Resumos
O objetivo do estudo foi conhecer as representações sociais da cuidadora principal sobre o processo de adoecer de câncer, e relacioná-las com suas escolhas terapêuticas ao cuidar de um idoso portador desta patologia no domicílio. Participaram do estudo quatro cuidadoras principais de idosos portadores de câncer. Os dados foram coletados no período de março a novembro de 2005, por meio de entrevistas semi-estruturadas e observação participante. A análise dos dados foi realizada pelo método de análise temática. Constatou-se que as explicações encontradas pelas cuidadoras para a doença caminham na contramão das explicações do saber médico, pois elas procuram identificar na forma de vida e no contexto do idoso os mecanismos que o levaram a adoecer. As práticas terapêuticas no domicílio são eminentemente culturais, pois consideram crenças e valores socialmente construídos. Enfatizou-se a necessidade de reconhecer, dentro do sistema formal de saúde, a dimensão sociocultural do cuidado.
Cuidadores; Idoso; Neoplasias; Assistência domiciliar; Saúde do idoso
El objetivo fue conocer las representaciones sociales de la principal cuidadora, con respecto al proceso de enfermar de cáncer y de esta forma relacionarlas con las opciones terapéuticas para el anciano que cuidan en el domicilio. Participaron del estudio cuatro cuidadoras de ancianos con esta patología. Los datos fueron recolectados durante marzo a noviembre del 2005, a través de entrevistas semiestructuradas y observación participativa. El análisis fue realizado por medio del análisis temático. Se constató que las explicaciones encontradas por las cuidadoras para la enfermedad son contrarias a las del saber médico, pues ellas buscan identificar en la forma de vida y en el contexto del anciano mecanismo que le provocaron la enfermedad. Las prácticas terapéuticas domiciliarias son eminentemente culturales, pues consideran creencias y valores socialmente construidos. Se enfatizó la necesidad de reconocer, dentro del sistema de salud, la dimensión socio-cultural del cuidado.
Cuidadores; Anciano; Neoplasias; Atención domiciliaria de salud; Salud del anciano
The goal of the study was to understand the social representations of the main caretakers about the process of a acquiring cancer and to relate them with her therapeutic choices when caring for an elderly bearer of this pathology at his home. Four main caretakers of elderly cancer patients participated in the study. Data collection occurred from March to November, 2005, using semi-structured interviews and participative observation. The data analysis was accomplished through the method of thematic analysis. The explanations for the disease found by the caretakers were opposite to the medical explanations, because they try to identify the mechanisms that led the elderly patients to acquire the disease in their lifestyle. The therapeutic practices at home are eminently cultural, considering socially-built beliefs and values. The need of recognizing the socio-cultural dimension of healthcare within the formal healthcare service was emphasized.
Caregivers; Aged; Neoplasms; Home nursing; Health of the elderly
ARTIGO ORIGINAL
Significados do processo de adoecer: o que pensam cuidadoras principais de idosos portadores de câncer* * Extraído da dissertação "Sentimentos, saberes e fazeres do cuidador principal do idoso com câncer", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, 2006.
Significado del proceso de enfermar: la percepción de las principales cuidadoras de ancianos portadores de cáncer
Maria Cristina Umpierrez VieiraI; Sonia Silva MarconII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Docente do Curso de Graduação em Enfermagem na Universidade do Centro- Oeste do Paraná. Guarapuava, PR, Brasil. crisump@yahoo.com.br
IIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenadora do Mestrado em Enfermagem. Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Assistência e Apoio à Família (NEPAAF). Maringá, PR, Brasil. soniasilvamarcon@gmail.com
Correspondência Correspondência: Maria Cristina Umpierrez Vieira Rua Tiradentes, 42 - Santa Cruz CEP 85017-320 - Guarapuava, PR, Brasil
RESUMO
O objetivo do estudo foi conhecer as representações sociais da cuidadora principal sobre o processo de adoecer de câncer, e relacioná-las com suas escolhas terapêuticas ao cuidar de um idoso portador desta patologia no domicílio. Participaram do estudo quatro cuidadoras principais de idosos portadores de câncer. Os dados foram coletados no período de março a novembro de 2005, por meio de entrevistas semi-estruturadas e observação participante. A análise dos dados foi realizada pelo método de análise temática. Constatou-se que as explicações encontradas pelas cuidadoras para a doença caminham na contramão das explicações do saber médico, pois elas procuram identificar na forma de vida e no contexto do idoso os mecanismos que o levaram a adoecer. As práticas terapêuticas no domicílio são eminentemente culturais, pois consideram crenças e valores socialmente construídos. Enfatizou-se a necessidade de reconhecer, dentro do sistema formal de saúde, a dimensão sociocultural do cuidado.
Descritores: Cuidadores. Idoso. Neoplasias. Assistência domiciliar. Saúde do idoso.
RESUMEN
El objetivo fue conocer las representaciones sociales de la principal cuidadora, con respecto al proceso de enfermar de cáncer y de esta forma relacionarlas con las opciones terapéuticas para el anciano que cuidan en el domicilio. Participaron del estudio cuatro cuidadoras de ancianos con esta patología. Los datos fueron recolectados durante marzo a noviembre del 2005, a través de entrevistas semiestructuradas y observación participativa. El análisis fue realizado por medio del análisis temático. Se constató que las explicaciones encontradas por las cuidadoras para la enfermedad son contrarias a las del saber médico, pues ellas buscan identificar en la forma de vida y en el contexto del anciano mecanismo que le provocaron la enfermedad. Las prácticas terapéuticas domiciliarias son eminentemente culturales, pues consideran creencias y valores socialmente construidos. Se enfatizó la necesidad de reconocer, dentro del sistema de salud, la dimensión socio-cultural del cuidado.
Descriptores: Cuidadores. Anciano. Neoplasias. Atención domiciliaria de salud. Salud del anciano.
INTRODUÇÃO
A transição demográfica, marcada pelo envelhecimento populacional e observada em nível mundial, é acompanhada de uma transição epidemiológica caracterizada pela prevalência de doenças crônico-degenerativas, entre elas o câncer, sendo que mais de 60% dos casos de óbitos por essa doença ocorrem na população idosa. Nesta faixa etária, em sua maioria, os casos de neoplasia (80%) são diagnosticados tardiamente, quando os recursos disponíveis para o tratamento são escassos. Esta situação limita as esperanças de vida, contribui para a deterioração da auto-imagem do idoso e sustenta a representação de que o câncer é uma doença incurável(1).
Nesta perspectiva, a família é muitas vezes surpreendida com o diagnóstico e, quase ao mesmo tempo, informada sobre o prognóstico reservado, marcado pela ausência de possibilidades terapêuticas e pelo pouco tempo de vida, cabendo a ela arcar com a extensão crônica da doença e suas seqüelas, o que inclui a continuidade do cuidado no âmbito domiciliar, muitas vezes sem ter sido suficientemente esclarecida sobre os cuidados que deve realizar, as características e funções dos medicamentos prescritos e a situações em que deve procurar os serviços de saúde.
Vários estudos já abordaram as implicações decorrentes do fato de a família assumir o cuidado a um membro com doença crônica(2-4), apontando inclusive a necessidade de orientação profissional a essas famílias(3). No início elas até têm a ilusão de que serão apoiadas pelo setor de saúde, mas esta sensação se desfaz diante das primeiras intercorrências, pois muitas vezes são vãs as tentativas de internação de seu ente querido. A insuficiência de leitos hospitalares, associada à condição de fora de possibilidades terapêuticas, constitui um empecilho importante no momento em que a família busca ajuda nos serviços de saúde(1).
Destarte, o cuidar do idoso com câncer é uma experiência única para a família, que, sozinha ou com apoio de sua rede social mais próxima, vai construindo dia a dia o seu modo próprio de cuidar. A família, de forma geral, já possui um modelo explicativo de saúde-doença, constituído por valores, crenças, conhecimentos e práticas que guiam suas ações na promoção da saúde de seus membros e na prevenção e tratamento das doenças(5).
A forma como os indivíduos de uma dada sociedade se situam em relação à doença, ou como a percebem, é fundamental na determinação do modo de enfrentamento desta doença. Os mesmos sintomas ou enfermidades podem ser interpretados de maneiras completamente diferentes por indivíduos de culturas diversas ou em contextos diferentes(6). Assim, a doença está intimamente relacionada à cultura, e a saúde e a forma de reconhecer e tratar a doença estão diretamente relacionadas à visão de mundo do sujeito, a qual é influenciada, em grande parte, por crenças, atitudes e valores culturalmente construídos, que congregam sistemas referencias, tanto populares como científicos, diferenciados entre si(7).
A compreensão da doença enquanto fenômeno da dimensão social faz com que as ações para seu tratamento e/ou enfrentamento sejam interpretadas como construtos sociais, e não individuais. Neste sentido, as interações sociais ocupam papel de destaque na compreensão dos cuidados de saúde adotados no cotidiano.
A causa disto é que as ações adotadas em relação ao processo de escolha terapêutica são mais bem compreendidas quando se toma o indivíduo em sua rede de relações sociais, visto que suas percepções, crenças e ações geralmente são heterogêneas, complexas e ambíguas e seus conhecimentos e práticas são construídos por experiências diversas e em situações biográficas determinadas(8). Sendo assim, tanto a experiência de enfermidade quanto a de ações relacionadas a ela têm caráter intersubjetivo, integrando ao processo de interação social interpretações subjetivas dos indivíduos, permeadas por certos padrões culturais(6).
Em assim sendo, embora não se possa afirmar que todas as terapêuticas adotadas no âmbito popular sejam decorrentes de um processo de escolha, devemos considerar a importância de elas "fazerem sentido" para os indivíduos. As condutas adotadas, portanto, são permeadas por conhecimentos e hábitos culturais, muitos dos quais, embora sem justificativa aparente, constroem a forma como o mundo é entendido pelo indivíduo e, mais que isto, como ele é negociado nas relações sociais e legitimado pela sociedade(8).
A complexidade que envolve a vida cotidiana e o enfrentamento das doenças em geral não faz parte da formação do profissional de saúde, de forma que existe uma diferença substancial entre os elementos que alimentam o raciocínio desses profissionais e os dos diversos grupos populares, gerando muitas vezes dificuldade para que aqueles compreendam as atitudes de seus pacientes, o que pode resultar em relações distanciadas e preconceituosas. Contudo, a perspectiva da assistência integral à saúde reconhece a importância do contexto, dos processos culturais e familiares das intersubjetividades, e leva em conta as necessidades e os interesses relacionados com o dia-a-dia dos sujeitos envolvidos. Todos esses aspectos devem ser considerados em as todas as ações de cuidado individualizado.
Assim, um dos grandes desafios da atualidade para os profissionais de saúde é articular igualdade e diferença, a base cultural comum e expressões de pluralidade social e cultural(7). Sob esta perspectiva, cuidar de um idoso com câncer no domicílio transcende aos aspectos biológicos e abrange a dimensão cultural. Este ponto de vista coloca em evidência o papel da cuidadora, o que nos levou a definir como objetivo do estudo conhecer as representações sociais da cuidadora principal sobre o processo de adoecer de câncer e relacioná-las com suas escolhas terapêuticas ao cuidar de um idoso portador desta patologia.
MÉTODO
Na realização do estudo seguimos a abordagem teórico-metodológica das Representações Sociais(9), pois entendemos que a cuidadora traz consigo crenças, posições e pensamentos que marcam sua forma de ver o mundo e de analisar os fatos, os quais refletem valores sociais do contexto no qual ela está inserida. Ademais, consideramos que as características de uma determinada representação social são reveladas claramente em períodos de crise, como na doença, quando as pessoas estão mais dispostas a falar, as imagens e os significados se revelam, as memórias coletivas são estimuladas e o comportamento se torna mais espontâneo(9).
A Teoria das Representações Sociais (RSs) aproxima-se do universo do senso comum, entendendo este como o conjunto de opiniões, conhecimentos, valores e crenças elaborados pelo sujeito sobre um determinado objeto social (neste caso, a doença e o cuidado) que são compartilhados pelo grupo social e permeiam as estruturas culturais. Há três princípios básicos que fundamentam as RSs. O primeiro é que as pessoas, ao viverem em sociedade, possuem um modo comum de vida, no qual são estabelecidos valores e formas de pensar e de agir sobre a realidade cotidiana; o segundo é que quase tudo o que uma pessoa sabe ela o aprendeu de outra, portanto as fontes dos conhecimentos e de crenças significativas são as interações entre elas; e o terceiro é que as idéias e crenças que são partilhadas estão arraigadas nas instituições sociais - como a igreja, a família e os movimentos sociais(9).
As RSs direcionam os comportamentos e as práticas sociais, possibilitam a compreensão e explicação da realidade, permitem a proteção da especificidade dos grupos e interferem na socialização, devido ao controle exercido pela coletividade sobre seus membros; e por fim, permitem que as pessoas expliquem e justifiquem a posteriori, suas tomadas de posição e suas ações em dada situação(9). Isto ocorre por meio de dois processos, o de objetivação e de ancoragem, os quais foram identificados neste estudo. Na objetivação a cuidadora apropria-se de informações e saberes sobre o adoecer de câncer no idoso e edifica imagens e significados em torno dele; na ancoragem, estas imagens e significações são integradas, de forma cognitiva, a um sistema de pensamento social preexistente. Assim, o que parecia estranho torna-se acessível à sua compreensão, permitindo-lhe desenvolver o cuidado a partir de uma estrutura conceitual organizada.
O estudo foi realizado com quatro cuidadoras de idosos com câncer. Os dados foram coletados no período de março a novembro de 2005, diariamente, em semanas alternadas (esta era a disponibilidade da pesquisadora), em sessões de observação que duravam, cada uma, de duas a quatro horas. Foram utilizadas como estratégias a entrevista semi-estruturada e a observação participante, que seguiu a tradição antropológica. O diário de campo constituiu um procedimento fundamental, já que após cada sessão de observação registramos as impressões provenientes do ambiente de pesquisa, incluindo conversas informais e lembretes para os próximos encontros.
Na observação participante focalizamos os aspectos sociais, afetivos e cognitivos envolvidos nas representações da cuidadora sobre o processo de adoecer de câncer e nas ações de cuidado domiciliar do idoso portador desta patologia. Estes aspectos foram revelados nas falas, nos gestos, nas atitudes, na comunicação não-verbal e nas características principais do relacionamento da cuidadora com o idoso. As entrevistas semi-estruturada foram desenvolvidas na fase final da observação participante e as questões norteadoras foram: Quando ouve a palavra câncer, o que você pensa,? que imagens lhe vêm à cabeça?; O que você faz para tratar e cuidar do Sr/a...?. Todas foram gravadas e transcritas na íntegra e imediatamente após sua realização, para evitar que detalhes que contribuíam para o entendimento do diálogo caíssem no esquecimento.
As informantes do estudo são cuidadoras de idosos cadastrados em um ambulatório de oncologia integrado ao Sistema Único de Saúde na cidade de Guarapuava PR. Para serem incluídas no estudo elas deveriam atender aos seguintes critérios: ser cuidadora principal de idoso com diagnóstico de câncer confirmado; não ter nenhuma formação na área de saúde; estar atuando no cuidado ao mesmo idoso por um período superior a 30 dias; residir no mesmo espaço físico que o idoso; e finalmente, aceitar, livre e espontaneamente, participar do estudo, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido. Para garantir o anonimato, as quatro cuidadoras foram identificadas por nomes de ervas: Camomila, Cidreira, Hortelã e Malva.
Camomila foi acompanhada em seu domicílio por um período de quase seis meses, até a saturação dos dados; e as demais foram acompanhadas por cerca de um mês e meio, quando o acompanhamento foi interrompido em decorrência do óbito do idoso.
Para a análise dos dados adotou-se o método de Análise Temática(10), identificando-se os núcleos de sentido contidos nas falas das cuidadoras principais e nos registros das observações. O método desdobra-se em três etapas: pré-análise, exploração do material etratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na pré-análise, após várias leituras, identificamos os núcleos de sentido, palavras-chave ou frases que demonstravam os pensamentos e significados relevantes para a cuidadora, recortamos e agrupamos os que tinham idéias centrais em comum, os quais constituíram os temas que delimitaram o contexto do estudo. Na segunda fase, analisamos os recortes e estabelecemos as regras para classificá-los; e na terceira os categorizamos, o que nos permitiu definir as representações sociais da cuidadora principal sobre o processo de adoecer de câncer do idoso, as quais foram relacionadas com as práticas terapêuticas domiciliares. Foram identificados dois temas (em negrito) com suas respectivas categorias (em itálico): o processo de adoecer de câncer do idoso a partir de concepções etiológicas, que incluiu três categorias: representações religiosas; representações relacionadas com as condições de vida; e representações humanísticas do câncer; e o processo de adoecer de câncer do idoso a partir dos significados que lhe são atribuídos, queengloba cinco categorias: representação do câncer como ameaça de morte; como símbolo da fragilidade humana; como anúncio de perdas acumulativas; como agressão e como expressão dos desejos da pessoa.
O desenvolvimento do estudo obedeceu aos preceitos éticos disciplinados pela Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer nº 277/2005).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Camomila (36 anos) era casada havia 16 anos, tinha dois filhos e cuidava de sua mãe, de 68 anos, portadora de mieloma múltiplo havia um ano; tinha um irmão que se mantinha distante da família. Cidreira (52 anos) era separada havia 20 anos e desde então morava em Santa Catarina. Por solicitação do filho, que é pastor de uma igreja evangélica, estava cuidando do ex-esposo (63 anos), portador de câncer hepático diagnosticado três meses antes. Hortelã (25 anos) era solteira e a mais nova de cinco irmãs; cuidava de sua mãe, que tinha 62 anos e era portadora de linfoma havia três anos. Malva (38 anos) era casada, tinha três filhos menores e cuidava de sua sogra de 61 anos, que era benzedeira, era muito respeitada em seu bairro e tinha câncer de hipofaringe havia nove meses. As condições sociais, a renda, o fato de morarem em bairros periféricos da região urbana, as restrições de acesso a serviços e bens materiais caracterizaram estas cuidadoras como mulheres pobres, oriundas da classe trabalhadora.
O processo de adoecer de câncer do idoso a partir de concepções etiológicas
A interpretação dos dados possibilitou constatar que as cuidadoras principais de idosos com câncer têm modos peculiares de explicar o processo de adoecer: elas partem de concepções etiológicas e admitem causas sobrenaturais, biológicas, pessoais e sociais. Estas concepções orientam os procedimentos terapêuticos adotados no cotidiano, o que pode ser identificado a partir das observações.
Representações religiosas do câncer
Nesta categoria as cuidadoras revelam que o processo de adoecer é percebido como a manifestação da vontade de Deus, existindo uma forte relação com o pecado e a oportunidade de conversão. Estas representações as levam a fundamentar o cuidado, principalmente, em terapias rituais para expulsar simbolicamente o mal e fornecer proteção alicerçada na fé e na confiança em Deus: Isso é castigo de Deus pelo que ele fez na vida, só sofri, o que esse homem me fez [...], isto é para pagar seus pecados. Eu também estou pagando meus pecados (Cidreira).
Esta cuidadora freqüentemente solicitava a seu filho, que era pastor, que orasse pelo idoso. Em suas palavras percebia-se mágoa e ressentimento por todo o sofrimento passado junto ao esposo alcoólatra, porém em suas práticas de cuidado se mostrava preocupada com que o idoso reencontrasse valores e crenças que ela considerava essenciais. Observa-se que esta cuidadora tem uma conotação moral/religiosa do câncer, que ela considera doença punitiva e fatal(11).
Para Camomila, o câncer é um inimigo que se alastra silenciosamente, provocando danos que só com o uso dos tratamentos disponíveis não é possível controlar, sendo necessária a intervenção divina:
Essa é uma doença que tem bastante tipos, e há uma que é bem braba, que quando a pessoa sente, já está toda tomada, é só com a graça de Deus para ela melhorar (Camomila).
Hortelã concebia o câncer como a imagem de uma situação de infelicidade, na qual o mal tomara conta da vida da sua mãe. Suas práticas de cuidado visavam se opor ofensivamente a esta realidade, e para isso precisava ter certeza de que estava agindo corretamente; por esta razão aderia rigorosamente ao tratamento médico e reprovava o interesse de sua mãe por práticas populares relacionadas a curandeiros, apesar de valorizar as práticas religiosas católicas:
Essa doença causa muito sofrimento [...] tem que fazer tudo direitinho, como o médico manda, eu não faço coisas por minha conta. Ela queria ir atrás de um curandeiro, dos homens que fazem garrafada, mas eu não deixei [...] No final de semana nós levamos ela no santuário, no morro da Divina Ternura e no santuário de Santa Rita; mas eu sou contra fazer só de vez em quando (novenas e correntes de oração), tem que fazer sempre, para ter forças na hora que as coisas ficam difíceis (Hortelã).
Para Malva, o câncer de sua sogra era algo indesejável, porém era representado como um elemento simbólico, por meio do qual o próprio Deus se teria feito presente em seu grupo familiar, levando-o a repensar seus valores, suas escolhas sociais, sua forma de viver e de relacionar-se:
Malva considera que em sua família as coisas não estavam muito bem. Seu marido tinha enfrentado o problema do alcoolismo, um de seus cunhados tinha engravidado uma adolescente e o outro era muito grosseiro. Considera que a partir do momento em que foi diagnosticado o câncer na idosa, mesmo sendo uma situação penosa e que ninguém desejava, Deus falou por meio dela, já que contribuiu para que todos repensassem suas condutas e muitos aspectos já tinham mudado no relacionamento familiar (Diário de Campo do dia 22 de outubro de 2005).
Percebe-se que, para Malva, o sofrimento foi aceito e transformado em uma oportunidade de crescimento familiar. O câncer afetou sua sogra, não obstante, sua repercussão e importância se situaram além do espaço corporal, abrangendo o meio social e familiar no qual a idosa estava inserida. As práticas terapêuticas desta cuidadora, visando à proteção divina por intermediação do padre ou da curandeira, foram freqüentemente observadas durante todo o período do estudo.
A conotação que estas mulheres dão ao câncer as leva a buscar apoio na religião, por meio de práticas rituais ou pela invocação a Deus, uma vez que estas estratégias são acessíveis, pois o contexto popular urbano disponibiliza vários serviços religiosos(12). Assim, os pedidos atendidos por Deus confirmam e concretizam a barganha e fomentam a fé e a esperança, sendo que a fé muitas vezes se apresenta como o suporte para o enfrentamento das dificuldades e do sofrimento, amparando-as na provisão de forças para vencê-los(2). Além disso, é comum as pessoas relatarem acolhimento e preocupação dos companheiros de religião, de forma que a família e as práticas religiosas constituem partes de redes sociais que fornecem apoio, principalmente cognitivo, normativo e afetivo(2,12).
Por fim, é importante ressaltar que a busca religiosa não deve ser entendida como uma forma de fugir da realidade. Culturalmente, ela desempenha várias funções: criar uma identidade de coesão entre as pessoas, ganhar novas energias na luta pela sobrevivência e reforçar uma resistência cultural que, por si só, reforça também a busca da religião como solução(13).
Representações relacionadas com as condições de vida
As cuidadoras atribuíram a etiologia do câncer a fatores precedentes ao processo de adoecer. De acordo com essa representação, existe uma continuidade entre o estado saudável e o adoecer de câncer, já que não são compreendidos como condições diferentes, e sim, como conseqüências de modificações concretas que geram desequilíbrios na qualidade de vida do idoso e acabam também provocando desequilíbrios fisiológicos. Em assim sendo, o processo de adoecer de câncer foi representado como conseqüência de condições adversas, situações externas que agrediram e interferiram persistente e negativamente em toda a vida da idosa:
Há quatro anos ela se queixa que a dentadura incomoda, vai ver que ficou doente por causa da dentadura (Malva).
Ao identificar a dentadura como fator etiológico do processo de adoecer de câncer, Malva opta pela restrição de seu uso. Assim, não permitia que a idosa a utilizasse constantemente e ambas chegaram ao consenso de usá-la só quando recebiam visitas.
As condições de trabalho, quando representadas como agressivas, também são relacionadas com as perdas e a deterioração da vida da idosa:
Desde pequena trabalhou muito, foi muito judiada na lida da roça [...] agora perdeu a força, perdeu peso, perdeu vontade de sair (Camomila).
Esta compreensão do processo de adoecer fundamentava a adesão a cuidados que acrescentassem benefícios à vida das idosas: tratamentos de restituição alimentar, intervenção médica materializada em medicamentos, que se somavam procedimentos e incentivo para a participação da rede informal, representados pelo fornecimento de apoio emocional e social.
É interessante observar que, antes de a pessoa procurar ajuda profissional, ela já construiu uma narrativa pessoal sobre seu problema de saúde, o pode estar diretamente relacionado com a aceitação da terapia, pois indica as interpretações que o paciente já formulou sobre o problema, que pode coincidir ou não com o que o médico propõe(14).
Representações humanistas do câncer
As causas da doença são identificadas na vida do idoso como um todo, em sua trajetória pessoal, familiar e social:
Ele tem irmãos e mãe, mas nunca o ajudaram, pois ele não se dá bem com ninguém; por causa dessa ruindade, hoje ele está desse jeito. Depois da separação, a vida dele piorou. Já não era mais tão novo e foi ficando cada vez mais sozinho, a ponto de não ter ninguém perto dele. Até os irmãos se afastaram. Passava dias caído na rua, sem comer, só bebendo. Meu filho ficava com dó e o levava para a casa dele, mas ele não ficava lá, é teimoso. Sempre foi falado para ele que se não largasse a bebida terminaria morrendo. Foi uma escolha dele, agora só resta esperar (Cidreira).
Nesta representação o câncer não é considerado um ser totalmente estranho que tenha tomado conta do idoso: ele é a conseqüência de escolhas pessoais e dos valores que nortearam sua vida. Esta compreensão se exprime quando a cuidadora relaciona o câncer com o temperamento do idoso, com suas péssimas relações familiares e sociais, e identifica como fator etiológico o uso abusivo de álcool, o qual teria provocado um desequilíbrio geral, atingindo também sua saúde. Os cuidados desenvolvidos visaram contribuir para o equilíbrio e a harmonia no âmbito domiciliar, abrangendo a organização e limpeza do lar. Com relação à pessoa do idoso, a preocupação maior foi relativa à sua higiene e boa alimentação; além disso, houve tentativas de refazer laços de família, facilitando a aproximação do idoso com as irmãs, que não lhe foram receptivas.
Camomila atribui o agravamento da saúde de sua mãe às relações familiares, mais precisamente à relação conflituosa da idosa com o filho após o divórcio deste, pois ela sentia que valores importantes não eram mais tidos em conta na família. A partir de então, passara a apresentar episódios de depressão recorrentes, fechando-se em sua postura, e o filho acabou afastando-se dela:
Ela teve uma recaída muito grande quando o filho se divorciou, porque ela não aceita isso. Porque uma pessoa com câncer não pode se emocionar e nem se decepcionar. Aí eu me boto no lugar dela e fico pensando como ela deve sofrer porque o único filho homem, ao que ela deu a vida e se privou de um monte de coisas, faz uma coisa dessas e ainda não dá as caras (Camomila).
A depressão pode ser o pano de fundo dos processos de imunodepressão que propiciam o desenvolvimento de neoplasias. Assim, embora a representação que Camomila utiliza para explicar o processo de adoecer de sua mãe não seja valorizada no sistema formal, tem fundamentação científica e justificaria uma abordagem médica além da perspectiva biologicista(15).
Cidreira e Camomila apresentam explicações diferentes para o processo de adoecer de câncer e ao mesmo tempo partilham da representação de que a origem do câncer não se situa só no âmbito do indivíduo, seja no orgânico seja no psicológico, mas também no âmbito das relações sociais. Tal representação rejeita a tendência dominante do modelo biomédico de limitar-se ao tratamento do corpo, ou mais especificamente, do órgão doente. As cuidadoras entendem ser necessário ir além, com vistas a restaurar a vida e as relações do idoso. Isto explica por que são tão valorizados por elas o apoio familiar, as demonstrações de solidariedade e as práticas religiosas.
Neste sentido, a religião produz alívio ao sofrimento, na medida em que permite mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e a comunidade percebem o contexto da doença grave(11).
O processo de adoecer de câncer do idoso a partir dos significados que lhe são atribuídos
As cuidadoras principais necessitam simbolizar de forma aceitável a situação que estão vivendo para que possam vencer os obstáculos do cotidiano. Assim, constroem uma série de significados com relação ao diagnóstico, lutam para dar sentido aos sintomas, às mudanças e à deterioração que a doença provoca no idoso. Os significados atribuídos ao processo de adoecer de câncer são relacionados à forma como ele é vivenciado e percebido; e contêm os sentidos sociais que permitem à cuidadora abordá-lo como algo compreensível e administrável.
Representação do câncer como ameaça de morte
Esta categoria é caracterizada por uma conotação negativa muito forte, pois esta patologia é considerada fonte de angústias e sofrimentos e gera a consciência de finitude, e ao mesmo tempo mobiliza na cuidadora sentimentos fraternos, de solidariedade e de compaixão para com o doente.
As quatro cuidadoras vivenciaram e enfrentaram diariamente a iminência da morte. Malva deixou de dormir com seu esposo e ocupou um leito ao lado de sua sogra, porque tinha medo de que durante a noite acontecesse alguma coisa ruim, e se ela não estivesse ali, seria muito triste sua sogra morrer sozinha. Hortelã referia não conseguir imaginar sua vida sem sua mãe, pois, apesar de brigarem muito, uma não vive sem a outra. Cidreira ficava desesperada quando o idoso piorava, e exigia que ele fosse internado dizendo: Não quero que morra nas minhas mãos. Isso gerou muitos conflitos com o médico, o qual lhe explicava que o idoso deveria ficar em casa, porque a única intervenção possível era o alívio da dor, o que já estava sendo feito no domicílio. De fato, os familiares tendem a separar o momento da morte do contexto dos cuidados, optando claramente pela ocorrência da morte em um hospital, mesmo quando desejam prestar os cuidados em casa(15). Por outro lado, a decisão de manter o doente em casa ou no hospital é um processo dinâmico, sendo que a melhor opção hoje poderá não ser a de amanhã e isto depende da resposta do organismo do paciente perante o tratamento(16).
Camomila, por sua vez, chorava muito quando manifestava o medo de perder sua mãe:
Para qualquer pessoa, câncer é um sofrimento, a palavra já vem com aquele peso, né? Quando a pessoa sabe que está com câncer já cai em uma depressão, e a família inteira quer evitar isso. Nossa, é muito difícil, é horrível, ainda mais que teve quantas irmãs dela que morreram de câncer [...] Quando a gente pensa em câncer pensa logo em morte (Camomila).
A morte pertence à condição humana, mas pouco se fala sobre isto, o que dificulta lidar com ela. Esta é uma questão difícil de ser enfrentada pelas cuidadoras, e, apesar de elas considerarem a morte um processo natural na velhice, a possibilidade de esta ocorrer em um momento inesperado é motivo de grande angústia. Além disso, mesmo quando associa fortemente o câncer à possibilidade de morte, a cuidadora mantém a esperança como algo maior e procura recursos para lidar com o sofrimento, como já identificaram outros estudos(11). Em diversas oportunidades ouvíamos as cuidadoras dirigirem-se ao idoso com expressões esperançosas, valorizando cada pequena conquista e ajudando-o a conviver com suas limitações.
Representações do câncer como símbolo da condição humana
Esta representação é construída a partir da perspectiva religiosa tradicional, segundo a qual a doença representa o estado de degradação do ser. A deterioração física é a manifestação exterior e reflexo da distância que separa o ser humano da perfeição:
Eu sei que é assim, de alguma coisa todos morremos, ninguém é eterno [...] Só quero que viva bem o tempo que lhe resta (Malva).
Hortelã, à medida que percebia a deterioração de sua mãe, comparava essa situação com seu estado físico e emocional anterior ao diagnóstico, revelando a sua fragilidade:
[...] sempre cantou de galo, tudo era ela que decidia e fazia aqui em casa, agora custa acreditar que ela caiu (Hortelã).
A vulnerabilidade da idosa também era fonte de sofrimento para Camomila, que se sentia impotente em face das limitações impostas pelo agravamento dos sintomas. A representação do câncer como símbolo de fragilidade humana era relacionada à importância da função protetora da família:
Você tem que tratar desde o começo de forma adequada, usando tudo que existe e estando muito apoiada pela família. Se a pessoa não tem apoio de nada, ela fica muito mais nervosa e vai cada vez mais para trás. A pessoa com essa doença precisa muito de carinho e de cuidado (Camomila).
Esta representação fundamentou a adesão a tratamentos que consideravam efetivos, como o uso de ervas e banho de sol, por não terem efeitos colaterais que acarretariam maior desconforto, e mobilizou estratégias como proporcionar lazer, contato com a natureza e interação familiar e social para restituir ao idoso a alegria de viver e contribuir para seu bem-estar:
Eu procuro que saia de casa e visite a vizinha do lado ou os netos. É aqui perto, tem que ter paciência porque ela vai devagar. Ela também gosta de cuidar de suas plantas, eu a estimulo que vá no jardim. Fazemos tudo o que podemos para ajudá-la (Malva).
Representação do câncer como anúncio de perdas acumulativas
O câncer simboliza perda não só de capacidade física, mas também laços, de estrutura familiar, de um futuro e de controle. O processo de adoecer gera uma possibilidade de ruptura, pois a vida normal é alterada:
No início da doença achei que poderia continuar trabalhando e cuidando dela, com o passar do tempo, foi ficando mais fraca e precisa mais de mim, tudo eu tenho que fazer, é o banho, a comida, os remédios, leva e traz ao hospital [...] tive que parar de trabalhar e com isso acaba faltando dinheiro [...] Tem muita coisa que tive que deixar de lado (Camomila).
Para essa cuidadora, abandonar o trabalho significou perda financeira importante, que repercutiu inclusive na qualidade de vida da família. Cidreira, por sua vez, percebe que após o diagnóstico de câncer aumentou a perda de laços sociais com seu esposo e afirma que ele está sozinho, contando só com ela para dar apoio. Malva rompe transitoriamente o relacionamento habitual com seu esposo e filhos e dedica a maior parte de seu tempo ao cuidado de sua sogra.
Percebemos que o câncer representa uma ameaça ao senso de segurança construído ao longo da vida e é gerador de ansiedade. É um corpo estranho muito particular: nasce e se desenvolve por um processo de invasão e de consumação interna, provocando perdas progressivas, que abrangem os espaços familiar e social da pessoa(17).
Como conseqüência, as cuidadoras principais mobilizam e integram recursos formais, informais e populares que lhes permitem administrar essa situação. Observamos que há investimentos importantes para manter hábitos da existência do idoso, incluindo a manutenção de princípios de convivência familiar, religião, lazer e interação familiar e social. Características culturais que fazem parte dessas práticas podem ser modificadas ou adaptadas pela cuidadora para atender às mudanças na condição de vida do idoso, por exemplo, Camomila facilita a participação de sua mãe no grupo de oração, do qual a idosa é integrante há anos, organizando os encontros em sua casa.
Representação do câncer como agressão
Ao referir-se ao câncer e ao tratamento, as expressões mais utilizadas pelas cuidadoras principais foram: Vamos fazer de tudo para livrarmos dessa doença; estamos lutando; por que isso veio atacá-la?. Estas palavras revelam uma representação do câncer como algo que não faz parte do corpo. O tumor é um ser que conspira contra a pessoa do idoso, trazendo só misérias e agindo como inimigo, e vem na contramão do desejo de vê-lo participando ativamente da vida familiar e comunitária e desenvolvendo as mais simples atividades da vida diária:
A doença está acabando com ela, perdeu peso, sente muitas dores, não come, vomita muito e não consegue dormir, anda calada, não quer que os vizinhos a vejam (Camomila).
Malva, após uma sessão de quimioterapia na qual sua sogra apresentou vômitos incoercíveis, dizia:
Essa doença traz misérias demais. Não é só ela que judia, o tratamento também judia.
As palavras revelam que, ao representar o câncer como uma agressão, a cuidadora acha que o idoso não é responsável pelo que lhe acontece, que a doença instala-se no seu corpo contra sua vontade, impondo-lhe limites:
Essa coisa não a deixa viver, provoca muita dor ao movimentar, a obriga a ficar deitada, temos que colocar fraldas, não tem vontade de sair, conversar [...] Está difícil! (Camomila).
Hortelã preocupa-se em identificar a natureza e a extensão da agressão provocada pelo câncer na vida de sua mãe:
Ela faz o que a doença permite. À noite dorme pouco e está muito fraca até para ir sozinha ao banheiro. Eu estimulo para que ande, sem ajuda ela não consegue (Hortelã).
Assim, para estas cuidadoras, o câncer é uma entidade inimiga que tira a força física e o bom-humor e atormenta dia e noite, afetando o idoso física e emocionalmente. Ante esta situação, as cuidadoras empenham-se em melhorar suas condições de vida, e, por considerarem o processo de adoecer como um fato totalmente estranho à sua pessoa, acham que a cura só pode ser esperada do exterior, seja por meio de recursos formais seja por recursos populares. Assim, a opção por aderir à quimioterapia está relacionada com a representação desse tratamento como algo muito agressivo e, por isso mesmo, adequado para enfrentar uma doença considerada inimiga e maligna.
Eu acho bom que ela vomite, tá botando tudo para fora, tá limpando tudo por dentro. Este é sinal que a química tá fazendo efeito, e isso é bom, porque tem que cortar esse mal pela raiz; não dá pra deixar que essa doença se espalhe, há que lutar" (Camomila).
Para Camomila, os efeitos colaterais que a quimioterapia provoca demonstram sua eficácia, os vômitos são sinais de que a doença está sendo eliminada e a idosa ficando limpa por dentro, conforme já encontraram outros estudos(18). A cultura, desta forma, fornece uma maneira de entendimento do corpo e do seu funcionamento para organizar as informações disponíveis e dar-lhes coerência. Assim, o fazer-sentido é, a congruência entre a base cultural do sujeito e o processo por ele desenvolvido para uma ação de saúde. Esse processo de escolha individual baseia-se nas teorias cognitivas que procuram explicar os variados itinerários terapêuticos(8).
O ponto de partida das significações da representação da doença como algo que ataca, originando o mal e o desequilíbrio, é a percepção do ser humano como alguém que, naturalmente, possui em si mesmo recursos terapêuticos, capacidade de defesa e desejo de viver, e esta natureza é violentada e agredida por poderes nocivos que a atacam; nestas condições, o doente só pode ser considerado uma vítima(17).
Representação do câncer como expressão dos desejos da pessoa
O câncer também é representado como símbolo da realidade interior, muito mais verdadeiro que os próprios sintomas. Cidreira, por exemplo, considera que o câncer do idoso é apenas mais um sinal de um mal antigo que já destruiu seu casamento e a união da família. Neste sentido, o idoso é considerado culpado por sua doença:
Ele tem a doença que merece, ele quis assim. Se ele fosse diferente essa doença não tinha aparecido. Ele é fraco, e a bebida tomou conta. Bebeu a vida inteira, afastou a família, agora está assim. Foi ele que quis isso, eu estou aqui porque meu filho pediu. Eu acho que é bom que se sinta que nosso filho perdoou ele (Cidreira)
Na representação desta cuidadora, seu esposo, ao contrair câncer, não ficou doente naquela hora, uma vez que era alcoólatra havia 50 anos. Este diagnóstico foi o fim de um processo de autodestruição, é o espelho da própria vida. Por esta razão, ao cuidar, sua atenção não é só com a condição física do idoso, busca também reconstruir alguns laços que em alguns momentos foram significativos na sua vida, procura principalmente aproximá-lo de seu filho.
O câncer se revela na fala de Camomila também como fruto de uma postura pessoal: a intransigência da mãe ante a decisão de divórcio do filho resultara na ruptura de harmonia nas relações familiares, que eram relevantes para a idosa, deixando-a sujeita a sua própria fraqueza:
Ela ficou doente por causa do filho. Ele divorciou-se, abandonou a família por outra mulher, ela sofre muito com isso, não só pelos netos, mas também porque ela é muito religiosa e acha que isto não está certo. Desde que aconteceu isso não foi mais a mesma, acabou ficando doente (Camomila).
Para o senso comum, as escolhas pessoais são capazes de desviar as funções fisiológicas de seu curso normal, tornando caótica a saúde do indivíduo. As alterações na vida pessoal e social se traduzem em alterações corporais que acabam levando à morte
É interessante observar que a representação do câncer como uma entidade estranha que ataca o idoso inesperadamente, sem ele ter feito nada para merecer isso, ou seja, sem ser responsável pela situação, é menos elaborada que a representação de que o idoso cria sua doença. Para chegar a este significado é necessário aprofundar a noção de individualidade e reconhecer que a pessoa é capaz de provocar a própria deterioração.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As cuidadoras principais de idosos portadores de câncer revelaram que, na perspectiva do senso comum, o processo de adoecer não é um acontecimento individual, pois abrange não só a dimensão corporal, mas também as relações familiares e sociais. Segundo elas, o câncer gera desequilíbrios que vão além do aspecto corporal do idoso, exigindo reorganização em diferentes dimensões da vida da cuidadora principal e de sua família. Verificamos assim que as explicações encontradas pelas cuidadoras para a doença muitas vezes caminham na contramão das explicações biologicistas do saber biomédico, pois a partir de uma perspectiva subjetiva elas procuram identificar na vida e no contexto do idoso os processos que o levaram a adoecer de câncer, e na perspectiva religiosa encontram na vontade divina os significados deste processo.
A identificação etiológica do câncer demonstrou ter uma estreita relação com as práticas de cuidado adotadas no domicílio: quando o câncer é considerado um inimigo que invade o corpo do idoso, afetando sua vida física, espiritual e social, acredita-se que a intervenção formal não é suficiente, espera-se e procura-se intervenção divina. Quando compreendido como conseqüência de uma disfunção não só orgânica, mas também subjetiva, familiar e social do idoso, a cuidadora procura ajudá-lo a resgatar e manter hábitos de vida que possam contribuir para protegê-lo daquilo que o destrói.
No cotidiano das cuidadoras principais percebemos que há uma grande preocupação com as alterações que a doença é capaz de provocar, as quais se traduzem em sintomas físicos, emocionais e sociais. Desta forma, os significados em torno da doença não estão centrados apenas nos danos orgânicos, mas também na pessoa do idoso e na possibilidade de perda de seu ente querido, o que as leva a implementar cuidados que valorizam o bem-estar e o bem-viver do idoso.
Estes resultados apontam a necessidade de os profissionais de saúde se esforçarem por compreender a complexidade que envolve a vida cotidiana e o enfrentamento das doenças em geral, pois estes aspectos se mostram fundamentais para uma melhoria na qualidade da assistência que é prestada tanto ao idoso com câncer como a seu cuidador, por meio não apenas do aperfeiçoamento das intervenções técnicas, mas também da valorização do cuidado individualizado e da dimensão simbólica e afetiva que envolve esta assistência. Em vista disto, torna-se necessário lançar mão de um processo de cuidar no qual os cuidadores não sejam esquecidos em suas vicissitudes, mas sim, inseridos no processo, estabelecendo metas e trocando experiências com a equipe.
Recebido: 11/06/2007
Aprovado: 16/04/2008
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Aceito
16 Abr 2008 -
Recebido
11 Jun 2007