grain seed markets, and the global political economy. PhD Dissertation (Philosophy in Global Governance) - University of Waterloo, Ontario, 2019.).

Fundada em 1949 como comercializadora nacional de grãos e óleos, na década de 1990, a COFCO atravessou reformas societárias e tornou-se um conglomerado voltado para o mercado com operações diversificadas, principalmente trading, logística, processamento, produção e serviços técnicos e financeiros. De 2004 a 2016, fundiu e adquiriu 15 empresas nacionais e internacionais de diversos segmentos. Suas operações nos mercados agrícolas globais não apenas permitem lucrar com as commodities, mas também garantem o controle estratégico sobre os recursos para o consumo doméstico. Ademais, esse tipo de expansão representa uma forma eficiente de exportar capital, funcionando como válvula de escape para o excesso de capacidade industrial e a sobreacumulação existente na China. Em 2014, a COFCO International Corporation (CIL) foi constituída, com 48% das suas ações detidas pela COFCO matriz e 12% pelo CIC (Fundo Soberano Chinês), enquanto o Standard Chartered, de Londres, o fundo estatal de Cingapura, Temasek, a HOPU Investments, de Hong Kong, e a International Finance Corporation (IFC), do Banco Mundial, detêm 40% das ações. Isso permitiu à COFCO adquirir a Noble Agri e a Nidera, a ter negócios em 140 países e a obter 50% de todas as suas receitas no exterior.

A COFCO tornou-se a maior trader agrícola global em valor de ativos e a segunda em receita e escala de negócios. A empresa passou a elevar a máxima “comprar do mundo, vender para o mundo”, estabelecendo relações diferenciadas e interconectadas com o Cone Sul e contornando o poder corporativo do Atlântico Norte. Hoje a COFCO é a terceira maior exportadora de soja e outras commodities do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, atrás da Bunge e da Cargill e à frente da Dreyfus e da ADM (as chamadas ABCD), posicionando o agronegócio chinês na vanguarda do sistema agroalimentar global (FARES, 2019FARES, T. M. The rise of state-transnational capitalism in the Xi Jinping era: A case study of China’s international expansion in the soybean commodity chain. Journal of Development Studies, v. 35, n. 4, p. 86-106, 2019.; WESZ JR.; ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.).

Na segunda camada estão as fazendas estatais, cujas origens remontam à era de Yan’an (1935-1948) do PCC, antes da fundação da RPC, e à sua adoção em toda a China após 1949, especialmente nas regiões fronteiriças. Depois da descoletivização, as fazendas estatais passavam por altos e baixos. Porém, nos últimos anos, como os líderes chineses estão determinados a alcançar a modernização da agricultura por meio do aumento das escalas de produção, o tamanho maior das fazendas estatais é visto como uma vantagem. São atualmente 1.785 fazendas estatais, com 2,8 milhões de famílias empregadas e 612 milhões de hectares de terras agrícolas. Existem três categorias de fazendas estatais: a primeira é a Xinjiang Production and Construction Corporation, uma instituição militarizada administrada pelo governo central e subordinada ao governo da Região Autônoma Uigur de Xinjiang; a segunda são as fazendas centrais Beidahuang e Guangdong, subordinadas ao Ministério da Agricultura e aos governos provinciais; e a terceira são as fazendas locais, administradas por governos de províncias, municípios ou condados. O governo central e os governos locais têm incentivado as fazendas estatais a formar corporações de agronegócio verticalmente integradas - por exemplo, Beidahuang Group, Bright Food, Guangdong Nongken Group e Haiken Group, entre outras - com o propósito de vir a competir no mercado global de alimentos (ZHANG, H., 2019ZHANG, H. Securing the rice bowl: China and global food security. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.).

Na terceira camada estão as “empresas cabeça de dragão” (Dragon Head Entreprises - DHEs). O título de DHE, concedido a partir da certificação de um conjunto de critérios operacionais e financeiros, outorga a firmas privadas o direito de se beneficiar de programas oficiais de créditos, subsídios e isenções e confere confiabilidade e reputação no mercado. As DHEs atuam fortemente no processamento e distribuição de produtos de alto valor agregado mirando o consumidor final e controlam o acesso à matéria prima via integração vertical e sistemas de contrato com os produtores rurais (nos esquemas “empresa + famílias”, “empresa + base de produção própria + famílias” e “empresa + cooperativa + famílias”). Em 2016, havia 130 mil DHEs registradas, integrando mais de 110 milhões de agricultores, respondendo por 60% da área cultivada, 70% da produção pecuária (suínos e frango) e 80% da aquicultura e abastecendo 1/3 dos alimentos processados e 2/3 da cesta básica nas grandes cidades (ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.). Na indústria de carne suína, entre as 10 maiores empresas em volume de vendas, 60% da criação, 80% do abate, 90% do processamento, 80% das marcas de varejo e 50% da fabricação de rações são controladas por DHEs. A Shanghui, que em 2013 adquiriu a americana Smithfield, mudou seu nome para WH Group e se tornou o maior processador e distribuidor de carne suína do mundo, junto com Jinluo e Yurun, são as principais DHEs no negócio (SCHNEIDER, 2017SCHNEIDER, M. Dragon head enterprises and the state of agribusiness in China. Journal of Agrarian Change , v. 17, n. 1, p. 3-21, 2017.). Na lista das 100 maiores firmas de ração do mundo, 21 são DHEs chinesas, das quais oito estão entre as 20 maiores, respondendo por 31% da produção total. Três delas - New Hope, Wen’s e Muyuan - ocupam a segunda, a quinta e a sexta posição na lista (WESZ JR.; ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.).

Existe ainda uma quarta camada não oligopolista, formada por empresas privadas e cooperativas. Enquanto as DHEs são firmas industriais e comerciais que integram produtores independentes à sua cadeia de valor via sistemas de contrato, as “empresas agropecuárias especializadas” alugam o direito de uso da terra das famílias camponesas, por meio de contratos de transferências de terra, e organizam a produção de forma capitalista, com base em escalas ampliadas, trabalho assalariado e novas tecnologias e métodos de gestão. Às vezes, as famílias fundem seus direitos de uso em ações de uma empresa que opera em suas terras e recebem os devidos dividendos, podendo, porventura, ter algum membro empregado nela (ZHANG, H., 2019ZHANG, H. Securing the rice bowl: China and global food security. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.).

As “cooperativas agropecuárias especializadas”, por sua vez, podem ser de dois tipos: as “reais” e as “falsas”. As cooperativas reais são empreendimentos coletivos das famílias camponesas para organizar sua produção e comercialização de forma conjunta. Já as cooperativas falsas, ou são apenas fachadas criadas por empresas privadas para acessar algum benefício do governo, ou então são entidades subordinadas a DHEs para agrupar contratos de transferência de terras e/ou organizar a gestão da força de trabalho (CHEN, 2019CHEN, Y. Land outsourcing and labour contracting: Labour management in China’s capitalist farms. Journal of Agrarian Change , v. 20, n. 2, p. 238-254, 2019.). Das quase 1,8 milhão de cooperativas rurais registradas em 2016, mais de 80% delas podem ser consideradas cooperativas falsas (ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.). Por exemplo, em trabalho de campo no condado de Lingbao, província de Henan, pude conhecer a Cooperativa Profissional de Frutas e Vegetais Longpan. Embora registrada como “cooperativa”, o empreendimento é chefiado por uma empresária que teve apoio do Escritório de Horticultura do condado para obter crédito subsidiado do governo e do Comitê do Partido da vila para reunir as famílias e arranjar os contratos de transferência de terras. Ela pode assim formar uma fazenda de 100 mu (1 mu = 1/15 de hectare), muito acima da média na China, intensiva em capital e trabalho assalariado, em que 80% da mão de obra era provida pelos camponeses de quem ela alugou as terras.

Em suma, a articulação de um novo regime de acumulação de capital na China está tornando a agricultura doméstica cada vez mais subordinada à operação de empresas do agronegócio e a estratégia de segurança alimentar nacional à capacidade das corporações transnacionais chinesas em competir no mercado mundial. Pequenos e médios empreendedores privados apoiados por governos e quadros do partido em nível local são os agentes fundamentais na introdução de relações capitalistas de produção no contexto rural das vilas e aldeias. O estado central e o grande capital atuam coordenados para consolidar uma robusta estrutura oligopolista visando modernizar a agricultura doméstica e acessar recursos, mercados e tecnologias no exterior - além de exportar capital, controlar ativos, verticalizar cadeias, integrar produtores rurais e obter lucros no processo. Buscando acessar terras e commodities agrícolas, montar operações de processamento, construir capacidades logísticas e, principalmente, adquirir firmas com ativos estratégicos no exterior, as gigantes do agronegócio estão na linha de frente dos investimentos externos chineses, desafiando o poder das corporações transnacionais do Atlântico Norte que sempre dominaram o sistema agroalimentar global.

3. REPRODUÇÃO SOCIAL: NOVOS PADRÕES DE CONSUMO ALIMENTAR E AGRICULTURA FAMILIAR HETEROGÊNEA E SEGMENTADA

Reprodução social refere-se aos processos que ordenam a continuidade e a mudança das estruturas e relações sociais ao longo do tempo. Tem a ver com as práticas e formas de interação dos seres humanos com a natureza e entre si visando prover os diversos meios de vida (comida, roupa, abrigo, saúde, educação etc.) que precisam ser consumidos para assegurar a existência biológica e cultural de diferentes grupos sociais. Classe, raça, gênero, etnia, geração, entre outros elementos, operam como marcadores sociais da diferença. Mas o interesse aqui está nas diferenças de classe entre urbano e rural frente a processos de mercantilização e diversificação dos meios de vida. Os padrões de vida distintos entre as famílias urbanas variam de acordo com os diferenciais de salário e outros rendimentos, ligados, grosso modo, à inserção diferenciada no mercado de trabalho. As famílias rurais, em contraste, têm acesso a certos meios de produção, produzem tanto bens para o autoconsumo como mercadorias para a venda e podem combinar ocupações em variadas atividades agrícolas e não agrícolas fora do estabelecimento, seja em áreas rurais ou urbanas (pluriatividade3 3 Além do cultivo de vegetais e da criação de animais dentro da unidade produtiva (monoatividade), é cada vez mais comum que um ou mais membros das famílias rurais encontre emprego fora, muitas vezes em setores outros que não a agricultura, como na indústria ou nos serviços, geralmente localizados nas cidades (pluriatividade). Essa situação “semiproletária”, historicamente vista como transitória, até que se completasse o processo de proletarização, hoje tem se tornado dominante e relativamente estável em todo o mundo (SCHNEIDER, 2009). Particularmente na China, a maioria das famílias rurais são “pluriativas”, pois combinam atividades agropecuárias com atividades não agrícolas, comumente tendo membros da família engajados em “trabalho migrante” (HUANG; GAO; PENG, 2012; ZHANG, Q. F., 2015). ) (SCHNEIDER, 2009SCHNEIDER, S. A pluriatividade na agricultura familiar. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009.).

Otero et al. (2018OTERO, G.; GÜRCAN, E. C.; PECHLANER, G.; LIBERMAN, G. Food security, obesity, and inequality: Measuring the risk of exposure to the neoliberal diet. Journal of Agrarian Change , v. 18, n. 3, p. 536-554, 2018.) argumentam que as escolhas alimentares são estruturalmente condicionadas pela desigualdade de renda e que as pessoas geralmente comem aquilo que grandes produtores e distribuidores oligopolistas de alimentos têm a oferecer, o que é regularmente facilitado por certas formas de intervenção estatal. A diferenciação das dietas e tipos de alimento consumidos por distintos segmentos de classe é específica de cada país, mas a carne é um item central em qualquer lugar. Denomina-se “transição nutricional” o conjunto de mudanças nos hábitos alimentares, decorrente do aumento da renda e da urbanização, em direção a maiores níveis de consumo de proteína animal e produtos ultraprocessados em detrimento do consumo de grãos e vegetais in natura ou minimamente processados, tendo como efeito colateral a maior incidência de obesidade e sobrepeso, doenças crônicas relacionadas e riscos ambientais (OTERO et al., 2018OTERO, G.; GÜRCAN, E. C.; PECHLANER, G.; LIBERMAN, G. Food security, obesity, and inequality: Measuring the risk of exposure to the neoliberal diet. Journal of Agrarian Change , v. 18, n. 3, p. 536-554, 2018.).

Tal processo está em andamento na China. Segundo Huang, Gao e Peng (2012HUANG, P. C. C.; GAO, Y.; PENG, Y. Capitalization without proletarianization in China’s agricultural development’. Modern China, v. 38, n. 2, p. 139-173, 2012.), o enorme crescimento da produção agrícola, pecuária, florestal e aquícola - que passou de Y$ 192 bilhões, em 1980, para Y$ 11 trilhões, em 2018 (NBSC, 2021NBSC - NATIONAL BUREAU OF STATISTICS OF CHINA. Annual data. Beijing: NBSC, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.stats.gov.cn/english/Statisticaldata/AnnualData/ . Acesso em: 22 ago. 2021.
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) - é baseado na agricultura camponesa, cuja produção se diversificou de produtos tradicionais (grãos e oleaginosas) para novos produtos de maior qualidade e valor agregado (porco, frango, peixe, leite, ovos, vegetais e frutas). Para eles, o principal impulso para essa “revolução agrícola oculta” veio da “revolução nos padrões de consumo alimentar” chineses, que estaria transitando de uma proporção “8:1:1” de “grãos: frutas e vegetais: proteínas de origem animal”, vigente até início dos anos de 1980, em direção a uma proporção “4:3:3”, semelhante à dos países desenvolvidos, por volta de 2025. Embora as transformações no consumo de alimentos e na produção agrícola estejam mutuamente relacionadas, a cadeia causal inicia do lado da demanda. O aumento da renda per capita, a urbanização e a afluência de uma nova classe média impulsionam alterações nas dietas e hábitos alimentares que, por seu turno, possibilitam mudanças produtivas do lado da oferta.

Com algumas ressalvas empíricas, essa tese possui admirável poder explicativo. O Inquérito Domiciliar sobre Rendimentos e Despesas e Condições de Vida (NBSC, 2021NBSC - NATIONAL BUREAU OF STATISTICS OF CHINA. Annual data. Beijing: NBSC, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.stats.gov.cn/english/Statisticaldata/AnnualData/ . Acesso em: 22 ago. 2021.
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) permite calcular o coeficiente de Engel, que mede o percentual dos gastos com alimentação nas despesas familiares totais. Nos domicílios urbanos, enquanto a renda disponível cresceu de Y$ 1,510, em 1990, para Y$ 6,280, em 2000, Y$ 19,109, em 2010, e Y$ 39,250, em 2018, o coeficiente de Engel caiu de 54,2% para 39,4%, 29,7% e 27,7% nos mesmos anos. Já nos domicílios rurais, a renda disponível cresceu de Y$ 686, em 1990, para Y$ 1,577, em 2000, Y$ 5,919, em 2010, e Y$ 14,617, em 2018, enquanto o coeficiente de Engel caiu de 58,8% para 49,1%, 41,1% e 30,1%. Isso significa que, na média nacional, o coeficiente de Engel chegou a 28,4% em 2018, o rendimento domiciliar per capita foi de Y$ 28,228, a despesa com consumo, Y$ 19,853, e os gastos com alimentos, tabaco e bebida foram de Y$ 5,631.

Dados da mesma fonte também permitem estimar as mudanças na composição das dietas da população chinesa (Tabela 1). Na média nacional, os padrões de consumo alimentar transitaram de uma proporção de 50% de grãos, 42% de frutas e vegetais e 8% de proteínas de origem animal, em 1990, para 45,5%, 42,7% e 11,8%, em 2000, 39,2%, 44,5% e 16,4%, em 2010, e 34,3%, 46,2% e 19,5% em 2018. Portanto, uma descrição mais precisa da transição na composição das dietas chinesas, considerando o período 1990-2018, seria de uma proporção 5:4:1 para 3:5:2, em vez de 8:1:1 para 4:3:3. Além disso, as desigualdades qualitativas nos níveis de consumo alimentar entre urbano e rural são muito significativas (Tabela 1).

Tabela 1
Composição das dietas na China, em kg per capita, 1990-2018

Entretanto, as oportunidades históricas abertas pelas revoluções do consumo e da agricultura começaram a atingir seus limites. Em primeiro lugar, o consumo alimentar e os níveis nutricionais chineses, particularmente gorduras e produtos de origem animal, já excederam os montantes recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2012, a taxa de sobrepeso entre pessoas com 18 anos ou mais chegou a 30% e a taxa de obesidade a 12%, um aumento de 7,3% e 4,8%, respectivamente, em relação à década anterior; enquanto, entre pessoas de 6 a 17 anos, o sobrepeso mais que dobrou e a obesidade mais que triplicou. Isso fez a prevalência de diabetes, por exemplo, alcançar 9,7% dos adultos em 2012, quase 10 vezes o nível de 1980 (ZHANG, Y., 2020ZHANG, Y. China’s food revolution and its sustainability: Internal environmental costs, external import dependence and ecological impacts. Rural China, v. 17, n. 1, p. 65-86, 2020.).

Em segundo lugar, a reestruturação da agricultura doméstica para atender às mudanças do consumo está próxima da saturação. Maiores níveis de consumo de alimentos como carne bovina e laticínios só podem ser satisfeitos via aumento de importações. Mesmo o atual nível de consumo de carne suína depende da importação de soja para fabricar a ração utilizada para alimentar os porcos. Desde 2018, mais de 85% da soja consumida na China é importada, sendo que, desse total, 68% vêm do Brasil, 22% dos EUA, 6% da Argentina e 4% de outros países (GACC, 2021GACC - GENERAL ADMINISTRATION OF CUSTOMS OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. Customs statistics. Beijing: GACC, 2021. Disponível em: Disponível em: http://43.248.49.97/indexEn . Acesso em: 22 ago. 2021.
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).

Em terceiro lugar, a revolução agrícola doméstica gera altos impactos ecológicos. A China consome em média 1/3 dos fertilizantes do mundo (60 milhões de toneladas por ano) em menos de 14% da área semeada, com uma intensidade de aplicação duas vezes maior do que a média de EUA, Brasil e Índia. O uso de pesticidas, plásticos, hormônios e antibióticos também cresce a taxas médias maiores na China. Isso contribui não apenas para a poluição do solo, a eutrofização de corpos d’água, a redução da biodiversidade de plantas e animais endêmicos e a recorrência de escândalos de sanidade alimentar na China, mas também provoca impactos ecológicos externos, já que as suas importações agrícolas líquidas ocupam cerca de 350 milhões de hectares (63% dedicado à soja) de terras aráveis nos países exportadores, equivalentes a 40% da terra arável nacional (ZHANG, Y., 2020ZHANG, Y. China’s food revolution and its sustainability: Internal environmental costs, external import dependence and ecological impacts. Rural China, v. 17, n. 1, p. 65-86, 2020.).

De outra parte, a mercantilização da agricultura provoca metamorfoses nas próprias relações sociais rurais. Huang, Gao e Peng (2012HUANG, P. C. C.; GAO, Y.; PENG, Y. Capitalization without proletarianization in China’s agricultural development’. Modern China, v. 38, n. 2, p. 139-173, 2012.) defendem a tese de que, diferente da “revolução agrícola” na Inglaterra do século XVIII e da “revolução verde” na América Latina e na Índia do século XX, baseadas na modernização técnica de grandes fazendas capitalistas e na proletarização da força de trabalho rural, o esteio da “revolução agrícola oculta” chinesa é a agricultura familiar camponesa. Embora a elevação da produtividade e da produção agropecuária decorra do acréscimo na quantidade de capital por unidade de terra e de trabalho na forma de insumos, equipamentos e tecnologias, a força de trabalho empregada é formada majoritariamente pelos próprios membros das famílias camponesas e minoritariamente por trabalhadores assalariados. Eles estimam que, em 2008, o proletariado agrícola chinês fosse de 3% a 8% do total da força de trabalho rural, a depender da fonte utilizada (Censo Agrícola Decenal ou Inquérito Agrícola Anual de Custos e Receitas).4 4 Essa discrepância decorre de diferenças metodológicas ligadas aos propósitos de cada pesquisa. Enquanto o Censo Agrícola computa o número de “empregados” (exceto membros da família) por domicílio, o Inquérito Agrícola computa o número de horas de trabalho “contratado” ou “familiar” por unidade de terra/produto e sua amostra possui um viés de seleção por fazendas de maior escala.

Este fenômeno é denominado “capitalização sem proletarização”. A redução da força de trabalho rural total devido à baixa taxa de fecundidade e à migração rural-urbano e a combinação entre atividades e rendas agrícolas e não agrícolas nas unidades familiares rurais explicariam o aumento da produtividade do trabalho rural. E a maioria dos recursos para financiar o investimento em novos meios de produção - a “capitalização” da agricultura -, ao invés de provir de crédito governamental ou financiamento empresarial, viria principalmente das remessas dos trabalhadores migrantes para suas famílias nas aldeias.

Essa tese, contudo, não é isenta de críticas. Com dados dos Inquéritos Agrícolas Anuais, Xu (2017XU, Z. The development of capitalist agriculture in China. Review of Radical Political Economics, v. 49, n. 4, p. 1-8, 2017.) estima que o percentual de trabalhadores assalariados no total da força de trabalho agrícola chinesa já teria alcançado 16% em 2014, o que indicaria um processo de “capitalização com proletarização”. Yan e Chen (2015YAN, H.; CHEN, Y. Agrarian capitalization without capitalism? Capitalist dynamics from above and below in China. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 366-391, 2015.) afirmam que junto à dinâmica capitalista “pelo alto”, vista na seção anterior, emerge também uma dinâmica capitalista “por baixo”, através da diferenciação social rural. A partir de estudos de caso, elas documentam qualitativamente a formação de “grandes produtores especializados” ou “fazendas familiares” que recorrem a transferências de terras para concentrar áreas maiores e estabelecer operações agrícolas de grande escala orientadas para o mercado.

Igualmente com estudos de caso, Q. F. Zhang (2015ZHANG, Q. F. Class differentiation in rural China: Dynamics of accumulation, commodification, and state intervention. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 338-365, 2015.) detalha o processo de diferenciação social do campesinato classificando as posições de classe emergentes na estrutura agrária chinesa. Ele identifica cinco segmentos: fazendeiros familiares, que controlam cerca de 200 mu (27 vezes a área média nacional) através de contratos de transferência de terras mediados por autoridades locais e empregam em média 1,68 trabalhadores assalariados permanentes; agricultores comerciais, que frequentemente alugam terras de terceiros por meio de redes de vizinhança, operam predominantemente com trabalho familiar e empregam assalariados temporários apenas em épocas de colheita; agricultores pluriativos, que combinam a produção em pequena escala para o mercado usando trabalho predominantemente familiar e o trabalho migrante de algum membro da família; agricultores de subsistência, que não recorrem aos mercados de terra e trabalho e vendem apenas pequenos excedentes da sua produção; e assalariados rurais (semi) proletarizados, que alugam as suas terras para terceiros (ou foram expropriados).

Algumas informações do Censo Agrícola Nacional 2016 ajudam a esclarecer o fulcro desse debate (Tabela 2). Geralmente se menciona que 35% das terras contratadas dos coletivos por famílias camponesas via SRF foram transferidas para sustentar a tese do desenvolvimento do capitalismo agrário na China, mas se esquece de que os outros 65% permanecem nas mãos das famílias originais. Ademais, embora parte significativa dessas terras tenha sido transferida para DHEs, empresas ou cooperativas, seis em cada dez contratos são firmados entre domicílios rurais.

Tabela 2
Indicadores do uso da terra e da força de trabalho rural na China

Em relação à força de trabalho, quase 40% da população chinesa vive no meio rural e a agricultura ainda responde por 26% do emprego total, embora represente apenas 7% do PIB. O país possui uma “população flutuante” de 240 milhões de camponeses engajados em trabalho migrante, sendo que cerca de 100 milhões não se deslocam para as ZEEs na região costeira, e sim trabalham em outras vilas da mesma província. E, mais importante, apenas 1,86% dos domicílios rurais foram registrados como “fazendas familiares” e somente 4,1% da força de trabalho rural é composta por “empregados assalariados” (ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.; HUANG, 2021HUANG, P. C. C. 资本主义农业还是现代小农经济?中国克服 “三农问题” 的发展道路. [Capitalist agriculture or modern small farmer economy? China’s development path to overcome “three rural issues”]. Aisixiang, 20 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.aisixiang.com/data/126614.html . Acesso em: 22 ago. 2021.
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).

Portanto, se o visível desenvolvimento de relações capitalistas de produção na agricultura chinesa não permite mais falar do campesinato como uma classe homogênea e indiferenciada, não se deve tampouco superestimar a extensão desse processo. Na verdade, a agricultura chinesa continua sendo essencialmente de base familiar. A diferença é que os fazendeiros familiares e, em parte, os agricultores comerciais, formam um segmento especializado em atividades agropecuárias intensivas em insumos externos, que usa técnicas profissionalizadas de gestão e possui habilidades negociais para operar no mercado; enquanto os agricultores pluriativos e os de subsistência formam um segmento eminentemente camponês, que produz em pequena escala para o mercado, usando, sobretudo, recursos internos, sendo que a maioria tem nas atividades não agrícolas sua principal fonte de renda (ZHANG, J., 2019ZHANG, J. Beyond the ‘hidden agricultural revolution’ and ‘China’s overseas land investment’: Main trends in China’s agriculture and food sector. Journal of Contemporary China, v. 28, n. 119, p. 746-762, 2019.; PLOEG; YE, 2016PLOEG, J. D.; YE, J. (Eds.). China’s peasant agriculture and rural society: Changing paradigms of farming. London: Routledge, 2016.). Muito embora essas formas familiares de produção sejam constantemente permeadas por relações de subordinação ao capital - por exemplo, ao arrendar suas terras ou entrar em esquemas de integração vertical com empresas de agronegócio -, processos de produção capitalista e formação de uma burguesia agrária estão fundamentalmente relacionados às dinâmicas de acumulação capitaneadas por empresas agropecuárias especializadas e cooperativas falsas, descritas na seção anterior (CHEN, 2019CHEN, Y. Land outsourcing and labour contracting: Labour management in China’s capitalist farms. Journal of Agrarian Change , v. 20, n. 2, p. 238-254, 2019.; ZHANG, Q. F.; ZENG, 2021ZHANG, Q. F.; ZENG, H. Politically directed accumulation in rural China: The making of the agrarian capitalist class and the new agrarian question of capital. Journal of Agrarian Change , v. 21, n. 4, p. 1-25, 2021.).

Em suma, a China experimenta profundas transformações nos padrões de reprodução social da população urbana, ligadas à emergência de novas dietas e hábitos alimentares, e da população rural, decorrentes da mercantilização da agricultura. A população foi libertada da fome, mas a transição nutricional acelerada trouxe problemas de nova ordem, incluindo danos à saúde causados pelo consumo inadequado, recorrentes fraudes e escândalos de sanidade alimentar, pressões ambientais diretas e indiretas sobre os recursos, impactos nos mercados globais e degradação ecológica que acompanham as importações maciças. A subordinação da agricultura ao capital, a mercantilização dos direitos de uso da terra e outros meios de produção e dos meios de vida e a expansão do trabalho assalariado rural, mediados por uma combinação de atividades agrícolas e não agrícolas e um padrão circular de migração rural-urbano, resultam num processo peculiar de diferenciação social. O outrora indiferenciado campesinato comunista metamorfoseou-se em uma agricultura familiar heterogênea e segmentada. No entanto, é impossível compreender o significado da mudança nos padrões de consumo alimentar urbano, das metamorfoses da agricultura camponesa e da expansão das empresas de agronegócio, sem debruçar-se sobre o papel do estado e das políticas públicas.

4. PODER POLÍTICO: RELAÇÕES ESTADO-SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E DESENVOLVIMENTO RURAL

Poder político refere-se às relações mutuamente constitutivas e ao entrelaçamento de interesses, sempre transpassados por contradições e conflitos, entre as diferentes classes sociais e o estado. O estado é composto por instituições representativas e burocráticas que manejam as capacidades de absorver, legislar e executar as orientações emanadas da política e de mediar, regular e conter os conflitos e disputas que ocorrem na sociedade. A sua autonomia da sociedade é, portanto, apenas relativa e contingente. O estado, na verdade, reflete as “relações de força” entre as classes e frações de classe que lutam para exercer hegemonia sobre a sociedade civil e o próprio estado, combinando elementos de força e consentimento, coerção e consenso, a fim de organizar e dirigir seus aliados e desorganizar e dominar seus adversários. Nesse sentido, conquistar e manter a hegemonia é a finalidade precípua do poder político (GRAMSCI, 1992GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. 11. ed. New York: International Publishers, 1992.). O que significa que as políticas públicas, institucionalizadas a partir dos interesses prioritários de determinadas classes sociais e das ideias formuladas por seus intelectuais, são um componente-chave na consolidação da hegemonia e revelam muito sobre a natureza e o caráter do estado. Isso vale inclusive para formações econômico-sociais de orientação socialista.

Compreender a natureza do estado chinês não é, contudo, tarefa banal. Souza (2018SOUZA, R. Estado e capital na China. Salvador: EDUFBA, 2018.) avalia que a política de reformas e abertura liderada por Deng Xiaoping pôs em movimento um processo de “restauração capitalista” na China. A despeito das suas peculiaridades históricas e da sua não adesão aberta ao neoliberalismo, o estado chinês teria assumido um caráter prioritariamente favorável aos interesses da burguesia emergente, que resultou na troca da planificação econômica de natureza socializante pela regra do mercado e no próprio abandono da perspectiva socialista.

Jabbour e Gabriele (2021JABBOUR, E. K.; GABRIELE, A. China: O socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021.) defendem que, embora a burguesia concentre grande parcela da renda e da riqueza e tenha poder de barganha junto ao governo, ela não é a classe dominante, pois o PCC é a força política que monopoliza o poder e controla o estado. O “socialismo de mercado” chinês é visto como uma formação social de nível superior, que teria dado origem a uma “nova economia do projetamento”, na qual a luta de classes perde centralidade e a razão é alçada a instrumento de governo.

Nogueira e Qi (2019NOGUEIRA, I.; QI, H. The state and domestic capitalists in China’s economic transition: from great compromise to strained alliance. Critical Asian Studies, v. 51, n. 4, p. 558-578, 2019.), por sua vez, veem a relação entre o estado chinês e a nova classe capitalista doméstica como um movimento de mão dupla, em que o estado intervém, entra em disputas e estabelece compromissos, que mudam ao longo do tempo, frente aos conflitos capital-trabalho e às contradições dos regimes de acumulação. A relação estado-sociedade passou por uma transição do chamado “grande compromisso”, estabelecido por Deng Xiaoping com os novos empresários que acumularam riqueza privada tirando proveito do sistema dual de preços e de conexões pessoais com funcionários, da privatização maciça de ativos estatais e coletivos e da desapropriação de terras rurais, para uma “aliança tensa”, articulada em torno de Hu Jintao e depois Xi Jinping, com os grandes capitalistas cuja acumulação depende de inovações autóctones em setores de alta tecnologia e produtividade do trabalho, a fim de sustentar a elevação salarial e conter a agitação social, além do crescente aperto regulatório sobre os setores financeiro, imobiliário e educacional privado.

A história política da RPC pode ser interpretada como a passagem da “revolução contínua” da era Mao, marcada pelo constante insuflamento ideológico da luta de classes gerando tensão social, em episódios como as campanhas Três-Anti, Cinco-Anti e Anti-Direitistas, o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, para uma “revolução passiva” desde a era Deng, em que o desenvolvimento econômico é perseguido por meio de uma estratégia pragmática e gradualista, capaz de adaptar-se a condições cambiantes e incorporar novos objetivos, plasmados em slogans como Reformas e Abertura, Três Representações, Visão Científica do Desenvolvimento e Prosperidade Comum (LI, 2018LI, X. The endgame or resilience of the Chinese Communist Party’s rule in China: A Gramscian approach. Journal of Chinese Political Science, v. 23, p. 83-104, 2018.). Interpretar o lugar da questão agroalimentar na dinâmica do poder político da China pós-Mao através do conceito de revolução passiva permite questionar as teses da restauração capitalista e do socialismo de mercado e considerar criticamente as possibilidades e limites do capitalismo de estado realmente existente. Destarte, “pode-se aplicar ao conceito de revolução passiva o critério interpretativo das mudanças moleculares que de fato modificam progressivamente a composição pré-existente de forças e daí se tornam a matriz de novas mudanças” (GRAMSCI, 1992GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. 11. ed. New York: International Publishers, 1992., p. 109).

A narrativa oficial sobre a descoletivização é de que foi um movimento em grande parte espontâneo e de baixo para cima dos camponeses que assinaram “contratos secretos” para retornar à agricultura familiar e, uma vez que se espalhou por toda a China, com resultados econômicos impressionantes, a única opção do PCC foi aceitar e institucionalizar a inovação (ESCHER, 2020ESCHER, F. Agricultura, alimentação e desenvolvimento rural na China e no Brasil: Uma análise institucional comparativa. Curitiba: Appris, 2020.). Embora essa narrativa seja parcialmente verdadeira, por exemplo, no famoso caso da aldeia de Xiaogang, na absoluta maioria das áreas rurais, a descoletivização foi implementada de cima para baixo por autoridades locais seguindo diretivas da liderança central (XU, 2018XU, Z. From commune to capitalism. How China’s peasants lost collective farming and gained urban poverty. New York: Monthly Review Press, 2018.; EISENMAN, 2018EISENMAN, J. Red China’s green revolution: Technological innovation, institutional change, and economic development under commune. New York: Columbia University Press, 2018.). Deng conseguiu neutralizar o sucessor de Mao, Hua Guofeng, graças ao seu apoio entre quadros do partido, militares e intelectuais (MARTI, 2007MARTI, M. E. A China de Deng Xiaoping: O homem que pôs a China na cena do século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.). Mas foi a reforma rural que criou a base social da transição para o capitalismo de estado. As comunas rurais não foram desmanteladas por serem ineficientes, mas porque isso era crucial para derrotar seus rivais e consolidar o novo poder (EISENMAN, 2018EISENMAN, J. Red China’s green revolution: Technological innovation, institutional change, and economic development under commune. New York: Columbia University Press, 2018.). A descoletivização desorganizou o campesinato, quebrou a aliança operário-camponesa e reduziu a resistência potencial às reformas de mercado subsequentes (XU, 2018XU, Z. From commune to capitalism. How China’s peasants lost collective farming and gained urban poverty. New York: Monthly Review Press, 2018.), servindo de matriz para a nova era de revolução passiva.

Na transição do “grande compromisso” para a “aliança tensa” (NOGUEIRA; QI, 2019NOGUEIRA, I.; QI, H. The state and domestic capitalists in China’s economic transition: from great compromise to strained alliance. Critical Asian Studies, v. 51, n. 4, p. 558-578, 2019.), o PCC viu na subordinação da agricultura familiar a empresas de agronegócio e no estímulo a formação de uma agricultura capitalista um movimento oportuno para a atualização do regime de acumulação e da sua própria hegemonia. Por um lado, ao apoiar a internacionalização das estatais e das DHEs, o estado chinês não apenas ganha influência na dinâmica de poder do sistema agroalimentar global, como cria canais de acumulação e expande o mercado doméstico para essas empresas, que, por seu turno, suprem os recursos e tecnologias requeridas para “modernizar” a agricultura nacional (SCHNEIDER, 2017SCHNEIDER, M. Dragon head enterprises and the state of agribusiness in China. Journal of Agrarian Change , v. 17, n. 1, p. 3-21, 2017.).

Por outro lado, os funcionários dos governos locais, interessados em maximizar recursos fiscais de fontes extraorçamentárias, bater metas de desempenho e obter benefícios particulares, selecionam atores que acumularam capital ou têm trânsito político para servirem como seus agentes e depois capitalizam suas empresas agrícolas, transferindo-lhes recursos públicos de projetos financiados pelo governo central. Esse processo, batizado com o sugestivo slogan “capital indo ao campo”, é justificado como uma reversão da lógica do “grande compromisso”, em que o excedente agrícola apoiava a industrialização e a desapropriação dos camponeses alimentava a urbanização; pois, na atual “aliança tensa”, o estado passa a intervir direcionando o capital excedente do setor urbano-industrial para investimentos na “modernização da agricultura” (ZHANG, Q. F.; ZENG, 2021ZHANG, Q. F.; ZENG, H. Politically directed accumulation in rural China: The making of the agrarian capitalist class and the new agrarian question of capital. Journal of Agrarian Change , v. 21, n. 4, p. 1-25, 2021.). Deste modo, enquanto para alguns a transformação capitalista em curso encerra a construção de uma via de desenvolvimento rural articulada a um projeto socialista mais amplo (DAY; SCHNEIDER, 2018DAY, A.; SCHNEIDER, M. The end of alternatives? Capitalist transformation, rural activism, and the politics of possibility in China. Journal of Peasant Studies , v. 45, n. 7, p. 1221-1246, 2018.), para outros, o futuro ainda não está decidido e diferentes cenários podem vir a se materializar, a depender da relação de forças (ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.).

Assertiva e flexível do ponto de vista estratégico, a política de segurança alimentar chinesa representa o elo principal entre a agricultura doméstica e o regime alimentar internacional. O discurso oficial constantemente lembra que a China alimenta 18% da população mundial com apenas 9% das terras agriculturáveis e 7% da água doce do planeta. Isso é assegurado pela adesão à “linha vermelha da segurança de grãos”, através da qual o governo estipula que 95% do consumo de arroz, trigo e milho (os três “cultivos estratégicos”) seja produzido domesticamente. Para este fim, traça a “linha vermelha da terra arável”, estabelecendo que pelo menos 120 milhões de hectares sejam destinados exclusivamente para uso agrícola, não podendo ser convertidos para uso urbano ou industrial. Contudo, a taxa de autossuficiência nacional não tem superado os 85% nos últimos anos (ZHAN, 2021ZHAN, S. The political economy of food import and self-reliance in China: 1949-2019. Global Food History, p. 1-21, 2021.). Ademais, essa conta omite a mudança nos padrões de consumo, com a redução dos cereais básicos e o aumento das proteínas de origem animal na composição das dietas (SCHNEIDER, 2014SCHNEIDER, M. Developing the meat grab. Journal of Peasant Studies , v. 41, n. 4, p. 613-633, 2014.). O que se reflete na já aludida dependência em relação às importações agrícolas. A China hoje compra cerca de 60% de toda a soja comercializada internacionalmente (WESZ; ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.). É também o maior importador mundial de carnes, açúcar, algodão, leite e derivados e outros grãos e oleaginosas, suportando déficits agrícolas sistemáticos (GACC, 2021GACC - GENERAL ADMINISTRATION OF CUSTOMS OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. Customs statistics. Beijing: GACC, 2021. Disponível em: Disponível em: http://43.248.49.97/indexEn . Acesso em: 22 ago. 2021.
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).

Essa situação vem sendo agravada diante da peste suína, da guerra comercial com os EUA e das tensões diplomáticas com o Brasil. Em resposta, a China tem buscado diversificar suas bases de fornecimento e aumentar a produção doméstica de soja, reduzir o consumo de carne e o desperdício de alimentos e inovar nas indústrias de sementes, rações e “carnes alternativas” (WILKINSON; GARCIA; ESCHER, 2022WILKINSON, J.; ESCHER, F.; GARCIA, A. S. The Brazil-China nexus in agrofood: What is at stake in the future of the animal protein sector. International Quarterly for Asian Studies, v. 53, n. 2, p. 251-277, 2022.). Além de promover investimentos diretos externos das suas empresas líderes, visando tanto a demanda doméstica como os mercados globais, a fim de controlar cadeias de valor de commodities chave e ampliar seu poder de formação de preços e definição de padrões regulatórios no comércio agrícola internacional (ZHANG, H., 2019ZHANG, H. Securing the rice bowl: China and global food security. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.). A China conduz, portanto, uma política nacional de segurança alimentar “autoconfiante”, que combina autossuficiência de cereais básicos, importações de produtos intensivos em terra e recursos e expansão global de empresas do agronegócio dentro de uma estratégia de integração ao mercado mundial que pode ser caracterizada como “neomercantilista” (BELESKY; LAWRENCE, 2019BELESKY, P.; LAWRENCE, G. Chinese state capitalism and neomercantilism in the contemporary food regime: Contradictions, continuity and change. Journal of Peasant Studies, v. 46, n. 6, p. 1119-1141, 2019.; MCMICHAEL, 2020MCMICHAEL, P. Does China ‘going out’ strategy prefigures a new food regime? Journal of Peasant Studies , v. 47, n. 1, p. 116-154, 2020.; WESZ; ESCHER; FARES, 2021WESZ JR., V. J.; ESCHER, F.; FARES, T. M. Why and how is China reordering the food regime? The Brazil-China soy-meat complex and COFCO’s global strategy in the Southern Cone. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 7, p. 1-29, 2021.).

Entrementes, a direção seguida pela política de desenvolvimento rural doméstica é ainda mais vital na definição dos rumos da formação econômico-social chinesa. Em meados dos anos 1990, conflagrou-se uma crise social oficialmente expressa no slogan “três problemas agrários” - a produtividade da agricultura, a renda dos camponeses e o bem-estar social rural. A temática torna-se prioridade pública ao ser reintroduzida nos Documentos nº1 desde 2003, alimentando um movimento progressivo de reformas fiscais, tributárias e administrativas que culmina na abolição das taxas e impostos rurais em 2006, pondo fim ao histórico “fardo camponês”. Ainda em 2006, Hu Jintao lança o programa CNCS, com investimentos públicos na construção de infraestruturas e serviços rurais (educação, saúde, água, habitação, estradas, energia) e na montagem de um sistema de bem-estar social (pensão e aposentadoria rural, subsídio mínimo de subsistência, tratamento médico cooperativo, despesas de sepultamento) (ESCHER, 2020ESCHER, F. Agricultura, alimentação e desenvolvimento rural na China e no Brasil: Uma análise institucional comparativa. Curitiba: Appris, 2020.).

Já em 2017, Xi Jinping anuncia a Estratégia de Revitalização Rural (ERR), que em termos discursivos atualiza o CNCS aos desafios da “nova era”, simbolizando para a política de desenvolvimento rural o que a Belt and Road Initiative (BRI) simboliza na política externa. Em termos práticos, os objetivos da ERR são: envolver os agricultores familiares na agricultura moderna, integrar os setores primário, secundário e terciário nas áreas rurais e melhorar o sistema de assistência técnica e extensão agrícola; apoiar a sustentabilidade ambiental, preservar a cultura rural e aprimorar a governança democrática; garantir a estabilidade do SRF e os direitos de propriedade, uso e operação das terras rurais contratadas; promover a formação profissional dos agricultores, eliminar a pobreza e elevar os padrões de vida da população rural. Embora siga enfatizando a “modernização da agricultura” e a “produção em escala”, a nova ERR reconhece a necessidade de proteger os direitos dos camponeses contra as expropriações de terra promovidas pelo setor imobiliário e a concentração da produção, da renda e da riqueza pelo agronegócio, muitas vezes com a cumplicidade dos governos locais (YE, 2019YE, J. Theorizing rural vitalization strategy: A multi-dimensional view. In: INTERNATIONAL SEMINAR ON RURAL VITALIZATION, 1, College of Humanities and Development Studies, China Agricultural University, Beijing, May 6-7, 2019.(Power Point presentation).).

A ERR instaura um projeto político aberto a disputas intelectuais e adaptações práticas. Os neoliberais insistem na criação de direitos de propriedade privada da terra, na liberação de fluxos de capital para o campo e de trabalho para áreas urbanas e na expansão do agronegócio e da agricultura capitalista. Os desenvolvimentistas, predominantes no governo, também preferem a produção em larga escala e intensiva em capital, mas são cautelosos em relação aos seus impactos nos meios de vida dos camponeses e à perda de controle que a eventual privatização da terra poderia acarretar (DAY; SCHNEIDER, 2018DAY, A.; SCHNEIDER, M. The end of alternatives? Capitalist transformation, rural activism, and the politics of possibility in China. Journal of Peasant Studies , v. 45, n. 7, p. 1221-1246, 2018.; ZHAN, 2019ZHAN, S. The land question in China: Agrarian capitalism, industrious revolution, and East Asian development. London: Routledge , 2019.). E a chamada Nova Esquerda se divide em duas tendências: o Novo Movimento de Reconstrução Rural (NMRR), mais moderado, e a Rede de Soberania Alimentar na China (RSAC), mais radical. Em comum, ambos defendem que a terra é um bem coletivo, não uma mercadoria, e que ao invés de promover o agronegócio, a agricultura camponesa poderia ser verticalmente integrada via cooperativas autônomas, a fim de aumentar seu poder de barganha no mercado e sua capacidade de organização política (WEN, 2021WEN, T. Ten crises: The political economy of China’s development (1949-2020). Singapore: Palgrave Macmillan, 2021.; YAN; KU; XU, 2021YAN, H.; KU, H. B.; XU, S. Rural revitalization, scholars, and the dynamics of the collective future in China. Journal of Peasant Studies , v. 48, n. 4, p. 853-874, 2021.).

Em suma, as transições do poder político no seio do estado chinês refletem as contradições dos regimes de acumulação de capital e os conflitos de classe ligados à reprodução social, que fornecem o substrato para as políticas públicas de segurança alimentar e desenvolvimento rural. Diferentemente do que sugerem certas visões unilaterais sobre a natureza e o caráter do estado chinês, as relações estado-sociedade são mais bem representadas como um movimento de mão dupla, em que os interesses de distintas frações de classe são amalgamados na forma de alianças e compromissos que atualizam continuamente a hegemonia do PCC. É sintomático, portanto, que a matriz das mudanças moleculares que permeiam a transição do “grande compromisso” para a “aliança tensa” seja fruto justamente da reforma rural que desmantelou as comunas e instituiu o SRF, marcando a passagem da “revolução contínua” da era Mao para a era de “revolução passiva” inaugurada por Deng. Neste sentido, a ambiguidade estratégica das políticas públicas de segurança alimentar e desenvolvimento rural demonstra a formidável capacidade do partido-estado de lidar com os interesses e ideias em disputa e responder aos grandes desafios de cada época a fim de manter e renovar as bases do seu poder.

CONCLUSÕES

“Cruzando o rio sentindo as pedras”. O adágio popular atribuído à Deng Xiaoping pode soar clichê, mas o seu significado é profundamente enraizado na história da China pós-Mao. O princípio denota uma determinação prudente e pragmática, capaz de adaptar-se às circunstâncias novas que se apresentam de tempos em tempos. As recentes dinâmicas de desenvolvimento rural que emergem em resposta aos grandes desafios desencadeados pelo deslocamento da questão agrária para a questão agroalimentar ilustram bem esse princípio. Primeiro, a subordinação da agricultura à expansão do agronegócio oligopolista, composto por empresas estatais centrais, fazendas estatais e DHEs, que competem ativamente no mercado mundial, e ao capital não oligopolista, formado por pequenas e médias empresas agropecuárias especializadas e cooperativas rurais, sejam elas reais ou falsas, demonstra a articulação de um novo regime de acumulação de capital.

Segundo, as revoluções na produção e no consumo de alimentos, através das quais a intensa transição nutricional e a formação de novas dietas afluentes entre as classes urbanas impulsionam a mercantilização da agricultura e a diferenciação social rural, dando origem a distintos segmentos de classe, atestam a profunda transformação nos padrões de reprodução social dos meios de vida. Terceiro, a ambiguidade estratégica presente nos compromissos e alianças estabelecidos no estado, que refletem as contradições do regime de acumulação e os conflitos da reprodução social, bem como nos interesses e ideias em disputa na sociedade, que influenciam as políticas públicas de segurança alimentar e desenvolvimento rural, por seu turno, revela a natureza complexa e o caráter dinâmico do poder político.

A análise realizada neste artigo, antes de dar respostas fechadas ou categóricas, procura abrir caminhos para futuras pesquisas sobre a economia política da China. Por um lado, a entrada da China na OMC simultaneamente legitima e contesta as regras do “livre mercado” que regem o comércio agrícola internacional, da mesma forma que a expansão global das suas empresas estatais e DHEs ao mesmo tempo emula e desafia o poder das corporações transnacionais do Atlântico Norte. A formulação de que a China conduz uma política nacional de segurança alimentar “autoconfiante” dentro de uma estratégia “neomercantilista” de integração ao mercado mundial é, portanto, fecunda para explicar a sua centralidade na dinâmica do regime alimentar contemporâneo. Por outro lado, as teses da restauração capitalista e do socialismo de mercado, não obstante seus méritos e ousadia, por vias opostas acabam por proferir vereditos históricos sobre processos ainda em curso, incorrendo naquilo que Byres (2016BYRES, T. J. In pursuit of capitalist agrarian transition. Journal of Agrarian Change, v. 16, n. 3, p. 432-451, 2016.) chama de “fechamento analítico”. A hipótese do capitalismo de estado como um “estágio” na transição para o socialismo, que pode provar-se verdadeira ou não, embora não seja isenta de críticas, é mais frutífera precisamente porque mantém a “abertura metodológica” necessária para examinar os rumos da atual formação econômico-social chinesa. Em ambos os casos, a análise da questão agroalimentar mostra-se uma ferramenta heurística bastante fértil.

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  • 1
    A leitura liberal da China tampouco é homogênea. Yasheng Huang (2008HUANG, Y. Capitalism with Chinese characteristics: Entrepreneurship and the State. New York: Cambridge University Press, 2008.) ilustra bem a visão ideológica liberal típica: elogia o “capitalismo empreendedor” dos anos 1980 e repreende o “capitalismo conduzido pelo estado” entabulado na década de 1990. Barry Naughton (2017NAUGHTON, B. Is China socialist? Journal of Economic Perspectives, v. 31, n. 1, p. 3-24, 2017.), por sua vez, é mais pragmático e nuançado. Ele propõe um “checklist” com quatro critérios (capacidade, intenção, redistribuição e responsividade), avaliando que o país cumpre claramente os dois primeiros e pontua menos nos dois últimos, e conclui que a China é hoje uma “economia dirigida pelo governo” na qual o “ideal socialista ainda é influente”, mas “não pode ser considerada um país socialista até que faça um progresso muito maior no cumprimento de seus próprios objetivos políticos declarados de seguridade social universal, redistribuição de renda modesta e melhoria dos problemas ambientais” (NAUGHTON, 2017NAUGHTON, B. Is China socialist? Journal of Economic Perspectives, v. 31, n. 1, p. 3-24, 2017., p. 22).
  • 2
    O fato de todo o capitalismo ter estado é evocado para colocar em dúvida o valor analítico do conceito de capitalismo de estado. No entanto, ao invés de descartá-lo, o mais recomendável é aprimorá-lo, pois, além de ter uma longa história dentro e fora do pensamento marxista (SPERBER, 2019SPERBER, N. The many lives of state capitalism: From classical Marxism to free-market advocacy. History of the Human Sciences, v. 32, n. 3, p. 100-124, 2019.), é útil para compreender as mudanças do capitalismo contemporâneo (ALAMI; DIXON, 2020ALAMI, I.; DIXON, A. State capitalism(s) redux? Theories, tensions, controversies. Competition and Change, v. 24, n. 1, p. 70-94, 2020.). A revisão de Resnick e Wolff (1993RESNICK, S.; WOLFF, R. State capitalism in the USSR? A high-stakes debate. Rethinking Marxism, v. 6, n. 2, p. 46-68, 1993.) sobre o uso da noção de capitalismo de estado na URSS dá guarida à leitura aqui proposta dos escritos de Lenin (2002LENIN, V. I. The tax in kind: The significance of the New Economic Policy and its conditions. In: LENIN INTERNET ARCHIVE. [S. l.: s. n.], 2002. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1921/apr/21.htm . Acesso em: 11 jun. 2022.
    https://www.marxists.org/archive/lenin/w...
    ) e Bukharin (1922BUKHARIN, N. The economic structure of Soviet Russia. International Press Correspondence, v. 2, n. 22, p. 164-165, 1922.) sobre o assunto. Além disso, não faltam marxistas chineses de verve leninista e gramsciana que interpretam a atual “economia socialista de mercado com características chinesas” recorrendo à tese do capitalismo de estado (HORESH; LIM, 2017HORESH, N.; LIM, K. F. China: An East Asian alternative to neoliberalism? The Pacific Review, v. 30, n. 4, p. 425-442, 2017.; LI, 2018LI, X. The endgame or resilience of the Chinese Communist Party’s rule in China: A Gramscian approach. Journal of Chinese Political Science, v. 23, p. 83-104, 2018.; LIU; TSAI, 2020LIU, M.; TSAI, K. S. Structural power, hegemony, and state capitalism: Limits to China’s global economic power. Politics & Society, v. 49, n. 2, p. 235-267, 2020.).
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    Além do cultivo de vegetais e da criação de animais dentro da unidade produtiva (monoatividade), é cada vez mais comum que um ou mais membros das famílias rurais encontre emprego fora, muitas vezes em setores outros que não a agricultura, como na indústria ou nos serviços, geralmente localizados nas cidades (pluriatividade). Essa situação “semiproletária”, historicamente vista como transitória, até que se completasse o processo de proletarização, hoje tem se tornado dominante e relativamente estável em todo o mundo (SCHNEIDER, 2009SCHNEIDER, S. A pluriatividade na agricultura familiar. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009.). Particularmente na China, a maioria das famílias rurais são “pluriativas”, pois combinam atividades agropecuárias com atividades não agrícolas, comumente tendo membros da família engajados em “trabalho migrante” (HUANG; GAO; PENG, 2012HUANG, P. C. C.; GAO, Y.; PENG, Y. Capitalization without proletarianization in China’s agricultural development’. Modern China, v. 38, n. 2, p. 139-173, 2012.; ZHANG, Q. F., 2015ZHANG, Q. F. Class differentiation in rural China: Dynamics of accumulation, commodification, and state intervention. Journal of Agrarian Change , v. 15, n. 3, p. 338-365, 2015.).
  • 4
    Essa discrepância decorre de diferenças metodológicas ligadas aos propósitos de cada pesquisa. Enquanto o Censo Agrícola computa o número de “empregados” (exceto membros da família) por domicílio, o Inquérito Agrícola computa o número de horas de trabalho “contratado” ou “familiar” por unidade de terra/produto e sua amostra possui um viés de seleção por fazendas de maior escala.
  • CLASSIFICAÇÃO JEL:

    O13; P26; Q10; Q17; Q18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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