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O (des)governo na pandemia de COVID-19 e as implicações psicossociais: disciplinarizações, sujeições e subjetividade

RESUMO

Objetivo:

analisar as implicações psicossociais decorrentes da pandemia da COVID-19, relatadas em atendimento online, pela ótica dos conceitos de biopoder, biopolítica e de governamentalidade de Michel Foucault.

Método:

pesquisa qualitativa do tipo documental, com a análise dos registros de prontuários de usuários atendidos em um chat de escuta terapêutica, entre abril e outubro de 2020.

Resultados:

os dados foram organizados em duas temáticas: Governamentalidade na pandemia de COVID-19 e a produção de implicações psicossociais de ansiedade e medo e Disciplinarizações e sujeições na pandemia de COVID-19: subjetividades marcadas pela tristeza e angústia. A primeira demonstra que a “arte de governar” no Brasil produziu instabilidades e incertezas que influenciaram na produção do medo da contaminação/morte/e não acesso ao tratamento e ansiedade. Na segunda temática, percebe-se como o controle disciplinar e a regulamentação biopolítica se combinam. No Brasil, um país extremamente desigual, tem-se produzido sujeição e subjetividades marcadas pela angústia, sentimentos de desânimo e tristeza.

Conclusão:

os processos excludentes foram aprofundados na pandemia, com exercício de uma biopolítica que precariza a vida e produz sofrimento psíquico.

DESCRITORES
COVID-19; Consulta Remota; Saúde Mental

Abstract

Objective:

to analyze the psychosocial implications arising from the COVID-19 pandemic, reported in online service, from the perspective of Michel Foucault’s concepts of biopower, biopolitics and governmentality.

Method:

qualitative documental research, with analysis of medical records of users assisted in a therapeutic listening chat, between April and October 2020.

Results:

the data were organized into two themes: Governmentality in the COVID-19 pandemic and the production of psychosocial implications of anxiety and fear and Discipline and subjection in the COVID-19 pandemic: subjectivities marked by sadness and anguish. The first demonstrates that the “art of governing” in Brazil produced instabilities and uncertainties that influenced the production of fear of contamination/death/and non-access to treatment and anxiety. In the second theme, we can see how disciplinary control and biopolitical regulation are combined. In Brazil, an extremely unequal country, subjectivity and subjectivities marked by anguish, feelings of discouragement and sadness have been produced.

Conclusion:

the exclusionary processes were deepened in the pandemic, with the exercise of a biopolitics that makes life precarious and produces psychological distress.

DESCRIPTORS
COVID-19; Remote Consultation; Mental Health

RESUMEN

Objetivo:

analizar las implicaciones psicosociales derivadas de la pandemia de la COVID-19, relatadas en el servicio online, desde la perspectiva de los conceptos de biopoder, biopolítica y gubernamentalidad de Michel Foucault.

Método:

investigación documental cualitativa, con análisis de prontuarios de usuarios atendidos en chat de escucha terapéutica, entre abril y octubre de 2020.

Resultados:

los datos fueron organizados en dos temas: Gubernamentalidad en la pandemia de la COVID-19 y la producción de implicaciones psicosociales de la ansiedad y el miedo y Disciplinas y sujeciones en la pandemia de la COVID-19: subjetividades marcadas por la tristeza y la angustia. El primero demuestra que el “arte de gobernar” en Brasil produjo inestabilidades e incertidumbres que influyeron en la producción de miedo a la contaminación/muerte/y no acceso al tratamiento y ansiedad. En el segundo tema, podemos ver cómo se combinan el control disciplinario y la regulación biopolítica. En Brasil, país sumamente desigual, se han producido subjetividades y subjetividades marcadas por la angustia, sentimientos de desánimo y tristeza.

Conclusión:

los procesos de exclusión se profundizaron en la pandemia, con el ejercicio de una biopolítica que precariza la vida y produce sufrimiento psíquico.

DESCRIPTORES
COVID-19; Consulta Remota; Salud Mental

INTRODUÇÃO

Ao longo da história, as diferentes epidemias e pandemias têm mostrado um efeito devastador na saúde física e mental das pessoas. Os desafios impostos pela realidade atual da pandemia de COVID-19 são complexos, apontando para os efeitos de diversas ordens.

A humanidade tem enfrentado, ao longo dos anos, doenças, como a AIDS, o Ebola, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e, agora, a COVID-19. As doenças contagiosas continuam a ameaçar as populações humanas e os historiadores continuam a buscar no passado luzes para compreender o presente(11. Jones DS. History in a crisis – lessons for Covid-19. N Engl J Med. 2020;382(18):1681-3. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMp2004361
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).

Em La Peste, o autor buscou organizar a estrutura arquetípica de um surto, descrevendo o drama social desencadeado por uma epidemia e explicitando as estruturas sociais latentes, sendo propícia a análise do social(22. Rosenberg CE. What Is an Epidemic? AIDS in Historical Perspective. Daedalus [Internet]. 1989 [cited em 2021 Nov 10];118(2):1-17. Available from: https://www.jstor.org/stable/20025233
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). O medo de contrair a doença e de infectar e respostas emocionais à pandemia, como comportamentos inadequados, angústia emocional, manifestações defensivas, ansiedade, frustração, solidão, raiva, tédio, depressão, estresse e comportamentos de evitação, são encontrados em diversos estudos(33. Digiovanni C, Conley J, Chiu D, Zaborski J. Factors influencing compliance with quarantine in Toronto during the 2003 SARS outbreak. Biosecur Bioterror. 2004;2(4):265-72. DOI: https://doi.org/10.1089/bsp.2004.2.265
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66. Talevi D, Socci V, Carai M, Carnaghi G, Faleri S, Trebbi E, et al. Mental health outcomes of the CoViD-19 pandemic. Riv Psichiatr. 2020;55(3): 137-44. DOI: https://doi.org/10.1708/3382.33569
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).

O isolamento social, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como medida sanitária para reduzir o contágio, e o circuito do medo que se estabelece permitem retomar as faces da governamentalidade foucaultiana, que visa controlar e gerenciar a vida humana em sua multiplicidade (população), intervindo sobre as possibilidades de agir dos indivíduos de maneira a conduzir suas condutas(77. Foucault M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes; 2012.). Entretanto, vivenciamos no Brasil discursos contraditórios em relação ao isolamento, sendo proposto e efetivado pelos estados, mas atacado constantemente pelo governo central, que defendia os interesses econômicos em detrimento da defesa da vida.

No curso da pandemia de COVID-19, a mobilização de estratégias de promoção, prevenção e cuidado em saúde mental e apoio psicossocial se tornou uma das prioridades descrita pela OMS. Diante do isolamento e da necessidade de minimizar a interação face a face, os serviços de saúde mental online se apresentam como um recurso importante, no sentido de enfrentar o senso de incerteza e medo(66. Talevi D, Socci V, Carai M, Carnaghi G, Faleri S, Trebbi E, et al. Mental health outcomes of the CoViD-19 pandemic. Riv Psichiatr. 2020;55(3): 137-44. DOI: https://doi.org/10.1708/3382.33569
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), além de um aliado na avaliação regular dos sintomas de depressão, ansiedade, estresse e risco de suicídio(88. Xiang YT, Yang Y, Li W, Zhang L, Zhang O, Cheung T, et al. Timely mental health care for the 2019 novel coronavirus outbreak is urgently needed. Lancet Psychiatry. 2020;7(3):228-9. DOI: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30046-8
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1010. Chen Q, Liang M, Li Y, Guo J, Fei D, Wang L, et al. Mental health care for medical staff in China during the COVID-19 outbreak. Lancet Psychiatry. 2020;7(4):e15-6. DOI: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30078-X
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).

Nesta modalidade de atendimento digital em saúde mental, já utilizada antes da pandemia de COVID-19 em países do Oriente Médio e Norte da África(1010. Chen Q, Liang M, Li Y, Guo J, Fei D, Wang L, et al. Mental health care for medical staff in China during the COVID-19 outbreak. Lancet Psychiatry. 2020;7(4):e15-6. DOI: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30078-X
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), e desenvolvida no Brasil pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN)(1111. Humerez D, Ohl R, Silva M. Mental health of brazilian nursing professionals in the context of the covid-19 pandemic: action of the nursing federal council. Cogitare Enfermagem. 2020:25;e74115. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v25i0.74115
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), a comunicação terapêutica tem se confirmado como uma ferramenta potente para o acolhimento de vivências desafiadoras, por sua capacidade em produzir reflexões que permitam a organização da realidade individual e coletiva(1212. Stefanelli, M. Ensino de técnicas de comunicação terapêutica enfermeira-paciente – referencial teórico (Parte II). Rev Esc Enferm USP. 1987;21(2):107-15. DOI: https://doi.org/10.1590/0080-6234198702100200107
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).

Deste modo, no presente artigo, tem-se como objetivo: analisar as implicações psicossociais decorrentes da pandemia da COVID-19, relatadas em atendimento online, pela ótica dos conceitos de biopoder, biopolítica e de governamentalidade de Michel Foucault.

MÉTODO

Tipo do Estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, do tipo análise documental.

População

81 pessoas atendidas em um chat de escuta terapêutica no período de abril a outubro de 2020.

Local

Canal de escuta terapêutica, disponível no website do Grupo de Pesquisa em Enfermagem, Saúde Mental e Saúde Coletiva vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), disponível pelo endereço www.gruposaudemental.com/chat.

Critérios de Seleção

Concordar em participar do estudo, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e ter 18 anos de idade ou mais.

Coleta de Dados

Realizou-se a coleta de dados nos registros dos prontuários eletrônicos de usuários atendidos no chat, no período entre abril e outubro de 2020. Os registros incluíam dados sociodemográficos, o histórico da pessoa, as queixas referidas, a evolução do atendimento, a intervenção e o planejamento nos teleatendimentos. Os procedimentos metodológicos atenderam às diretrizes do COREQ (COnsolidated criteria for REporting Qualitative research). O checklist contemplou desde a fase de concepção do manuscrito até a apresentação dos resultados.

Participaram da ação de escuta terapêutica 26 profissionais, sendo 23 operadores no atendimento direto aos usuários do chat, dois na equipe técnica e três supervisores, sendo que dois destes também atuavam como operadores. A equipe era composta por enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais, sendo 24 mulheres e dois homens, que receberam capacitação prévia ao início dos atendimentos. No decorrer das atividades, houve supervisão semanal em pequenos grupos e oficinas temáticas de atualização da equipe. Para os atendimentos, foi prevista uma agenda semanal, na qual os profissionais atendiam voluntariamente em regime de plantões.

Análise e Tratamento dos Dados

Analisaram-se os dados qualitativos dos registros dos prontuários eletrônicos, a partir dos conceitos de biopoder, biopolítica e de governamentalidade de Michel Foucault.

Aspectos Éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, sob Parecer no 4.003.186 de 2020. Todos os participantes manifestaram concordância de participação através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os aspectos éticos foram resguardados de acordo com a Resolução 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde(1313. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012 [Internet]. Brasília; 2012 [cited 2021 Nov 11]. Available from: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//resolucao-cns-466-12.pdf
https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.in...
). A escuta terapêutica via chat atendeu às diretrizes da Resolução 634 de 2020 do COFEN, que dispõe sobre a autorização da teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia de COVID-19(1414. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN n. 634, de 3 de abril de 2020. Autoriza e normatiza, —ad referendum|| do Plenário do COFEN, a teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), mediante consultas, esclarecimentos, encaminhamentos e orientações com uso de meios tecnológicos, e dá outras providências [Internet]. Brasília; 2021 [cited 2021 Nov 11]. Available from em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-0634-2020_78344.html
http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-...
). Os registros encontram-se analisados neste artigo e identificados pela letra A de “atendimento” e o número de codificação (A1, A2…).

RESULTADOS

Analisaram-se nos prontuários eletrônicos os registros dos atendimentos realizados entre abril e outubro de 2020. Foram 81 pessoas atendidas, e o número de atendimentos por pessoa variou de 1 a 52. No entanto, predominou um atendimento para 56 pessoas, configurando-se uma escuta pontual; 22 pessoas foram atendidas entre 2 e 8 vezes; 3 pessoas demandaram um atendimento mais contínuo, entre 22 e 52 vezes. Os atendimentos, em sua maioria, (48) tiveram duração entre 31 e 60 minutos.

Governamentalidade na Pandemia de COVID-19 e a Produção de Implicações Psicossociais de Ansiedade e Medo

Esta temática traz relatos que apontam como a “arte de governar” no Brasil, produzindo instabilidades e incertezas que influenciaram na produção de ansiedade, medo da contaminação/morte/e não acesso ao tratamento, como mostram os registros que seguem.

Relaciona as crises de ansiedade ao atual cenário de pandemia, refere que está “assombrada com o vírus” e que qualquer sintoma, independentemente de ser sintoma gripal, a fazem desconfiar que possa ser a manifestação da COVID-19, além disso, lhe incomoda a incerteza sobre sua situação laboral mediante a pandemia. (A55)

Tenta se controlar ao máximo, mas a notícia de que há casos de COVID-19 em seu condomínio a desestabilizou, associa isso a outras coisas que estão ocorrendo em sua vida. Ressalta que estamos passando por um momento complicado, mas quando fica mais “perto da gente” parece que “pesa mais” (A59).

Relata preocupações relacionadas à pandemia, cumpre todos os protocolos, no entanto fica ansiosa quando o pai que trabalha retorna a casa onde residem, não encontra o namorado há mais de um mês porque o mesmo também trabalha, diz ter muito medo de perder alguém que ama. (A3)

Está preocupada que a cidade passou para bandeira vermelha, tem medo de adoecer e não ter leito, de contaminar os familiares. Apresenta sintomas de ansiedade e medo, reconhece os sintomas e procurou ajuda no chat. (A9)

Conta que às vezes dorme pouco, que é ansiosa, controladora e anda com medo de que algo possa acontecer com as pessoas que ama. (A33)

Está bem ansiosa. Tem medo de perder o emprego. Está muito mobilizada com a situação da pandemia, medo de sair na rua, ir na lotérica, no mercado e precisa sair diariamente para trabalhar. (…) relata apresentar a noite (1 a 2 vezes por semana), respiração curta, leve sudorese, por vezes tontura, hiperventilação. (A44)

Disciplinarizações e Sujeições na Pandemia de COVID-19: Subjetividades Marcadas Pela Tristeza e Angústia

Nesta temática, os dados demonstram como o controle disciplinar e a regulamentação biopolítica se combinam, e no Brasil, um país extremamente desigual, têm-se produzido sujeição e subjetividades marcadas pela angústia, sentimentos de desânimo e tristeza.

Diz que nos últimos 3-4 meses está sendo constante a dificuldade para realizar suas atividades e sair da cama, o que posteriormente gera culpa. Consegue identificar que o contexto da pandemia influenciou significativamente pela questão do distanciamento das pessoas. (A8)

Referiu sentimento de tristeza no dia, mas sem associar a nenhum evento desencadeante. Diz que não costuma sentir-se assim. (…) no contexto atual de intensa convivência tem procurado se afastar para evitar conflitos, fato que ela acredita deixar seu pai magoado. (A23)

Referiu estar sentindo-se afetada pelas notícias que acompanha diariamente em relação ao país e que isso influencia diretamente no seu humor e na vontade de se isolar. (…) estava com muita dificuldade para falar durante todo o atendimento, chorando muito devido à impossibilidade de visitar os pais em outra cidade. (A57)

Agora, com o isolamento social, os sintomas estão mais intensos, apresenta medo, falta de ar, pensamentos de que algo ruim pode acontecer e insônia, diz ainda que respeita o distanciamento, mas que ver outras pessoas desrespeitando traz uma sensação ruim. (A58)

DISCUSSÃO

Desde o seu surgimento, no final de 2019, em Wuhan, China, o novo coronavírus tem deixado um rastro de mortes e de infecções, acabando por produzir mudanças significativas nas formas de viver, uma vez que mais da metade da população mundial foi orientada ao distanciamento social, bem como à alteração de hábitos cotidianos, como higiene das mãos e higiene respiratória, a fim de diminuir a propagação do vírus SARS-CoV-2.

Entretanto, a humanidade já enfrentou outras pandemias, como a peste bubônica e a gripe espanhola, conforme descrito na obra O Nascimento da Clínica, nas quais, devido às características similares à atual pandemia da COVID-19, foram tomadas medidas semelhantes às atuais, como o distanciamento social, a quarentena ou o lockdown. Essas medidas demonstram a articulação entre o saber médico e as políticas públicas de saúde, que criaram uma estratégia biopolítica de gerenciamento da vida dos indivíduos que compõem uma população, que é da ordem do saber médico, organizacional e política de um Estado.

No atual contexto pandêmico, destaca-se uma estratégia biopolítica da medicina das epidemias, definida por um estatuto político da medicina e uma consciência médica a nível de Estado, que se encarrega da tarefa constante de informar, controlar e coagir, compreendendo objetos relativos à polícia, e a competência médica(1515. Foucault M. O nascimento da clínica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003.). O viver, neste contexto de risco psicossocial, no qual se convive com o medo da contaminação e morte e de sujeição à estratégia biopolítica vigente que alterou as relações sociais, tem produzido implicações.

Destaca-se aqui o entendimento de implicações psicossociais como o fenômeno relacionado com o modo com que os indivíduos experienciam essas condições sociais e coletivas de risco psicossocial decorrente da pandemia de COVID-19, a partir de efeitos negativos a nível psicológico, físico e social, expressando nas dimensões afetiva e comportamental na forma de estresse, esgotamento ou depressão.

Duas questões são um ponto de partida para analisar os registros dos prontuários dos atendimentos online realizados no período de pandemia de COVID-19. Na primeira, as implicações psicossociais não são consideradas como doenças, mas sim como efeitos esperados em uma situação de risco psicossocial. Na segunda, a análise que aqui se faz com base nos conceitos da analítica do poder em Foucault, propondo contextualizar as implicações psicossociais da pandemia de COVID-19 no atual cenário histórico, não tecer críticas ao funcionamento atual do controle disciplinar e biopolítica como tecnologias do poder. Entende-se, assim como Foucault, o poder como positivo, pois, no momento em que é imposto, passa a ser também construído pelos indivíduos, de forma celular e coletiva, transformando-se no decorrer dos acontecimentos históricos a partir de fatores que combinam movimentos externos e internos imprevisíveis que sujeitam, mas também subjetivam à medida que é assumido pelos dos envolvidos.

Governamentalidade na Pandemia de COVID-19 e a Produção de Implicações Psicossociais de Ansiedade e Medo

A investigação do sujeito não apenas submetido a práticas de coerção, mas conduzindo-se em práticas de liberdade, passou a ser o foco das análises de Foucault no campo das relações de poder, a partir de 1978, quando a noção de governamentalidade, ou de governo, passou a ocupar um lugar central na pesquisa de Foucault, sendo condutora de certa virada no seu posicionamento teórico e político, que colocou o sujeito, a verdade e a constituição das experiências de si e dos outros(1616. Foucault M. Subjetividade e verdade. 1ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016.).

É nesta perspectiva conceitual de governo, em uma acepção ampliada, que são designadas tanto as estruturas políticas e de gestão do Estado quanto o modo de conduzir a conduta de indivíduos e grupos. Foucault menciona a subjetividade não apenas como submetimento, mas como um modo de contraconduta ao poder, cuja ação possibilita a resistência ou uma busca de “como se tornar sujeito sem ser sujeitado”(1717. Foucault M. Segurança, território, população. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

No curso de 1981, Subjetividade e Verdade aponta um novo sentido da relação conosco para além da nossa própria individualidade, uma vez que somos constituídos das relações que temos com outros, pois as práticas de si são práticas sociais e nas relações de poder permanece a coexistência conjunta, desde a antiguidade à modernidade, de práticas de sujeição e práticas de si(1616. Foucault M. Subjetividade e verdade. 1ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016.). A partir deste novo sentido, destaca-se a relevância de analisar as implicações psicossociais da pandemia de COVID-19, que são vivenciadas de forma subjetiva, mas inseridos nos acontecimentos coletivos e sociais. A primeira questão identificada nos registros dos prontuários eletrônicos demonstrou que os sujeitos estão experenciando ansiedade que decorre do medo da contaminação pelo coronavírus, medo relacionado à dificuldade de acesso aos serviços de saúde e medo em relação à situação de trabalho e renda.

Esses aspectos, apontados pelos sujeitos atendidos no chat, estão intimamente influenciados pela gestão da pandemia no Brasil. Analisar essa gestão, pela perspectiva da governamentalidade foucaultiana, aponta para um (des)governo, ou seja, ausência de ações baseadas em princípios, táticas, cálculos e saberes específicos que possibilitariam ao Estado brasileiro governar a pandemia de COVID-19 de maneira racional e refletida.

O vírus SARS-CoV-2 trouxe a ameaça da morte, tornando a pandemia uma condição de possibilidade para a adoção de medidas de preservação da vida da população mundial. Diferente do exercício do poder soberano, que dispunha do direito de vida e de morte sobre os súditos e operava pelo fazer morrer e pelo deixar viver, o funcionamento do biopoder é uma forma de governar a vida, convertendo o poder de morte em um poder que se exerce positivamente sobre a vida, interferindo em sua gestão, na sua majoração e em sua multiplicação a partir de controles precisos e de regulações de conjunto(1818. Foucault M. História da Sexualidade Vol. 1: A vontade de Saber. 1ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 2012.).

Este movimento em favor da vida levou o poder político a assumir a tarefa de gerir a vida das pessoas por meio da disciplina e da biopolítica, ou seja, o biopoder se constitui a partir de dois polos que são as disciplinas do corpo (poder disciplinar) e as regulações da população (biopolítica). É uma “tecnologia de duas faces – anatômica e biológica –, individualmente e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida, caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima para baixo”(1818. Foucault M. História da Sexualidade Vol. 1: A vontade de Saber. 1ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 2012.).

O biopoder, em suas tecnologias disciplinar e biopolítica, que opera no mundo pandêmico da COVID-19, é exercido em um contexto distinto e inédito, uma vez que esta pandemia se diferencia das demais enfrentas pela humanidade em, pelo menos, duas questões. Primeiro, em relação à morte enquanto ritual privado e individual, antes da pandemia, torna-se coletiva a partir de sucessivos rituais fúnebres de alcance global sem, no entanto, a presença física dos entes familiares, impondo o sentido coletivo da morte sobre o luto particular. Com a contagem diária dos mortos, a pandemia fez com que a morte dominasse inteiramente a vida(1919. Han BC. Sociedade Paliativa. Petrópolis: Vozes; 2021.). Segunda questão que atravessa o contexto pandêmico e o torna singular é a conectividade em rede, ou seja, a tecnologia da informação e comunicação que conecta os indivíduos e os colocam diante dos acontecimentos em tempo muitas vezes real, como a falta de leitos hospitalares mundo afora, além das centenas de mortes diárias sejam vivenciadas coletivamente, alterando a forma de lidar com as perdas e o próprio luto(2020. Pinto SCL. As tecnologias de poder no diagnóstico da pandemia da COVID-19. LOGEION: Filosofia da Informação. 2020;7(1):49-61. DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2020v7n1.p49-61
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). Percebe-se que as pessoas atendidas no chat, ao vivenciarem esse contexto, que conecta tragédias individuais e coletivas, têm apresentado ansiedade decorrente do medo, da contaminação/morte, da dificuldade de acesso aos serviços de saúde, da perda de familiares e perda da renda.

No Brasil, além das questões das mudanças em relação à morte/luto e da conectividade em rede, que faz com que as dificuldades sejam vivenciadas em tempo real por toda a população mundial, o período de emergência tem sido marcado pela dificuldade de articulação entre diversos atores sociais e concorrente competência entre os entes federados em matéria de saúde coletiva. A “arte de governar”, marcada pela ausência de uma diretriz do governo central e pela alternância nos principais cargos de gestão no Ministério da Saúde, implicou uma “baixa performatividade de governança e na inexpressiva capacidade de articulação entre as demais esferas”(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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).

Essa desarticulação do Ministério da Saúde culminou na “dificuldade de produzir orientações sanitárias confiáveis, a falta de recursos e o certo atraso em disseminar informações no território nacional”, além da operação sob a égide de um desregramento vertical com manifestações “em desacordo com os protocolos estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde” e da estratégia do baixo número de testagens, o que dificultou e dificulta a estimativa real da pandemia(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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).

Esse contexto de instabilidade e incertezas, em meio a uma pandemia de dimensões catastróficas, que produziu o colapso do sistema hospitalar ao redor do mundo devido à alta transmissibilidade da doença e necessidade de internação e suporte de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para parte dos infectados(2222. Schuchmann AZ, Schnorrenberger BL, Chiquetti ME, Gaiki RS, Raimann BW, Maeyama MA. Isolamento social vertical X Isolamento social horizontal: os dilemas sanitários e sociais no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Brazilian Journal of Health Review. 2020;3(2):3556-76. DOI: https://doi.org/10.34119/bjhrv3n2-185
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), influencia diretamente na produção do medo da contaminação/morte/e não acesso ao tratamento, relatado pelas pessoas que foram atendidas no chat. A tensão atinge grande parte da população, estejam infectados ou não, e o medo intensifica os níveis de estresse e ansiedade em pessoas saudáveis(2323. Pereira MD, Oliveira LC, Costa CFT, Bezerra CMO, Pereira MD, Santos CKA, et al. A pandemia de COVID-19, o isolamento social, consequências na saúde mental e estratégias de enfrentamento: uma revisão integrativa. Research, Society and Development. 2020;9(7):1-31. DOI: https://doi.org/10.33448/rsd-v9i7.4548
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). Entretanto, sabe-se que as pessoas reagem às adversidades de formas singulares, sendo as reações influenciadas por fatores, como a natureza e a severidade do evento a qual foi exposta, e o quão vulnerável a pessoa se encontra no momento. É importante destacar que não necessariamente esta reação se definirá como doença, pois a maioria será uma reação normal a uma situação atípica(2424. Fundação Oswaldo Cruz. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19: Recomendações gerais [Internet]. Rio de Janeiro; 2020 [cited 2021 Nov 11]. Available from: https://portal.fiocruz.br/documento/saude-mental-e-atencao-psicossocial-na-pandemia-covid-19-recomendacoes-para-gestores
https://portal.fiocruz.br/documento/saud...
).

As consequências da pandemia vão muito além da mortalidade ou possíveis efeitos posteriores da doença e implicações no sistema de saúde como um todo, afetam também a economia, as relações sociais e o meio ambiente. Os impactos econômicos têm estrita relação com medo da perda do emprego e renda, relatados nos excertos apresentados, sendo decorrentes das medidas de distanciamento social, quarentena e lockdown associadas à pandemia.

Isolamento e quarentena são dois termos frequentemente utilizados com o mesmo significado, porém possuem aplicabilidade em situações distintas. O isolamento consiste na separação de pessoas contaminadas das não contaminadas, e a quarentena é a restrição de atividades ou a separação de pessoas que não apresentam a doença, mas podem ter sido expostas ao agente infeccioso, com o objetivo de monitorar e detectar precocemente a doença. A eficácia do isolamento diminui devido à transmissão ser possível antes do período sintomático e da dificuldade em isolar e rastrear casos e os contatos. A quarentena, que também depende da detecção de casos e rastreamento dos contatos, tem boa eficácia quando realizada em curto prazo e de maneira rápida(2222. Schuchmann AZ, Schnorrenberger BL, Chiquetti ME, Gaiki RS, Raimann BW, Maeyama MA. Isolamento social vertical X Isolamento social horizontal: os dilemas sanitários e sociais no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Brazilian Journal of Health Review. 2020;3(2):3556-76. DOI: https://doi.org/10.34119/bjhrv3n2-185
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).

Em um cenário no qual não é mais possível identificar os infectados e seus contatos, as medidas de contenção comunitária são necessárias para retardar a propagação da doença. Esse é um tipo de intervenção com o intuito de reduzir interações e movimentos entre as pessoas, exceto por uma interação mínima, a fim de garantir suprimentos básicos. Envolve desde medidas de distanciamento social (fechamento de escolas e cancelamento de eventos públicos) até o bloqueio completo de atividades de uma cidade (lockdown). O controle comunitário pode ocorrer a partir da estratégia de supressão (isolamento social horizontal) ou estratégia de mitigação (isolamento social vertical)(2222. Schuchmann AZ, Schnorrenberger BL, Chiquetti ME, Gaiki RS, Raimann BW, Maeyama MA. Isolamento social vertical X Isolamento social horizontal: os dilemas sanitários e sociais no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Brazilian Journal of Health Review. 2020;3(2):3556-76. DOI: https://doi.org/10.34119/bjhrv3n2-185
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).

Em relação ao isolamento, houve no Brasil um desencontro de informações entre o Ministério da Saúde e a Presidência da República, produzindo um cotidiano discursivo de tensão. O Ministério, seguindo recomendações da OMS, recomendou o isolamento social amplo de todos os brasileiros, a fim de que a transmissão da doença fosse distribuída ao longo de um tempo maior e, assim, fosse garantida a retaguarda hospitalar para todos que necessitarem. Já a Presidência da República afirmou que o isolamento deveria ser realizado apenas por pessoas infectadas e aquelas que se encontram em grupos de risco, com o argumento de que o isolamento horizontal produziria uma crise econômica, com o aumento do desemprego e da miséria. Entretanto, sabe-se que o isolamento vertical não é eficaz na proteção de pessoas com risco de desenvolver doença grave e morte, já que, mesmo com a restrição da circulação desses grupos de risco, ainda assim poderão ter contato no ambiente domiciliar com indivíduos que saem de casa e, portanto, estão mais expostos ao vírus(2222. Schuchmann AZ, Schnorrenberger BL, Chiquetti ME, Gaiki RS, Raimann BW, Maeyama MA. Isolamento social vertical X Isolamento social horizontal: os dilemas sanitários e sociais no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Brazilian Journal of Health Review. 2020;3(2):3556-76. DOI: https://doi.org/10.34119/bjhrv3n2-185
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).

As medidas do isolamento horizontal parecem ser algo fora do tempo, tendo em vista o avanço científico, o progresso das tecnologias da informação e a comunicação. No entanto, a pandemia de COVID-19 revela que essas medidas, utilizadas em pandemias passadas, são as únicas eficazes para seu controle. Deste modo, é possível estabelecer uma relação entre a COVID-19 e a peste declarada no final do século XVII, e que foi descrito no livro Vigiar e Punir (77. Foucault M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes; 2012.). No livro, são descritos esquemas disciplinares suscitados pela peste, que consistiam no policiamento espacial estrito (suspensão da circulação (que só ocorrerá quando estritamente necessário e por turnos), separações múltiplas e distribuições individualizantes), inspeção constante e vigilância permanente, determinando uma intensificação e ramificação de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide, atravessando a cidade pela hierarquia, vigilância, pelo olhar e pela documentação.

A biopolítica exercida no cenário brasileiro, marcado pela falta de políticas concretas que garantissem as medidas de isolamento horizontal, produziu a precarização das vidas e fez com que os brasileiros vivessem o dilema do medo da exposição ao vírus e da necessidade de trabalhar, fato relatado por pessoas atendidas no chat. A produção desse “homem econômico” na contemporaneidade tem potencializado “a governamentalidade das vidas sob a égide de um Estado ausente e incapaz de distribuir riquezas e minimizar as desigualdades”(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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).

Disciplinarizações e Sujeições na Pandemia de COVID-19: Subjetividades Marcadas Pela Tristeza e Angústia

Observa-se que a pandemia da COVID-19 se coloca como um feixe no qual os mecanismos da tecnologia de poder se fazem presentes, na medida em que o controle disciplinar e a regulamentação biopolítica se combinam. No Brasil, um país extremamente desigual, essa combinação tem produzido sujeição e subjetividades marcadas por efeitos de verdade que colocam sobre a população a responsabilidade em atravessar este período de emergência sanitária. Isso tem produzido sofrimento e angústia, uma vez que os sujeitos se veem sozinhos enfrentando todas as crises decorrentes da pandemia, tais como crise sanitária (aumento no número de mortes e colapso do sistema de saúde), crise econômica (desemprego, aumento do custo de vida) e crise social (relações sociais afetadas).

No enfrentamento dessas crises de forma individual, principalmente a crise social, na qual as relações sociais foram afetadas pela pandemia e pelas medidas de distanciamento social, relações de trabalho foram modificadas, relações de amizade foram rompidas ou tiveram interações diminuídas e convivências familiares foram intensificadas (entre moradores de uma mesma casa) ou impossibilitadas (em caso de familiares no grupo de risco). Além disso, a própria relação consigo mesmo foi modificada, uma vez que o sujeito se encontra colocado frente a si próprio, com maior espaço para reflexão no cotidiano, e maior encontro com seus medos e fragilidades, tendo a perspectiva de morte e adoecimento, proeminentemente presente. Essas mudanças na forma de se relacionar consigo e com os outros, segundo relatado pelos sujeitos atendidos no chat, produziu sentimentos de desânimo, tristeza e diminuição da energia.

A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 aponta certa indistinção no funcionamento do poder disciplinar e biopoder, uma vez que a proteção da vida individual e da vida coletiva se funde de um modo simultâneo, embaçando a dicotomia que predomina no ocidente entre interesses individuais e coletivos. Assim, uma atitude individual afeta o outro e o coletivo, justificando o governo as ações individuais com base no poder disciplinar, pois têm relevância na regulamentação biopolítica das populações em nível global(2020. Pinto SCL. As tecnologias de poder no diagnóstico da pandemia da COVID-19. LOGEION: Filosofia da Informação. 2020;7(1):49-61. DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2020v7n1.p49-61
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).

Porém, na governamentalidade do Estado brasileiro, a ciência estatística, ferramenta base para entender as estratégias de regulação do biopoder, aponta, a partir de dados epidemiológicos, os impactantes números do coronavírus no Brasil e revelam a ineficácia da gestão da saúde pelo governo central(2020. Pinto SCL. As tecnologias de poder no diagnóstico da pandemia da COVID-19. LOGEION: Filosofia da Informação. 2020;7(1):49-61. DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2020v7n1.p49-61
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). Vivencia-se, portanto, um cotidiano discursivo marcado pela tensão entre declarações públicas dos governantes e estudos científicos. A todo momento, há a disputa entre os discursos, em favor do isolamento social, em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da ciência. Os que noticiam dados falsos defendem o desmonte das políticas públicas, “o descrédito na ciência e um aceno ao histerismo profético”(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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).

O discurso produz “verdades”, e, por ser objeto de apropriação e manipulação, acaba assumindo grandes dimensões em tempos de redes sociais, pois passa a determinar e articular a produção de novos discursos, novas verdades que chegam até os sujeitos e produzem efeitos que afetam sua subjetividade. O importante nessa questão da verdade é que certas coisas passam efetivamente por verdadeiras e que o sujeito deve ou produzi-las pessoalmente, aceitá-las ou submeter-se a elas. Portanto, o que esteve e estará em questão é a verdade como vínculo, como obrigação, como política, e não a verdade como conteúdo ou estrutura formal do conhecimento(1515. Foucault M. O nascimento da clínica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003.).

O modo como as subjetividades e as experiências de si se constituem a partir das obrigações da verdade demonstra como o governo opera sobre a subjetividade, tornando-a calculável, possibilitando, assim, uma técnica autorregulatória de cunho preponderantemente psicológico capaz de mapear todos os nossos “eus privados”(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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).

Costuma-se pensar o poder como algo fora do sujeito, que o pressiona e o submete a uma ordem. Porém, a partir de Foucault, passou-se a entender o poder como algo positivo que produz o sujeito com seus desejos e em suas condições de existência, ou seja, o poder não é apenas aquilo que devemos resistir ou nos opor, mas também aquilo que abrigamos e que dependemos para existir(2525. Butler J. A vida psíquica do poder: teorias de sujeição. Belo Horizonte: Autêntica; 2020.).

Vivencia-se a sociedade paliativa, que coincide com a sociedade do desempenho neoliberal, na qual negatividades como proibições e punições (típica das sociedades disciplinares) são substituídas por positividades como motivação, auto-otimização ou autorrealização. “Seja feliz é a nova fórmula da dominação”, que se exerce sem nenhum esforço, pois o submetido se supõe livre e não tem consciência de sua submissão. “A liberdade não é reprimida, mas explorada”(1919. Han BC. Sociedade Paliativa. Petrópolis: Vozes; 2021.).

No contexto de pandemia, os sujeitos são chamados ao exercício da “liberdade de escolha”, como não se isolar, não se vacinar, não usar máscaras, enfim, discursos que trabalham para afetar subjetivamente os sujeitos sociais. Nessa lógica, a mensagem expressa pela gestão do governo brasileiro deixa de se colocar como um Estado de proteção para atuar como um Estado predador, ou seja, que joga com a perspectiva da morte possível de parte da população. No pronunciamento da frase “Alguns vão morrer”, expressa pelo chefe de Estado brasileiro, fica evidente a gestão necropolítica(2626. Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições; 2018.) do Estado durante a pandemia de COVID-19, que impõe diferentes ações em relação a determinados grupos, como exposição forçada dos mais vulneráveis, ditando a distribuição diferencial do direito à vida, marcado, entre outros aspectos, pelo interesse do capital.

Deste modo, ancorados nas teorizações foucaultianas, reconhece-se que existe uma fabricação da vida, uma fabricação de sujeitos “capazes de suportar os encargos da liberdade nas formas de vida ocidentais contemporâneas”(2121. Dias RD. Governamentalidade, Biopolítica e Vida Precária: a pandemia de COVID-19 no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. 2020;15(2):e43634. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369443634
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). Sujeitos “psi” foram fabricados por uma psicologia positiva que se ocupa com a felicidade, o bem-estar e o otimismo, que se submetem à lógica do desempenho neoliberal. O dispositivo da felicidade individualiza o ser humano, deprimindo-o, uma vez que coloca o sofrimento, pelo qual a sociedade seria responsável, como algo privatizado, psicologizado e decorrente do fracasso individual, além de produzir a despolitização e a dessolidarização da sociedade(2727. Han BC. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes; 2020.).

A sociedade disciplinar é da ordem da negatividade, que produz loucos e delinquentes, diferente da sociedade do desempenho, que “produz depressivos e fracassados”, sendo a depressão o adoecimento de uma sociedade que sofre o excesso de positividade, de trabalho e desempenho que culmina numa auto exploração(2727. Han BC. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes; 2020.). Esse sentimento de fracasso, sensação de não dar conta das tarefas ou de não alcançar um bom desempenho na realização das atividades diárias gera culpa e produz sofrimentos, conforme percebem-se nos relatos das pessoas atendidas no chat.

Limitações do Estudo e os Avanços Para a Área da Enfermagem/Saúde

Como limites do estudo, ressalta-se que, por se tratar de um tema muito atual e ainda em curso, não existem estudos robustos que permitam comparações e contrapontos. Como avanços para a área da saúde e da enfermagem, a principal contribuição é a possibilidade de analisar, a partir dos conceitos foucaultianos, o sofrimento e as implicações psicossociais em uma perspectiva social, coletiva e política. A criação do chat de escuta terapêutica vinculado à Faculdade de Enfermagem garantiu o compromisso social no momento de pandemia.

CONCLUSÃO

A análise dos prontuários eletrônicos dos atendimentos online, a partir dos conceitos foucaultianos, permitiu uma leitura do contexto pandêmico e como este tem afetado os sujeitos a atravessarem o cotidiano, no qual se desenrolaram as experiências familiares, sociais e de trabalho neste período de pandemia e de distanciamento social. Implicações psicossociais, como medo da contaminação pelo coronavírus e da perda do trabalho e renda, a ansiedade, tristeza e a angústia em relação às expectativas de futuro estão intimamente marcadas pelo exercício de uma governamentalidade e uma biopolítica que demonstram uma total desvalorização da vida por parte do Estado brasileiro. Além da negação da gravidade e letalidade do vírus, a ausência de medidas concretas para a garantia do isolamento e da renda necessária a uma vida digna produziu a precarização das vidas. Os processos excludentes que se vive no país, que é extremamente desigual, foram aprofundados com a pandemia. Ao invés de priorizar o coletivo sobre as individualidades, uma vez que a saúde de um sujeito interfere na saúde do outro e da coletividade, os brasileiros foram abandonados à própria sorte em uma cortina de fumaça que coloca todo o desrespeito com a vida e incompetência política como respeito às liberdades individuais.

EDITOR ASSOCIADO

Divane de Vargas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    27 Jan 2022
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