PONTO DE VISTA
Sobre a conquista de direitos civis em Portugal: entrevista com Miguel Vale de Almeida
Silvia Maria Fávero ArendI; Cintia Lima CrescêncioII; Juliana Bez KroegerIII; Rochelle Cristina dos SantosIV
IUniversidade do Estado de Santa Catarina
IIUniversidade Federal de Santa Catarina
IIIUniversidade Federal de Santa Catarina
IVUniversidade do Estado de Santa Catarina
Miguel Vale de Almeida é antropólogo social e professor no Instituto Universitário de Lisboa. Em 2009, tornou-se o primeiro militante da causa homossexual a ingressar no Parlamento português. Em uma entrevista, Miguel Vale de Almeida, que lançou no Brasil o livro A chave do armário sobre direitos, matrimônio e paternidade entre gays, falou sobre suas memórias, sua trajetória acadêmica, o processo de conquista de direitos em Portugal e sua militância política. A entrevista foi realizada pelas pesquisadoras, em agosto de 2009, durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 9.
Revista Estudos Feministas: Em suas memórias infantojuvenis há alguns marcos importantes?
Miguel Vale de Almeida: A minha infância foi passada nos Açores, nas ilhas no meio do Atlântico. Meu pai trabalhava no aeroporto, na época em que os aviões vindos da América tinham que parar para reabastecer. Era um ambiente cosmopolita, de muita gente estrangeira, no meio de uma ilha que não tinha ninguém, uma situação um tanto bizarra. Eu cresci ali até os seis anos, depois fomos para o continente. Eu estudei em Lisboa, em uma família de pai, mãe, um irmão e uma irmã. Uma família que tinha apenas uma característica diferente das outras: meus pais, de certa maneira, ensaiaram um modo de vida muito americano e muito moderno no meio familiar. Nós somos católicos e eles eram de esquerda, em um sentido não militante, mas para eles era inconcebível viver naquela ditadura. Impulsionaram-nos muito para estudar, para aprender inglês etc. E, portanto, vivíamos em um meio muito igualitário dentro de casa, muito liberal nesse sentido. Cresci muito nessa tradição que hoje tenho como normal e automática. Isso comparando com outras pessoas de minha geração, ou que vinham de famílias mais pobres com uma cultura patriarcal muito autoritária, ou de famílias mais ricas muito preocupadas com o status e com o controle da sexualidade, e por aí afora.
REF: Nesse contexto algum episódio marcou significativamente sua infância ou adolescência?
MVA: A única coisa diferente na minha vida foi o fato de, aos 16 anos, ter ido para os Estados Unidos sozinho como estudante de intercâmbio. Fui viver com uma família, estudar no High School americano. Isso foi muito bom porque transformou a minha perspectiva, porque me tirou de um país que era muito provinciano naquele período. Nessa altura já não havia ditadura, mas era um país muito afastado do resto do mundo. Eu fui para outra realidade, e isso me tornou mais autônomo e mais independente.
REF: Como foi retornar para Portugal depois desse período?
MVA: Foi bastante desafiador. Eu fui para os Estados Unidos aos 16 anos, depois de entre os 14 e os 16 ter sido politizado de forma muito intensa. É difícil contar isso a quem não viveu, porque era de fato um país em revolução completa e, portanto, eu participei na juventude comunista ainda muito novo. Todos aderiam a um partido político. Todo mundo. Havia convulsões todos os dias, problemas de segurança, de falta de comida. Participei de atividades políticas muito intensas, de alfabetização de pessoas em aldeias rurais, de trabalhos em cooperativas agrícolas, como foi na Revolução Cubana, estávamos muito envolvidos nesse processo. Fui para os Estados Unidos com uma realidade completamente diferente, fui para uma casa de família da alta burguesia, da alta burguesia judia, fui para uma escola privada só para rapazes. Quando voltei, o processo de normalização política já havia começado, já havia acabado a revolução e eu próprio não quis voltar para a juventude comunista e entrei em um processo de afastamento disso. Aí, em Portugal, nós tínhamos um sistema universitário muito confuso e eu fui para o curso de História, um pouco por falta de opção. Eu fui enviado para Coimbra, porque o sistema público português coloca as pessoas independentemente do lugar que elas desejam. E cheguei a Coimbra e odiei aquilo, detestei, achei horrível. Horrível, horrível, horrível. Achei as aulas péssimas, os professores, o método de ensino, tudo aquilo me pareceu antigo. E ao fim de dois meses desisti, fui embora. Fui passar umas férias nos Estados Unidos, na casa da minha família americana. E aí, por mero acaso, estava na biblioteca pública e li um livro da Margareth Mead que não é um dos livros científicos dela, mas sim um livro de cartas que ela escreveu para o marido, para as amigas, para a orientadora e tal. Aquilo me fascinou e, quando voltei a Portugal, já havia um curso de Antropologia. Fiz a graduação, que era de quatro anos. Vi que era daquilo mesmo que eu gostava e, assim que terminei a graduação, concorri a uma bolsa Fulbright para fazer o mestrado nos Estados Unidos. Passei. Depois de terminado o mestrado, não queria permanecer lá. Nessa altura, já não me agradava humanamente a experiência de viver nos Estados Unidos, porque você criava amizade com as pessoas na universidade e de repente elas iam todas embora, cada um para o seu lado. Preferi voltar para Lisboa, para o meu meio humano, mais próximo, e entrei como assistente na faculdade, na época você podia entrar sem o doutorado, podia dar aulas sem o doutorado, agora não. Entrei como assistente e fiz o doutorado já como docente.
REF: E a sua ligação com o movimento LGBT já começou nessa época?
MVA: A ligação começou nos Estados Unidos quando eu fui fazer o mestrado. Porque eu tive um processo de caminhada um pouco tardio, ou seja, durante a graduação, na universidade, eu estava entre "lá" e "cá", não sabia muito bem, enfim, tinha namoradas, mas desejava homens, não sabia muito bem o que queria fazer. E quando cheguei aos Estados Unidos foi muito claro. Foi uma situação de liberdade. Como os Estados Unidos já tinham um movimento LGBT organizado e Portugal não, comecei a participar de um grupo da universidade e a me politizar nesse aspecto, no aspecto da política sexual. Quando voltei a Portugal em 1986, comecei a participar de eventos do único grupo LGBT que havia na época, que era um grupo ligado a um partido político da esquerda mais radical. Também comecei a escrever crônicas sobre sexualidade em um jornal diário, o Público. E desde cedo participei do movimento, não muito como ativista, participei quase sempre como intelectual de serviço, intelectual orgânico, aquele que legitima as posições e tal. E o movimento, o movimento LGBT em Portugal, só ganhou forma, consistência e força de fato a partir do final dos anos 1990. E justamente em 2001 eu comecei uma relação conjugal que durou até pouco tempo e o meu companheiro tornou-se presidente da principal associação LGBT portuguesa. Então, aí, sim, começou um ativismo mais forte, que foi justamente na direção dessa reivindicação do casamento. Portanto, essas coisas estão também muito ligadas a nossa vida pessoal, às dinâmicas que se criam.
REF: Como foi esse processo em Portugal e quais foram as reivindicações do movimento LGBT?
MVA: O movimento sempre foi muito amplo, com reivindicações muito genéricas, mas a partir do final dos anos 1990, quando se consolidou, começou com algumas reivindicações políticas. Isso é muito interessante, em vez de ser um movimento preocupado com a afirmação de uma comunidade, é um movimento preocupado desde o início com a reivindicação legislativa. Por quê? Porque é um movimento que começou já depois da crise da sida, da aids. E, de fato, o movimento LGBT em nível mundial tem dois momentos: antes e depois da aids. Antes da aids, é um movimento de proteção sexual, da afirmação de identidade. Depois, torna-se um movimento de afirmação de direitos, sobretudo em torno da conjugalidade, da luta contra a homofobia, da parentalidade etc. Nós em Portugal chegamos tarde, e isso é muito típico do nosso país. Como chegamos tarde, chegamos já na crista da onda e entramos logo nas coisas mais contemporâneas. E foi isso que aconteceu, a nossa sorte foi essa. Quando o movimento começou, a sério, em Portugal, foi como um movimento de reivindicação política. A primeira reivindicação foi de que a constituição passasse a incluir "orientação sexual" no artigo que define as razões pelas quais ninguém pode ser privilegiado e discriminado, em que antes havia raça, nacionalidade, gênero. Conseguimos isso na revisão constitucional. Depois, em 2001, conseguimos a lei das uniões de fato, isto é, de uniões civis, que reconhece que, além do casamento, as pessoas que estiverem em uniões ao fim de dois anos têm direitos semelhantes ao casamento. E a lei se aplicou ao homo e ao hétero, embora com a ressalva da não adoção por parte dos casais homo. E depois passamos para a reivindicação do casamento, por razões simbólicas.
REF: Por quais razões, se já havia a união de fato?
MVA: Por razões simbólicas, isto é, nós percebemos muito cedo, sobretudo com o exemplo de Massachussets e depois com o exemplo espanhol, que você pode ter todos os direitos, mas se não tem o símbolo, a palavra, você está sempre dizendo que é de segunda categoria. Aquela forma de união chamada de "casamento civil", de cartório, é o que o Estado reconhece como a forma máxima de união sexual entre duas pessoas. Se você ceder a ela, você é considerado igual; se você não ceder a ela, você é claramente desigual. Se tiver outro nome, também é desigual. Então a nossa luta foi no sentido de "ou tudo ou nada", quer dizer, ou é igual ou não queremos. E foi uma aposta boa, foi uma aposta ganha, porque nós percebemos agora, com a aprovação, que a lei ajuda a mudar a mentalidade, é uma coisa extraordinária. Outro dia, vi uma reportagem sobre um casamento entre duas mulheres, de 40 anos talvez, ambas portuguesas, imigrantes na França. Tinham imigrado com os pais, que acabaram voltando para Portugal, lá no Norte, no Minho, em uma pequena aldeia católica. As filhas cresceram na França e resolveram casar em Portugal, com a nova lei. Foi um casamento na aldeia, típico, com um grande banquete, com 400 pessoas, a aldeia inteira convidada, a família toda, tudo gente rural, católica, supostamente conservadora. Estavam todos contentíssimos com o casamento. Na entrevista os pais de 70 e poucos anos diziam: "ah, eu tinha muita vergonha da minha filha ser lésbica, foi um sofrimento muito grande toda a vida, mas agora eu digo aos amigos todos na taverna que ela tem o direito de ser como é. É minha filha, tenho muito orgulho, e tem o direito de casar e se sentir bem". Havia crianças levando a aliança, música, aquela coisa bem conservadora e tradicional, só que eram duas noivas e os pais e a própria comunidade tinham subitamente reconhecido a validade daquilo. Não é que sejamos tutelados pelo Estado, mas o Estado é, muitas vezes, um mecanismo simbólico de legitimação das coisas. Se vivemos em democracia, as leis supostamente devem ser boas e, portanto, se elas legitimam determinada realidade, elas estão dizendo que estão do lado do bem. Para usar uma linguagem corriqueira, as forças "do bem" estão funcionando ali e, portanto, é um exemplo de como ajuda a mudar as mentalidades.
REF: Você escreveu no seu blog que esse processo estimularia muitos outros países a conquistarem direitos...
MVA: Sim, sabes o que que aconteceu? Eu não quero soar colonialista, mas, quando houve a aprovação do casamento na Espanha, eu sei, pelos contatos que eu tenho, o pessoal do partido socialista espanhol começou uma espécie de World Show, uma espécie de turnê pela América Latina para entrar em contato com todas as associações LGBT de fala espanhola para mostrar como é que tinha sido o processo, que estratégias tinham usado, como foi feita a articulação. Portanto, há toda uma influência que não é necessariamente neocolonial, é mais de comunidade, isto é, de reconhecimento mútuo, a mesma língua, a ideia de uma sociedade organizada de forma semelhante, sistemas políticos com alguma semelhança e uma herança histórica rotativamente semelhante. Por outro lado, aquele preconceito vindo da forma hegemônica de pensar, que é a forma norte-americana e anglo-saxônica, que é a ideia de que há os países subdesenvolvidos que são os católicos, que são os do sul, essa ideia agora é desfeita. Subitamente você vê países como a Espanha, Portugal ou a Argentina aprovarem o casamento. E, de repente, há uma lição de progresso muito curiosa para países do norte, que continuam à espera desse salto e que não conseguem fazê-lo, como os Estados Unidos em nível federal. É mais nesse sentido, pode ter efeitos multiplicadores muito interessantes e ajudar a acabar com aquela falta de autoestima que os países do sul da Europa e da América Latina têm em si próprios, aquela falta de autoestima, sobretudo nas suas elites e nas suas classes médias, aquela sensação de que se é de segunda categoria, de que o verdadeiro mundo está lá em cima, um complexo que os portugueses e que os brasileiros têm igualmente. Os portugueses têm em relação ao norte da Europa e os brasileiros têm em relação aos Estados Unidos ou à Europa em geral, e é a mesma coisa. Isso ajuda a acabar com esse tipo de complexo também.
REF: Como você vê o movimento LGBT no Brasil? Temos uma das maiores paradas gays do mundo...
MVA: E nós temos das menores. A situação é completamente inversa. Eu acho que isso tem a ver com o sistema político. O sistema político de Portugal é muito diferente do Brasil, não tem nada a ver. Somos democráticos obviamente, mas o sistema português é um sistema parlamentar de uma só câmara, com listas partidárias muito rígidas, com disciplina absoluta dos deputados de cada partido. E, portanto, há um contrato entre o que é o programa eleitoral e tudo que depois se faz no governo ou na oposição. Isso significa que o contrato é estabelecido logo no ato eleitoral. Então, se o partido diz "nós queremos o casamento entre pessoas do mesmo sexo", quem vota naquele partido sabe que está defendendo isso e não vai haver ninguém dizendo "ah, isso eu não quero, eu não voto e tal". O sistema é mais fácil nesse ponto de vista. Já o sistema brasileiro, como vocês sabem, é mais complexo. Duas câmaras, indisciplina partidária etc. Isso cria imensos problemas. O outro problema é sociológico. Vocês sabem melhor do que eu que há um problema no Congresso no Brasil que é a pressão evangélica. Isso não existe em Portugal, é um país muito pós-religioso. É um país em que a religião já não joga na vida social, aqui joga. Esse é outro problema. Outra coisa importante são a dimensão e a pluralidade do país. O Brasil é dividido em estados, muito plural, com sociologias muito diferentes, o que permite que haja esses fenômenos de decisões judiciais diferentes em relação a questões LGBT, que podem ou não criar jurisprudência, mas que são fragmentárias, não têm a unicidade de uma lei vinda de cima. E isso vai ser um problema.
REF: Em Portugal a adoção de crianças por casais homoafetivos tornou-se uma realidade?
MVA: Aí entramos na parte das más notícias. Nós aprovamos essa lei do casamento, mas sem adoção, ou seja, somos o único país dos que têm o casamento entre pessoas do mesmo sexo que tem uma exceção para a questão da adoção, isto é, em casal, por enquanto, não se pode adotar. O que aconteceu, contra a minha vontade, é que nós só conseguimos fazer passar o casamento porque tivemos o apoio do partido socialista. E o partido socialista, por ser um grande partido do governo, é muito diverso internamente e tem setores muito conservadores. Esse é o primeiro aspecto, isto é, o líder do partido socialista conseguiu convencer as pessoas de seu partido de que o casamento era uma boa causa, mas não conseguiu convencê-las da adoção, teve um grande preconceito em relação a essa questão. Esse preconceito vem de uma questão específica portuguesa que foi o escândalo da Casa Pia, uma espécie de fenômeno político e midiático dos últimos anos que hoje em dia se sabe que foi um complô, organizado ainda não sabemos bem por quem, cujo objetivo era derrubar a ala esquerda do partido socialista. E esse escândalo, manipulado na mídia, de fato, assassinou politicamente a ala esquerda do partido socialista e criou um clima na sociedade em que alguns jornalistas de escândalo associaram a homossexualidade à pedofilia. Portanto, estava criada uma situação em que falar de crianças, quando se fala de homossexuais, é uma coisa com um custo político muito alto. Houve muita covardia, muito medo de avançar para essa questão. Isso aconteceu na Bélgica também, não por acaso, mas, dois anos depois da aprovação do casamento na Bélgica, já aprovaram a adoção e eu acho que vai acontecer o mesmo em Portugal, isto é, agora nós estamos fazendo o trabalho pedagógico de mostrar que tem que ser e, por outro lado, o efeito sociológico do casamento vai ajudar nisso. E, portanto, eu creio que nas próximas eleições já entrará a questão da adoção. Agora, mais do que a adoção, me preocupa a questão da parentalidade em geral, isto é, há muitas famílias de gays e lésbicas que têm filhos neste momento e nós temos que tentar resolver o problema das crianças, porque elas só têm um pai ou uma mãe reconhecido. Agora eu estou trabalhando nisso para ver se nesse período de transição até a igualdade plena conseguimos pelo menos gerir a questão da coadoção. Provavelmente, o que vai acontecer é que vai haver casos em tribunal de casais reivindicando direito a adotar. Por quê? Porque a lei portuguesa permite que as pessoas individuais adotem, então foi criada uma situação absurda que é um gay ou uma lésbica sozinho poder adotar, mas se tiver casado já não pode. E, portanto, isso é um absurdo legal. Há quem diga que é mesmo inconstitucional e, portanto, é provável que alguém vença um caso para o tribunal constitucional e os juízes acabarem dizendo que tem que haver adoção. Portanto, eu acho que vai ser resolvido e acho que teve a ver com o problema da agenda política, claramente. Para mim, foi muito difícil ter que aceitar isso. Nós usamos um argumento que de qualquer modo é válido, isto é, conjugalidade e parentalidade são duas questões diferentes. Por se casarem, as pessoas não são obrigadas a ter filhos e, para terem filhos, as pessoas não são obrigadas a casar e, portanto, os assuntos são também separáveis. Mas é claro que é uma forma de nos autojustificarmos.
REF: Como você percebe a assimilação dessas novas gerações, que se convencionou chamar de juventude, a esse tipo de lei?
MVA: Foi muito curiosa porque você esperaria duas coisas: ou uma juventude muito conservadora que ficasse muito contente pelo fato de ter acesso ao casamento e isso não aconteceu, porque essa juventude conservadora é também homofóbica e, portanto, o que quer é o casamento como exclusivo heterossexual; ou então uma juventude mais radical e mais inovadora que acha o casamento uma coisa a que não tem interesse nenhum e que pensa em formas mais queer de viver o mundo e a vida etc. E houve esse tipo de manifestação, esse tipo de realidade. Mas o grosso da juventude e, sobretudo, da juventude LGBT apoiou muito essa causa porque percebeu essa questão do simbólico. E percebeu, sobretudo, que isso ia ajudá-los no processo de aceitação familiar. Portanto, houve uma adesão muito grande e a causa foi processada pela juventude como uma causa progressista, daquelas definidoras que um jovem pouco politizado mas entusiasmado tem. Há assim meia dúzia de causas. Uma, sei lá... Bom, em Portugal não faz sentido, porque, de qualquer modo, o consumo de drogas é descriminalizado, mas em muitos lugares a questão da legalização da marijuana é um deles ou, por exemplo, os direitos dos animais, proibir as touradas. Ou então, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O que é que isso significa sociologicamente? Há certas causas que são processadas como progressistas e transformadoras da realidade, e isso foi uma surpresa para mim, foi uma surpresa muito grande, porque eu pensei que eles não fossem ligar a um assunto tão aparentemente antigo. Mas nós fizemos uma campanha muito clara e sempre dissemos: nós não somos defensores do casamento nem atacantes do casamento. Não nos importa a história da instituição, queremos que as pessoas possam optar se querem ou não querem casar.
REF: Quais são as caracterísiticas de seu trabalho no Parlamento português?
MVA: Pois é, neste momento eu estou afastado da universidade porque aceitei o convite que o primeiro-ministro, Sócrates, fez para eu entrar nas listas do partido socialista em um lugar elegível; tinha a ver justamente com a necessidade de ter uma pessoa que representasse as questões LGBT e que pudesse defender um conjunto de causas, nomeadamente a do casamento. Foi difícil aceitar, mas aceitei como "independente", porque não pertenço ao partido socialista, discordo de muitas coisas do partido socialista. Vinha de um outro partido, anos antes, mais à esquerda do partido socialista. Foi complicado para mim. Aceitei como independente, o que significa que eu tenho alguma liberdade de voto em certas matérias. Tive que suspender a universidade, porque é incompatível, o que para mim é muito duro, porque o que eu gosto é da universidade, gosto de dar aula, gosto de fazer pesquisa, mas é óbvio que está sendo uma missão importante, que é gratificante, mas que também é difícil. Há muita exposição pública, a intimidade fica muito cerceada. Por outro lado, afastou-me muito do pensamento antropológico, ou seja, neste momento não sei o que vou fazer quando voltar à universidade. Não tenho nenhum projeto. Sei que, certamente, vou escrever um livro de reflexão sobre a experiência no Parlamento. Mas há de ser um livro ensaístico, e não científico. E, de resto, eu tenho trabalhado ao longo desses 20 anos em questões de identidade e discriminações, gênero, masculinidade, raça, orientação sexual, sexualidade. E creio que, quando voltar à academia, talvez gostasse de reinventar tudo e procurar algum tema completamente diferente que não fosse tão politizado. Mas não sei se estou a fantasiar isso porque estou no âmago da coisa neste momento.
REF: Agradecemos pela entrevista.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Ago 2012 -
Data do Fascículo
Ago 2012