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Gênero e migrações na história entre Brasil e Itália: uma entrevista com Chiara Vangelista

PONTO DE VISTA

Gênero e migrações na história entre Brasil e Itália: uma entrevista com Chiara Vangelista

Cristina Scheibe Wolff; Joana Maria Pedro

Universidade Federal de Santa Catarina

Chiara Vangelista é professora de História da América Latina da Faculdade de Língua e Literatura Estrangeira da Universidade degli Studi di Genova. Formada em Ciências Políticas, suas muitas pesquisas trataram de temas relativos às fronteiras e migrações. Esses estudos iniciaram-se com a abordagem da imigração no Brasil, ampliando-se depois o leque dessas discussões para diferentes formas de migrações. Desde seus primeiros estudos, as mulheres e o gênero são temas de destaque que aparecem interconectados com a história da imigração, do estabelecimento de fronteiras, do trabalho e da ruralidade. A história oral, com uma perspectiva etnográfica, e também a utilização de imagens tais como as fotos publicadas por padres italianos para promover a imigração, sempre com uma mirada crítica, também são características de seu trabalho. Entre seus principais livros estão Os braços da lavoura: imigrantes e caipiras na formação do mercado de trabalho paulista (1850-1930), publicado na Itália em 1982 e no Brasil em 1991, em São Paulo, pela Hucitec; Terra, etnie, migrazioni. Tre donne nel Brasile contemporâneo (Il Segnalibro, 1999); e Confini e frontiere. Conflitti e alleanze inter-etniche in America meridionale (sec. XVIII) (Il Segnalivor, 2001). Chiara Vangelista é fundadora e responsável pelo Projeto Mujeres – Red Internacional para el Estudio del Género en America Latina (http://www.mujeres.it).

Esta entrevista foi realizada em sua visita ao Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina e nela procuramos explorar a trajetória dessa intelectual que tem feito muitas viagens entre o Brasil e a Itália. Além de falar de seus estudos, seus temas de pesquisa e das lutas levadas pelas mulheres acadêmicas na Itália, especialmente com relação aos estudos de gênero, Chiara Vangelista discorre também sobre a construção da Rede Mujeres e sobre aspectos das migrações contemporâneas de mulheres latino-americanas para a Itália.

Outra questão que se destaca na entrevista é a abordagem de gênero e memória. Chiara mostra, através de exemplos de sua pesquisa, de que maneira as narrativas orais focalizam o corpo como um "mapa das origens", as relações entre entrevistada e entrevistadora e, ainda, a forma como os acontecimentos do presente definem trajetórias para as narrativas. Enfim, sua entrevista nos ajuda a refletir sobre a maneira como as temáticas de histórias das mulheres e do gênero têm sido levadas pela pesquisadora italiana, as tensões entre pesquisadoras que usam essas categorias e a forma como a memória tem sido abordada em sua intersecção com as relações de gênero.

Joana Maria Pedro: Então, Chiara, o que a Cristina e eu estamos querendo saber é um pouco da tua história de vida. Um pouco da tua história profissional, intelectual. Como é que tu chegaste ao estudo sobre mulheres e gênero?

Chiara Vangelista: Comecei minha trajetória na Universidade de Turim, fazendo pesquisas sobre processos migratórios e relações inter-étnicas na fronteira brasileira. De fato eu comecei a ter interesse sobre questões de gênero graças à insistência de amigas minhas que tinham um grupo de trabalho na minha faculdade, que naquele momento era a Faculdade de Ciências Políticas, na Universidade de Turim. Esse grupo, que se chamava Temáticas Femininas, começou a atuar na primeira metade dos anos 80 e terminou no início dos 90. Era um grupo muito interessante, porque lutou muito para introduzir nas aulas da minha faculdade a temática de gênero. Para sintetizar: esse grupo propunha cada ano uma série de temáticas de gênero a serem desenvolvidas em várias disciplinas, em vários cursos. Podia ser sociologia, antropologia, história, história da Itália, enfim, várias disciplinas. O que queria esse grupo? Que os estudantes pudessem substituir uma parte do programa institucional de cada matéria por esses seminários de gênero. Então, tratava-se de uma oferta livre de aulas, ou de um certo número de aulas, que poderiam ser de quatro horas, como de dez horas, dentro das atividades de ensino oficial da faculdade. Cada titular podia escolher uma das nossas temáticas e introduzi-la no seu curso. Esse foi um trabalho imenso, porque realmente a gente não estava acostumada a esse tipo de coisa, mas era uma época em que se podia fazer, porque estávamos no velho sistema universitário italiano, em que a didática era feita muito com seminários, grupos de trabalho... Agora não se pode mais, por causa da reforma (a nossa universidade se uniformizou, digamos, com os padrões europeus, três níveis de ensino: o primeiro grau, três anos; o mestrado, dois anos; e o doutorado). Antes não era assim. A nossa tese de graduação valia em nível internacional como uma tese de mestrado, porque eram quatro anos de cursos, mais uma tese que freqüentemente tomava outro ano ou mais de pesquisa. Então, naquela época podia-se fazer muitos seminários. Agora não seria mais possível. Esse grupo teve muitos problemas, mas foi muito combativo, e se baseava fundamentalmente no ensino. Uma amiga minha que era uma historiadora da situação da mulher na Segunda e na Terceira Internacional muitas vezes me convidou, e eu dizia que não, porque eu nunca tinha estudado a história das mulheres.

Acho que esse é um percurso que tem sido seguido por muitas de nós, não é? No início negamos dizendo: "Nunca estudei esse tema, não posso dar um curso assim". Mas as colegas feministas me explicavam que eu podia, numa aula, tentar ver as coisas com outro olhar. E no final eu aceitei. Pelo que me lembro, meus dois primeiros temas foram migrações femininas e a representação do corpo das mulheres indígenas. Então entrei num grupo de colegas que já estavam avançando nesse sentido, que tinham relações internacionais referentes ao discurso da história de gênero. Aquele era justamente o momento em que na Itália estavam abandonando o estudo da mulher e priorizando o estudo do gênero. Ainda é um percurso que não me parece acabado, pois eu vejo nas revistas que se escreve sempre sobre história das mulheres. Aliás, o meu primeiro livro tratou de história das mulheres, também. Era sobre a formação do mercado de trabalho paulista desde 1850 até 1930, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Eu estudei a oferta e a procura de mão-de-obra, as dinâmicas do salário e a mobilidade da força de trabalho, e dediquei um capítulo sobre as mulheres no mercado de trabalho paulista. Escrevi esse livro entre 1977 e 1979, o que acabou sendo uma das primeiras análises que focalizaram as mulheres no Brasil.

Porém, se vocês me tivessem perguntado naquele momento se eu estava fazendo história das mulheres, eu teria dito que não, que o meu problema era estudar o mercado de trabalho, ver em que posição estavam as mulheres nesse contexto. Mas o contato com essas colegas de que lhes falei e a abordagem multidisciplinar de Temáticas Femininas me estimularam muito, sem dúvida. Inclusive me deu uma consciência maior da situação feminina na universidade. Porque antes eu pensava que as coisas que me aconteciam, como a marginalização, o mobbing [violência psicológica no trabalho], formavam parte do meu roteiro pessoal. Porém, ao ver em manifestações públicas como as colegas tratavam esse tipo de matéria (e como eram tratadas pelos colegas homens), eu tive um choque. Havia um verdadeiro enfrentamento na faculdade. Isso continuou quando se instituiu um centro interdepartamental de estudos das mulheres, o CIRSDe, do qual eu participei de forma marginal de sua organização, mas cheguei a ser do comitê diretivo, etc.

O meu interesse em relação aos estudos de gênero nasceu, então, em uma situação de relações profissionais. Foi isso que me levou a achar que o estudo das mulheres fosse um tema interessante. Por quê? Porque eu antes pensava que a história das mulheres era um assunto e não uma problemática. Essa era a minha crítica. Bom, eu dizia, é um assunto, onde está o problema historiográfico? Trabalhando, sobretudo não tanto com historiadoras, mas com antropólogas, entendi que essa era uma problemática, e bastante rapidamente eu vi que, no campo da história social, essa atenção para as relações de gênero era um aspecto fundamental.

Como disse, eu já tinha trabalhado sobre essas relações no meu primeiro livro, porque, ao analisar a colocação das mulheres no mercado de trabalho paulista, eu evidenciei a situação da mulher imigrada na fazenda, e constatei que ela fazia um trabalho que não custava nada, que não tinha um salário, mas que garantia a reprodução da família, como já havia apontado José de Souza Martins no seu O cativeiro da terra. Era o trabalho das mulheres na roça, na pequena criação, que dava a possibilidade de sustentar a família até o recebimento da remuneração para a colheita do café.

E na passagem da fazenda à fábrica paulista percebi que a mulher na fábrica passou a ser pensada como uma pessoa frágil, que precisava de proteção. Na fazenda, entretanto, ela sofria toda uma série de violências físicas, inclusive sexuais (O jornal Fanfulla é uma ótima fonte para esse tema), e essas violências na fazenda não eram apresentadas como um sintoma da fragilidade da mulher. No momento em que a mulher passou a trabalhar na fábrica, ela passou a ser representada como frágil e exposta a todo perigo. Então eu já tinha feito esse trabalho em relação às mulheres no Brasil, e me parecia, nesse contexto, fundamental, porque para entender o mercado de trabalho eu tinha de enfrentar esse problema. Assim, continuei trabalhando sobre o corpo das mulheres, o corpo das mulheres indígenas, e sobre migração.

Cristina Scheibe Wolff: Então, a sua aproximação com a questão de gênero já vem dentro da sua preocupação com o Brasil, como brasilianista?

Joana: Como você se tornou brasilianista?

Chiara: Na verdade eu me tornei latino-americanista. Desde os anos 60, quando eu estava no colégio e era a diretora do jornal do liceu. Então pensei uma outra produção editorial, editei por minha conta cadernos temáticos, que depois ia vender. Chamei a coleção Quaderni di Gruppo, para evidenciar que era o resultado de grupos de estudos autônomos. Eu organizava um grupo de estudo, escrevíamos nossos pequenos ensaios, e depois eu ia vender nas livrarias. Havia coleta de publicidade para financiar, era um trabalho muito interessante, mas também era um trabalho muito pesado, porque o diretor do meu liceu ameaçou de me expulsar da escola (de todos os liceus da Itália, foi a ameaça mais radical!) por causa da minha atividade editorial. Um desses cadernos foi sobre América Latina. Então, antes de entrar na universidade, eu já tinha esse interesse... Eu não queria fazer a carreira universitária, queria trabalhar nas organizações internacionais, e já tinha feito um curso em Genebra. Queria estudar também a história, ou da África ou da América Latina, enquanto continentes de passado colonial. Mas era muito mais interessada pela América Latina, pela longa relação com a Europa, pelas línguas, porque eu adorava o espanhol... Eu tenho uma formação clássica, estudei grego, latim, filosofia, como tantos italianos, então era interessada por esse elo entre a Europa e a América, no momento da Renascença. Parecia ser muito interessante estudar uma ligação que era de longa duração. No primeiro ano da universidade tive a sorte de freqüentar o primeiro curso de América Latina. Então comecei com esse curso, e no final decidi fazer a tese sobre o assunto porque eu sempre adorei estudar história, uma das matérias de que eu mais gostava. E me parecia que a história da América Latina não fosse ligada aos preconceitos da história nacional. Meu orientador, Marcello Carmagnani, tinha recém-chegado de Paris e se formara com Fernand Braudel e Ruggiero Romano. Parecia-me que no estudo da história da América Latina a gente podia ser mais livre. Não havia aquelas categorias da história nacional, o Risorgimento, o Fascismo, a Resistência, a classe operária, etc... Eram temas muito interessantes, mas que se tinha que estudar com regras muito definidas. Para mim a história da América Latina era um âmbito em que eu podia estudar o que me interessava e numa perspectiva internacional, sem esses laços, essa estrutura que meus companheiros da unviersidade tinham, porque havia professores que diziam: este tema pode-se estudar, este não. Comecei trabalhando com história econômica, sendo minha tese sobre migração e ciclos econômicos na Argentina e no Brasil. Fazendo a tese já pensei em continuar a carreira acadêmica, e de continuar estudando sobre a Argentina. Eu sabia bastante bem o espanhol, e tinha toda intenção de ir para a Argentina para continuar meus estudos, mas os resultados da minha tese me orientaram mais sobre o Brasil. Porque no caso da Argentina havia uma relação quase perfeita entre as variáveis que analisava, a imigração, a importação e exportação de mercadorias e a inversão de capitais estrangeiros. Parecia que todos esses elementos tivessem um andamento coerente. Para o Brasil nada funcionava. Então comecei a pensar o porquê disso. A hipótese com que conclui minha tese foi que era a questão da escravidão e do tipo de organização da produção na fazenda que fazia com que todas essas variáveis econômicas e sociais não seguissem um andamento parecido, entrelaçadas entre si.

Então me apaixonei pelo tema, pois me parecia que a história do Brasil fosse muito mais complicada e interessante. Fiz um curso de português, ganhei uma bolsa do CNR (o CNPq italiano) e cheguei ao Brasil em 1977.

Joana: Quanto tempo ficaste aqui?

Chiara: Na primeira vez um ano.

Joana: Tu chegaste a ter algum contato com o movimento feminista da Itália?

Chiara: Não.

Joana: Nenhum?

Chiara: Não, eu era bastante engajada politicamente...

Joana: Engajada em quê?

Chiara: Eram atividades de partido. Muito jovem, 17 anos, me associei ao Partido Socialista. Então, no momento em que surgiu o movimento feminista na Itália eu atuava em outro contexto político. Tinha a idéia de que era preciso, antes de conseguir os direitos da pessoa, precisava...

Joana: Fazer o socialismo.

Chiara: Exatamente. Não, não era tão assim, mas no contexto geral da luta política era... Todos juntos, homens e mulheres, não é? Ainda que eu tivesse muitos problemas como mulher na minha atividade política.

Joana: Chegaste a participar de algum grupo de consciência, tiveste notícia da existência de algum?

Chiara: Não, eu não gostava. Eu entendia as razões delas, mas não participava.

Joana: Mas havia na época.

Chiara: Havia, sem dúvida havia. Você sabia que em Turim existe um até hoje, o último sobrevivente?

Joana: Até hoje?

Chiara: Sim. Uma amiga minha, que muito colaborou com o Projeto Mujeres, se há a reunião do grupo, ela não está para ninguém, fica no grupo, é muito bonito. Elas se reúnem, não sei, uma vez por mês. E continua...

Joana: Por que na Itália foi muito forte também o feminismo da diferença, não foi? Tens alguma notícia a esse respeito?

Chiara: Não. Eu comecei realmente a pensar nesses temas em relação ao meu trabalho. E vendo como era importante no meu trabalho. Depois a minha situação profissional foi tal que eu entendi que o feminismo tinha razão. Mas nesse momento já estava trabalhando. No tempo da universidade, dos estudos, eu não era interessada, na verdade era contrária ao feminismo. Entrando no mundo da universidade minhas idéias mudaram, e também o movimento feminista estava mudando. Então, as coisas foram mudando, isso é importante.

Joana: Chiara, quero perguntar sobre os estudos de gênero na Itália. Se você pudesse falar um pouco sobre isso, como está, o que existe. E se tu tens alguma participação nesse campo de estudos, qual é a tua participação?

Chiara: Neste momento eu não tenho uma participação específica, a não ser quando sou convidada a alguma reunião falando sobre questões de gênero, e sobre as questões das migrações...

Joana: Tu és reconhecida como especialista em migrações e em América Latina.

Chiara: Sim, e nesse âmbito eu trabalho com gênero. Mas não participo mais de instituições acadêmicas ou associações que sejam estritamente ligadas com gênero. Eu participei de muitas, mas agora não. A mais importante associação de historiadoras, na Itália, é a SIS, Società Italiana delle Storiche, fundada em 1989, que tem uma atividade muito vasta (congressos anuais, seminários, publicações...), e que desde 2002 publica uma revista, Genesis, da qual fui do comitê editorial por três anos. A SIS organiza também uma escola de verão para mulheres, com bolsa de estudos para jovens. Eu participei de uma dessas sessões, e foi muito bom. Naquele tempo a escola tinha duas sessões de uma semana cada uma, e a cada ano os cursos eram dedicados a um tema específico, como gênero e guerra, gênero e relações raciais...

Joana: Quando acontecem? É nas férias?

Chiara: É nas férias. Acontece, se não me engano, na primeira quinzena do mês de agosto. É muito interessante. Agora está em Fiesole, perto de Florença, na sede do centro de estudos da CISL [Confederazione Italiana Sindacati dei Lavoratori], um dos três maiores sindicados italianos.

Joana: Quantos dias dura?

Chiara: Uma ou duas semanas. É realmente uma experiência que eu aconselho, porque é muito bom. Quando eu estive gostei muito, apresentei um seminário sobre gênero e relações raciais no Brasil, e o lugar também garantia uma inter-relação entre as pessoas muito intensa. Havia o curso propriamente dito, seminários e mesas, ótimo, realmente. No site da SIS [www.societadellestoriche.it] você encontra as informações. Sempre para historiadoras, há também a nova revista telemática Storia delle Donne, dirigida por Dinora Corsi, da Universidade de Florença. Estão preparando o terceiro número.

Joana: O gênero passou a ser discutido com facilidade na Itália? Porque aqui no Brasil há algumas disputas: feminismo, gênero, história das mulheres... O que é que tu vês disso tudo, na Itália?

Chiara: Na universidade?

Joana: Isso, nas universidades.

Chiara: Acho que o roteiro que eu fiz muitas fizeram. Há uma parte das colegas que se formaram no feminismo e tiveram uma militância, mas é uma parte muito pequena. A maioria são pessoas como eu, historiadoras, que se aproximaram aos poucos da temática. Então acho, antropologicamente, que há uma distinção. Não é tão fácil se comunicar. Mas o problema de fundo é outro: a não ser nas faculdades de letras e de línguas, as mulheres nos níveis mais altos da academia quase não existem. Eu trabalhei na Facultade de Ciências Políticas (agora estou na Faculdade de Línguas e Literaturas Estrangeiras), onde por muitos anos só uma mulher era catedrática. Então era muito complicado ter visibilidade. Ainda mais, era muito difícil que uma mulher se envolvesse em temáticas de mulher. Passou bastante tempo...

Joana: O bastante tempo que tu dizes é quanto?

Chiara: Metade dos anos 90...

Joana: Metade dos anos 90, que começou...

Chiara: Começou a ser... Havia pioneiras nessas coisas, mas começou a ser normal falar de mulheres em um curso na universidade.

Joana: E o gênero? A categoria?

Chiara: A categoria "gênero" é mais complicada, porque de fato não é tão difundida... Não em nível de pesquisa, mas em nível de ensino, enfim, não é tão assim...

Joana: Menos ainda que "mulher"?

Chiara: Sim, sem dúvida. E gênero é identificado com mulher, normalmente tem essa identificação. É bastante difícil que nos estudos se faça uma análise dinâmica. Eu vejo, por exemplo, nos congressos: é difícil que se faça essa análise dinâmica de gênero.

Joana: A categoria, então, seria pouco usada ainda...

Chiara: Não, a categoria é usada. Mas não sei com quais resultados concretos.

Joana: Muito mais como se fosse sinônimo de mulher?

Chiara: É. Essa é a minha percepção, não sendo uma especialista de gênero. Nesse caso seria melhor falar com uma pessoa que realmente estude só esse tema.

Cristina: Mas podias falar um pouco sobre o Projeto Mujeres, não é?

Chiara: O Projeto Mujeres nasceu em 1995, pela iniciativa dessa ONG italiana que se chama ISCOS [Istituto Sindacale per la Cooperazione allo Sviluppo]. Trata-se da ONG da CISL. A CISL e o ISCOS têm uma ligação de larga duração com a América Latina. Eles organizaram cursos para sindicalistas, cursos de especialização para computação em Porto Alegre, várias coisas. Eram bastante comprometidos com a América Latina, a partir da experiência de Allende e depois do golpe de Pinochet. E sendo eu uma das poucas latino-americanistas na Itália, chamaram-me para organizar um grupo de trabalho sobre as mulheres latino-americanas. Inclusive porque naquele momento tinham começado um trabalho com as mulheres sindicalistas da Colômbia. Então com todas essas iniciativas espalhadas, eles queriam reuni-las, para contextualizá-las, organizá-las em função da temática forte das mulheres, porque eles pensavam que era essa a temática com a qual queriam trabalhar na América Latina, sobretudo através da experiência da Colômbia. A idéia deles era de conseguir um grupo de trabalho italiano que fosse um ponto de referência e de informação sobre as mulheres latino-americanas. Eu propus fazer ao contrário: um grupo de mulheres latino-americanas que dessem informações, sugestões sobre o conhecimento das mulheres na América Latina. Em pouco tempo, uma hora, duas horas, já organizamos com o então diretor do ISCOS, Carlo Daghino, as idéias de fundo: uma rede internacional, européia e latino-americana, sobre os estudos das mulheres. O tema era mulher, não o gênero. No discurso não entrava a questão do gênero. Era a mulher. Então, começamos fazendo um noticiário que era a base... No noticiário nós recolhemos todas as informações sobre as atividades das integrantes. E as integrantes eram italianas, espanholas, belgas, brasileiras, argentinas, e algumas dos países andinos. Nunca conseguimos comunicar-nos realmente com a América Central. Isso foi sempre um problema. Temos integrantes mexicanas, por exemplo, mas não há uma rede lá. Não sei o porquê dessa falta de comunicação. E o grupo se formou e ficou bastante grande. São 150 integrantes, que enviaram informações para o noticiário, e que agora deverão enviar notícias para o site, que se formou agora, e nós organizamos vários encontros públicos e oferecemos bolsas de estudos. Conseguimos umas bolsas de estudos para pós-graduados e várias atividades ligadas a todas as temáticas da mulher, na universidade e nas instituições locais. Na universidade nós fizemos vários seminários, também com historiadoras e cientistas da América do Norte, por exemplo, para fazer comparações, e convidamos bastante gente. Existe também esse projeto com as sindicalistas colombianas que continua há alguns anos.

A um certo ponto decidimos introduzir no noticiário um pequeno ensaio, que não tinha de ser muito grande, dez páginas, sobre as temáticas femininas ligadas à América Latina. Então o Projeto Mujeres agora tem 11 anos, e acho que alcançou vários resultados positivos, entre os quais uma maior agregação entre as pessoas dentro do Projeto. Por exemplo, foi importante o convênio com o Centro Interdisciplinar das Mulheres da Universidade de Rosario, na Argentina, o convênio com a UNISINOS de São Leopoldo, que de alguma maneira reforçaram as temáticas e a visibilidade dos estudos de gênero. Constatei resultados nas relações entre as (e os) integrantes de Mujeres, e além de nosso círculo. Por exemplo, o noticiário serviu para uma colega estadunidense desenvolver uma parte da pesquisa dela, sobre imigração, nacionalismo e nacionalidade, estendendo essas problemáticas também à América Latina. Outro exemplo: o noticiário foi utilizado na Itália para encontrar pessoas, para serem convidadas a seminários ou congressos. O que eu lamento um pouco é que nem sempre essas formas de agregação e os convites foram comunicados ao Projeto Mujeres, ao Noticiário. Talvez pela falta de tempo, a gente não comunica, mas bastavam duas linhas, não é? Isso falta um pouco. Porque essas maiores informações seriam uma maneira para fazer crescer o Projeto, inclusive.

E agora abandonamos o noticiário pelo site, e eu espero de alguma forma retomar a parte impressa, não mais um noticiário nem uma revista, porque você sabe muito bem o que é o compromisso de uma revista, e então pensaria na publicação de cadernos temáticos... Na Itália sou fundadora e diretora de uma coleção que se chama L'Estremo Occidente, publicada pela casa editora Città Aperta de Troina, na Sicília. Trata-se de breves ensaios sobre a América Latina, no sentido do gênero. Acabamos de publicar agora um livro de Maria Luiza Marcílio, que foi a fundadora da escola de demografia histórica na USP. O livro é sobre a infância abandonada no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, e teve muito sucesso na Itália. Outro volume da coleção dedicado às mulheres é o de Camilla Cattarulla e Ilaria Magani, sobre as mulheres imigrantes européias na Argentina, através da mais recente literatura argentina... E publicamos quatro ensaios sobre o México (Supervivencias de un mundo mágico) de Laurette Séjourné, uma arqueóloga e antropóloga muito inovadora, que faleceu há pouco, em 2003.

O último filhinho, por assim dizer, de Mujeres é o arquivo que se chama Audio-archivio delle migrazioni tra Europa e America Latina. A sua denominação curta é AREIA e é ligado à minha cátedra de História da América Latina, onde, com meus alunos, estou recolhendo, depositando entrevistas sobre as migrações históricas da Europa até a América Latina, e as migrações contemporâneas da América Latina até a Europa, de forma particular na Itália, mas também na Espanha, e entrevistas sobre as migrações internas, sobretudo as migrações femininas – migrações internas campocidade, ou migrações entre diferentes países latino-americanos.

Cristina: Agora nos últimos tempos eu tenho ouvido bastante, tem saído aqui na televisão e nos jornais, que muitas das mulheres brasileiras que fazem essa migração estão envolvidas em redes de tráfico. Eles chamam aqui de escravas brancas, redes de prostituição. Você vem trabalhando com isso?

Chiara: Não, eu gostaria de trabalhar, mas até agora não encontrei a via para fazê-lo, porque isso precisa de uma equipe. Para uma historiadora é difícil entrevistar as prostitutas na rua, sendo necessária uma estratégia de aproximação. Parece mais um trabalho para sociólogos, antropólogos. Olha, a imagem da mulher prostituta latino-americana na Itália apresentou-se já no começo dos anos 80, quando a imigração ainda era pouca. Geralmente o estereótipo da prostituta era justamente ou a brasileira ou a dominicana. Que isso corresponda a uma situação de fato, não é tão evidente. Claro que há mulher e homem. No caso dos brasileiros, há mulheres e homens; no caso das dominicanas são só mulheres. Mas isso não é muito difundido ainda porque as grandes migrações, os grupos étnicos, os grupos nacionais mais envolvidos na prostituição são outros, porque existem organizações criminosas de outros países europeus. Do Brasil eu nunca escutei sobre organização criminosa de importação de mulheres para prostituição. As notícias que estão nos jornais são mais de mulheres que organizam autonomamente o que nós chamamos de casas de encontros. Na Itália não há uma regulamentação disso, como na Alemanha. Na Itália as casas de prostituição são fora-da-lei. Mas eu acho, pelos trabalhos que se fazem, que há uma imigração brasileira muito integrada vinda da classe média, e que não é tão visível, porque se espalha, mimetiza-se. As associações de imigrantes brasileiros, como dos argentinos, ou dos peruanos, dos equatorianos, funcionam – eu acompanhei bastante – no momento da chegada. Então se reúnem, fazem essas associações de amizade, Brasil–Itália, Argentina–Itália, promovendo atividades culturais, que é uma maneira para se ajudar, e para se propor para outras coisas, para conhecer o país, para se oferecer para traduções, ou entrar no comércio. No momento em que as pessoas encontram trabalho, as associações...

Cristina: Se desmancham.

Chiara: Não só. Há tensões muito fortes nessas associações. Eu gostaria de encontrar uma aluna que trabalhasse sobre isso, porque é muito interessante. A associação se divide, depois se divide outra vez, existem brigas muito fortes e dali a pouco não existem mais. E então é uma imigração que não se reconhece como identidade, a não ser nas festas. É uma imigração que especificamente não se diferencia da população italiana, como a imigração africana, em que imediatamente a gente já identifica, pelo corpo, a pessoa como imigrante. Com os brasileiros fica muito mais difícil, como você pode imaginar...

Cristina: Muitos são descendentes de italianos...

Chiara: Sim, também, mas não só. Bom, a maioria dos brasileiros tem ascendentes italianos em família, a maioria dos italianos tem antepassados imigrantes, então é fácil. Mas não me parece que seja esta a auto-representação dos brasileiros na Itália. O discurso pode também chegar nisso, "ah sim, minha avó era..." Mas não é tanto assim. O grupo mais forte, mais numeroso, está em Milão, se interessam pelo comércio, pelo espetáculo. Com referência à prostituição, nós temos problemas, muito graves, com as mulheres do Leste e da África.

Joana: Quando eu estava na França, a prostituição do Leste Europeu era tão forte que fazia as outras parecerem invisíveis.

Chiara: Inclusive a italiana. É impressionante.

Joana: Eu queria que tu contasses um pouco sobre as obras que tu tens feito, um roteiro das pesquisas, no que é que resultou isso, o que é que foi publicado. Claro, sempre voltado para a questão das mulheres, o que é que tu publicaste até hoje a esse respeito.

Chiara: Desde o início, como eu contava, havia esse interesse pelas mulheres nas relações de trabalho. Depois, o mais importante que escrevi sobre as mulheres é sem dúvida o livro que publiquei em 1999, Terra, etnie, migrazioni. Tre donne nel Brasile contemporaneo. Eu tinha recolhido várias entrevistas com mulheres e homens, para indagar sobre a identidade brasileira. Escolhi as histórias de vida de três mulheres, que me pareciam ter roteiros exemplares, trabalhando com a relação delas com a terra, a relação com a imigração e a relação com a pertença racial, no sentido da aparência física. Este terceiro tema eu não pensava enfrentá-lo de início nas minhas pesquisas, mas na realidade todas as entrevistas, inclusive as que não utilizei para este livro, chegaram a este ponto central, o da raça. Então foram as depoentes que me levaram a trabalhar sobre o tema da raça. O livro apresenta essas três histórias de vida, de duas mulheres brasileiras e uma mulher italiana imigrada para o Brasil em 1954. Através dessas histórias de vida, eu pesquisei a relação com a terra, como forma de auto-representação, como uma maneira de se colocar socialmente. Uma das testemunhas se apresenta como descendente de fazendeiro (uma relação forte com a terra, bem colocada socialmente); outra, a italiana, não tinha na terra um elemento de auto-representação, não obstante o pai dela tivesse comprado uma fazenda antes de emigrar para o Brasil. A terceira mulher se apresentava como uma mulher sem terra, no sentido de uma mulher muito móvel no território, que seguia as migrações do pai, homem de fronteira. Outra problemática do livro é a migração, nas diferentes formas, interna e externa, migração apresentada pelas três mulheres como um aspecto fundamental da brasilidade, mas ao mesmo tempo como uma maneira de se afirmar e de construir a própria personalidade. Para todas essas três mulheres, a migração importante é a do campo para a cidade, com roteiros distintos. São três mulheres da classe média que encontram na migração para a grande cidade, São Paulo, o trabalho e a realização pessoal.

Como aparência, uma é branca e loira, outra é mais escura e uma é negra. Então aqui entra o terceiro nível da pesquisa, que é a aparência física e a sua influência nas relações afetivas, familiares e sociais. E o corpo como mapa das origens. Eu trabalhei sobre tudo isso utilizando nos depoimentos tudo que era apresentação do corpo. E no desenvolvimento dessa problemática me achei em uma posição de alguma maneira privilegiada, porque eu era uma historiadora estrangeira à qual todas as depoentes explicavam o Brasil, e forneciam uma história do Brasil. Foi muito interessante, porque, vocês sabem, cada depoente utiliza a entrevista, gerencia a entrevista... Segundo sua personalidade e seus objetivos. Assim, há aquela que é professora, e explica tudo, e quer que a entrevista, e a pesquisa, seja dela mesma, e tem a outra (a que se apresentou como uma mulher de fronteira) que, no momento de narrar, não fala mais, porque pensa que a vida dela não tem nenhuma importância, então: "Você é historiadora, você conhece, você é professora da universidade, e eu o que posso dizer?" E a terceira, a mulher italiana, que tem por causa disso uma cumplicidade comigo: "Nós somos italianas, nós sabemos como é esse país, não é?".

Um outro trabalho que foi importante na minha formação é uma pesquisa que eu fiz no interior de São Paulo, num bairro rural do Vale do Ribeira, em 77 e em 86, em dois momentos. Então, na primeira vez, quando eu fiquei bastante tempo fazendo entrevistas, era o período da ditadura. Naquela época, como dizia, eu não considerava muito as mulheres na perspectiva das relações de gênero; eu queria fundamentalmente reconstituir a memória do bairro, que estava perto de um antigo quilombo, queria saber se havia memória do quilombo. Quando cheguei pela segunda vez, dez anos depois, eu estava interessada nas relações de gênero. Então fiz também comparações com a situação antecedente, e eu também era uma mulher diferente. Tinha outro roteiro. Estava casada, com filho. Eu estava sozinha no bairro, eu sempre fiz minhas viagens de pesquisa sozinha... Então, lá, o trabalho foi muito interessante, porque por um lado era a minha situação de mulher no bairro rural, e por outro era o estudo da condição, das ações das mulheres naquele lugar, num momento muito especial que era a vigília das eleições. Eu escolhi justamente aquele momento de mudança nacional, para estudar seus reflexos em nível local... Assim, observei as dinâmicas entre gênero nos dias antecendentes às primeiras eleições democráticas... E foi uma experiência muito importante para mim, no sentido que foi uma daquelas experiências que modificam o curso das pesquisas. Para mim as entrevistas foram isso. Ainda, devo acrescentar, que eu tenho usado poucas das entrevistas que fiz, comecei a fazer entrevistas duas semanas depois que cheguei ao Brasil, em 1977, mas era só porque eu precisava construir uma memória. O Brasil não era meu país, então me faltava não só o idioma, mas me faltavam todas aquelas pequenas referências que fazem parte de uma memória coletiva. E a gente não pode ir assim perguntando. Com um gravador, a relação é mais clara, com um sentido bem determinado, sobretudo num período como os anos 70. Assim, aquelas entrevistas no bairro rural foram uma experiência muito importante, que se concluíram com um ensaio só, porque infelizmente o arquivo do município desse bairro foi queimado. Por isso, não pude escrever um trabalho mais amplo, de comparação entre história e memória.

Dentro dos meus escritos sobre gênero e migrações, me interessou muito este trabalho "Gênero e estratégias migratórias: mulheres italianas imigrantes no estado do Espírito Santo", porque retomei os estudos estatísticos para individualizar as estratégias migratórias dentro do núcleo familiar. E de fato as conclusões foram interessantes: as famílias procediam a uma escolha na base do gênero, pelo que se referem aos filhos para serem trazidos ao Brasil. Normalmente deixavam na Itália as filhas adolescentes. Levavam os filhos homens – no caso dos pequenos levavam todos –, mas as filhas adolescentes geralmente ficavam na Itália. Isso me pareceu uma coisa interessante para ser estudada.

O que está me interessando muito agora é esta linha que está em parte indicada com o texto que apresentei em Barcelona há dois anos, "História, memória e transformação do passado: para um estudo da identidade ítalo-brasileira". Digamos que é a introdução da minha nova pesquisa, que fundamentalmente se baseará seja sobre entrevistas, seja sobre a produção das "comunidades" de descendentes italianos no Brasil. Então essa é a minha nova perspectiva, no âmbito dos estudos do gênero. O restante da minha produção, mais que a metade, é sobre as políticas tribais em relação à fronteira de expansão nos séculos XVIII e XIX. Não sou uma historiadora das mulheres stricto sensu, então, não sei se minhas reflexões podem ser interessantes.

Cristina: Eu acho que sim, que mostras uma trajetória, de historiadora e de proximidade com as mulheres...

Joana: Nós te agradecemos a entrevista...

Entrevista realizada em 21 de setembro de 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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