Resumo:
Além da importância musical e teatral, as óperas oitocentistas representam, na cultura ocidental, uma inestimável importância narrativo-textual que proporcionou, junto com a cultura literária e artística da época, a configuração de subjetividades de gênero, especialmente aquelas relacionadas ao feminino. As análises de Norma, La Traviata e Carmen permitem avaliar as subjetividades femininas que eram representadas por suas protagonistas e como elas se relacionavam com seus desejos, afetos e pares amorosos. Partimos de uma leitura feminista e de gênero que tem por objetivo estudar as múltiplas possibilidades que o feminino foi representado nesta arte, vinculando-o com as principais agências que se tornaram responsáveis pela produção das subjetividades das mulheres do século XIX e que se estendem até os dias atuais: sexualidade, amor, filhos e matrimônio.
Palavras-chave: gênero; cultura operística; mulheres; século XIX
Abstract:
In addition to musical and theatrical importance, the nineteenth-century operas represent a priceless narrative-textual in Western culture which provided, along with the literary and artistic culture of that period, the configuration of gender subjectivities, especially those related to women. The analyzes of Norma, La Traviata and Carmen allows to evaluate the female subjectivities that were represented by their protagonists and how they were related with their desires, affections and with their loving couples. We start from a feminist and gender reading that aims to study the multiple possibilities which women were represented in this art, linking it with the main agencies that became responsible for the production of subjectivities of women in nineteenth century and that are extended nowadays, which are: sexuality, love, marriage and children.
Key-words: gender; operatic culture; women; XIX century
Nunca se falou tanto das mulheres e de sua sexualidade como no século XIX. O assunto está em todo lado: nos catecismos, nos livros de boa conduta, nas obras de filosofia, de medicina, na literatura e, evidentemente, na música. De modo geral, a cultura visual, literária e musical produziu um vasto quadro discursivo de figuras femininas, muitas delas consistentes e reais, outras contraditórias e fugazes, embora todas elas definissem poderosos elementos da constituição, sempre em mudança, do que significava ser mulher. Em uma leitura apressada, podemos afirmar que essas figuras organizavam a feminilidade em torno de dois polos opostos: um normal, ordenado e tranquilizador, o outro desviante e perturbador da ordem moral e dos costumes patriarcais.
Mas entendemos que a cultura escrita, visual e musical é um lugar de questionamento, transgressão e erupção de ideias e valores povoado por personagens com personalidades cambiantes, paradoxais, levando-nos a pensar que o lugar dos sentimentos, da razão, dos pensamentos e das sensibilidades não pertence a zonas fixas, claras ou escuras, mas sim àquelas que se constituem como borradas e cinzentas. Seria a zona do estranhamento, onde tudo se embaralha, principalmente quando se trata da produção discursiva da alteridade feminina. Consideramos que, neste contexto, o próprio processo de subjetivação e identificação, através do qual os sujeitos se projetam em suas identidades culturais, tornou-se mais provisório e problemático.
No entanto, na contramão desta reflexão, nos interessa aqui primeiramente considerar os questionamentos acerca da crença que ainda insiste em perdurar, num sujeito universal, unificado numa verdade sensível, inteligível e estável, defendida pela filosofia metafísica e representacional setecentista. Para muitos pensadores do iluminismo, o homem era concebido como fonte de suas representações, de seus atos e fundamentos e assim, um “eu universal” constituir-se-ia. Nesse sentido, “a visão dominante desde o século XVIII era que há dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos”, como colocou Thomas Laqueur, “e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis de gênero, são de certa forma baseados nesses fatos”. (LAQUEUR, 2001, p. 18.)
Ao aceitar a diferença entre homens e mulheres, Jean-Jacques Rousseau destaca a diferença assinalável entre as relações morais de um e de outro. Assim, ele estabelece que “um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco”. (ROUSSEAU, 1999, p. 492.)
Estabelecido o princípio da inteligibilidade binária de gênero, cabia às mulheres “a obediência e a fidelidade que deve ao marido, a ternura e as atenções que deve aos filhos”, sendo “consequências tão naturais e tão visíveis de sua condição”. (ROUSSEAU, 1999, p. 533.)
A estes papéis definidos, centrados e fixos do sujeito iluminista, a cultura artística do século XIX apresenta uma questão inquietante: será a mulher somente um sujeito representado pelo imaginário mítico de Madonna ou Eva? Como nos lembra Rita Felski, a mulher na literatura moderna - como Lulu, Nana, Emma Bovary - exemplifica num primeiro momento, a associação do feminino com a natureza, as formas primitivas do inconsciente, uma mulher sem conteúdo, somente objeto, uma criatura artificial que assume várias máscaras. (FELSKI, 1995, p.4.) Predomina, nos romances e folhetins, a imagem da prostituta e da atriz, ou ao contrário, o da mãe de família, pura, aquela que cumpre com afinco seus deveres domésticos. De qualquer modo, há uma combinação paradoxal de “Eros” e de uma outra força que leva as mulheres a um vazio existencial, relativo à vivência restrita ao espaço doméstico. Eis, então, a aparente manifestação da modernidade feminina do século XIX.
Para turvar ainda mais as águas desse debate, Felski não corrobora a simples explicação dos pares binários de gênero em que a “mulher é o oriente e o homem o ocidente”. Ou então que a mulher é a emoção e o homem a razão.(FELSKI, 1995, p. 7.). Tendo em vista que a autora escolheu uma análise diferente dos estudos que apenas se limitam às representações binárias e opostas de gênero, promovendo a complexidade e contradições dos relacionamentos modernos, pensamos que a cultura operística oitocentista pode corresponder a esse projeto maior, no qual é possível superar as simples dualidades, os papéis fixos de gênero e as ideologias totalizantes acerca do processo de constituição de subjetividades femininas e masculinas. Articulando a teoria cultural e a história cultural, Felski se dirige aos processos que constituíram a política de gênero do final do século XIX e início do XX, e propõe a seguinte tese:
Precisamente por esta razão, minha própria análise não tenta oferecer uma conclusão grandiosa e filosófica da natureza generificada e da lógica da história ocidental. Em vez de criar um mito feminista abrangente do moderno, escolhi uma outra abordagem que objetiva desvelar as complexidades da relação da modernidade com a feminilidade através da análise de suas representações variadas e concorrentes (FELSKI, 1995, p. 7).
Trataremos neste artigo, portanto, das múltiplas subjetividades femininas presentes no sistema dramatúrgico da ópera oitocentista italiana e francesa. São vários os desdobramentos que este tema oferece, uma vez que assuntos como as relações familiares e a tríade amorosa aparecem fervorosa e articuladamente, de modo que iremos privilegiar a associação entre estes temas com a subjetividade de gênero. Ou melhor, se quisermos pensar de que maneira o gênero é elemento fundador da constituição subjetiva de homens e mulheres, acreditamos que as óperas têm uma importância fundamental na produção de subjetividades, sobretudo aquelas associadas aos modos de comportamento e pensamento do século XIX.
Para este fim, escolhemos três grandes encenações operísticas que se destacaram no século XIX e tiveram grande repercussão internacional no século XX. A primeira delas é Norma (1831), de Vicenzo Bellini; a segunda é La Traviata (1853), de Giuseppe Verdi, e a última é Carmen (1875), de Georges Bizet. Poderíamos ter escolhidos outras como Tosca, Lucia de Lammermoor, Manon, La Gioconda, Aida, etc., justamente porque, invariavelmente, todas elas registram, de maneira complexa, as subjetividades de gênero em seus personagens. Mas a escolha das óperas mencionadas implica numa escolha estratégica na qual podemos problematizar as múltiplas facetas do feminino no interior de um processo histórico em formação. Essas representações relacionam-se entre si, complementam-se, contradizem-se, mas o que importa é que elas nos permitem perceber os medos, anseios e as fantasias masculinas compreendidas numa dada formação histórica que está em consolidação e, porque não, em mudança também. Não queremos, contudo, propor um relativismo histórico, cujas reflexões incidem numa falta de produção de sentido sobre as subjetividades de gênero relativas ao século XIX. Temos a intenção e o cuidado de colocar à luz a complexa rede de agenciamentos e relações humanas entre homens e mulheres, as quais nos permitem distanciarmo-nos de uma leitura unívoca e binária dos posicionamentos de gênero do século XIX.
A experiência operística oitocentista francesa e italiana desenvolve-se a partir de um processo de racionalização da ordem social burguesa. A divisão das esferas pública e privada, as relações de poder, os papéis sociais e as funções assumidas por homens e mulheres, fornecem os elementos necessários para a constituição dos enredos. Isso se dá, conforme Paula Gomes Ribeiro, por intermédio das relações interpessoais pautadas no núcleo familiar e nas experiências amorosas. É dessa forma que observamos, nos dramas líricos, os costumes burgueses, bem como as diferentes "tipologias de personagens, funções, situações, atitudes, espaços, numa estrutura dramática que vai regular uma parte significativa da criação e da representação líricas até a atualidade". (RIBEIRO, 2012, p. 163).
A própria teatralidade do cotidiano familiar, como esclarece Michelle Perrot, foi matéria de inspiração para os artistas da época: “principal teatro da vida privada do século XIX, a família forneceu-lhes as suas figuras e os seus papéis, as suas práticas e os seus ritos, as suas intrigas e os seus conflitos”. (PERROT & Anne MARTIN-FUGIER, 2009, p. 91).
Por outro lado, as óperas não refletem apenas os costumes de um determinado contexto histórico. Elas também são dotadas de uma função social que mobiliza reflexões, sentimentos e comportamentos. Na experiência operística, portanto, verifica-se o processo de fixação das normas, da representação do núcleo familiar burguês e dos papeis sociais/sexuais que se esperava fossem cumpridos por homens e mulheres, caracterizando-se como instrumento ideológico estratégico de educação moral e autorregulação social.(RIBEIRO, 2012, p. 164).
Conforme Carolyn Abbate e Roger Parker, isso se aplicava ainda mais quando se tratava da publicação e disponibilização dos libretos, muitas vezes bilíngues, durante as produções operísticas (ABBATE; PARKER, 2015). A recepção das narrativas e incorporação de valores e normas contidos nos libretos foi objeto de estudo de Abbate, ao analisar as experiências subjetivas dos membros da audiência. (ABBATE, 1991, 2001.) Um dado curioso assinalado por Abbate e Parker é o fato de que a leitura do libreto estava articulada a outras atividades alternativas de que dispunham os frequentadores da ópera no passado. Ou seja, durante as apresentações e com os libretos nas mãos, os frequentadores jogavam xadrez, conversavam, realizavam negócios e combinavam encontros românticos. Tornou-se natural assistir à ópera tanto por motivos sociais como musicais: não frequentar a ópera era banir-se da sociedade e perder a oportunidade de discutir negócios rendosos e assuntos pessoais alheios à música, principalmente aqueles relacionados a encontros românticos e assuntos familiares.
Norma: o amor impiedoso e a incerteza do amor aos filhos
Norma, ópera de Vicenzo Bellini (1801-1835), cuja estreia ocorreu em Milão no Teatro alla Scala, em 1831, foi fundamentada na história Norma ou l’Infanticide do escritor francês Louis Alexandre Soumet (1786-1845), que por sua vez, era uma livre adaptação do romance histórico Les Martyrs, escrito por François René de Chateaubriand (1786-1848). Por extensão, sabe-se que sua fonte mais remota é o mito clássico Medeia, do poeta grego Eurípedes (485-406 A.C.), cuja tragédia narra o destino de uma sacerdotisa e feiticeira que traiu seu povo por amor a Jasão e, quando se viu abandonada pelo amante, acabou assassinando os próprios filhos como forma de vingança a ele.
Felice Romani (1788-1865), o autor do libreto, elaborou a narrativa em torno de uma personagem feminina marcada por sua forte personalidade e de um contexto histórico e temporal distante da vida italiana do século XIX, qual seja, a Gália sob o domínio dos romanos. O enredo é composto pela dinâmica amorosa de três personagens, centrando-se mais no drama de amor e de sacrifício do que nos aspectos políticos, religiosos ou ideológicos do conflito. A ação se passa em meados do século I A.C., e mostra a história do amor proibido entre Norma - amante sacerdotisa e filha de Oroveso, chefe e sacerdote do templo dos druidas - e o procônsul Pollione. No primeiro ato, Pollione confidencia a seu ajudante, Flávio, que está cansado de sua amante, com quem teve dois filhos, uma vez que sua paixão foi transferida a uma jovem “virgem celestial” Adalgisa, também sacerdotisa.
A mensagem é clara e decisivamente moralista: a paixão proibida e o adultério não podem ter futuro promissor, especialmente para a amante que será substituída, cedo ou tarde, pela própria esposa ou por outra virgem inocente. Quando se falava de sexo, referia-se, sobretudo ao perigo sexual, à proliferação de práticas sexuais fora da santidade do lar, desligadas do ato procriador. Como aponta Judith Walkowitz, por causa das suas implicações para a feminilidade normativa, o sexo não procriador no contexto do casamento mostrou-se tão perturbante como a expansão da prostituição e as relações dos indivíduos do mesmo sexo. (WALKOWITZ, 1991, p. 404).
A cultura literária também tratou vastamente desse tema como nos casos de Madame Bovary, Nana e Lulu, cujas formas de viver o amor e a sexualidade incidiram em destinos trágicos e fatais. Na vida real, é conhecido o bilhete com que Baudelaire se despede de Mme. Sabatier, que a cortejou intensamente em sonetos poéticos, mas que no dia seguinte à noite de amor, escreve: “Há alguns dias eras uma divindade. Ei-te agora mulher”. A queda é brutal, sem apelo, apenas temperada pela confissão premonitória que lhe fizera no tempo das suas investidas: “Sou um egoísta - sirvo-me de vós”. (Charles BAUDELAIRE apud, Stéphane MICHAUD, 1991, p. 157).
Por considerar Norma uma mulher forte e indomável, Pollione confessa a Flavio que receia uma possível vingança por parte dela, cuja ira poderia interromper sua união com Adalgisa. O procônsul revela uma das facetas da subjetividade masculina quanto ao possível temor diante do poder feminino, caracterizado por intimidantes atos iracundos e vingativos. Mas por outro lado, existia também outra característica do poder atribuído ao feminino que dificilmente era nomeado, legitimado e ordenado em palavras e descrições. A literatura expressa bem esse aspecto: Honoré de Balzac, por exemplo, mostra temor perante a monstruosidade da mulher: ela desafiaria as leis da natureza, aterrorizaria por “não sei o quê de virgem, de indômito”. E acrescenta, colocando-se vivamente à distância do modelo bíblico: “a mulher forte não deve ser mais que um símbolo, ela apavora quando é vista em realidade”. (Honoré de BALZAC, apudMICHAUD), 1991, p. 157). “As mulheres, que força!”, exclama Jules Michelet, traduzindo uma representação comumente compartilhada segundo a qual as mulheres têm a influência difusa e eficaz dos costumes. (MICHELET, apud MICHAUD, 1001, p. 158).
Em todos os tempos, os homens tiveram medo das mulheres, pois a mulher é a Outra, a estrangeira, a sombra, a noite, a armadilha, a inimiga. (PERROT, 2005, p. 265)
Em relação ao medo do poder de Norma e conforme um sonho premonitório, Pollione revela:
De repente, entre nós, terrível, veio intrometer-se uma sombra: um amplo manto druídico envolve-a como uma nuvem; um raio cai sobre o altar, o dia cobre-se com um véu, mudo, e ao redor expande-se um horror sepulcral. Olho, e a adorada virgem já não encontro a meu lado; ao longe não ouço mais do que um gemido misturado com o choro dos meus filhos... E uma voz horrível Ressoa do fundo do templo: Norma assim zomba de um amante traidor! (Vicenzo BELLINI, 2011, p. 21)Norma, representada por uma sombra, sempre é mostrada de maneira solene nos atos. Em cena e com toda a sua autoridade enunciativa, repreende os gauleses pelo seu desejo de se lançarem em guerra contra os romanos. Como fala em nome de Deus, ninguém senão ela poderá decidir qual será o melhor momento para a insurreição. A sacerdotisa espera adiar tanto quanto possível o momento do conflito que surgirá futuramente entre seus deveres patrióticos e o amor por Pollione. É no sentido político que Norma não pode ser vista como uma mulher passiva e submissa, sem poder de enunciação e decisão, principalmente no tocante ao destino de seu povo. Devido à capacidade premonitória que lhe confere poder sobre os demais sujeitos, é ela quem decide como e quando o exército gaulês deverá entrar em conflito com os romanos.
Sobre o poder depositado a Norma, torna-se interessante destacar as reflexões de Jacob Burckhardt. Em seu célebre livro Civilização do Renascimento na Itália, que exercerá influência sobre filósofos e historiadores do final do século XIX, Burckhardt alertava que para compreender a sociedade da época do final do Renascimento, era essencial saber que a mulher era considerada igual ao homem. Se os italianos do Renascimento não mencionavam a emancipação da mulher, é porque esta já fora naturalmente realizada. A mulher devia, da mesma forma que o homem, tender a uma personalidade distinta e completa em todos os sentidos:
O maior elogio que se poderia tecer às notáveis italianas daquela época, consistia em afirmar que possuíam um espírito viril, uma alma viril. Basta que se considere a atitude extremamente viril da maior parte das heroínas épicas, sobretudo das de Boiardo e de Ariosto, para saber que se tratava de um ideal bem definido. O título de “virago”, que nossa época considera um elogio bastante ambíguo, era então a distinção lisonjeira. (Jacob BURCKHARDT, 1986, p. 343.)
Lucia di Lammermoor, La Gioconda e Tosca representam mulheres que, mesmo agindo passionalmente na tríade amorosa, atuam de maneira mais assertiva e menos submissa aos desejos e determinações dos personagens masculinos. Mulheres que são de certa forma, conscientes de suas emoções, fiéis aos seus desejos e determinadas quanto às ações que devem tomar para realizar seus objetivos. Na cena seguinte, sem saber que Norma é amante de Pollione, Adalgisa faz uma visita a ela a fim de lhe confessar sua paixão por um homem e, consequentemente, a angústia que sente por ter quebrado os votos sacerdotais por causa do amor proibido. A princípio Norma se mostra compreensiva, pois ela própria viveu uma situação idêntica. Mas, ao saber que o amor de Adalgisa é por Pollione, Norma transita da compreensão para a fúria, amaldiçoando-os. Sua “fúria ardente o perseguirá” de tal modo que a “vingança, dia e noite, rugirá ao seu redor”. Ao fim do primeiro ato, Norma rechaça Pollione com um gesto de braço e indica-lhe que saia, não permitindo a ele espaço para outra ação ou enunciação.
No segundo ato, a sacerdotisa encontra-se em sua morada, nas profundezas do bosque sagrado, e segura um punhal, pois está decidida a matar os dois filhos que teve com o procônsul. No entanto, Norma é uma personagem multifacetada: é uma sacerdotisa enigmática e, ao mesmo tempo, clara; é também uma mãe terna, mas distante; uma amante despeitada, mas complacente, além de amiga enfurecida, mas compreensiva. Quando Clotilde, sua confidente, pergunta por que tem medo e qual é o motivo para querer se afastar de seus filhos, a protagonista responde:
Não sei. Sentimentos contraditórios atormentam a minha alma. Amo e odeio meus filhos ao mesmo tempo! Sofro por vê-los, e sofro por não ver. Sinto um prazer nunca antes experimentado, e, ao mesmo tempo, uma dor por ser sua mãe. (...) Matar meus filhos! Os meus ternos, ternos filhos, eles, até agora minha alegria, eles, em cujo sorriso julguei ver o perdão do céu... E eu vou mata-los? (BELLINI, 2011, p. 30)A faceta maternal vence, e Norma é incapaz de assassiná-los: “Ah! Não! São os meus filhos! Os meus filhos”! Como estamos na alvorada do Romantismo e não no contexto impiedoso dos mitos gregos, Norma reconsidera e se desvia da conduta de Medeia: salva a vida dos filhos e se entrega em expiação do crime. Mas antes disso, ela solicita a Clotilde a presença de Adalgisa, que aparece pouco depois e explica à jovem sacerdotisa que resolveu fazer um sacrifício e morrer. Suplica veementemente que cuide dos seus filhos e os eduque como se fossem seus, na sua nova vida com Pollione. Adalgisa, porém, desiludida com a atitude de Pollione, recusa-se a ocupar o lugar de Norma como mãe e como esposa e se propõe a ir ao acampamento romano para convencê-lo a voltar para Norma. É assim que Adalgisa também surpreende ao revelar uma conduta que se distancia, e muito, da passividade ao amor e obediência ao amante. Nessa disputa, parece que urge mais a necessidade de assumir um compromisso ético e moral com Norma do que com Pollione. Comovida, a sacerdotisa aceita a sugestão da jovem moça e as duas, solidariamente abraçadas, fazem juras de amizade eterna.
Sim, até a hora, até a última hora você me terá como sua companheira. Para nos refugiarmos juntas, a Terra é bastante extensa. Com você, me oporei firme e enfrentarei a vergonha do destino. Até que sinta bater seu coração sobre o meu coração. (BELLINI, 2011, p. 43).Inquieta, Norma aguarda notícias sobre a missão fracassada de Adalgisa. Além de não conseguir convencer Pollione a voltar para Norma, o procônsul decide raptar a jovem e levá-la a força para Roma. Frustrada pela segunda vez, a sacerdotisa se enfurece e decide convocar a assembleia dos guerreiros e druidas gauleses com um único objetivo: anunciar que chegou o momento de iniciar a revolta contra o inimigo opressor romano. Pollione é capturado e, finalmente tem um encontro com Norma. É no último ato que a protagonista se oferece a um sacrifício por ter violado seus votos e traído a pátria. Enquanto preparam a pira para sua morte, Norma suplica apenas que respeitem a vida de seus filhos. Pollione, comovido e cheio de admiração pela grandeza de Norma, sente renascer seu antigo amor e os dois amantes, finalmente reconciliados, caminham unidos para a morte.
O fato de o posicionamento da mulher na sociedade ser legitimado pela sua ligação filial e conjugal confere-lhe, repetidamente, no contexto do modelo dramatúrgico referido, uma ausência de autonomia ou de poder de decisão, protagonizando, em consequência, múltiplos episódios de abnegação, devoção e sacrifício. (RIBEIRO, 2012, p. 167.)
Essa é a situação complexa na qual Norma se encontra: ao mesmo tempo em que ela age de maneira determinada, forte e racional, por outro lado, quando se trata de amor, ela tem grande dificuldade de se libertar, anulando voluntariamente sua individualidade em função do outro, fato que repercute num final sacrifical. Catherine Clément sustenta que os libretistas de ópera condenam as mulheres a destinos trágicos para que, desse modo, o seu potencial desviante seja controlado e interditado, mostrando ao público uma narrativa pedagógico-moralizante. (CLÉMENT, 1979, p. 112).
Finalmente, se perpassarmos o texto escrito, temos também mais dois condicionantes de suma importância na produção da ópera: a composição musical e a performance dos atores/cantores. Como assinalam Linda e Michael Hutcheon, “a ópera é uma forma de arte corporificada; são os atores que lhe dão a realidade sensível”. (CLÉMENT, 1979, p. 112). De fato, sabe-se que a ópera deve seu inegável poder emotivo à conjunção verbal, do visual e do auditivo e não se realiza apenas por este último elemento. E é especificamente o corpo - o corpo sexuado, diga-se de passagem - que não vai ser negado ou sublimado na ópera encenada. Em Norma, quanto ao plano dramático e performático, é a sacerdotisa que domina o palco todo o tempo e faz parte do grupo de grandes figuras míticas de tragédia que estão “em cena” mesmo quando não estão fisicamente no palco, pois tudo o que acontece na ação lhes diz respeito. Maria Callas, uma das grandes intérpretes do papel, afirmou sobre a suas dificuldades: “Isolda não é nada em comparação com Norma”. Pollione, por sua vez, é um papel ingrato, pois mesmo sendo muito exigente do ponto de vista vocal, não permite ao tenor brilhar o suficiente se comparado com Norma. Do ponto de vista dramático, ressente-se também do fato de andar sempre “a reboque” da força e vitalidade de Norma. Idealmente, o papel requer um tenor heroico, com um acento épico e potência suficiente para não ser esmagado por Norma na cena final.
La Traviata: de transviada para a nova mulher (morta)
Giuseppe Verdi (1813-1901) foi elevado ao posto de um dos mais famosos compositores do mundo depois da estreia, em 1842, da ópera Nabuco. Nos anos que se seguiram, fortaleceu-se com uma sucessão de apresentações baseadas em obras de grandes dramaturgos, como Shakespeare, Schiller, Victor Hugo, Lord Byron e Voltaire. Mas o ápice definitivo ocorreu entre 1851 e 1853, quando estreou a trilogia constituída por Rigoletto, La Traviata e Il Trovatore, óperas que até hoje estão entre as mais solicitadas em todas as temporadas mundiais. Nesse período, o compositor escreveu ao músico Cesare de Santis:
Eu desejo argumentos novos, grandes, belos, variados, ousados (...). Para Veneza preparo “A Dama das Camélias”, que terá como título, possivelmente “Traviata”. Um tema atual. Qualquer outro não o teria aceitado por causa dos costumes, da época, e por muitos outros torpes escrúpulos. Eu o faço com todo o prazer. (Giuseppe VERDI, 2011, p. 9)
Conforme Susan Rutherford (RUTHERFORD, 2013), a seleção de narrativas de Verdi para suas óperas revela uma preferência por figuras femininas que demonstram maior independência, espírito e sede de resistência do que normalmente era encorajado para as mulheres do século XIX. Muitas de suas protagonistas espelham as ações de enfrentamento e se recusam a cumprir as expectativas do patriarcado. Algumas como Giovanna (Giovanna d'Arco), Odabella (Attila), Amelia (Simon Boccanegra) e as mulheres da cidade de Tudor (Falstaff), conseguiram ter o controle suficiente sobre suas vidas para cumprir os objetivos desejados. Porém, como Rutherford sugere, as mulheres das óperas de Verdi são plurais e nem todas se apresentam audaciosas. Pelo contrário, conforme o exemplo de Violetta Válery, a submissão aos desejos dos homens é uma característica bem evidente na trama que governa seu destino.
Ao escolher “A Dama das Camélias”, obra de Alexandre Dumas, como base da sua nova ópera, Verdi estava bem consciente dos desafios e dos riscos que iria enfrentar. A peça composta por três atos estreou em 1852 e oferecia aos expectadores um retrato parcial da feminilidade transgressora, influenciado pela cultura literária e artística da cidade de Paris daquele tempo. Por isso, pode-se afirmar que em termos culturais, narrativos e discursivos, La Traviata é uma ópera francesa, ao passo que no sentido musical e lírico ela é, definitivamente, italiana. A protagonista do enredo é Violetta Valéry, uma jovem concubina e cortesã francesa, mantida pelo Barão Douphol que lhe oferece uma vida de prazeres, luxo e festas. Nesta relação não há “amor romântico”, uma vez que Violetta não é vista como uma mulher preparada para se casar, ser mãe e, assim, conduzir exemplarmente um lar. Não é possível saber sobre suas experiências passadas, mas presume-se que foi prostituta e concubina de homens ricos e poderosos. Por isso ela não crê na possibilidade da realização do amor, procurando defender os ideais frugais e sensuais da vida:
Com vocês saberei partilhar os meus momentos de alegria; neste mundo é loucura tudo o que não seja prazer. Vamos nos divertir, pois fugaz e passageiro é o gozo do amor; é uma flor que nasce e morre, não mais se poderá desfrutar. Vamos nos divertir! Que uma voz ardente e sedutora nos convida. (VERDI, 2011, p. 21)Mas em uma das festas promovidas em sua residência, lhe é apresentado o jovem Alfredo Germont, que pretende dedicar a ela um amor sincero e duradouro. Desconfiada e até mesmo sentindo-se indigna deste amor, Violetta o ignora em um primeiro momento. Questiona se “acaso alguém cuidaria de mim”, justamente porque “já me esquecera de tão grande amor”. Mas depois de resistir às investidas de Alfredo, a moça cede aos seus apelos, intenciona abdicar dos prazeres da vida e, principalmente, da sua relação com o Barão Douphol. No fim do primeiro ato é evidente a crise que surge quando a concubina tem a possibilidade de viver de fato um encontro amoroso pautado no reconhecimento de sua alteridade, assentado no plano espiritual e sentimental e, sobretudo, desviado das experiências sensuais do corpo. Possivelmente, pela primeira vez um homem a desejou para além dos prazeres carnais que podia oferecer.
No segundo ato, o casal encontra-se junto em uma casa de campo, afastados de toda sociabilidade e olhares externos. Além de exprimir toda a sua alegria por viver ao lado de Violetta, Alfredo diz que a moça o transformou em um novo homem. No entanto, ela precisou vender todos os seus bens que havia ganhado de Douphol para conseguir sobreviver. Eis que aparece, na breve trajetória de vida de Violetta, seu primeiro ato de sacrifício, ou seja, para conseguir realizar seu grande amor, está disposta a viver com menos luxo e prazeres que a vida material anteriormente lhe dava. Ao mesmo tempo, ela passa a renunciar a todos os convites para festas que lhe eram ofertados, isolando-se cada vez mais em sua vida privada e doméstica. Nobres sentimentos começam a configurar a subjetividade dessa nova mulher que intenciona apagar seu passado utilizando o amor como subterfúgio redentor.
Mesmo assim, a “relação escandalosa” salta aos olhos das pessoas ao redor, de modo que o pai de Alfredo, o patriarca Germont, pede a Violetta que o deixe definitivamente. Para ele, a moça havia seduzido o filho “imprudente, que corre para a ruína, enfeitiçado pela senhora”. Outra justificativa apresentada era que a família do futuro esposo da irmã de Alfredo não concorda que haja uma ex-concubina na família. Esta é a segunda situação em que Violetta não é incorporada a uma rede familiar, posto que a primeira, como se sabe, diz respeito à ausência de qualquer indício de sua ligação com pai, mãe e irmãos. Violetta aparece como uma mulher subtraída de vínculos familiares, o que a enquadra numa situação disfuncional, tal como Floria Tosca, Manon, Carmen, Mimi ou Mélisande. Nesta direção, a integração do sujeito num núcleo familiar estável sanciona sua civilidade e seu pertencimento a uma sociedade de direito que reconhece sua “humanidade”, enquanto o seu alheamento deste quadro é um índice da sua degenerescência. Violetta cede à pressão e aceita, finalmente, sacrificar seu amor para tornar possível o casamento da ex-futura cunhada, rompendo com Alfredo e voltando para a vida mundana. Com isso, Germont não deixa de louvar e expressar gratidão por esse gesto generoso, redimindo-a de seu passado.
Mais uma vez observamos uma relação amorosa que confronta com outros discursos que predominavam desde o século XVIII, quais sejam, o direito canônico, a pastoral cristã e os costumes morais e civis. Todos eles fixavam, cada qual a sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito. Todos estavam centrados nas relações matrimoniais, no dever conjugal e na capacidade de desempenhá-lo bem conforme a gramática moral. A relação matrimonial era o foco mais intenso das constrições operadas pela lei e costumes. Logo, romper as leis do casamento ou procurar prazeres estranhos com meretrizes mereciam severas condenações. Na lista dos pecados graves, como revela Michel Foucault, figuravam o estupro, o adultério, o rapto, o incesto espiritual ou carnal, e também a sodomia. (FOUCAULT, 2009, p. 45).
Os tribunais podiam condenar a homossexualidade, a infidelidade e, especialmente, o casamento sem consentimento dos pais.
A herança iluminista que atribuía ao homem uma faceta racional, equilibrada, autônoma e consciente de suas ações passou a ser questionada e contrariada pela intensidade da paixão que poderia acometer-lhe a alma. A tensão que atravessa a subjetividade masculina assenta entre a dualidade de uma mente racional, estável e moralmente respeitável contra a fragilidade perpetrada por um amor conferido por uma mulher sedutora. Alfredo tem plena consciência da sua situação: o ciúme, a perda de controle e a intensidade da paixão corromperam sua mente racional:
Ah, sim! Que fiz? Que horror! A fúria do ciúme, o amor frustrado, Me dilaceram a alma... já não uso a razão. Nunca terei seu perdão. Queria fugir dela... não tive forças. Vim aqui levado pela ira! Agora que expressei o meu desprezo, Desgraçado de mim, estou arrependido! (VERDI, 2011, p. 48-49)Norbert Elias esclarece que uma das condições que nortearam o processo civilizatório no Ocidente foi a tomada de um conjunto de hábitos relacionados à reflexão contínua, o cálculo, o autocontrole, a regulação precisa e organizada das emoções. Estavam proibidas a violência física e as explosões emocionais diretas no interior das relações sociais, cujas restrições atingiram o grau máximo na sociedade burguesa do século XVIII adiante. (ELIAS, 1993, p. 226).
O autocontrole se tornou um mecanismo de hábitos que opera quase automaticamente e inclui todos os relacionamentos humanos. Todo o homem, por assim dizer, enfrenta a si mesmo, disfarça as paixões, rejeita o que quer o coração e age contra os sentimentos. A paixão momentânea e os impulsos afetivos precisam ser reprimidos e dominados pela previsão de aborrecimentos posteriores.
No terceiro e último ato, Violetta é acometida severamente por uma tuberculose. Acamada, diz que o corpo sofre, mas que a alma está tranquila porque “sorri ao desejo de uma transviada”. Finalmente, ela recebe a visita de Alfredo que revela ter descoberto o pedido que seu pai fez a ela. Por tê-la injuriado após o rompimento, ele pede perdão e promete amá-la eternamente. Germont também aparece com a finalidade de enobrecer seu caráter. Mas a visita deles não a salva da morte, tampouco lhe oferece redenção pelo seu passado pecador. Como diz o jovem filósofo austríaco Otto Weininger, que denunciava as ilusões do amor uma vez que elas servem para “mascarar o pecado mais do que a vencê-lo, que abraça o nada e imagina livrar o mundo da negatividade. (Otto WEININGER, apud Jacques LE RIDER, 1993, p. 197).
E as últimas falas de Violetta refletem o que ela sempre foi em relação ao amor que cultivou por Alfredo: uma mulher fiel, doce e generosa que sacrificaria o próprio amor para o bem-estar do companheiro que precisaria ser honrado no interior do núcleo familiar e na sociedade em geral. Era esse o perfil esperado pelas mulheres da época. No entanto, ainda que seu sacrifício final por um amor sincero implicasse a redenção, “no fundo trata-se de uma prostituta”, tal como comentou uma senhora ao deixar a noite de estreia de “La Traviata”.
Diferente de outras heroínas como Carmen, de Bizet e Salomé, de Strauss, Violetta, a transviada, não é uma mulher sensual, selvagem, insolente que sabe o que deseja e se predispõe a ser determinada. Ao contrário, ela é compreensiva, flexível e até sua paixão por Alfredo, mesmo sendo intensa, não é ameaçadora e mortal. Ela não manipula ninguém em nenhuma situação e não sabe desviar das complexas situações impostas a ela. Pelo contrário, a manipulada é ela pelos homens que estão ao seu redor, uma vez que cede aos desejos e encantos do Barão de Douphol, de Alfredo e do velho Germont. O curioso é notar também que a cortesã passa por sacrifícios e, somente depois de morta, é integrada numa família que por fim a redime, porém, celeste e descorporalizada.
Carmen: aquela que não cede ao desejo do outro
Carmen é uma ópera em quatro atos, assinada pelos libretistas Henry Meilhac e Ludovic Halévy, cuja composição lírica e orquestral foi realizada pelo francês Georges Bizet (1838-1875), que faleceu no mesmo ano de sua estreia. Esta ópera assinala um marco na história da música lírica, pois se tornou uma das obras mais executadas, encenadas e faladas no mundo, além da personagem central transformar-se em mito de alcance universal. Baseada na novela homônima de Prosper Mérimée, ela foi composta entre 1873 e 1874, tendo como tema principal o amor que desperta a pulsão criminosa em Don José, homem ciumento que, sendo rejeitado pela mulher que ama, confere-lhe a morte como destino inexorável.
A primeira apresentação aconteceu na Opéra Comique de Paris em 1875 e, tal como La Traviata, não fez sucesso na estreia. Grande parte do público se sentiu desconfortável, para não dizer escandalizado, com a modernidade de Carmen: uma mulher segura de si, confiante e que ama a liberdade acima de tudo, a ponto preferir a morte a ceder aos desejos de um homem. Umas das primeiras interpretações que essa personagem recebeu era de ser apenas uma mulher sedutora, devoradora de homens, fatal, ou como Violetta, prostituta de baixo valor moral. No final do século XIX, críticos como Jean-Pierre Oscar expressaram indignação com a sexualidade de Carmen, e somente a partir da década de 1970, com Clément, que a figura desta personagem é apresentada sob um ponto de vista menos estereotipado, e até mesmo feminista, em relação a um devir libertário que acaba resultando em sua morte. (Susan McCLARY, 1991, p. 35).
A ação se passa em Sevilha e arredores por volta de 1830. Em uma praça onde se situa o quartel dos dragões de Alcalá e uma fábrica de tabaco, um grupo de soldados conversa e Micaela, uma moça natural da cidade, serena e de plena candura, pergunta pelo cabo Don José, que aparece logo depois, confirmando seu amor pela bela moça. Nesse momento, os homens presentes na cena questionam onde estaria a cigana Carmen, que imediatamente aparece entoando uma canção de elogio ao amor livre, “que ninguém pode aprisionar e que não adianta chamar se a ele convém recusar”. Para ela, o amor não pode ser relacionado às ameaças, pedidos, chantagens e, especialmente, a um mero discurso de palavras bonitas. O amor é como um “menino cigano”, que nunca conheceu qualquer lei, especialmente a lei patriarcal. Esse amor manifesta-se como exemplo vivo da substância errática do desejo que, em sua irracionalidade e imprevisibilidade, foge a regras e esquemas normativos. Em oposição, Don José crê num amor estável, fixo e, principalmente, indestrutível, cujo devir incide na posse da pessoa amada. É seduzido por Carmen que lhe entrega uma flor vermelha, cujo gesto é visto como insolente e condizente à magia de feiticeiras que arrastam os homens para o caminho do amor irracional.
O amor é um pássaro rebelde que ninguém pode aprisionar e que não adianta chamar se a ele convém recusar. De nada valem ameaças e pedidos, dizer coisas bonitas ou se calar, se eu preferir um outro ele nada me diz, e é dele que gosto. O amor... o amor... O amor é um menino cigano (Georges BIZET, 2011, p. 22).Ainda neste ato há uma confusão entre as cigarreiras, de modo que Carmen fere uma delas e por isso é detida. Em atitude de desafio, a cigana troça de todos, e quando Don José se dispõe a conduzi-la à prisão, resolve seduzi-lo novamente, convidando-o a se divertir com ela na taberna de Lillas Pastia. Na expectativa desse encontro, Don José deixa-a escapar, assumindo em seu lugar a culpa e indo para prisão cumprir uma pena que não lhe pertence. A sedução é uma das artes de Carmen, que abusa da dança, do galanteio e do movimento corporal para encantar seus admiradores e, inclusive, os expectadores da ópera. Em nenhum momento a cigana abre mão das potencialidades da sensualidade, da corporalidade e do discurso encantador. Essas atitudes confrontam a cartilha comportamental que regia a vida das mulheres da época. Assim, para muitas delas, silenciar o corpo ou as palavras tinha seu preço e as histéricas estudadas por Freud, com seus ataques pontuais, denunciavam à sociedade como isso era frequente.
Decisivamente, em Carmen temos que considerar a própria manifestação desmedida de uma vivência dionisíaca, pelo fato desta mulher expressar uma exuberância vital através de seu próprio corpo, utilizando de sua “sensualidade meridional”, uma explosão de afetos e de atitudes impetuosas, desafiando então, todos os limites, códigos ou valores morais que venham a se opor aos caminhos que a paixão e a vontade lhe apontam. (Renato BITTENCOURT, 2011, p. 4)
A conduta de Carmen expressa uma espécie de afetividade que enaltece a alegria e a embriaguez, expressão de um tipo de mundo repleto de andarilhos, ciganos e contrabandistas, desprovidos de remorsos, ressentimentos ou crises morais de consciência diante das transgressões das rígidas normais sociais. Carmen afirma a liberdade de acolher e cumprir o seu próprio destino, de acordo com o fluxo de seus desejos, o que a faz viver conforme o livre jogo interativo dos seus afetos. Os versos do final do II ato corroboram esta ideia:
Segue-nos através dos campos, vem conosco para a montanha, segue-nos e irás acostumar-te quando vires, ali, como é bela a vida errante; por país o universo, e por lei, a tua vontade E sobretudo, o mais embriagador: A liberdade ! A liberdade ! O céu aberto, a vida errante, por país, todo o universo, por lei a vontade, e sobretudo, o mais embriagador: A liberdade, a liberdade !(BIZET, 2011, p. 45)É nesse sentido que a imagem de Carmen, inevitavelmente, se associa não só ao amor, mas à sexualidade também. Neste período, o modelo de assexualidade feminina tornou-se cada vez mais normativo e, portanto, somático, apoiado pela opinião das autoridades médicas, ansiosas por estender a sua autoridade cultural sobre o corpo da mulher. Embora os médicos discutissem o grau de passividade feminina, tinham também tendências para atribuir à mulher respeitável, quando muito, uma sexualidade secundária, em segunda mão, subserviente do prazer masculino, sem autonomia própria, uma pálida imitação do desejo erótico masculino. Assim, a passividade feminina retirava seu significado da sua oposição a uma sexualidade masculina ativa e a práticas femininas transgressoras, que tendiam a ser classificadas como masculinas ou próprias das classes degradadas. (WALKOWITZ, 1991, p. 403).
Podemos dizer que um dos fatores que propicia o principal conflito na vida de José reside na oscilação entre a intensidade de Carmen e o pudor pelas instituições que até então havia respeitado, de maneira que ele, como analisou precisamente Bittencourt, “ao invés de se decidir pela predominância de um dos impulsos, permanece nesse jogo de contínuas flutuações entre a experiência apolínea proporcionada por Micaela e a experiência dionisíaca despertada por Carmen”. (BITTENCOURT, 2011, p. 6).
Entretanto, a vida de Don José, ainda que sofra o encantamento amoroso de Carmen, permanece excessivamente marcada pela compreensão normativa de mundo, pois o cabo, ao abandonar o regimento no qual ele era lotado, continua valorizando os ideais normativos da sociedade machista.
Do ponto de vista subjetivo, um dos sintomas desse apego de José aos códigos estabelecidos se manifesta, por exemplo, no seu excessivo ciúme por Carmen, esse desejo de posse que o enfurece tenebrosamente ao longo da ópera, sobretudo quando a cigana passa a dedicar seu amor a Escamillo. O sentimento de ciúme é uma atitude contrária ao espírito libertário de Carmen, pois nesta visão de mundo e em sua inerente prática de vida, nenhuma pessoa poderia arrogar o direito de ser a detentora de outra, como se o objeto amado fosse uma propriedade. A bela cigana, ao seduzir os homens que encontra, coloca em prática justamente a liberdade dionisíaca de afetar e de se deixar afetar com os corpos pelos quais ela considera que lhe proporcionarão alegria e, por conseguinte, um aumento da sua capacidade de agir. É nesse sentido que, em Don José, observamos o desejo de possessão da pessoa amada, que se origina do anseio de permanecer com honra aos olhos do mundo, na manifestação de uma masculinidade na qual os indivíduos deveriam identificar, na figura da mulher, a marca de posse de um homem.
A emergência da alteridade singular de Carmen cria uma angústia desconcertante em Don José que, sendo rejeitado, revida com uma pena dura: a morte. A cigana pressentia isso, mas de certo modo ela não ficou intimidada diante das ameaças do amante. Decididamente ela mostra não querer desistir da pretensão da livre fruição das emoções corporais, junto com outros amantes e com a vida. Não seria improvável afirmar que, pelo menos na cultura musical, esta ópera inaugurou a expressão de uma realidade que persiste ainda no século XXI, qual seja, a violência causada pelo parceiro íntimo, tendo como consequência o assassinato de mulheres devido a circunstancias passionais. Aliado a isso, não é à toa que as interpretações da ópera “Carmen” evoluíram desde o final do século XIX, de forma a mostrá-la não apenas como uma cigana sedutora, mas como uma expressão de proto-feminismo que luta contra uma sociedade patriarcal. Logo, as evidências para interpretações feministas de Carmen podem ser encontrados em avaliações de produções historiográficas recentes. (McCLARY, 1991).
As mulheres no século XIX: pecado, amor e sexualidade na cultura operística
A cultura operística revelou personagens que corroboram, mas também questionam os sistemas de valores canônicos da sociedade urbana do século XIX, as hierarquias de poder e autoridade, a confiança na razão e no autocontrole, manifestando formas mais complexas de relacionamentos entres homens e mulheres. É com a ferramenta da cultura musical que os autores dos libretos conduziam os expectadores das óperas a refletir sobre seus posicionamentos acerca dos modelos de conduta e modos de pensar partilhados, conjuntamente, em seus grupos de sociabilidade e no núcleo familiar.
Norma está inserida num contexto operístico voltado ao movimento Romântico e não Realista como Carmen. É uma das características desse movimento não expressar a sexualidade ou a corporalidade de suas musas, fato que se observa muito bem em Norma, cujo discurso narrativo privilegia mais seu caráter e suas ações. Por outro lado, se esperamos qualidades como passividade, delicadeza, candura nas personagens românticas, seremos frustrados com o que Norma tem a oferecer. Ela é uma heroína decidida, temperamental, forte e não tem medo de mostrar sentimentos como ira, ciúme, vingança e dúvidas sobre seu sentimento materno. Pelo contrário, pois isso não parece ser problema para ela. Ao mesmo tempo em que a sacerdotisa projeta sua sede de vingança em Adalgisa e Pollione, consegue compactuar com eles conforme os novos desígnios que lhe aparecem. É uma personagem com uma estrutura subjetiva flexível que age, muda, se transforma conforme a reviravolta dos acontecimentos. Seu único pecado foi amar um homem casado e insistir neste sentimento, eis a lição moral desta ópera.
Muito diferente de Norma, temos Violetta, representação fiel de Margarita Gautier, personagem da Dama das Camélias. Na transição do Romantismo para o Naturalismo e Realismo, La Traviata, ou a Mulher Caída, tradução em português, assinala o desconforto masculino com duas questões: a mulher cortesã e a mulher subtraída das classes sociais e familiares. Gênero e classe são elementos que se cruzam nesta ópera, demonstrando a paixão proibida entre um homem que tem nome, sobrenome, respeito, família, profissão e posses com uma mulher que mal se sabe de onde surgiu. A mensagem codificada nas palavras e ações de Alfredo e seu pai mostram claramente o medo masculino de que uma mulher possa macular a honra de um homem perante os olhos da sociedade. Não podemos deixar de destacar que há uma nódoa moral perversa nesta narrativa: por mais que Violetta seja uma mulher digna, justa, estável, compreensiva e submissa aos desejos alheios, ela nunca será aprovada porque seu passado lhe condenará eternamente. Seu único pecado foi ter sido uma cortesã que sentia prazer de viver na luxúria.
Já a liberdade preconizada por Carmen na sua prática de vida não consiste de forma alguma na afirmação de uma vulgar e banal liberdade sexual, ou ainda uma atitude desinteressada para com o sentimento amoroso. A liberdade que se manifesta na vida de Carmen consiste na sua tentativa de superar os valores de uma qualidade moral marcada pelo ideal de se submeter a um homem, principalmente aos caprichos e intenções de posse e controle por parte dele. Tampouco se pode assinalar que seus sentimentos são volúveis e passageiros, uma vez que a desistência de seu amor por Don José fundamenta-se no fato deste não se adaptar ao seu estilo de vida. Carmen sabia que com ele não haveria a possibilidade da realização compartilhada de vida e ideias, uma vez que o cabo representa toda a subjetividade masculina assentada no conservadorismo moral, ético e político. Carmen é a possibilidade concreta de a mulher vivenciar seu corpo com alegria, liberdade e coragem; de se ambientar com desenvoltura em espaços não apenas domésticos, mas aqueles ditos masculinos, como tabernas e touradas. O pecado de Carmen foi rejeitar uma sociedade rigidamente ordenada e normativa com as ferramentas da alegria, da dança, da sensualidade, do desapego e do amor fiel aos próprios desejos.
Apesar das diferenças assinaladas nas atitudes, desejos e afetos das heroínas em questão, é inegável perceber a existência de um denominador comum que rege, por assim dizer, a vida de todas elas: o amor. Invariavelmente, todas as personagens femininas da cultura operística têm suas vidas articuladas diretamente ao relacionamento amoroso, de maneira que ele se torna o maior e principal empreendimento de uma mulher. Elas não produzem um devir ou qualquer outra ação independente da ligação amorosa com um homem, característica presente também na literatura. Ao esgotar a narrativa feminina unicamente em relações amorosas, a univocidade discursiva que operou no século XIX apregoou que a felicidade das mulheres estava pautada na devoção ao serviço de outrem, ao amor, à constituição de um núcleo familiar, e não na manifestação plena de si ou na realização pessoal dedicada a outro meio ou empreendimento. Até mesmo Carmen, com toda sua liberdade e poder de decisão sobre o homem com quem deseja ficar, tem uma história totalmente relacionada ao contexto amoroso.
Essa questão é um claro reflexo de que a mulher não podia estar só, pois ela sempre está sendo representada, definida e produzida a partir de sua ligação com a alteridade masculina, mantida unicamente por uma via: o elo é o amor, e nunca a amizade ou uma sociabilidade de trocas intelectuais. No século XIX, as mulheres sós não eram bem vistas e eram chamadas de virago, lésbica, amazona, puta, grisette, meia azul, ou seja, sempre num tom pejorativo que revelava a degenerescência de sua civilidade. Como argumenta Cécile Dauphin, nunca em qualquer outra época se inventaram tantos discursos sobre a fisionomia da mulher só, a sua fisiologia, o seu caráter ou a sua vida social. A partir do momento em que se perfila um retrato da mulher só, não há registro que não faça referência a um desvio ao ideal feminino, ideal definido por um estatuto jurídico, uma concepção do amor, um determinismo biológico e um código de beleza feminina. Tudo se passa como se as mulheres sós cristalizassem todos os medos da autonomia feminina, sexual, social, econômica e intelectual. (DAUPHIN, 1991, p. 492.).
Outro denominador comum inerente ao destino trágico das heroínas é a morte, que aparece como solução inexorável para o problemático enfrentamento das adversidades impostas pelo relacionamento amoroso. A sacerdotisa Norma se suicidou ao se sacrificar numa pira, como se fosse uma bruxa medieval condenada à fogueira; Violetta morreu natural e lentamente de tuberculose, não sem passar por um longo sofrimento; e Carmen foi assassinada com uma facada no ventre. Todos esses desfechos trágicos e emblemáticos, que também aparecem em outras óperas, sugerem que as ambiguidades, os paradoxos de cada par romântico não podem ser resolvidos a não ser com a extinção dessas mulheres. As heroínas expressam aquelas mulheres reais que aparecem, impressionam, seduzem, convencem e desviam os homens do século XIX da sua racionalidade e da temperança do sentimento amoroso. A morte, como destino inexorável dessas personagens, corrobora as demandas da modernidade oitocentista que apresenta suas ambiguidades e as ações contraditórias de cada um.
Quanto à ação moral e pedagógica, as óperas enquadravam-se nas convenções do sentimento literário, na linguagem sentimental das emoções, da elevação moral e dos prazeres do coração, que orientavam as mulheres para rejeitarem a paixão sexual, a cólera, a ambição mundana, os prazeres sensuais e espaços públicos conferidos aos homens. Toda forma de amor que não atravessasse o discurso canônico do matrimônio entre casais da mesma classe social e origem racial - vide o exemplo de Carmen que era uma cigana - seria fadado ao fracasso. O adultério, o relacionamento com prostitutas e qualquer tipo de encontro que não tivesse o propósito da união civil e religiosa era interpretado como a antítese do verdadeiro amor. O ideal do amor assentava na condição serena e tranquila que apenas poderia ser ofertada pela união com a noiva ou esposa, cuja sexualidade era anulada e escamoteada no campo das representações artísticas e culturais da época.
Nessa perspectiva, não seria incorreto e exagerado afirmar que o vasto quadro artístico e cultural que o final do século XIX produziu, em relação à feminilidade, acentuou a sexualidade como forma de descrever “o que é a mulher”. A sexualidade acompanhou as várias configurações subjetivas femininas, em oposição ao ideal romântico, em que a mulher era um objeto intocável, inacessível e assexuado. “O que quer uma mulher?”, a pergunta feita por Freud, sintetiza a dúvida acerca de seus desejos, tornando-a um enigma para o homem, um outro inacessível quanto à sua vida subjetiva, íntima e pessoal.
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Discografia
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2018
Histórico
-
Recebido
11 Jun 2015 -
Revisado
07 Jun 2017 -
Aceito
25 Ago 2017