Além da classificação do paciente: a face “oculta” da carga de trabalho da enfermagem

RESUMO

Ensaio teórico-reflexivo, que objetivou refletir acerca da centralização dos Sistemas de Classificação de Pacientes na aferição da carga de trabalho e dimensionamento de pessoal de enfermagem hospitalar. As interpretações reflexivas foram norteadas por dois eixos: Sistemas de Classificação de Pacientes: constituição e utilidades; e Atividades de enfermagem “ocultas” na aferição da carga de trabalho. O primeiro evidencia a importância e o protagonismo desses instrumentos na identificação da carga de trabalho e no dimensionamento de pessoal de enfermagem hospitalar, exemplificando-se diversas possibilidades a serem utilizadas pelos enfermeiros. Em contrapartida, com o segundo eixo, percebe-se que existem muitas atividades de enfermagem que não são sensíveis à aplicação (mesmo que sistemática) destes meios de avaliação do paciente. Logo, a mensuração da carga de trabalho da enfermagem pode ser subestimada. Inferiu-se que a complexidade dos ambientes de prática requer um olhar macro e micro institucional à aferição da carga de trabalho da enfermagem, especialmente quando considerada para fins de planejamento/dimensionamento da força de trabalho.

DESCRITORES
Carga de Trabalho; Dimensionamento de Pessoal; Avaliação em Enfermagem; Recursos Humanos de Enfermagem no Hospital; Gestão Hospitalar

ABSTRACT

This is a theoretical-reflective essay, which aimed to reflect on the centralization of Patient Classification Systems in workload and hospital nursing staff sizing. The reflexive interpretations were guided by two axes: Patient Classification Systems : constitution and utilities; and “Hidden” nursing activities in workload measurement. The first evidences the importance and the role of these instruments in workload identification and in hospital nursing staff sizing, exemplifying several possibilities to be used by nurses. On the other hand, with the second axis, it is clear that there are many nursing activities that are not sensitive to the application (even if systematic) of these means of patient assessment. Therefore, nursing workload measurement may be underestimated. It was inferred that the complexity of practice environments requires a macro and micro institutional look at the nursing workload measurement, especially when considered for workforce planning/sizing purposes.

DESCRIPTORS
Workload; Personnel Downsizing; Nursing Assessment; Nursing Staff, Hospital; Hospital Administration

RESUMEN

Ensayo teórico-reflexivo, que tuvo como objetivo reflexionar sobre la centralización de los Sistemas de Clasificación de Pacientes en la evaluación de la carga de trabajo y dimensionamiento del personal de enfermería hospitalario. Las interpretaciones reflexivas fueron guiadas por dos ejes: Sistemas de Clasificación de Pacientes: constitución y utilidades; y Actividades de enfermería “ocultas” en la medición de la carga de trabajo. El primero evidencia la importancia y el papel de estos instrumentos en la identificación de la carga de trabajo y en el dimensionamiento del personal de enfermería hospitalario, ejemplificando varias posibilidades para ser utilizados por los enfermeros. Por otro lado, con el segundo eje, es claro que hay muchas actividades de enfermería que no son sensibles a la aplicación (aunque sistemática) de estos medios de evaluación del paciente. Por lo tanto, la medición de la carga de trabajo de enfermería puede estar subestimada. Se infirió que la complejidad de los ambientes de práctica exige una mirada macro y micro institucional en la medición de la carga de trabajo de enfermería, especialmente cuando se considera para fines de planificación/dimensionamiento de la fuerza de trabajo.

DESCRIPTORES
Carga de Trabajo; Reducción de Personal; Evaluación en Enfermería; Personal de Enfermería en Hospital; Administración Hospitalaria

INTRODUÇÃO

A dinâmica hospitalar impõe à equipe de enfermagem algumas características peculiares da organização e gestão do trabalho, incluindo a divisão de turnos interligados, a assistência ininterrupta e a alocação de pessoal, em conformidade com as demandas dos pacientes internados e necessidades dos múltiplos setores do hospital. Na organização do trabalho, é comum – e necessário – que enfermeiros utilizem meios e instrumentos de distribuição e gerenciamento de tarefas à equipe liderada, no intuito de viabilizar o cuidado integral, qualificado e seguro(¹).

Tem-se percebido que a complexidade assistencial dos usuários dos hospitais é exponencial, tanto pelo avanço e sofisticação das intervenções diagnóstico-terapêuticas, quanto pela própria transição demográfica e epidemiológica da população, com enfoque no envelhecimento e alta incidência de doenças crônicas, além da elevação dos agravos por causas externas(²). As atividades da equipe de enfermagem também acompanham essa crescente complexidade, ao passo que constantemente são somadas atribuições para o atendimento da alta demanda assistencial, evidenciando a carga de trabalho da enfermagem (CTE) como uma grande questão na arena de debates da gestão dos serviços de saúde em diferentes cenários socioeconômicos(³–⁶).

O conceito de carga de trabalho na área de enfermagem é complexo, dinâmico e até mesmo polissêmico. Um estudo(⁵) de análise conceitual conduzido por pesquisador sediado na Califórnia, Estados Unidos da América, apreendeu que ela estaria relacionada a cinco elementos: tempo de enfermagem; nível de competência profissional; peso/impacto do atendimento direto ao paciente; quantidade de esforço físico demandado; e complexidade de cuidados da clientela. Desta forma, a CTE foi definida como a quantidade de tempo e cuidados que um trabalhador de enfermagem pode dedicar (direta e indiretamente) aos pacientes, ao local de trabalho e ao desenvolvimento profissional(⁵).

Imbuída no conceito carga de trabalho, a variável tempo é central nos pressupostos relacionados à previsão de pessoal de enfermagem(⁶). Em unidades hospitalares, a aferição do tempo de cuidados diretos e indiretos pode ser realizada por Sistemas de Classificação de Pacientes (SCP), uma vez que, determinando-se uma categoria/nível de dependência de cuidados por meio desses instrumentos, é possível estimar o tempo de enfermagem previsto, por paciente, em 24 horas(¹,⁷,⁸). Os SCP correspondem a um meio sistemático de avaliar o paciente sob alguns aspectos/áreas de interesse ao cuidado e ao trabalho de enfermagem, atribuindo um julgamento do enfermeiro sobre cada um deles e, consequentemente, enquadrando o paciente em determinada gradação de complexidade.

Ao estimar o tempo de cuidados de enfermagem, os SCP tornam-se ferramenta protagonista nos processos de dimensionamento de pessoal no âmbito hospitalar(⁶). Além disso, viabiliza o planejamento do cuidado diário direto, contribuindo com a estimativa e gestão de custos. Em contraponto, existem atividades que demandam tempo de enfermagem e que ultrapassam a sensibilidade da avaliação dos SCP; logo, merecem ser consideradas no processo de planejamento da força de trabalho, ainda que isso não seja verificado na prática(⁹).

Considerando a ambivalência positiva/negativa que a (in)adequação de pessoal de enfermagem possui sobre resultados de qualidade e segurança no cuidado ao paciente(³,⁴), que o uso de SCP é um meio consolidado no processo de dimensionamento de pessoal de enfermagem hospitalar e que há necessidade de maiores discussões a respeito das atividades de enfermagem consideradas neste processo, este estudo objetivou refletir acerca da centralização dos SCP na aferição da carga de trabalho e dimensionamento de pessoal de enfermagem hospitalar.

MÉTODO

Ensaio teórico-reflexivo. Foi desenvolvido por pesquisadores interessados às temáticas carga de trabalho e dimensionamento de pessoal de enfermagem, sediados nos estados brasileiros do Rio Grande do Sul e São Paulo.

A reflexão foi guiada por subsídio técnico-científico nacional e internacional a respeito de SCP, elementos para mensuração da carga de trabalho de enfermagem e dimensionamento de pessoal, além da experiência autoral, os quais são devidamente expostos ao longo do texto atrelados à reflexão proposta. Para fins de organização, a reflexão foi norteada por dois eixos, os quais contemplam as inferências interpretativas e estão descritos a seguir.

Sistemas de Classificação de Pacientes: Constituição e Utilidades

Os primeiros estudos sobre SCP surgiram há mais de 40 anos e, desde então, os instrumentos foram aprimorados, e a sua utilização na prática do enfermeiro tem se consolidado(⁷,⁸,¹⁰). Por revelar as necessidades do paciente em relação aos cuidados de enfermagem, esta ferramenta tem auxiliado na gestão da carga de trabalho no sentido de equilibrar recursos disponíveis e demandas clínicas e, ainda, apoiar o planejamento da força de trabalho(¹⁰), inclusive referido como o elemento basilar neste processo(⁶).

No Reino Unido, dilemas relacionados à contenção de custos, escassez de pessoal de enfermagem e variabilidade na ocupação das unidades hospitalares impulsionaram a proposição de um modelo flexível de alocação de profissionais norteado, sobretudo pela classificação de pacientes(¹¹). Recomenda-se, nessa proposta, um quadro de pessoal efetivo para atender até 90% do tempo requerido pelos pacientes, ajustado por uma equipe flutuante com competência compatível às demandas de cuidado e/ou contratações temporárias, quando necessário(¹¹), perfazendo fatores determinantes no custo-efetividade da produção do trabalho e na qualidade da assistência.

Além de contribuir para a tomada de decisão nos níveis setorial e institucional, considerando o julgamento clínico do enfermeiro realizado à beira leito, os SCP podem ser utilizados para estabelecer prioridades de atendimento aos pacientes e prover intervenções, constituindo instrumento importante para o processo de enfermagem(¹,¹²), ou seja, o gerenciamento do cuidado.

É importante ressaltar que, em consonância com as melhores práticas, a escolha por instrumentos válidos e confiáveis gera maior segurança sobre os resultados obtidos(¹,¹⁰). A validade e a confiabilidade de SCP são importantes para extrair precisamente àquilo que se pretende avaliar, mas, também, porque os resultados dessa avaliação repercutem em uma projeção concreta de capital humano para a produção assistencial, além de fundamentar o planejamento do cuidado direto. Em claras palavras, SCP imprecisos, incompletos e/ou inválidos podem não só determinar equivocamente em número e qualificação o quadro de trabalhadores de enfermagem, mas também podem não contribuir de fato para a gerência do cuidado pelo enfermeiro à beira leito. Assim, postula-se a necessidade de um olhar mais ampliado e cientificamente bem fundamentado sobre os SCP, que é de domínio do enfermeiro e o respalda tanto na gestão do cuidado, a partir da avaliação/detecção de demandas do paciente, quanto na distribuição racional da força de trabalho.

Se empregados de forma sistemática, além das dimensões profissional (aferição da CTE e dimensionamento/distribuição de pessoal) e assistencial (identificação de necessidades e priorização dos cuidados), os SCP podem auxiliar as lideranças na previsão de investimentos estruturais, tecnológicos, educacionais e na prática interprofissional. Isso quer dizer que o reconhecimento da complexidade de pacientes assistidos em cada setor pode ser um parâmetro para o (re)planejamento orçamentário de equipamentos/materiais e tecnologias, além do quantitativo de pessoal.

O desenvolvimento da equipe também pode ser (re)organizado mediante mudança no perfil do nível de dependência dos pacientes atendidos e/ou verificação de áreas de cuidados mais representativas. Na prática, por exemplo, se a área de avaliação de SCP relacionada à mobilidade e deambulação for muito representativa, pode-se repensar, por conseguinte, a integração de outros profissionais à força de trabalho da unidade (como o fisioterapeuta, por exemplo), emergindo como proposta de articulação das ações e colaboração na atenção à saúde.

No âmbito nacional, o Conselho Federal de Enfermagem(¹²) estabelece parâmetros mínimos para o dimensionamento de pessoal nas unidades de internação (UI), dentre outras. Todos os requisitos (horas de enfermagem/paciente nas 24 horas, proporção de profissionais/paciente e distribuição percentual do total de profissionais em categorias) estão relacionados ao nível de dependência de cuidados definido por SCP. Essa resolução indica de forma explícita SCP para clientela UI adulta(¹,⁷) e pediátrica(⁸), além de relacionada à saúde mental(¹³).

Os SCP desenvolvidos no Brasil são compostos por indicadores críticos/áreas de cuidados e graduados, de forma crescente, quanto à complexidade assistencial e/ou nível de dependência do paciente. Na prática, podem ser entendidos como escalas; portanto, a somatória dos pontos dos indicadores/áreas permite classificar o paciente em categorias ou estratos/níveis de complexidade(¹,⁷,⁸,¹⁴–¹⁶).

O instrumento de classificação de pacientes de Fugulin(⁷) foi desenvolvido em 1994, e, após modificações, passou a ser constituído por nove áreas de cuidados (estado mental, oxigenação, sinais vitais, motilidade, deambulação, alimentação, cuidado corporal, eliminação e terapêutica), graduadas de 1 a 4 pontos. O escore final categoriza os pacientes em: cuidados mínimos – de 9 a 14 pontos; cuidados intermediários – de 15 a 20 pontos; cuidados alta dependência – de 21 a 26 pontos; cuidados semi-intensivos – de 27 a 31 pontos; cuidados intensivos – acima de 31 pontos. Interessa destacar que essa categorização é a que consta na normativa brasileira vigente sobre o dimensionamento de pessoal de enfermagem, quando se trata do dimensionamento de pessoal mediado por SCP(¹²).

O SCP elaborado e validado por Perroca foi reformulado, e sua nova versão teve suas propriedades psicométricas testadas(¹). Nele, a opinião de enfermeiros sobre a sua utilização e atividades relativas à gestão do cuidado foram incorporadas e representadas em nove áreas de cuidados: planejamento e coordenação do processo de assistência; investigação e monitoramento; higiene pessoal e eliminações; integridade da pele; nutrição e hidratação; locomoção ou atividade; terapêutica, emocional; apoio e suporte; e educação para a saúde. O paciente deverá ser pontuado (1 a 4) em cada área e, ao final, será classificado dentre as categorias: cuidados mínimos (9 a 12); cuidados intermediários (13 a 18); cuidados semi-intensivos (19 a 24); e cuidados intensivos (25 a 36 pontos)(¹).

No gerenciamento do cuidado pediátrico(⁸), o Instrumento de Classificação de Pacientes Pediátricos (ICPP) agrupa áreas de cuidados por domínios: família (participação do acompanhante e rede de apoio e suporte familiar); paciente (atividade, oxigenação, mobilidade e deambulação, alimentação e hidratação, eliminações e higiene e cuidado corporal); e procedimentos terapêuticos (intervalo de aferição e controles, terapêutica medicamentosa e integridade cutâneo-mucosa). As graduações em cada item de avaliação também variam de 1 a 4 pontos, dispondo de cinco categorias: cuidados mínimos (11–17); cuidados intermediários (18–23); cuidados alta dependência (24–30); cuidados semi-intensivos (31–36); e cuidados intensivos (37–44).

Além dos SCP mencionados, estudos nacionais recentes mencionam outros para unidades especializadas, como neonatologia(¹⁴), alojamento conjunto (maternidade)(¹⁵), além de uma atualização(¹⁶) do SCP citado na normativa vigente como aquele recomendado para clientela psiquiátrica(¹³). Acredita-se que esse movimento de expansão, atualização e pluralidade dos SCP é natural, esperado e salutar, até mesmo porque os espaços de prática de enfermagem são inegavelmente múltiplos e, portanto, as necessidades de avaliação da clientela e da CTE são igualmente diversas. Todavia, isso não contrapõe a necessidade do cumprimento rigoroso no atendimento aos pressupostos de validade e confiabilidade já problematizados na definição estratégica de SCP e/ou outro meio de aferição da CTE.

Para além da realidade brasileira, existem instrumentos utilizados em outros países, como Finlândia, Noruega e Canadá(¹⁷–¹⁹), como sistemas informatizados, os quais têm potencial para contribuir com as decisões governamentais sobre a saúde. Isto é, em posse dessas informações, o governo avalia os custos da assistência de enfermagem e incorpora essa análise no financiamento dos serviços.

Embora não seja um SCP, por não enquadrar o paciente em um nível/estrato, mas determinar um escore/pontuação, o Nursing Activities Score (NAS) tem sido amplamente utilizado no mundo todo como meio sistemático de aferição da CTE em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Confirmam essa alusão achados de pesquisas recentes que intencionaram: investigar a relação da carga de trabalho com cargas mentais de enfermagem no Irã(²⁰); avaliar custos no Brasil(²¹); verificar desfechos clínicos entre pacientes críticos na Grécia(²²); e comparar a CTE intensivista sob o prisma da pandemia de COVID-19 vigente na Holanda(²³).

O NAS, de origem norte-americana, foi adaptado e validado para a cultura brasileira(²⁴), determinando o tempo que a enfermagem deveria dedicar aos pacientes nas 24 horas. Organizado em sete categorias, (atividades básicas, suporte ventilatório, cardiológico, renal, neurológico, metabólico e intervenções específicas) dispõe de 23 itens a serem pontuados pelo enfermeiro equivalendo às necessidades de cuidados. Conforme exposto, o instrumento não categoriza o paciente em níveis de complexidade, mas gera um escore total, representando a porcentagem de tempo gasto, por turno, para cuidados diretos ao paciente(²⁰–²⁴). Ao transformar o escore do NAS em tempo, considera-se plenamente possível viabilizar o dimensionamento de pessoal de enfermagem tal qual àquele previsto pelo uso de um SCP, por isso, e também considerando a sua abrangência mundial, sugere-se que ele seja incorporado de forma explícita à normatização sobre o dimensionamento de pessoal da enfermagem brasileira.

A classificação diária de pacientes requer tempo, competência clínica, não isentando o enfermeiro de registrar suas avaliações e intervenções em prontuário, pois são atividades complementares. O enfermeiro realiza múltiplas tarefas durante o turno de trabalho, o que gera necessidade de priorização de atividades, além disso, muitas vezes devido à restrição de tempo e, ainda, por não participar das discussões/decisões sobre o dimensionamento de pessoal, não reconhece o valor dessa prática(¹⁷,¹⁹). Essas alusões reforçam a importância do envolvimento da equipe na gestão da CTE e também do claro conhecimento sobre a real finalidade e aplicabilidade dos SCP. Ou seja, é necessário que os atores que operam a classificação diária dos pacientes reconheçam a importância dessa prática e os fins para os quais ela é institucionalizada.

Outro aspecto crítico na interpretação dos dados obtidos refere à utilização do tempo médio dos pacientes sem considerar a variação individual (do paciente e/ou profissional) para completar uma tarefa(²⁵), o que deve ser ponderado nas negociações e planejamento da força de trabalho. Então, frente à diversidade de instrumentos disponíveis para classificar pacientes, autores de origem inglesa(²⁵) recomendam maior apropriação dos enfermeiros/gestores sobre as diferentes formas de aplicá-los, além de produção científica sobre os investimentos necessários e melhor incorporação dos resultados obtidos.

Os SCP não são instrumentos administrativos e não devem se enquadrar em uma prática burocratizada. É preciso reconhecer, contudo, a diversidade de formulários, protocolos e escalas implementadas nas instituições sob a responsabilidade dos enfermeiros. Estas demandas podem imprimir uma dinâmica de trabalho carregada de ações avaliativas, mas pouco interpretativas/resolutivas. Além disso, considera-se prematuro e até mesmo inocente acreditar que uma única escala/instrumento pode aferir com precisão toda a completude da demanda de trabalho da enfermagem.

Atividades de Enfermagem “Ocultas” na Aferição da Carga de Trabalho

Na última década, pesquisadores(³–⁵,²⁵–²⁹) avançaram na investigação da CTE, inclusive sobre fatores não contemplados nos SCP. A experiência profissional do enfermeiro, por exemplo, pode influenciar no tempo dedicado na admissão de um paciente, independente do nível de complexidade, já que a agilidade e qualidade dessa atividade pode ser favorecida pelas competências adquiridas com o acúmulo da experiência e do desenvolvimento profissional(²⁷).

Outro aspecto a ser notado refere-se à interação com outros profissionais. A enfermagem não desenvolve o seu trabalho de forma isolada e a conformação das equipes influencia no atendimento das demandas de cada unidade(⁹,²⁵). A comunicação entre profissionais, serviços de apoio e via telefônica, além de deslocamentos, tanto dentro quanto fora do setor, consomem tempo expressivo dos enfermeiros(²⁸), especialmente quando não existe equipe específica para o transporte de pacientes, e isso não se verifica diretamente em SCP, ao menos entre aqueles utilizados em nível nacional. Isso significa que, além de averiguar o tempo dedicado aos cuidados realizados com e para o paciente, o perfil da equipe de enfermagem e a colaboração entre os profissionais/serviços, incluindo as interações entre cliente e fornecedor, precisam ser ponderadas na mensuração e no gerenciamento da CTE.

Os limites dos SCP envolvem, também, em ações não relacionadas ao paciente, tais como desenvolvimento e supervisão de pessoal, resolução de conflitos, controle de materiais/equipamentos, relato de incidentes/eventos adversos, dentre outras. Contudo, seria difícil avaliar todas essas e outras atividades inerentes ao trabalho da enfermagem, de forma objetiva, em um único instrumento. Sendo assim, os SCP são, reconhecidamente, ferramentas valiosas para os enfermeiros e gestores identificarem parte de um construto mais abrangente e complexo que é a CTE, e que caminha no campo da pesquisa, mas precisa ser mais bem apropriado nos cenários de prática.

A percepção dos enfermeiros sobre a intensidade do trabalho diário pode ser um primeiro passo, já que compreende um indicador crítico de CTE(²⁶). Estudo realizado em hospitais brasileiros, considerando esse julgamento, evidenciou quatro intervenções de cuidados indiretos: preceptoria de funcionários (apoio/orientações aos recém-contratados ou transferidos); desenvolvimento da equipe; mediação de conflitos; e apoio ao médico(²⁹). Segundo as autoras(²⁹), em hospitais privados, ações de apoio (ao profissional médico e aos novos profissionais) exigiram mais tempo dos enfermeiros, enquanto que, em instituições de ensino, a verificação/controle de medicamentos, do ambiente e de dados laboratoriais foi mais expressiva.

Os achados referidos reforçam a necessidade de gerenciar a CTE para além da complexidade clínica dos pacientes, pois, ainda que alguns instrumentos permitam explorar atividades de cuidados indiretos, a atuação do enfermeiro é muito abrangente dentro de uma unidade, e o enfoque da sua prática pode ser diferente em cada organização de saúde, inclusive hospitalar. Um exemplo disso é o nível de apropriação do Processo de Enfermagem em uma unidade, porque, ainda que seja uma atividade estritamente relacionada ao planejamento do cuidado direto, ela não é considerada na aferição do tempo de enfermagem em todos os SCP. Mais um exemplo é a aplicação de outros instrumentos de gestão do cuidado, como escalas de aferição de risco para quedas e lesão por pressão, comuns nos cenários hospitalares, e que também demandam tempo do enfermeiro na sua aplicação e da equipe de enfermagem na execução de ações de cuidado viabilizadas pelos resultados dessas escalas. Há de se pensar, portanto, em uma forma de integração das informações geradas, através da utilização das diversas escalas/instrumentos presentes no trabalho do enfermeiro e o próprio SCP, de forma a otimizar a gestão do cuidado e a melhor alocação de pessoal, evitando maior sobrecarga para a equipe.

Para agregar aos gestores a capacidade de olhar outras dimensões da CTE, desenvolveu-se e validou-se uma escala para a realidade brasileira contendo fatores e métodos de organização do trabalho: recursos disponíveis; trabalho em equipe; educação em serviço; plano e acompanhamento do cuidado; atenção ao paciente/familiar; e atendimento das necessidades identificadas. O instrumento pode contribuir, de forma prospectiva, na detecção de perigos, no planejamento de pessoal, na melhoria dos processos e no reconhecimento do produto entregue pela enfermagem, e, aliado aos SCP, pode auxiliar no planejamento da força de trabalho(³⁰).

A escala referida está ancorada no conceito de complexidade e adaptabilidade no trabalho em saúde e centrada no processo de cuidar em enfermagem, na relação com o paciente/familiar e entre profissionais/serviços. Em outras palavras, permite avaliar pontos críticos que inviabilizam a entrega de um cuidado resiliente e seguro ou destacar cenários favoráveis para benchmarking. No entanto, não se propõe a mensurar o tempo direto dedicado às tarefas, e, portanto, recomenda-se a sua associação com o uso de um SCP validado(³⁰).

Conforme verificado por scoping review, métodos que consideram mais fatores tendem a detectar maior CTE(²⁵). Conhecendo a complexidade do trabalho de enfermagem, infere-se que isso é natural e até mesmo esperado, além de confirmar que os SCP, por si só, não dão conta de expressar a totalidade dessa “variável” que é a CTE. Destaca-se, assim, o modelo de gerenciamento dos fatores humanos, considerando aspectos relativos à unidade (proporção paciente/profissional e nível de dependência dos pacientes), ao trabalho (carga de trabalho percebida) e às tarefas (agilidade para a execução, concentração mental, interrupções e outras)(²⁶).

No Canadá, na análise dos efeitos desses fatores sobre pacientes e equipe, constatou-se sobrecarga percebida e interrupções das tarefas como preditores da capacidade dos enfermeiros concluírem as atividades, implicando omissão do cuidado(²⁶). A execução de múltiplas tarefas pelos enfermeiros que não necessariamente constam na avaliação diária de um SCP foi verificada por outro estudo(²⁸). Sendo assim, depreende-se que a demanda de trabalho vivenciada pela equipe de enfermagem necessita ser acolhida, ou seja, os profissionais precisam de um espaço para explanação, debate e construção coletiva de ações para mitigação da sobrecarga, uma vez que a análise dos elementos racionais de mensuração da CTE, isoladamente, talvez não angarie total precisão na avaliação proposta.

Além das atividades citadas, estudos enfatizam a inclusão da rotatividade de pacientes, relacionada à quantidade de admissões, altas e transferências(⁹,²⁵) na mensuração de CTE, e a qualificação desse processo vinculado ao tempo dedicado pela enfermagem(⁹). Os enfermeiros também destinam tempo expressivo aos registros e documentação em prontuário(²⁹). Destarte, infere-se que o rol de evidências sobre as atividades de trabalho não sensíveis ao SCP parece ser exponencial, e este estudo visa dar maior destaque a essa problemática.

O desafio está posto, no sentido de despertar dimensões adormecidas e ainda pouco discutidas nas instituições de saúde. A natureza multifatorial da CTE requer, além da avaliação das necessidades dos pacientes, um olhar atento ao perfil e percepções da equipe de enfermagem e interprofissional, o reconhecimento de particularidades no micro e macro sistema institucional e o delineamento de circunstâncias e tarefas que incidem em sobrecarga e cuidado inseguro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento de instrumentos capazes de identificar as necessidades de cuidado de enfermagem é, sem dúvida, um marco digno de consideração da profissão, que merece o devido reconhecimento. Denominados como SCP, tais instrumentos são fundamentais no planejamento e dimensionamento da força de trabalho, constituindo-se, portanto, ferramenta indispensável na racionalização da CTE, especialmente hospitalar.

Em contrapartida, a evolução das atividades e a complexidade dos cenários de prática de enfermagem têm demonstrado que os SCP não são sensíveis à completude da carga de trabalho que os trabalhadores enfrentam rotineiramente. Isso quer dizer que existem nuances tanto objetivas como subjetivas dessa “variável” que ultrapassam a verificação mediada por uma escala/instrumento, ainda que este seja altamente qualificado e devidamente validado.

As críticas elencadas nesta reflexão apontam as limitações dos SCP, mas não intentam contraindicar o seu uso, isso quando devidamente validados e sensíveis à avaliação proposta. No entanto, as reflexões postas enfatizam necessidade de maior aprofundamento nos estudos e na prática sobre mensuração da CTE, com consequente refinamento de seus instrumentos, para que sejam capazes de abranger os fatores anteriormente destacados e outros naturais de emergirem na evolução do trabalho, ou seja, de evitar a subestimação da CTE.

Devido à complexidade e multidimensionalidade da CTE, é importante considerar que o pensamento de um único instrumento para aferir todo esse construto é, possivelmente, impraticável. Desta forma, considera-se, com este estudo, que a definição dessa métrica, em especial quando considerada para fins de planejamento/dimensionamento da força de trabalho, merece ser complementada por elementos para além dos SCP em nível micro e macro institucional.

EDITOR ASSOCIADO

Cristiane Helena Gallasch

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  17 Jun 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  12 Nov 2021
• Aceito
  14 Mar 2022