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Cravo, canela, bala e favela

Clove and cinnamon, guns and slums

Resumos

A partir da discussão sobre o lugar do corpo feminino subalterno, palco de conflitos onde se desdobram as tensões resultantes das relações desiguais de gênero, raça e classe no Brasil, este artigo se propõe a realizar uma leitura de textos ficcionais recentes - nomeadamente os romances As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e o filme O céu de Suely, de Karim Aïnouz -, inserindo-os no debate de um projeto de tradução da agenda pós-colonial para o português. Decorrentes dessa abordagem, temas como a viagem, o deslocamento e o exílio farão parte da experiência subjetiva ficcionalizada que se irá enfocar, e serão, portanto, também objeto de interpretação

corpo feminino; ficção de autoria feminina brasileira; raça; gênero; exílio; deslocamento


Based on the discussion about the subaltern woman's body as a stage of conflicts where the tensions resulting from Brazil's unequal gender, class and race relations unfold, this article intends to analyze recent fictional works - specifically the novels: Marilene Felinto's As mulheres de Tijucopapapo and Conceição Evaristo's Ponciá Vicêncio, as well as the film O céu de Suely, by Karim Aïnouz - in order to place them within the debate of translation of the post-colonial agenda into Portuguese. Focusing the subjective experience represented in these fictional narratives, themes like travel, dislocation and exile will also be analyzed

Woman's Body; Women's Brazilian Fiction; Race; Gender; Exile; Displacement


SEÇÃO TEMÁTICA

Cravo, canela, bala e favela

Clove and cinnamon, guns and slums

Simone Pereira Schmidt

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

A partir da discussão sobre o lugar do corpo feminino subalterno, palco de conflitos onde se desdobram as tensões resultantes das relações desiguais de gênero, raça e classe no Brasil, este artigo se propõe a realizar uma leitura de textos ficcionais recentes - nomeadamente os romances As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e o filme O céu de Suely, de Karim Aïnouz -, inserindo-os no debate de um projeto de tradução da agenda pós-colonial para o português. Decorrentes dessa abordagem, temas como a viagem, o deslocamento e o exílio farão parte da experiência subjetiva ficcionalizada que se irá enfocar, e serão, portanto, também objeto de interpretação.

Palavras-chave: corpo feminino; ficção de autoria feminina brasileira; raça; gênero; exílio; deslocamento.

ABSTRACT

Based on the discussion about the subaltern woman's body as a stage of conflicts where the tensions resulting from Brazil's unequal gender, class and race relations unfold, this article intends to analyze recent fictional works - specifically the novels: Marilene Felinto's As mulheres de Tijucopapapo and Conceição Evaristo's Ponciá Vicêncio, as well as the film O céu de Suely, by Karim Aïnouz - in order to place them within the debate of translation of the post-colonial agenda into Portuguese. Focusing the subjective experience represented in these fictional narratives, themes like travel, dislocation and exile will also be analyzed.

Key Words: Woman's Body; Women's Brazilian Fiction; Race; Gender; Exile; Displacement.

Nada mais "brasileiro" do que a associação clássica do corpo feminino ao desejo masculino. Por trás deste que aparenta ser um inofensivo consenso, residem, na verdade, sucessivas práticas de agressão às mulheres, limitadas em sua liberdade de movimentos e iniciativas, ou vendidas como produtos sedutores (as propagandas de cerveja na televisão aí estão, em nossas casas, para não nos deixar esquecer esse grande negócio que diariamente, e cada vez mais, é feito sobre o corpo da mulher). Quando a esse preconceito de gênero se somam outros, de raça e de classe, por exemplo, a violência contra esse corpo se torna algo com que temos ainda mais que nos preocupar. Há algum tempo, fomos testemunhas do ataque sofrido por uma empregada doméstica, alvo da fúria misógina de um punhado de rapazes bem nascidos da zona sul carioca. Na ocasião, Nilcéa Freire observou corretamente, em artigo publicado na imprensa, que, enquanto toda a sociedade se solidarizava com a vítima, precisava refletir sobre as razões desse ato de violência. Segundo ela, o próprio ato da agressão constitui "um traço exacerbado - e por isso repelido por todos - de uma violência naturalizada, banalizada e até mesmo autorizada. Parece excessivo, mas é exatamente isso: a violência exercida pelos homens contra as mulheres, no Brasil como em qualquer parte do mundo, é autorizada pela sociedade patriarcal".1 1 FREIRE, 2007. Ao associar corpo feminino, violência e cultura patriarcal, a ministra de Políticas para as Mulheres nos aponta a direção de um debate fundamental a ser feito com maior rigor no Brasil: sobre o legado tenso e mal resolvido do patriarcalismo escravocrata e seus desdobramentos em termos de desigualdades e violência de gênero, classe e raça.

Edward Said afirma que "ter sido colonizado" é uma sina com consequências "duradouras, injustas e grotescas", que significa ser "potencialmente muitas coisas diferentes, mas inferiores, em muitos lugares diferentes, em muitos momentos diferentes".2 2 SAID, 2003b, p. 115-116. Assim, com base na reflexão de Said, podemos dizer que "ter sido colonizados" é o passado a que permanecemos inevitavelmente ligados, num fio de continuidade histórica cuja ponta inicial se encontra com o trauma da escravidão, por um lado, e, por outro, se revela no espaço urbano violento das capitais brasileiras, encontrando sua síntese nos socos e pontapés atirados contra o corpo de Sirlei, a jovem agredida numa rua do Rio de Janeiro. Um corpo "moreno" de mulher, corpo de uma empregada doméstica, confundida por seus agressores com uma prostituta (a qual, na lógica do preconceito fascista dos bad boys, seria o alvo preferencial da agressão). Não é demais destacar, portanto, que esse corpo agredido está muito bem localizado, em termos de gênero, raça e classe, na ordem desigual que domina as relações estabelecidas no seio da sociedade brasileira e que encontra palco privilegiado nas tensões de suas grandes capitais.

Circula livremente no imaginário nacional, para consumo interno e externo, o estereótipo da mulher morena e objeto fácil de desejo. Se a Gabriela de Jorge Amado nos vem imediatamente à memória como uma das representações mais consagradas desse modelo, a referência incontornável é ainda, e sempre gerando acesa polêmica, a obra de Gilberto Freyre.3 3 FREYRE, 1998. A discussão de sua obra monumental não cabe, evidentemente, nos limites deste texto. Limito-me, assim, a destacar o ineditismo da reflexão que fez, no bojo do projeto modernista de interpretação da cultura brasileira nos anos 30, em seu trabalho precursor de análise das complexas relações estabelecidas entre senhores e escravos na fundação da sociedade colonial brasileira. No centro de sua análise, encontra-se o corpo da mulher escrava, apropriado pelo senhor da casa-grande. O tenso intervalo que separa (e liga) a casa-grande e a senzala está todo ele contido nesse corpo da mulher escrava, escravizado sexualmente pelo senhor. Nisso reside, como destacou Ria Lemaire, uma poderosa metáfora das relações de poder na sociedade brasileira.4 4 LEMAIRE, 2000.

A interpretação que Freyre desenvolve a partir de sua metáfora central, ou seja, o modo como interpreta o papel desse encontro sexual e inter-racial na formação da cultura brasileira, suscitou, como sabemos, intenso debate, que está longe de se esgotar. Diversos autores5 5 Miguel Vale de ALMEIDA, 2000; Arlindo BARBEITOS, 1997; LEMAIRE, 2000; Omar Ribeiro THOMAS, 2002; Margarida Calafate RIBEIRO, 2004; Alberto Oliveira PINTO, 2007; Tony Simões da SILVA, 2002. sustentam que o elogio feito pelo escritor pernambucano ao encontro inter-racial seria uma das mais bem construídas justificações para as violências perpetradas pelo colonizador português. Segundo tais autores, o entusiasmado elogio empreendido por Freyre ao contato fraterno e igualitário entre as diferentes culturas e raças formadoras do Brasil constituiria uma poderosa mistificação, no sentido atribuído por Albert Memmi6 6 MEMMI, 1977. ao conjunto das construções discursivas elaboradas pelo colonizador, como forma de justificação ideológica para o ato colonial. Esse tema sugere um amplo leque de análises sobre a violência sexual e racial, decorrente do patriarcalismo agrário e escravocrata que fundou a sociedade brasileira, deixando nela impressa a marca indelével de sua visão de mundo, bem como de suas práticas sociais, políticas, culturais, sexuais. No entanto, não é minha intenção desenvolver aqui esse debate. O que pretendo enfatizar é a centralidade da metáfora contida no encontro entre o senhor e a mulher escrava, a qual se atualiza constantemente numa sociedade como a nossa, tão fortemente marcada por desigualdades raciais e de gênero, e tão sutil na construção de um discurso que o acoberte.

Outro aspecto a ser destacado, neste breve relance à obra de Gilberto Freyre, é o modo como se reconstrói constantemente, na sociedade brasileira, o intervalo tenso entre a casa-grande e a senzala. Os deslocamentos entre o campo e a cidade, entre o centro e a periferia, entre o Sul e o Norte (ou, lembrando Boaventura de Sousa Santos, entre o sul do Norte e o norte do Sul)7 7 SANTOS, 2004. são formas nas quais se desdobra o espaço intervalar fundador das desigualdades sociais, raciais e de gênero no país. Do encontro do senhor com sua escrava, encontro eivado de violência sexual, resulta o corpo colonizado, em duplo sentido: primeiro, o corpo da mulher escrava, apropriado, assujeitado pelo poder patriarcal/sexual/racial do senhor; segundo, o corpo mestiço, fruto do contato sexual inter-racial. Esse corpo mestiço, segundo o depoimento do escritor angolano Arlindo Barbeitos, constitui-se em verdadeiro campo de batalha, para onde confluem todas as contradições inerentes ao contato entre brancos e negros na história colonial de seu país.8 8 BARBEITOS, 1997, p. 323-326.

O corpo feminino subalterno, palco de conflitos onde se desdobram as tensões resultantes das relações desiguais de gênero, raça e classe no Brasil, corpo colonizado e verdadeiro campo de batalha - em cujos movimentos ainda se enfrentam a casa-grande e a senzala -, se encontra representado em textos ficcionais recentes, sobre os quais pretendo desenvolver esta discussão.

Ao enfocar textos brasileiros recentes, inserindo-os no debate daquilo que considero um projeto de tradução da agenda pós-colonial para o português, pretendo apontar para duas importantes questões. A primeira diz respeito à própria tarefa de tradução, enquanto a segunda discute a importância dessa tarefa para o feminismo contemporâneo. Para pensar sobre a necessidade da tradução das preocupações pós-coloniais para o português, tomo como referência o tema da viagem, particularmente expressivo no contexto transnacional e globalizado em que todos hoje nos encontramos. Como sugere Claudia de Lima Costa,

no contexto das histórias de viagens, migrações e outros deslocamentos sempre interconectados e diversos, e do trânsito transnacional de teorias e conceitos, a questão da tradução se torna premente, constituindo, de um lado, um espaço único para a análise da representação, do poder e das assimetrias entre linguagens, e, de outro, para o exame das formações do conhecimento e das institucionalizações através das quais essas teorias e conceitos viajam.9 9 COSTA, 2004, p. 187.

Ao analisar as rotas transnacionais e interculturais realizadas na modernidade a partir da diáspora dos povos africanos, Paul Gilroy criou a poderosa metáfora do Atlântico Negro.10 10 GILROY, 2001. Tomando a figura do navio como um dos primeiros cronotopos modernos, o autor percorre seus diferentes significados, desde sua função como unidade cultural e política, elemento móvel que, ao se deslocar, ligava os espaços fixos que através dele se conectavam, até a evocação do tráfico de escravos e sua relação com os projetos de modernização. No centro de sua reflexão, encontramos o motivo da viagem e seus desdobramentos históricos. O Atlântico Negro seria, assim, o espaço imaginário de uma outra viagem, protagonizada não pelos colonizadores em suas rotas de expansão e conquista, mas pela própria ideia de uma cultura viajante, repensada a partir da experiência e das trocas culturais protagonizadas pelos subalternos.

Partindo desse espaço híbrido e transcultural do mar cruzado em vários sentidos a partir das rotas da escravidão, podemos começar a pensar em outras rotas que também ligaram África, Europa e América, mas em outras direções. Refiro-me ao projeto colonial empreendido pelos portugueses a partir do século XV, que, de forma anacrônica, problemática e ex-cêntrica, se desenvolveu até o final do século XX. Este outro percurso, desenhado no espaço-tempo daquilo que podemos conceituar como um território transnacional de língua portuguesa, encontrou no salazarismo sua máxima projeção utópica, de base fascista, quando o governo totalitário português, a partir dos anos 50 até os 70, reeditou seu sonho imperial através da máxima que definia o país como um só, "do Minho ao Timor". Na base dessa utopia, sobreviviam, como uma fantasmagoria de grande utilidade, as teorias de Gilberto Freyre, então a serviço da interpretação do projeto colonial português como um colonialismo cordial, inter-racial, mestiço e não racista.11 11 Sobre este tema, consultar THOMAZ, Omar Ribeiro. "Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa". In: BASTOS, Cristiana et al. (Coord.). Trânsitos coloniais: diálogos críticos lusobrasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002. Às interpretações que então se fizeram das ideias de Gilberto Freyre subjazia a legitimação da empresa do poder colonial português. Esse conjunto de princípios, que buscava justificar a permanência de Portugal em África, num momento histórico em que outras colônias africanas encontravam-se em pleno processo de descolonização, pode ser resumido no conceito de "lusofonia".

Em tempos mais recentes, marcados pela experiência pós-colonial, encontramos vários discursos no campo intelectual dos países de língua portuguesa, preocupados em ressignificar esse espaço transnacional e intercultural da lusofonia. O antropólogo português Miguel Vale de Almeida12 12 ALMEIDA, 2000. criou, a partir do Atlântico Negro de Gilroy, a provocativa imagem do Atlântico Pardo, fazendo aparecer, na fricção das duas imagens, as diferenças étnicas, históricas e políticas que existem entre as experiências póscoloniais do Norte e do Sul. Segundo o antropólogo português, se há um aspecto que possa integrar o Brasil na experiência pós-colonial que envolve os outros países de língua portuguesa, especialmente os países africanos, este aspecto é o da mestiçagem resultante da escravidão. Assim, a tarefa pós-colonial, no caso brasileiro, seria a de interpretar a questão da mestiçagem e suas implicações em termos de desigualdades sociais, raciais e de gênero, que perduram até os dias de hoje.

Boaventura de Sousa Santos ilumina muito bem essa tarefa ao propor que "o pós-colonialismo português exige uma articulação densa com a questão da discriminação sexual e o feminismo", no empenho de "dilucidar as regras sexistas da sexualidade que quase sempre deitam na cama o homem branco e a mulher negra, e não a mulher branca e o homem negro".13 13 SANTOS, 2002, p. 42. Segundo o autor, o corpo mestiço nesse contexto foi constituído como um locus de significado fluido e cambiante, conforme o momento histórico e suas interpretações. Por vezes, o corpo do mulato (e especialmente o da mulata) foi visto como degradação, exposição concreta dos aspectos nefastos da mestiçagem. Em outros momentos, ao contrário, foi depositário das expectativas mais ufanistas em torno de um projeto inter-racial com base na índole branda e cordial dos portugueses. Assim, em nome do contato inter-racial, promoveu-se a ideia do antirracismo, ou de um "racismo sem raça, ou, pelo menos, um racismo mais 'puro' do que a sua base racial",14 14 SANTOS, 2002, p. 43. e, através dele, favoreceu-se o sexismo dos discursos e práticas povoados pelas ambíguas representações do corpo da mulata, como lugar de desejo e pecado, repulsa e prazer. Assim, segundo Santos, "a cama sexista e inter-racial pôde ser a unidade de base da administração do Império e a democracia racial pôde ser agitada como um troféu anti-racista sustentado pelas mãos brancas, pardas e negras do racismo e do sexismo".15 15 SANTOS, 2002, p. 43.

A crítica à leitura feita pelo colonialismo português do projeto lusotropicalista de Freyre e a análise de seus efeitos políticos e de seus desdobramentos históricos na cultura brasileira nos conduzem a uma reflexão mais específica sobre os modos como o feminismo vem se apropriando, numa prática de coalizão e tradução cultural, dos pressupostos dos estudos pós-coloniais. Claudia de Lima Costa assinala a importância da intersecção que cada mais se promove entre esses dois campos:

Muitas feministas, ao tentar encontrar maneiras produtivas de estabelecer diálogos na articulação de alianças transnacionais, através de diferentes comunidades feministas dispersas em um mundo de crescentes movimentos e contatos transculturais, recorreram à prática da tradução como lugar privilegiado para a negociação de diferenças.16 16 COSTA, 2004, p. 191.

Apesar das muitas dificuldades experimentadas na complexa ligação do feminismo com o pós-colonial, esse tem sido um encontro teórico da maior importância, uma vez que os dois campos preocupam-se em rastrear e iluminar verdadeiras "zonas de sombra" no mapeamento das desigualdades constitutivas das relações entre países, grupos e sujeitos. Por essa razão, gostaria de apontar, ainda que muito sucintamente, para algumas importantes contribuições que o discurso pós-colonial tem a oferecer na definição de rumos para a teoria feminista contemporânea.

A primeira delas parte do conceito de "zona de contato" formulado por Mary Louise Pratt.17 17 PRATT, 1999. Deslocando a ideia da zona de contato para a crítica contemporânea, Mary Pratt percebe a possibilidade de se pensarem as fronteiras sendo trazidas para o centro da discussão, "enquanto centros homogêneos são deslocados para as margens".

Com sua proposta, a autora não está, como pode parecer, resvalando para o elogio puro e simples da margem; a perspectiva da zona de contato põe a autonomia de diferentes identidades em interação, "como faixas fronteiriças, como locais de permanente interação crítica e inventiva com a cultura dominante, como zonas de contato permeáveis através das quais as significações se movem em muitas direções".18 18 PRATT, 1999, p. 14.

As implicações de tal ideia para a teoria feminista são bastante evidentes. Se, como afirma Teresa de Lauretis,19 19 LAURETIS, 1994. não podemos estar fora das tecnologias do gênero, pareceme que o constante movimento operado pela teoria se enriquece na perspectiva do contato. O gênero passa a ser mais um elemento, constantemente negociado, juntamente com a classe, a etnia, a raça, a nacionalidade, etc., e aqui o multiculturalismo tem significativa participação. Trata-se, como afirma Ella Shohat,20 20 SHOHAT, 2001. de ressignificar a ideia de relacionalidade, ou seja, mais do que enfocar comunidades em resistência contra um centro dominante (o que é ainda uma forma de privilegiar o centro, pelo menos como antagonista), o que se procura é "estender laços horizontais e verticais, entrelaçando comunidades e histórias em uma rede conflituosa".21 21 SHOHAT, 2001, p. 158.

Uma segunda importante contribuição do discurso pós-colonial para o feminismo vem da formulação de Ella Shohat acerca da necessidade que enfrentamos de desconstruir a história eurocêntrica do feminismo. E aqui gostaria de somar ao debate um breve depoimento pessoal.

Minha formação como feminista, no início dos anos 80, se deu em grande parte na definição de uma especificidade feminista que nos diferenciasse dos chamados "movimentos de mulheres", ou seja, aqueles movimentos de lutas populares protagonizados por mulheres no país, que então vivia seu renascimento democrático após o mais duro período da ditadura. Jovens intelectuais em formação, nós aprendemos desde cedo a cartilha da especificidade, palavra por meio da qual procurávamos nos definir, afastando-nos daquelas que erguiam bandeiras sociais mais amplas, usando sua condição de mulheres para reivindicar o que, em nossa opinião, lhes ditava a agenda da esquerda, historicamente masculina e patriarcal.

Foi necessário um longo percurso, em que por diversas vezes cruzei a fronteira que separa a teoria da ação política, num movimento de vai e vem que lembra os pontos de uma costura. Foi necessário mesmo que houvesse essa costura em minha trajetória pessoal e política, para que eu chegasse hoje a compreender que, vivendo num contexto histórico diferente do europeu e do norte-americano, fui e sou parte de uma outra história do feminismo, nem sempre identificada com a modernidade, e sempre situada como periferia. Como parte dessa outra história localizada na América Latina, vi acontecer movimentos como o das margaridas na Paraíba, das sem-terra, das sem-teto; acompanhei as lutas de mulheres que foram às ruas para bater panelas contra a fome e a carestia, de mães que foram às praças gritar por seus filhos desaparecidos. Domésticas, donas de casa, negras, brancas, mestiças, cholas, indígenas, madres, guerrilheiras, margaridas, evitas, beneditas, a história do feminismo, por aqui, muitas vezes na contramão da pós-modernidade, se escreveu em sofridas lutas, em que a classe e a raça necessariamente se articulavam ao gênero, colocadas suas urgências todas na ordem do dia, antes mesmo de tal articulação imperar nas agendas dos feminismos metropolitanos.

Não há como, efetivamente, escrever a história do feminismo reivindicando uma especificidade construída a partir de fora da nossa experiência. Por isso talvez a tarefa mais urgente para a teoria feminista construída "fora do centro" seja a de reler sua história a contrapelo, estabelecer uma zona de contato em que se ponham em diálogo a história do movimento de mulheres na América Latina e as teorias produzidas no espaço acadêmico, traduzidas dos grandes centros hegemônicos.

Uma rede de interações dessa natureza, em grande parte, ainda está por ser feita, em muitos campos de nossa prática teórica. Isso seria efetivamente trabalhar nos espaços lacunares produzidos pela globalização, na construção de lugares outros, não centralizados, de saber e poder.

Esse espaço de contato transnacional, ligando experiências num sentido horizontal, que rompe a simples dicotomia Norte-Sul, criando outros sentidos, outras rotas para as viagens entre as culturas, tem logrado colocar em contato diferentes experiências de enfrentamento da violência advindas, de forma mais ou menos direta, da experiência colonial. Distanciando-se, em termos históricos e políticos, do projeto utópico da lusofonia salazarista, diversos autores e autoras que escrevem em português têm procurado ressignificar a utopia de um espaço transnacional e intercultural de interação entre os países advindos da experiência colonial portuguesa. O espaço de cruzamento das experiências e o compartilhamento da memória da violência em busca de respostas, atualizadas e localizadas para os dramas vividos nesses contextos, permanecem como um passo importante realizado, no campo da estética e da política, por esses autores.

Um empreendimento dessa natureza parece pôr em prática alguns dos desafios que Boaventura de Sousa Santos propõe para aqueles que se encontram dentro de uma perspectiva emancipatória, empenhados na construção de uma "globalização contra-hegemônica".22 22 SANTOS, 2004. Um desses desafios seria, segundo o autor, justamente o de "tradução de diferentes projetos parciais de emancipação social", visando "transformar a incomensurabilidade em diferença, uma diferença que torne possível a inteligibilidade recíproca entre os diferentes projetos de emancipação social, sem que nenhum possa subordinar em geral ou absorver qualquer outro".23 23 SANTOS, 2004, p. 35.

Em outras palavras, fazer falar as diferentes experiências pós-coloniais em língua portuguesa só faz sentido se isso se investir num projeto de tradução dos significados históricos, políticos, raciais, étnicos e de gênero, dos diferentes modos de se vivenciarem os desdobramentos da experiência colonial. Por outro lado, é preciso também investir na ideia de um pós-colonialismo situado, marcado por diferenças teóricas e políticas em relação ao pós-colonialismo do Norte, que, de forma mais difundida, tem realizado suas reflexões a partir de suas experiências históricas. O Sul, como nos diz ainda Sousa Santos, pode ser interpretado como uma metáfora do sofrimento humano advindo da violência da experiência colonial. Aprender com o Sul seria, assim, mais um dos grandes desafios colocados à tarefa de tradução das experiências pós-coloniais.

Minha leitura de alguns textos ficcionais brasileiros vai nesse sentido. Suas personagens podem ser consideradas intensamente representativas da experiência feminina situada no espaço tenso, a que me referi anteriormente, que separa/liga a casa-grande e a senzala.

Em As mulheres de Tijucopapo, romance originalmente publicado em 1982, Marilene Felinto24 24 FELINTO, 2004. nos apresenta a personagem Rísia, uma jovem mulher que, enquanto caminha obstinadamente em direção à terra onde supõe que encontrará sua origem, nos entrega o relato brutal de suas memórias doloridas, cortantes, violentas. Sua história, a que nos relata, é marcada por partidas: do escaldante Recife da infância para a esperança de vida melhor em São Paulo; da frustração de São Paulo rumo à utopia de uma revolução de mulheres guerreiras em Tijucopapo, terra onde teria nascido sua mãe. A narrativa inteira transcorre, portanto, na travessia: da casa paterna para o mundo do lado de fora, de São Paulo em direção a Tijucopapo, da infância para a vida adulta, enfim, todo o romance descreve o percurso de uma passagem e, nesse sentido, ele pode ser lido como um rito de iniciação, através do qual a persongem busca a compreensão de sua história e o enfrentamento de sua condição.

Em Ponciá Vicêncio, romance de Conceição Evaristo,25 25 EVARISTO, 2003. lançado em 2003, também encontramos a passagem, o deslocamento e a formação da personagem. Ao contrário de Rísia, do romance anterior, a protagonista que dá título à narrativa de Conceição Evaristo possui uma subjetividade fortemente ancorada na memória afetiva de sua família de origem. Criada entre descendentes de escravos, de cujo antigo senhor herda seu próprio nome, Ponciá decide abandonar o campo e a vida familiar para tentar a sorte na cidade. Sozinha, parte em direção ao desconhecido, que a engole. Ponciá desaparece no anonimato da cidade. A narrativa transcorre na passagem entre sua infância e a vida adulta, entre o campo e a cidade, entre as lembranças que a sustentam e o presente vazio. Lentamente a personagem vai submergindo em sua própria memória, apagando sua presença no momento em que vive, deixando-se consumir pelas lembranças, como a buscar um tempo passado, ou inexistente. A narrativa da história de Ponciá é o relato de uma ausência crescente, e de um desejo intenso de voltar.

Um filme de 2006, O céu de Suely, do diretor Karim Aïnouz, surpreende pela sensibilidade com que aborda os mesmos temas já apontados na narrativa anterior. Aqui, quem protagoniza a ação é Hermila, uma jovem de 21 anos que, tendo partido com o namorado para viver em São Paulo, volta a sua cidade natal, plantada a seco no meio do sertão nordestino, com um filho nos braços e um desejo indeciso de ficar ou partir para outro lugar. Em São Paulo, diz Hermila, a vida "era boa, mas lá é tudo caro, não dava pra ficar mais lá, não. Aí a gente decidiu voltar". Ela retorna à casa da avó, em Iguatu, e espera que o namorado, pai de seu filho, retorne também. O tempo passa, o namorado não vem, e em Hermila desperta aos poucos a urgência de partir, para um outro lugar. A cena em que ela, já desiludida com o namorado e descrente quanto a sua opção de ficar, vai à rodoviária para saber o preço da passagem para "o lugar mais longe daqui" é um dos momentos-chave para compreendermos sua "educação sentimental".

O "céu" de Suely (este é o nome que a personagem adota para conseguir dinheiro para a viagem) é um lugar muito distante, onde talvez possa ser feliz. Em As mulheres de Tijucopapo (também no sertão, esta terra que miticamente evoca o deserto e o abandono), Rísia recorda mais de uma vez a fala de sua mãe, que indagava: "Pensa que o céu é perto?". A personagem recorda essa pergunta num misto de raiva e impotência, e quer desafiar:

O céu. Ora, ora, mamãe. Então é o céu que você põe como limite? O céu... é claro que o céu ia ser longe diante da menina que eu era. Mas, olhe, o céu não existe e pronto. O céu é por onde andam os aviões da Varig me carregando. O céu só sabe ser azul irônico lá em cima enquanto eu aqui embaixo morro a minha dor de chuva cinza de não ter tido uma meia com pompons no Natal porque o céu era longe, limite inatingível. O céu, mamãe, eu toco nas nuvens pela janela do avião.26 26 FELINTO, 2004, p. 133-134.

Na fala de Rísia, o céu distante da infância pode ser visto de perto. Para Hermila, o céu é o lugar que ela busca. Não o céu inalcançável, mas aquele que norteia sua procura, sua obstinada crença em algum lugar onde a vida pode ser reinventada. Quando adota o nome de Suely em sua decisão de rifar seu próprio corpo para juntar dinheiro, ironicamente o que promete a seus compradores é "uma noite no paraíso". O paraíso, o céu de Suely.

Na trajetória das três personagens, Rísia, Ponciá e Hermila, o marco inicial de sua formação é a estrada. Ao deixar seu pequeno povoado, e o aconchego da casa materna, Ponciá toma o trem que a levará até a cidade, até a promessa da cidade, até a vertigem da cidade:

Quando o trem foi diminuindo a marcha e parou na plataforma, Ponciá Vicêncio apertou contra o peito a pequena trouxa que carregara no colo durante a viagem inteira. Levantou-se aflita e olhou desesperada lá fora à procura de alguém. Não divisou um rosto conhecido, experimentou um profundo pesar, embora soubesse de antemão que não havia ninguém esperando por ela. Não conhecia ninguém, nunca viera até a cidade e todos os seus parentes haviam ficado para trás. Nenhum deles havia ousado tamanha aventura.27 27 EVARISTO, 2003, p. 34.

É importante destacar, nesse trecho, a constatação de que Ponciá é a primeira, entre os seus, a ousar a aventura da partida. Em depoimento no making-off de seu filme, o diretor de O céu de Suely afirma que o ponto de partida para sua criação foi o desafio de pensar como seria uma mulher partindo de seu lugar. Criado pelas mulheres de sua família, num ambiente familiar em que os homens eram quase sempre ausentes (o que costuma ocorrer em inúmeras famílias, especialmente das classes populares brasileiras), Karim Aïnouz relata que essa ausência sempre o instigou a imaginar como seria o destino de sua família se uma daquelas mulheres, fixadas à teia familiar, se decidisse a partir, a mudar de lugar e de vida. Dessa pergunta decorre o mote desencadeador de O céu de Suely. A indagação do diretor está fundamentada na conhecida tradição ocidental que fixa as mulheres em seus lugares de origem, vinculandoas estreitamente a casa, aos filhos, aos cuidados dos familiares, à perpetuação dos seus. Sendo o cuidado e a permanência tarefas suas, espera-se dos homens a ausência, o nomadismo, o constante ir e vir. Assim, Hermila, a protagonista do filme, rompe com essa expectativa de mulheres que ficam e homens que se ausentam, ao realizar um outro percurso, que tem início quando parte com seu namorado para São Paulo, e continua no retorno a Iguatu, para algum tempo depois voltar a partir, desta vez para mais longe, o mais longe possível (o mais perto do céu?). Não por acaso, a primeira e a última cenas do filme acontecem na estrada, de amplo horizonte e céu aberto, escancarado, promessa de liberdade e, ao mesmo tempo, evocação de abandono: do sertão, da pequena cidade no meio do nada, da mulher à beira do caminho com seu filho, chegando para, em seguida, partir novamente. Aliás, toda a cidade de Iguatu lembra uma estrada, um lugar de passagem. As cenas se passam frequentemente na rua, na estrada, no posto de gasolina, na rodoviária. São várias cenas em que, atravessada por carros, motos, ônibus, caminhões, a pequena cidade parece estar sempre invocando a partida, lembrando a seus habitantes sua fraca promessa para os que ficam. E, no entanto, há os que ficam. As mulheres de sua família ficam. Mas Hermila não.

Rísia, de As mulheres de Tijucopapo, também está a caminho. E vem pelo caminho de dentro, evitando a BR, vem pelo mato em busca de uma improvável origem, em busca de uma utopia e de uma vingança. Colocando-se em movimento, em direção ao mistério e à salvação representada pelas mulheres que hão de vingar seu passado, seu e de todos aqueles que, como ela, são "feitos de lama", "pobres de pai e mãe" e têm as cidades armadas contra si, Rísia relembra: "Quase perdi a fala em São Paulo". Na suspensão de sua fala, nessa espécie de mudez imposta, contra a qual seu relato doloroso se finca como uma bandeira, percebemos a violência da cidade apontando para a personagem: "Saí de São Paulo porque lá, se eu quisesse, eu não podia; "Saí de São Paulo para não ser puta"; "No centro da cidade de São Paulo havia concreto armado contra mim"; "Em São Paulo eu me achava uma apedrejada".28 28 FELINTO, 2004, p. 137, 138, 141. É por isso que, no ato redentor final das mulheres guerreiras de Tijucopapo, suas armas estarão apontadas diretamente para a Avenida Paulista, símbolo maior da opulência, da grandiosidade da cidade, em oposição à carência daqueles que vivem à margem do país, do mundo e da vida, como Rísia:

Destas regiões que são agrestes, eu vou descer em batalha, em marcha, em desfile de muito orgulho por uma causa justa [...] eu vou descer em guerrilha com o bando, vou invadir a BR que liga Tijucopapo à Avenida Paulista na São Paulo das maçãs do paraíso e vou à procura de umas tantas luzes, umas tantas lâmpadas da Avenida Paulista para dependurar nos postes da minha rua naquele dia em que as luzes não se acenderam em Recife, 1969, fim de tarde, Nema seguindo para Pedra Branca e me abandonando desprotegida seminua no meio da rua, passarás. Nós vamos e a bandeira há de ficar. Vamos fincar bandeira.29 29 FELINTO, 2004, p. 185-186.

Em seu contato com o desconhecido ameaçador da cidade, Ponciá está só, e perceber-se só é para ela motivo de profunda aflição, talvez de um sofrimento insuportável, para quem, como ela, provém de uma teia sólida de laços familiares, de uma rede identitária calcada na ancestralidade, nas histórias de sua família, na lida do campo e no trabalho artesanal. A cidade, onde é desconhecida, suspende de um só golpe seu contato com suas mais profundas raízes. E a personagem mergulha na escuridão de um mundo povoado apenas de lembranças. Rísia, ao contrário, não possui tais raízes e conclui que "Eu só vivo no mundo porque não há outro lugar para viver. Porque o mundo, de São Paulo a Recife e aos lugares todos onde se rodam os filmes de cinema, o mundo mesmo dói demais".30 30 FELINTO, 2004, p. 155.

Na cidade se traça a geografia da pobreza e do anonimato, que fere as personagens. A mudez que as ameaça é a marca visível da violência que sofrem. Contra ela, Rísia impõe sua fala cortante. Para defender-se dela, Ponciá mergulha nas lembranças e no devaneio. Para livrarse dela, Hermila inventa Suely e põe seu corpo à venda. É no corpo de Hermila que se inscreve sua resposta à mudez imposta pela cidade que teve de abandonar, e pelo homem que a abandonou. Hermila inventa Suely, promete o paraíso aos homens da Iguatu, compra passagem para Porto Alegre e abandona mais uma vez o pequeno matriarcado que a protege. Hermila recusa a proteção e, embora sofra com isso, prefere seguir em frente, em direção ao que não conhece, e vai sozinha. Seu corpo posto à venda encarna, simultaneamente, toda a extensão de sua miséria e de sua esperança, pois o corpo que se vende, ao mesmo tempo em que se degrada e se expõe, causando a aversão da avó e da vizinhança, representa também um gesto de apropriação, por parte de Hermila, daquilo que é mais seu, o lugar primeiro onde se localiza sua identidade, para lembrar o clássico ensaio de Adrienne Rich,31 31 RICH, 2002. em que defende uma política de localização que se funda no corpo como primeiro lugar da experiência. Se Rísia partiu de São Paulo "para não ser puta", Hermila se prostitui para deixar Iguatu e escolher um outro lugar para viver.

No corpo as mulheres vivem sua exclusão. Ponciá se ausenta da realidade, o olhar perdido na janela, a lerdeza dos gestos, suscitando a perplexidade e, por vezes, a reação violenta do marido. Seu corpo inerte não responde aos atos do marido, e nem a seu próprio comando. Em As mulheres de Tijucopapo, o corpo de Rísia se mostra, segundo Elódia Xavier, como um corpo violento:

Aqui, a violência é a mola propulsora que leva a personagem a fazer a revolução, juntando-se às mulheres guerreiras de Tijucopapo. A própria linguagem está impregnada de semas violentos, como expressão de uma subjetividade amarga, que busca na luta o resgate da dignidade perdida.32 32 XAVIER, 2007, p. 120.

Esse corpo que responde violentamente às agressões sofridas, ameaçando revolução e ataques, assim como o corpo posto à venda de Hermila, ou o corpo inerte de Ponciá, encenam de diferentes formas o corpo-campo de batalha de que fala Arlindo Barbeitos,33 33 BARBEITOS, 1997. e também o corpo colonizado, discutido por autoras como Gloria Anzaldúa34 34 ANZALDÚA, 2005. e Chandra Mohanty.35 35 MOHANTY, 2003. Mas esse corpo é também uma fala, um discurso. Como assinalou Donna Haraway,36 36 HARAWAY, 1994, p. 253. "estamos dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente constituído": "Nossos corpos, nós mesmas: os corpos são mapas de poder e identidade".37 37 HARAWAY, 1994, p. 281. Recusando a "colonialidade do poder", de que fala Walter Mignolo,38 38 MIGNOLO, 2003. as protagonistas das narrativas se negam a ser cindidas, corpos colonizados falados por outros, autores de saber e poder que lhes são alheios e superiores. Citando Nelly Richard,39 39 RICHARD, 2002. em sua discussão sobre feminismo, experiência e representação, Claudia de Lima Costa e Eliana Ávila assinalam a oposição binária perversa que ocorre no mundo acadêmico, e também fora dele: "a periferia torna-se o corpo concreto em oposição à mente abstrata do feminismo metropolitano".40 40 COSTA e ÁVILA, 2005, p. 696. Em sua proposição de uma "nova consciência mestiça, que se move "constantemente para fora das formações cristalizadas",41 41 ANZALDÚA, 2005, p. 706. Glória Anzaldúa aponta para uma saída:

O trabalho da consciência mestiça é o de desmontar a dualidade sujeito-objeto que a mantém prisioneira, e o de mostrar na carne e através de imagens no seu trabalho como a dualidade pode ser transcendida [...]. Extirpar de forma massiva qualquer pensamento dualista no indivíduo e na consciência coletiva representa o início de uma longa luta, que poderá, com a melhor das esperanças, trazer o fim do estupro, da violência, da guerra.42 42 ANZALDÚA, 2005, p. 707.

A linguagem empregada nessa discussão se mostra um tanto bélica: batalha, luta, guerra, etc., mas em se tratando da luta pelo poder de significar, em se tratando da atribuição de sentidos ao mundo e a si mesmas, não parece mesmo haver um outro modo, menos "guerreiro", de se conceberem as relações sociais. Donna Haraway afirma que "as disputas envolvendo os diversos significados atribuídos à escritura representam uma forma fundamental de luta política contemporânea. A liberação do jogo da escrita é mortalmente séria".43 43 HARAWAY, 1994, p. 275.

As personagens das narrativas em questão desejam falar de sua experiência, desejam entrar na arena pela disputa de significado, através da representação de si mesmas. Por isso se movimentam, tomam a estrada, não se fixam, vão, voltam, buscam. A questão identitária que está posta nessa busca é vital para cada uma delas. Rísia, Ponciá e Hermila se constituem nessa busca de um outro lugar, e sua identidade se faz no próprio movimento. Sua condição de passagem e transitoriedade, a busca incessante que as impele de um a outro lugar, talvez possa ser identificada à condição dos exilados. E aqui situo as personagens das narrativas dentro de um campo particularmente significativo, ao identificar a experiência das personagens com aquela que considero uma das mais representativas experiências contemporâneas, a experiência da perda de referências fixas, do sentido da origem, e o imperativo da mudança e do movimento como uma constante que desestabiliza e intersecta os vetores da identidade.

É bem verdade que o exílio tornou-se, para todos nós que vivemos na pós-modernidade, uma experiência demasiado familiar. Stuart Hall identificou nessa experiência a sensação quase universal de des-locamento, ou seja, o sentimento, por todos conhecido, de que "não estamos em casa".44 44 HALL, 2003, p. 27. Edward Said percebe, entre os múltiplos sentidos que a palavra carrega, o exílio como uma forma de (mal)estar-no-mundo, que caracteriza e explica a permanente desadaptação de muitos daqueles que compartilham os sentidos profundos de viver no mundo contemporâneo, fraturado por guerras, conflitos geopolíticos, perdas identitárias.45 45 SAID, 2000, p. 54-55.

Mas ao falar do exílio como marca da condição contemporânea, pós-colonial, temos que entender o não pertencimento, a desadaptação, o sentimento, enfim, de estar "fora de casa" num sentido menos metafórico, e dolorosamente impregnado de historicidade. Ao falar no exílio como uma marca da experiência pós-colonial, reporto-me a Edward Said, que afirmou o caráter contrapontístico da condição do exilado.46 46 SAID, 2003a, p. 46-60. O exilado, segundo o autor, experimenta a dor do exílio e também a aprendizagem que ele enseja; viver o exílio significa viver, em contraponto, duas experiências simultâneas: o sofrimento e a sabedoria, o estar aqui e lá ao mesmo tempo. Na experiência pós-colonial, há também uma dupla inscrição, o do passado vivenciado na subalternidade e o do presente, assinalando, desse modo, o que podemos chamar, lembrando Bakhtin,47 47 BAKHTIN, 1988. um cronotopo do exílio, já que o tempo se insinua no espaço, fazendo da condição do exilado uma experiência onde os desloca-mentos não se dão apenas no espaço geográfico, mas também nas temporalidades distintas evocadas por sua experiência.

Sair de casa representa para cada uma das personagens analisadas a busca daquilo por que mais anseiam: a cidade, ainda que frustrante, agressiva, brutal, promete a liberdade de uma incessante busca, que apenas se inicia no ato de partir. Cada uma a seu modo, todas as três, Rísia, Ponciá e Hermila, vão tentar a volta para casa, seja a mítica casa materna representada por Tijucopapo, seja a Iguatu natal, devastada e sem perspectivas, do sertão de Hermila, ou ainda a casa da infância, ansiosamente desejada no retorno sempre sonhado, e jamais alcançado, por Ponciá. Mas talvez seja conveniente pensar que a volta para casa não é possível, porque a casa não existe mais. Porque o caminho para fora de casa é um caminho sem volta.

É conhecida a afirmação de Gloria Anzaldúa, de que, tal como uma tartaruga, carregava sua casa nas costas.48 48 ANZALDÚA, 2005. Sua frase nos leva a pensar na experiência de nomadismo e de desterritorialização como aspectos marcantes da vida contemporânea. O exílio, segundo Said, é um lugar onde se vivencia, paradoxalmente, de um lado, a dor de "uma fratura incurável" e, de outro, a liberdade existencial de quem "atravessa fronteiras, rompe barreiras do pensamento e da experiência".49 49 SAID, 2003a, p. 58. Tal experiência de liberdade pode ser interpretada, por um lado, como o objeto de desejo que move as personagens do princípio ao fim das narrativas, fazendo delas mulheres guerreiras, que ultrapassam as prescrições que historicamente as fixavam à casa materna. Em nome dessa liberdade de atravessar fronteiras é que as personagens se movimentam, erram, se perdem, mas recomeçam. Para tentar a volta ao povoado em busca da família (Ponciá), para juntar-se às mulheres guerreiras de Tijucopapo e instaurar a guerra (Rísia), para seguir em frente, mais longe, mais à frente (Hermila). Trata-se de um modo muito particularmente feminista de ler e interpretar o mundo, e de produzir discursos que interfiram em seus contextos, instaurando, com guerra ou sem ela, uma forma de luta política contemporânea, em que se subvertem e se deslocam lugares de poder.

Contudo, a frase de Anzaldúa nos faz lembrar que, para todos aqueles que experimentam uma condição subalterna, a desterritorialização pode ser vista como experiência negativa, como desejo de ter um lugar, de pertencer, territorializar-se, enfim, de ter uma casa para onde voltar. Essa casa, com certeza, é a zona de segurança, em oposição à "zona de contato",50 50 PRATT, 1999, p. 7-30. onde se encontram o risco, a liberdade, o campo minado, que são os outros, sempre a desafiar o sujeito que se move.

Enfim, o que se pode concluir é que a errância entre a casa materna e o estar fora, no mundo, constitui sua condição, que é marcada pelo exílio, mas também pela busca libertadora. Seu ponto de origem, a casa, só pode ser revisitado na perspectiva da perda da fixidez, diluindo-se a ilusão

de reconquista de uma identidade perdida. Desse modo, partindo e voltando, num rito que se cumpre como uma iniciação, elas vivenciam o exílio como experiência nômade e contrapontística, mas também, ao mesmo tempo, reinventam seu pertencimento. Na carta que escreve a sua mãe, no final da narrativa, Rísia inscreve sua provocadora esperança: "É isso mesmo, mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem".51 51 FELINTO, 2004, p. 188. No final do filme em que se conta a história de Hermila, a placa na estrada acena uma promessa: "Aqui começa a saudade de Iguatu". Saudade, palavra emblemática em português, numa tradição de partidas, de muita ausência sem retorno.

[Recebido em agosto de 2009 e aceito para publicação em outubro de 2009]

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      Out 2009
    • Recebido
      Ago 2009
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