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A interdisciplinaridade no ensino e na pesquisa em Enfermagem

EDITORIAL

A interdisciplinaridade no ensino e na pesquisa em Enfermagem

Maria Amélia de Campos Oliveira

Professora Titular. Chefe do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa Avaliação de Necessidades de Saúde – CNPq. São Paulo, SP, Brasil. macampos@usp.br

Quando falamos em interdisciplinaridade, acorrem-nos temas como multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, entre outros. Tais termos têm em comum a raiz que compartilham: disciplina, do latim discere, que significa aprender, da qual derivam discente e discípulo.

Disciplina pode ser definida como um conjunto sistematicamente organizado de conhecimentos sobre um objeto ou um campo epistêmico ou parte de um componente curricular. É uma forma de estruturação e organização dos conhecimentos sobre determinados objetos, com metodologia própria.

Tomada no plano curricular, ou seja, do ensino e da aprendizagem, a interdisciplinaridade pressupõe integração entre as disciplinas que compõem um currículo nas diversas áreas de formação. No plano epistêmico ou do conhecimento, é a maneira como se dá a própria constituição integrada do sentido de um objeto, evento ou situação, em resposta a sua complexidade.

O que distingue a multidisciplinaridade da interdisciplinaridade é o grau de interação em que diferentes disciplinas atuam reciprocamente. Na multidisciplinaridade, atuam conjuntamente, mas preservam a independência, ou seja, os limites disciplinares continuam vigentes. Na interdisciplinaridade há uma forte interdependência e cada disciplina aproxima-se e até mesmo se apropria da abordagem da outra, fecundando-se mutuamente.

Já a transdisciplinaridade é mais uma imagem-objetivo, um horizonte que aponta para outra forma de conhecimento que não apenas o lógico-racional, que tanto tendemos a valorizar. Envolve também dimensões da subjetividade e da intuição, comumente descartadas pelo pensamento científico.

É preciso frisar que interdisciplinaridade não prescinde da disciplinaridade, pois necessita do conhecimento disciplinar competente. Mas cada especialista necessita reconhecer o caráter parcial e relativo da sua própria disciplina e do enfoque por ela adotado.

Quais os requisitos à interdisciplinaridade? Sensibilidade à complexidade, capacidade para buscar mecanismos comuns a diferentes campos do saber, atenção a estruturas profundas capazes de articular aquilo que aparentemente não é articulável; atitude de curiosidade e de abertura, gosto pela colaboração e pelo trabalho em comum e coragem para abandonar o campo específico de saber para nos aventurarmos em outros campos epistêmicos.

Quais os obstáculos à interdisciplinaridade? Há obstáculos epistemológicos, porque o paradigma dominante de ciência faz com que todas as outras formas sejam consideradas menos científicas, obstáculos institucionais, pois sempre que propomos outra forma de fazer ensino e pesquisa esbarramos na inércia e na resistência das instituições; obstáculos psicossociológicos, decorrentes da dificuldade que temos de nos abrir para novas formas de compreensão dos sujeitos/objetos, e também obstáculos culturais, decorrentes da forma hegemônica de conceber a ciência.

E quais os limites à prática da interdisciplinaridade? Um deles é o conhecimento limitado que temos de outras áreas, de modo que qualquer incursão em outros campos exija um esforço considerável. Outra dificuldade é partir de problemas interdisciplinares. Os problemas são complexos e o nosso olhar recorta-os de uma maneira que é própria da nossa disciplina.

No processo de cuidar em saúde, realidade com a qual nos defrontamos cotidianamente, o trabalho em equipe é uma possibilidade de construir a interdisciplinaridade? Isso irá depender do grau de cooperação e comunicação entre as equipes.

No ensino de graduação, já existem exemplos de currículos que estão adotando perspectiva interdisciplinar, os chamados currículos integrados. Os mais conhecidos são os da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) e o da Universidade de Londrina (UEL). Na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) temos nossa própria tentativa e estamos no terceiro ano de uma nova proposta curricular que tem como horizonte a integração dos conteúdos disciplinares.

O próprio Ministério da Saúde vem lançando mão de várias estratégias indutoras da formação interprofissional, a nova designação que vem sendo adotada para atribuir uma perspectiva interdisciplinar na formação. O PET-Saúde, o Pró-Saúde e o Pró-Ensino na Saúde são iniciativas ministeriais particularmente exitosas.

Na pós-graduação, avançamos um pouco mais porque a pesquisa faz um chamamento à interdisciplinaridade, requisitando a contribuição de várias disciplinas. No caso da pesquisa em Enfermagem, a própria complexidade dos objetos com que lidamos, tais como a violência, a pobreza, a vulnerabilidade, reclama um olhar mais interdisciplinar. Na CAPES, a área interdisciplinar foi constituída em 1999, reúne hoje mais de trezentos cursos que se definem como interdisciplinares, em que pese uma série de desafios e obstáculos a serem superados.

A Academia Nacional de Ciências conceitua a pesquisa interdisciplinar como o modo de fazer investigação por grupos ou indivíduos, que integra informações, dados, técnicas, instrumentos, perspectivas, conceitos e/ ou teorias de duas ou mais disciplinas, especialidades para avançar a compreensão ou resolver problemas cuja solução está além do escopo de uma única disciplina ou área de conhecimento.

O esfacelamento do conhecimento e o consequente encastelamento mantêm os cientistas alienados do processo mais geral de construção do saber e de sua relação com o mundo da vida. Temos dificuldade de ultrapassar os nossos próprios princípios discursivos, nossa linguagem ao fazer ciência, as perspectivas teóricas e os modos de funcionamento em que fomos treinados. Porque fazer ciência pressupõe um treinamento que, em certa medida, irá determinar o que praticaremos como pesquisadores e como professores ao longo da vida profissional.

O autor(1) da obra La rebelión de las masas assim resume o perigo do encastelamento:

Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente tudo quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um ignorante porque é um 'homem de ciência' e conhece muito bem a sua pequeníssima parcela do universo. Temos que dizer que é um 'sábio-ignorante', coisa extremamente grave, pois significa que é um senhor que se comporta em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade, é um sábio.

  • 1. Ortega y Gasset, J. A rebelião das massas. São Paulo: Relógio D'Agua; 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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