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O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade: a formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX

A new world engendered: intersections: the making of the iberian transatlantic empires- XVI to XIX centuries

Resumos

Este artigo aborda as interseções que se desenvolveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. São analisadas as formas como as múltiplas normas morais, sociais, jurídicas e religiosas relativas à sexualidade e às relações entre mulheres e homens interagiram com as desigualdades sócio-políticas na experiência colonial ibérica. O Novo Mundo proporciona um exemplo especialmente claro das interseções dinâmicas entre as idéias e os ideais contemporâneos sobre sexo/gênero, raça/etnicidade e classe social que se refletem nos novos sistemas de identificação, classificação e discriminação social que se forjaram na consolidação da sociedade colonial ibero-americana. Torna-se exemplo também das conseqüências que a moralidade sexual e os estereótipos de gênero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres.

colonialismo ibérico; moralidade sexual; genealogia; honra familiar; mestiçagem


This article approaches the intersections developed under the colonial Spanish empire among gender relations, feminine sexuality concepts, family honor and State regulation. The way the multiple moral, social, juridical and religious norms in relation to sexuality and relations between women and men interacted with the social/political inequalities in the Iberian colonial experience will be analyzed. The New World provides a particularly clear example of the dynamic intersections between contemporary ideas and ideals about sex/gender and race/ethnicity and social class that became manifest on the new identification systems, classification and social discrimination forged in the consolidation of the Iberian American colonial society. It also becomes an example of the consequences that the sexual morality and the prevailing gender stereotypes have had in all the aspects of women's lives.

Iberian Colonialism; Sexual Morality; Genealogy; Family Honor; Mestizage


ARTIGOS

O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX* * Publicado em MEADE, Teresa A., and WIESNER-HANKS, Merry E. (eds.). A Companion to Gender History. Oxford: Blackwell, 2003. Blackwell Companions to History Series. Traduzido e publicado com autorização da autora.

A new world engendered: intersections. The making of the iberian transatlantic empires XVI to XIX centuries

Verena Stolke

Universidad Autónoma de Barcelona

RESUMO

Este artigo aborda as interseções que se desenvolveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. São analisadas as formas como as múltiplas normas morais, sociais, jurídicas e religiosas relativas à sexualidade e às relações entre mulheres e homens interagiram com as desigualdades sócio-políticas na experiência colonial ibérica. O Novo Mundo proporciona um exemplo especialmente claro das interseções dinâmicas entre as idéias e os ideais contemporâneos sobre sexo/gênero, raça/etnicidade e classe social que se refletem nos novos sistemas de identificação, classificação e discriminação social que se forjaram na consolidação da sociedade colonial ibero-americana. Torna-se exemplo também das conseqüências que a moralidade sexual e os estereótipos de gênero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres.

Palavras-chave: colonialismo ibérico, moralidade sexual, genealogia e honra familiar, mestiçagem.

ABSTRACT

This article approaches the intersections developed under the colonial Spanish empire among gender relations, feminine sexuality concepts, family honor and State regulation. The way the multiple moral, social, juridical and religious norms in relation to sexuality and relations between women and men interacted with the social/political inequalities in the Iberian colonial experience will be analyzed. The New World provides a particularly clear example of the dynamic intersections between contemporary ideas and ideals about sex/gender and race/ethnicity and social class that became manifest on the new identification systems, classification and social discrimination forged in the consolidation of the Iberian American colonial society. It also becomes an example of the consequences that the sexual morality and the prevailing gender stereotypes have had in all the aspects of women's lives.

Key Words: Iberian Colonialism, Sexual Morality, Genealogy and Family Honor, Mestizage.

Dois mundos Deus colocou nas mãos de nosso soberano

católico, e o Novo não se assemelha ao Velho, nem em seu

clima, nem em seus hábitos, nem em seus habitantes; ele

tem um outro corpo legislativo, outro modo de governo,

sempre porém com o fim de torná-los semelhantes. Na

Velha Espanha apenas uma casta de homens é

reconhecida; na Nova, muitas e diferentes

(Arcebispo Francisco A. Lorenzana do México, de 1766 a

1772, citado em Ilona Katzew, 1996, p. 8).

Abertura

Em 1752 um Dr. Tembra do México emitiu a seguinte opinião sobre se um matrimônio desigual poderia ou não ser celebrado sem o consentimento dos pais:

Se a donzela deflorada por uma promessa de casamento é tão inferior em status, que cause maior desonra à linhagem dele, no caso de ele se casar com ela, do que aquela que recairia sobre ela no caso de ela permanecer deflorada (como quando um Duque, Conde, Marquês ou Cavalheiro de conhecida nobreza seduz uma menina mulata, uma china [descendente da mistura de negro e indígena com negro1 1 Nota da autora. ], uma coyota [descendente de índio e mestiça2 2 Idem. ] ou a filha de um carrasco, um açougueiro, um curtumeiro)... Neste caso, ele não deverá se casar com ela porque a injúria para ele e para toda sua linhagem seria maior do que aquela em que a donzela incorreria ao permanecer sem salvação, e deve-se sempre escolher o mal menor [...] pois o último caso é uma ofensa individual e não causa danos para a República, enquanto o primeiro é uma ofensa de tal gravidade que irá denegrir uma família inteira, desonrar uma pessoa proeminente, difamar e manchar toda uma linhagem de nobres e destruir algo que oferece esplendor e honra à República. Mas se a donzela seduzida é de status apenas levemente inferior, de diferença não muito marcante, de forma que sua inferioridade não cause uma desonra marcante para a família, então, se o sedutor não deseja recompensá-la, ou se ela simplesmente rejeitar a compensação na forma de doação, ele deve ser forçado a se casar com ela; porque nesse caso sua injúria pode prevalecer sobre a ofensa infligida à família do sedutor, já que eles não sofreriam um dano grave com o casamento, enquanto ela sofreria se não se casasse.3 3 Citado por STOLCKE, 1974, p. 101.

Esta é uma das mais eloqüentes ilustrações das interseções que se desenvolveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. Na sociedade colonial o corpo sexuado tornou-se fundamental na estruturação do tecido sócio-cultural e ético engendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pela subseqüente colonização do Novo Mundo. Até recentemente, porém, as/os pesquisadoras/es em geral deram pouca atenção para o papel crucial que o controle da sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igreja e o domínio dos homens, teve na construção da sociedade colonial. Neste artigo, vou enfocar minha atenção na forma como as múltiplas normas morais, sociais, jurídicas e religiosas relativas à sexualidade e às relações entre mulheres e homens interagiram dialeticamente com desigualdades sócio-políticas, na época em que a sociedade colonial estava se estruturando política e simbolicamente. A experiência colonial Ibérica permite assim transcender as justaposições e aliterações convencionais dos critérios de identificação de classe, raça e gênero. O gênero não trata de mulheres como tais. Refere-se aos conceitos que prevalecem em uma sociedade sobre o que são as mulheres em relação aos homens enquanto seres humanos sexualmente identificados. O Novo Mundo proporciona um exemplo especialmente claro das interseções dinâmicas entre as idéias e os ideais contemporâneos sobre sexo/gênero, raça/etnicidade e classe social que se refletem nos novos sistemas de identificação, classificação e discriminação social que se forjaram na consolidação da sociedade colonial íbero-americana. Torna-se exemplo também das conseqüências que a moralidade sexual e os estereótipos de gênero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres.

O império colonial espanhol e seu correspondente português foram os pioneiros na expansão européia na África e na América, o que para Adam Smith foi o evento mais significativo da história humana. Seus impérios sobreviveram, de maneira mais homogênea do que divergente, até o século XIX, quando seus sucessores, os impérios inglês e francês, foram aos poucos adquirindo sua fisionomia definitiva. Até 1815, Portugal e Espanha não só monopolizaram a expansão marítima da Europa, mas também ensinaram ao Velho Mundo como conquistar e colonizar vastos territórios no Novo Mundo e tornar lucrativos seus enormes recursos naturais e humanos. As colônias espanholas no México e no Peru foram as primeiras colônias "mistas", onde uma minoria de colonos ibéricos criou um tipo inteiramente novo, até então desconhecido, de sociedade, composta de toda uma gama de categorias incomuns de povos, resultante da subjugação da população indígena e da exploração de enorme contingente de escravos negros importados da África.

A prática histórica que se tornou convencional foi explorar as sociedades coloniais americanas de maneira isolada. Mas os contrastes entre os projetos e as experiências de espanhóis e portugueses, de um lado, e de ingleses e franceses, de outro, são mais marcantes do que foram suas óbvias semelhanças.4 4 Nicholas Canny e Anthony Pagden, 1987; e Pagden, 1995. No Brasil, Portugal criou a primeira plantation, cuja mão-de-obra foi formada pelo maior contingente de escravos africanos já transportado para as Américas, sob o controle de uma pequena minoria de colonizadores europeus que, como fizeram os espanhóis em suas colônias "mistas", se esforçou para impor sua civilização metropolitana, suas instituições e sua cosmologia. Apesar das dificuldades de comunicação e controle, dadas as distâncias enormes que separavam os assentamentos coloniais de suas metrópoles, Portugal e Espanha se obrigaram a um rígido sistema de administração direta que contrastou com o posterior governo colonial britânico, muito mais solto.5 5 David Fieldhouse, 1982.

O principal objetivo da empresa colonial era sem dúvida lucro pessoal e riqueza nacional. Mas num tempo em que a religião era inseparável da política, a Igreja Católica teve um papel tão importante quanto o da Coroa na formação da política colonial das Américas portuguesa e espanhola, e também nas relações com os povos indígenas, até então prática ou totalmente desconhecidos, e com o contingente de escravos africanos que crescia de forma acelerada. Uma perspectiva transatlântica é indispensável para se compreender e levar em conta o padrão sócio-político que moldava esses novos "tipos" de povos, bem como o projeto político e econômico de colonização e exploração de recursos humanos e naturais nos novos territórios nos séculos que se seguiram à conquista. Isso porque tal padrão era o resultado de uma interação dinâmica entre os princípios administrativos metropolitanos e os valores espiritual-religiosos e sociais relativos a honra e hierarquia social, sustentados por ideais de gênero relativos ao casamento e à moralidade sexual. O código moral universalista da Igreja Católica, reforçado pela Contra-Reforma, associou explicitamente virgindade e castidade femininas, honra familiar e proeminência social, sempre de acordo com a doutrina religiosa da limpieza de sangre. Essa doutrina estruturou política, moral e simbolicamente as identidades e hierarquias sociais, bem como os seus modos de reprodução, mas também estabeleceu novos dilemas políticos e conceituais na sociedade colonial emergente. Para situar a questão de gênero no contexto colonial português e espanhol, é necessário examinar uma dupla conexão sócio-política histórica. A conquista americana não aconteceu num vácuo cultural histórico, mas ela deve muito ao passado cultural e social dos próprios colonizadores ibéricos. E, por serem construtos sócio-políticos, os estereótipos e as relações de gênero não podem ser dissociados do ambiente sócio-político e conceitual mais amplo em que se desenvolveram.

O sexo da conquista

Nos primeiros anos da conquista, colonos ibéricos, oficiais da Coroa e até o clero se apropriaram de terras indígenas, submeteram a população local a trabalhos forçados nas minas e a serviços pessoais de vários tipos, empenharam-se em colonizar suas mentes e sujeitaram mulheres indígenas a todas as maneiras de abuso sexual, o que teve um enorme custo humano e social. Uma das conseqüências disso foram os deslocamentos em massa e o dramático declínio da população indígena, resultantes da conquista militar, da disseminação de doenças trazidas pelos colonos e da fome, o que acabou por destruir as bases da organização sócioeconômica local. Outra conseqüência quase imediata da conquista foi a mestiçagem,6 6 É inadequado o uso do termo miscigenação para a relação sexual entre colonos europeus e a população indígena nos dois primeiros séculos após a conquista porque, como mostro mais abaixo, a categoria moderna de "raça", e portanto a idéia da mistura "racial" a que a miscigenação se refere, só apareceram no início do século XVIII. resultado da exploração sexual feita pelos colonizadores. Em sua Nueva crónica y buen gobierno, relato ímpar escrito no início do século XVII a fim de chamar a atenção do Rei Phillip para a brutalidade e a incompetência dos administradores, o etnógrafo andino Guamán Poma de Ayala, de pai espanhol e descendência materna da nobreza inca, fornece uma descrição detalhada da organização social, econômica e política dos Andes, enquanto denuncia a destruição que encomenderos, mineiros, administradores e o clero espanhol estavam promovendo entre a população indígena. Os quatrocentos desenhos que ilustram a crônica retratam cenas chocantes de abuso sexual e trabalhos forçados de mulheres indígenas sob o jugo de oficiais da Coroa, colonos e missionários.7 7 Rolena Adorno e Ivan Boserup, 2003; e Felipe Guaman Poma de Ayala, 1980.

No século XVII estava claro que o primeiro projeto da Coroa de estabelecer duas repúblicas distintas, de índios e de hispânicos, havia fracassado. Os contatos estreitos que resultaram da exploração da mão-de-obra, dos serviços pessoais, e especialmente dos abusos sexuais de mulheres indígenas e africanas pelos colonos europeus, produziram um número crescente de mestizos (filhos de hispânicos com índias) e mulatos (filhos de hispânicos com africanas). A sociedade colonial espanhola logo se tornou um confuso mosaico humano formado por desigualdades sócio-econômicas e legais e por diferenças étnicas perceptíveis.

Ao contrário da América espanhola, o Brasil foi colonizado de forma muito esparsa até o fim do século XVI, quando as fazendas de cana-de-açúcar, primeiramente no Nordeste, começaram a absorver um número crescente de escravos africanos. Logo em seguida começa a exploração sexual de escravas, no início ainda pouco numerosas, por seus proprietários. A capitania da Bahia, ampla região que circunscreve a Baía de Todos os Santos, dominada pela cidade de Salvador, capital da colônia brasileira de 1549 a 1763, tornou-se a primeira e mais importante região de posse de escravos das Américas. Em meados do século XVI as fazendas de cana em expansão no Recôncavo Baiano se tornaram um importante terminal do tráfico de escravos do Atlântico. A mudança do trabalho escravo de índios para africanos teve razões não só econômicas como também geopolíticas e culturais. Escravos africanos se firmaram como uma força de trabalho mais produtiva, por estarem disponíveis em abundância e por se sujeitarem a uma disciplina rígida, enquanto a relativamente pequena população indígena fugia muito facilmente pela vastidão da terra. Não só escravos mas também escravas trabalhavam nos moinhos de cana e nos campos, sempre sob vigilância masculina, prestando também serviços domésticos na casa-grande, onde se tornavam presas das aventuras sexuais de seus senhores.8 8 Stuart Schwartz, 1985. O retrato seminal, feito por Gilberto Freyre, da benevolência patriarcal dos senhores em relação a seus escravos, segundo a qual a exploração sexual de escravas por colonos portugueses evidenciava uma surpreendente ausência de preconceito, que distinguia o Brasil da América espanhola colonial, acabou se mostrando uma falácia.9 9 Freyre, 1933; e Schwartz, 1985. No Brasil, de forma semelhante ao que aconteceu na América espanhola, a população em veloz crescimento de mulatos correspondia na sua maioria a filhos de fazendeiros da cana-de-açúcar; estes engravidavam suas escravas domésticas, raramente se mostrando dispostos a legitimá-las pelo casamento. Como apontou Roger Bastide, "raça" implicava "sexo". Quando a mestiçagem acontece dentro do casamento ela de fato indica ausência de preconceito. Mas do modo como a mestiçagem ocorreu no Brasil, ela transformou toda uma raça em prostitutas.10 10 Bastide, 1959, p. 10-11.

Antecedentes metropolitanos

Misturas étnicas não eram novidade para os colonizadores portugueses e espanhóis. A descoberta do Novo Mundo coincidiu com a queda da prevalência muçulmana em Granada e com a conversão compulsória ou a expulsão de judeus e muçulmanos, processo que arrematou a conquista cristã e a unificação político-religiosa da Espanha. Um século depois (1609-1614), os moriscos (muçulmanos convertidos) foram igualmente expulsos.

As inusitadas categorias sócio-étnicas que surgiram do encontro colonial entraram em contradição, no entanto, com os ideais medievais metropolitanos de honrarias, proeminências e discriminações sociais típicas da vida corporativa. A diferença cultural-moral dos indígenas desafiou as certezas cosmológicas e teológicas dos administradores das colônias, e os filhos misturados dos colonos estabeleceram novos dilemas legais, políticos e religiosos. Primeiro os colonizadores empregaram noções culturais da metrópole para entender a realidade americana. Com o tempo, aquela dinâmica social sem precedentes da sociedade colonial modificou noções metropolitanas de nobreza, honra social e hierarquia, família e moralidade sexual.11 11 Schwartz e Frank Salomon, 1999.

Limpieza de sangre – "sangue" de gênero

A doutrina teológica da limpieza de sangre, que estruturou a sociedade ibérica dos fins da Idade Média, tinha uma posição central entre os valores sócio-culturais metropolitanos. A noção da limpieza de sangre ganhava forma a partir da ideologia genealógica que fundamentava o status e as honrarias sociais no nascimento legítimo como prova de "sangue" puro, garantido pelo controle dos homens sobre a pureza sexual das mulheres, para assegurar sua virgindade antes do casamento e a castidade depois. A linguagem da limpieza de sangre prevaleceu nas Américas coloniais portuguesa e espanhola seguramente até o século XIX. Seu sentido simbólico na sociedade colonial começou a mudar radicalmente, porém, já no século XVIII. Muito já foi escrito sobre a aplicação dos estatutos de pureza de sangue pela Inquisição espanhola e sobre o ambiente de desconfiança e apreensão que as investigações genealógicas provocaram na Península Ibérica.12 12 Albert Sicroff, 1979; Marta Sanguinetti, 2000, p. 106; e Jean-Paul Zúñiga, 1999. Muito menos, porém, se conhece quanto às origens e ao sentido simbólico da lipieza de sangre.

A doutrina ibérica da limpieza de sangre era algo sui generis na Europa no fim da Idade Média; trata-se do sistema normativo legal e simbólico que possibilitou o combate a crimes contra a cristandade (os principais sendo o judaísmo e o islamismo), introduzido na Península no alvorecer da modernidade. A pureza de sangue era entendida como a qualidade de não ter como ancestral um mouro, um judeu, um herético ou um penitenciado (condenado pela Inquisição). As atitudes, justificações e políticas de inclusão e exclusão típicas desse final de Idade Média foram definidas em termos religioso-culturais, relativos não só à lei canônica como também à própria vontade de Deus, o sangue puro autenticando uma fé cristã genuína e inabalável. A oposição entre pureza e impureza, que não previa gradação de pureza espiritual, referia-se a qualidades morais. O sangue impuro era entendido como aquele que carregava a mancha indelével da descendência dos judeus, que mataram Jesus Cristo, e dos muçulmanos, que se recusaram a reconhecê-lo como filho de Deus. O sangue era, portanto, concebido como um veículo de pureza da fé, que transmitia vícios e virtudes religioso-morais de uma geração para outra.13 13 Zúñiga, 1999, p. 429-434. A pureza do sangue era avaliada através de investigações genealógicas que procuravam determinar a fé religiosa num contexto em que o catolicismo, considerado a única fé verdadeira, era concebido como a origem suprema do significado e do conhecimento da ordem da sociedade e do universo. Uma verdadeira obsessão com a genealogia enquanto prova da descendência de ancestrais cristãos através das gerações impôs um ônus especial à conduta sexual das mulheres cristãs como garantia de origem pura e legítima.

A Inquisição espanhola, como a única Corte com jurisdição sobre a limpieza de sangre, fazia a mediação entre os teóricos da exclusão e o povo, popularizando a idéia de que todos os convertidos eram suspeitos. A Inquisição foi criada por uma bula promulgada pelo papa Sisto IV em 1478, autorizando os monarcas católicos a nomear padres para investigar e punir os heréticos, especialmente os convertidos suspeitos de prática clandestina do judaísmo.14 14 Henry Kamen, 1985; e Charles Boxer, 1978.

Já em 1348 as leis espanholas Las Siete Partidas haviam declarado os judeus como uma nação "estrangeira". A esse estigma seguiram-se várias leis que revelavam a crescente animosidade aos judeus, como em toda a Europa. Até o século XIV judeus e muçulmanos viviam pacificamente na Península Ibérica, geralmente em estreita associação com a Corte e com a nobreza. Mas então uma onda de ataques às juderías (bairros judeus) e de massacres sangrentos de judeus começou a se espalhar por Castela, Aragão, Catalunha, Valência e Sevilha, em meio a novas tensões políticas entre nobres e membros da Corte.15 15 David Nirenberg, 2001. Para escapar da perseguição, da perda de propriedade e até da morte, os judeus se viram obrigados, ou a se converter ao cristianismo, ou a procurar refúgio em Portugal, onde a atmosfera em relação aos judeus era menos repressiva. Em 1449, após uma nova revolta popular, o primeiro estatuto de pureza de sangue foi adotado pelo Concílio de Toledo. Dessa vez a ira popular foi dirigida contra cristãos novos (judeus convertidos) abastados, cujas propriedades foram confiscadas. Considera-se que essa revolta foi detonada por um novo e pesado imposto cobrado pela Coroa, que alegou ter sido levada a isso por um mercador convertido muito influente. Em 1536 um ramo português da Inquisição foi fundado e passou a perseguir judeus convertidos ao cristianismo.

"Provas de sangue" começaram a ser exigidas, de modo que qualquer cargo civil, eclesiástico ou militar com alguma distinção social ficava restrito a "cristãos velhos". Alianças via matrimônio entre cristãos velhos e cristãos novos eram um meio para os últimos adquirirem status social disfarçando suas origens. Os estatutos da limpieza de sangre exigiam também dos cristãos a apresentação da prova de sangue para poderem se casar. A Inquisição, no entanto, podia cancelar as autorizações de casamento sempre que o passado das famílias envolvidas desse margem a dúvidas. Conseqüentemente, qualquer pessoa nascida fora do casamento se tornava suspeita de impureza.16 16 Maria Luiza Carneiro, 1988, p. 99.

Obedecendo aos preceitos cristãos, a conversão ao catolicismo, tido como a única verdadeira fé, poderia apagar a mancha que estivera impressa nos não-crentes. Através do batismo, judeus e muçulmanos poderiam equivaler aos gentios.17 17 Diaz de Montalvo, citado por Kamen, 1985, p. 158. Esses gentios eram entendidos não como pagãos, mas como genuínos neófitos, por terem sido ignorantes em relação às leis de Deus até a conversão.

Os estatutos da limpieza de sangre não permaneceram livres de contestação. Os conflitos entre oficiais da Inquisição, e também entre as elites, sobre a aplicação dos estatutos eram intensos, porque a nobreza, tanto quanto as pessoas comuns, costumava antes realizar seus casamentos também com muçulmanos e judeus; os cristãos velhos genuínos acabaram assim se tornando muito raros. No século XVII, os desastrosos efeitos políticos das investigações sobre a pureza de sangue para a unidade político-religioso-nacional do império espanhol eram cada vez mais evidentes para muitos pensadores. Os opositores alertavam sobre as conseqüências econômicas e demográficas negativas dos estatutos, já que um grande número de convertidos fugia da Península. Eles condenavam os estatutos de limpieza de sangre por considerá-los contrários à lei civil ou à canônica, e também à tradição bíblica, ao negarem aos convertidos o benefício da redenção pela purificação do batismo. As opiniões entraram em choque: a pureza de sangue seria uma questão de prática religiosa ou se referiria a algum tipo de traço inato, essencial? Apesar dessa discussão, no entanto, tornou-se impossível para a Espanha se livrar daquilo que se tornou uma ansiedade obsessiva relativa a honrarias e distinções sociais, intensificando as preocupações com o casamento, com a legitimidade e conseqüentemente com o controle sobre os corpos das mulheres.18 18 Sicroff, 1979, p. 259-342.

A Inquisição espanhola estava em seu apogeu no século XVII. Em Portugal, o Santo Ofício foi dissolvido em meados do século XVIII, e a distinção entre cristãos velhos e novos foi abolida em 1773 pelas reformas pombalinas. Na Espanha dos Bourbons, a Inquisição sobreviveu até o início do século XIX, quando também as provas de sangue deixaram de ser exigidas para o casamento.

Velhas idéias no Novo Mundo

As repercussões das idéias metropolitanas de pureza de sangue no mundo colonial são mais bem docu-mentadas nas colônias espanholas do que no Brasil, embora a preocupação com a limpieza de sangre tenha sido parte do cotidiano em ambos os impérios coloniais. De qualquer forma, a Inquisição portuguesa nunca estabeleceu um tribunal em sua colônia; apenas enviava comissários em visitas ocasionais.19 19 Boxer, 1978, p. 85. Desde o início, nem a Espanha nem Portugal permitiram a "mouros, judeus, seus filhos, ciganos, nem [a] qualquer pessoa em desacordo com a Igreja" que passasse pelas Índias Ocidentais, embora um número não conhecido de cristãos novos tenha de fato ido para a América. Estes foram particularmente para o Brasil, onde encontraram uma discriminação prevista em lei, porém mais amena na prática, tendo assim maiores chances de passar como cristãos velhos e ascender na escala social.20 20 Carneiro, 1988, p. 195 et seq.

Nas colônias ibéricas, a doutrina da limpieza de sangre permaneceu se referindo a uma qualidade cultural-religiosa até o século XVIII. Estudiosos das sociedades coloniais portuguesa e espanhola tenderam, no entanto, a interpretar a limpieza de sangre como uma ideologia da pureza racial e da exclusão desde o início da colonização, sendo os termos raça, etnia e identidade étnica intercambiáveis em boa parte da literatura do império.21 21 Kamen sugere igualmente para a Península Ibérica que aquilo que começou como discriminação religiosa e cultural se transformou, em meados do século XVI, em "uma doutrina racista do pecado original da mais repulsiva espécie" (Kamen, 1985, p. 158). Na América espanhola a obsessão com a pureza de sangue esteve em seu apogeu no século XVIII, quando finalmente sofreu uma importante mudança de significado, precisamente quando estava perdendo força na metrópole, onde a intensificação do poder real, o racionalismo e as políticas anticlericais, em Lisboa e Madri, colaboraram, depois de 1750, para reduzir o poder e a influência da Inquisição.22 22 Boxer, 1978, p. 92.

Em suas análises dos sistemas de classificação e estratificação social na sociedade colonial em desenvolvimento, e suas implicações sobre o gênero, alguns pesquisadores têm privilegiado a raça e/ou a classe social como princípio estruturador dominante.23 23 Susan Socolow, 1978; Silvia Arrom, 1985; Socolow, 1987; Irene Silverblatt, 1987; Patricia Seed, 1988; Asunción Lavrin, 1989; Guiomar Dueñas Vargas, 1996; e María Imelda Ramirez, 2000. Quanto a isso, é reveladora a recente análise que Ann Twinam24 24 Twinam, 1999. fez de petições de legitimação do século XVIII, dirigidas à administração colonial, em seu estudo sobre a dinâmica das honras sociais, casamento, legitimidade e gênero na América colonial espanhola. Pessoas de nascimento ilegítimo sofriam discriminação social por conta das incertezas que cercavam sua limpieza de sangre. Twinam teve o grande mérito de prestar atenção aos precedentes metropolitanos das noções coloniais de identificação e honra social. Ela indica que "no século XVIII o elo entre limpieza, legitimidade e honra era plenamente institucionalizado, já que as tradições discriminatórias da história espanhola haviam sido absorvidas".25 25 Twinam, 1999, p. 47. Mesmo assim, ela não deixa claro o sentido que o "sangue" tinha a essa altura na sociedade colonial. Ela na verdade usa as noções de raça e de limpieza de sangre indistintamente, como acontece quando afirma que os estatutos de pureza de sangue "impediam os ilegítimos e os de raça mista de assumirem cargos" na Espanha, já nos fins da Idade Média.26 26 Twinam, 1999, p. 47, grifo meu. Patricia Seed,27 27 Seed, 1988. ao contrário, mostra que no Vice-Reinado do México, nos dois primeiros séculos após a conquista, a oposição pré-nupcial dos pais ocorria predominantemente entre grupos de hispânicos e crioulos sócio-economicamente próximos, por motivos de saúde, enquanto a limpieza de sangre não era questão própria a uma sociedade estruturada pela raça. Só no fim do século XVIII, quando a legislação real exigiu explicitamente a prova da limpieza de sangre para que a oposição dos pais ao casamento se efetivasse, os motivos para a disputa eram, aí sim, a disparidade racial.28 28 Seed, 1988, p. 330; e Daisy Ardanaz, 1977. Nos anos 1980, em mais uma controvérsia sobre a estrutura social colonial, defensores da visão tradicional de que a identidade étnica condicionava o posicionamento social do indivíduo nos últimos tempos da sociedade colonial criticaram historiadores que, como Seed, sustentavam que classe teria se tornado, na época, tão ou mais importante que raça.29 29 Juan Carlos Garavaglia e Juan Carlos Grosso, 1994, p. 39-42; e Arrom, 1985.

Schwartz e Salomon, assim como Zúñiga, são notáveis exceções a essa tendência a-histórica geral de interpretar a doutrina da limpieza de sangre como ideologia racial. Eles insistiram, com razão, em afirmar que, nos primeiros tempos da era colonial, o uso da linguagem genealógica de "sangue" e "nascimento" para definir fronteiras sociais precisa ser diferenciado do racismo moderno, que só apareceu no século XVIII.30 30 Schwartz e Salomon, 1999, p. 443-478; Schwartz, 1995; e Zúñiga, 1999.

Por uma série de razões, nada há de trivial na compreensão dos sentidos simbólicos das categorias de posicionamento social que se desenvolveram na sociedade colonial ibérica sobre o pano de fundo de seus precedentes metropolitanos. Primeiro porque a análise histórica corre o risco do anacronismo ao aplicar ao passado sentidos culturais do presente. As categorias de posicionamento que eu examinei não só possibilitavam a identificação e o tratamento da população indígena e dos escravos africanos, junto com seus filhos "misturados", e não só limitavam suas chances de ascensão social de forma peculiar. Elas tinham também conseqüências imediatas para as relações de gênero. Conforme argumentarei abaixo, na sociedade colonial ibérica durante os dois primeiros séculos após a conquista, a doutrina da limpieza de sangre era uma forma cultural-religiosa de posicionamento social e de discriminação. Isso não torna a hierarquia de honrarias da época nem melhor nem pior, em termos morais, do que o racismo, mas põe em destaque seu contexto histórico específico. Mesmo quando pesquisadores usam o controverso termo raça num sentido mais descritivo do que analítico, isso se torna historicamente temerário por esquivar a questão fundamental sobre como os povos da América entendiam a identidade e a exclusão social de sua própria época.

Segundo porque os modos de classificação e identificação social que estruturam uma sociedade determinam também a forma pela qual sua reprodução social é organizada; o sentido simbólico com o qual a limpieza de sangre era estabelecida determinava a maneira pela qual as concepções e as relações entre homens e mulheres eram construídas sócio-politicamente. Como mostrarei abaixo, sempre que o status social tem por base o "nascimento", o "sangue", ou seja, a descendência, em vez de méritos ou aquisições sócio-econômicas individuais, o que se torna decisivo para os homens em suas disputas por honrarias sociais são as mulheres e o controle de sua sexualidade. Só as mulheres, afinal, poderiam, nessas circunstâncias, certificar que o nascimento era legítimo. Como diz o velho adágio, mater semper certa est. Finalmente, interpretar como racista qualquer ideologia que fundamenta qualidade e status social no nascimento, na genealogia, na linhagem ou na descendência nos levaria, em última análise, à insustentável conclusão de que todas as sociedades pré-modernas, incluindo aquelas tradicionalmente estudadas por antropólogos, eram organizadas de acordo com a raça.31 31 Nirenberg, 2000, p. 42; e Schwartz, 1995, p. 189.

Os novos povos da América

Idéias ibéricas e ideais de posicionamento social eram, no entanto, quase imediatamente desafiados no Novo Mundo. Ao contrário do que acontecia na Península Ibérica, nas colônias americanas o jogo entre a metafísica do sangue e as funções sócio-econômicas promoveram uma gradação das posições sociais em vários níveis, ao invés de uma polaridade estrita entre status social puro ou impuro.

Os povos indígenas não se encaixaram facilmente no esquema classificatório cultural-religioso da limpieza de sangre e muito menos os filhos misturados dos colonos. Os índios eram formalmente considerados vassalos da Coroa, mas se distinguiam dos conquistadores e colonos espanhóis em sua conduta moral e em sua crença, sistemas que conflitavam com preceitos religioso-morais cristãos. Já no século XVI a Igreja e as Coroas ibéricas proibiram a escravização de índios, uma nova categoria inventada pelos colonizadores. Sendo ignorantes em relação às escrituras sagradas, eles eram vistos como menores dependentes, mais ou menos como as mulheres, que dependiam da proteção e da orientação, ou seja, do controle, de seus homens. As almas pequeñas dos índios precisavam da tutela da Coroa e da Igreja, que se tornavam responsáveis por instruí-los na única verdadeira fé.32 32 Pagden, 1982; e Georges Gusdorf, 1972.

Em termos legais, os povos originais da América espanhola e seus descendentes desfrutaram da qualidade de gentios conferida a eles pela Coroa. Como estabeleceu um decreto real em 1697, sua "pureza de sangue [...] sem mistura ou infecção de outro grupo repudiado" reservava-lhes todas as prerrogativas, dignidades e honras desfrutadas na Espanha por aqueles que tinham sangue puro. As escolas deveriam se estabelecer para ensiná-los a língua castelhana, e eles deveriam ser evangelizados.33 33 Richard Konetzke, 1962, III, 1, p. 66-69 e 21. Ao contrário da legislação que regulava direitos e deveres dos africanos, que até o século XVIII foi extraordi-nariamente repetitiva e escassa, as leis referentes aos índios eram abundantes. Por exemplo, a Coroa insistia sempre, como em 1734, que "todas as distinções e honrarias (sejam elas ecle-siásticas ou seculares) atribuídas a castelhanos nobres serão ofere-cidas a todos os caciques e seus descendentes; e a todos os índios menos ilustres e a seus descen-dentes que sejam limpios de sangre, sem mistura ou [infecção] de um grupo condenado [...] e por essas determinações reais eles passam a ser qualificados por Sua Graça para qualquer emprego honorífico" (Konetzke, 1962, III, 1, p. 217). O fenótipo era irrelevante na época para definir a posição social. O que importava eram crenças religiosas e condutas morais. Só os índios que se recusavam a se converter ao cristianismo tinham sangue impuro, podendo então ser escravizados.

No Brasil, o status formal da população indígena é menos claro na pesquisa acadêmica disponível. No Brasil português, os índios parecem não ter recebido a atenção que seus irmãos receberam na América colonial espanhola, possivelmente porque, com o aumento do tráfico de escravos, sua importância como força de trabalho em potencial declinou muito mais cedo do que no caso de escravos africanos. Inicialmente a Coroa e a Igreja protegeram-nos da escravidão, mas num determinado momento eles se tornaram um obstáculo à expansão da fronteira agro-pastoril, o que os condenou ao extermínio. No Brasil, o preconceito de sangue pesava sobre "judeus, mulatos, negros e mouros". Os inquisidores não se davam ao trabalho de investigar antecedentes de índios e caboclos (descendentes de índios e portugueses), já que eram considerados pessoas absolutamente primitivas, frágeis e infantis. A preocupação com o "sangue negro", no entanto, era intensa.34 34 Carneiro, 1988, p. 216 e 220; e Schwartz, 1996, p. 21.

Na prática, a população indígena e o significativo grupo intermediário de mestiços na América espanhola colonial eram, no entanto, economicamente desprivi-legiados e socialmente discriminados até o fim do século XVI. Sua igualdade formal em relação aos hispânicos não evitou que suas terras lhes fossem brutalmente arrancadas, nem que eles acabassem concentrados em povoados indígenas (pueblos de indios) para serem mais facilmente disciplinados e explorados como força de trabalho. Ainda assim eles eram livres. Depois de uma fase de apreensão, a Coroa permitiu casamentos entre índios e também aceitou que hispânicos e seus descendentes se casassem com índios e mestiços, ainda que fosse para reverter o dramático declínio das populações indígenas.35 35 Ardanaz, 1977, p. 230-236. Na maioria das vezes, porém, a mestiçagem foi resultado predominantemente de sexo casual ou uniões extra-conjugais de espanhóis, que em geral não se viam muito inclinados a se casar com índias. Como diz um provérbio colombiano: "la palabra de mestizo se entiende de ilegítimo" (o termo mestiço significa nascimento ilegítimo).36 36 Dueñas Vargas, 1996, p. 54. Embora os mestiços "derivassem de duas nações puras e castas", eles eram desdenhados, tornando-se também progressivamente inelegíveis para o sacerdócio e para o trabalho público honorário.37 37 Henry Méchoulan, 1981, p. 58. E na segunda metade do século XVI eles perderam também seus direitos políticos, já que sua lealdade era dividida entre seus pais, geralmente encomenderos, a quem deviam suceder no comando das terras, e seus parentes índios, cujas rebeliões alguns mestiços apoiavam ou mesmo lideravam.

O status político-cultural de escravos africanos na sociedade colonial também se define a partir de precedentes da metrópole. Mas em contraste com o que aconteceu com os índios, a escravização de africanos era encarada como perfeitamente legítima. Os africanos trazidos ao Novo Mundo como escravos, e seus descendentes, eram vistos como genuinamente impuros e infectados, por carregarem "o peso da horrível mancha do vil nascimento como zambos, mulatos e outras castas piores, com as quais homens da esfera intermediária ficam envergonhados de se misturar".38 38 Konetzke, 1962, III, 1, p. 185 e 107. A palavra casta, hoje associada ao sistema de castas indiano, foi introduzida no sul da Ásia como um conceito ibérico referente a pessoas definidas pelo "sangue". Na América espanhola, "casta" primeiro indicava o contorno natural das desigualdades de poder e de status entre os colonizadores espanhóis, os índios e os escravos africanos. Mas com o tempo, a "casta" se transformou num termo genérico referente à ampla coorte das pessoas "misturadas" (Schwartz e Salomon, 1999, p. 444). Enquanto o sangue espanhol era tido como prevalente sobre o sangue índio após três gerações de mestiçagem, a mancha do sangue negro era considerada indelével.39 39 Katzew, 1996, p. 11-12. Katzew cita o seguinte trecho da Idea compendiosa del Reyno de Nueva España (1774), de Pedro Alonso O'Crouley: "[...] las calidades y linajes de que estas castas se originan; son español, indio y negro, sabido es que de estas dos últimas ninguna disputa al español la dignidad y estimación, ni alguna de las demás quiere ceder a la del negro, que es la más abatida y despreciada [...] Si el compuesto es nacido de español e indio sale la mancha al tercer grado, porque se regula que de español e indio sale mestizo, de éste y español castizo, y de éste y español sale ya español [...] porque se encuentra que de español y negro nace el mulato, de éste y español morisco, de éste y español tornatrás, de éste y español tenteenelaire, que es lo mismo que mulato, y por esto se dice y con razón que el mulato no sale del mixto, y antes bien como que se pierde la porción de español y se liquida en carácter de negro, o poco menos que es mulato. Por lo que respecta a la confección de negro e indio sucede lo mismo; de negro e indio, lobo: de éste e indio chino, de éste e indio albarazado, y todos tiran a mulato" (Katzew, 1996, p. 109).

Na América espanhola colonial, o princípio de limpieza de sangre identificava os escravos negros, e todos aqueles suspeitos de descender deles, e os separava do resto da população. "Sangue" negro significava sangue impuro, correspondente a uma contaminação indelével dos africanos que, de acordo com idéias de Aristóteles assumidas por europeus, eram inaceitáveis na pulitia, ou seja, na civilização, porque eles descendiam dos africanos negros bárbaros da Guiné. Uma fisionomia negra ou mulata era o sinal visível dessa herança genealógica bárbara em termos culturais e morais.

Ainda que isso seja pouco conhecido, a escravidão foi parte da sociedade espanhola do século XVI, especialmente na Andaluzia.40 40 Aurelia Martín Casares, 2000. Pensadores contempo-râneos, políticos e a Igreja, em Portugal e na Espanha, não sentiram qualquer desconforto moral em relação à escravização de africanos negros, nenhum deles questionou a justificação aristotélica de sua "escravidão natural", ao contrário do que aconteceu com a escravidão de índios, que provocou calorosas discussões na Península, em nome de uma imaturidade racional indígena que os seus senhores ajudariam a superar.

Os portugueses dominaram o tráfico de escravos para a Península Ibérica, que recebeu as primeiras cargas desse contingente em meados do século XV. A maioria dos escravos importados, por exemplo, para Granada durante a primeira metade do século XVI veio da região então conhecida como Guiné, que compreendia toda a região que hoje inclui Senegal, Gâmbia, Guiné Bissau, República da Guiné, parte de Mali e Burkina Fasso. Houve também escravos berberes muçulmanos capturados por piratas espanhóis no norte da África. E quando os mouros (muçulmanos convertidos) se rebelaram na noite de Natal de 1568, 70 anos depois da conquista de Granada pelos cristãos, eles também se tornaram aptos a serem escravizados porque, como o Núncio de Madri escreveu na época, "mesmo batizados eles são mais muçulmanos do que seus irmãos norte-africanos".41 41 Martin Casares, 2000, p. 176. No século XVI a escravidão atingiu o ápice, com os escravos, na maioria mulheres empregadas em serviços domésticos, totalizando 14% da população de Granada. Os senhores exploravam suas escravas sexualmente, mas em grau menor do que era comum nas Américas coloniais. Aos olhos dos contemporâneos, não existia casta mais baixa do que a dos negros escravos vindos da Guiné. Traficantes portugueses de escravos, em Luanda por exemplo, consideravam os escravos africanos negros como "brutos desprovidos de compreensão inteligente" e "quase, pode-se dizer, seres irracionais".42 42 Citado por Boxer, 1963, p. 29. Escravos do norte da África, muçulmanos africanos, tiveram o duvidoso benefício de pertencer à cultura muçulmana, que era desprezada ainda que considerada como algo superior em relação aos escravos que vinham da Guiné. Escravos negros libertos, negros nascidos livres ou mulatos traziam a mancha de sua descendência de escravos bárbaros. Na visão popular, a cor escura de suas peles revelava esse caráter cultural manchado. O número de escravos em Granada só decaiu a partir do século XVIII, época em que escravos africanos foram ficando cada vez mais numerosos nas plantations das colônias caribenhas, da Nova Espanha, da costa do Peru e da Colômbia; nessa época sua importância econômica crescia, e a categoria moderna de raça começava a se estabelecer.

A moralidade sexual da honra social e do casamento

O sistema de identificação e classificação social desenvolvido na sociedade colonial marcou as relações de gênero e a experiência das mulheres. Eu venho insistindo em que, durante os dois primeiros séculos depois da conquista, a limpieza de sangre se referiu mais a qualidades cultural-morais do que a qualidades raciais, já que a categoria moderna de raça foi introduzida apenas no início do século XIX. Fragilidades culturais e morais podiam ser remediadas pela educação. Posteriormente, autoridades no estudo das raças previam que nenhuma melhoria social poderia ser garantida pelo chamado branqueamento. Ainda assim, esses princípios conceitualmente distintos de classificação social tinham em comum que ambos atribuíam o status sócio-político à genealogia. A hierarquia social era baseada em linhas de descendência, embora o que se pensava ser transmitido pelo sangue tenha mudado de uma conduta moral-religiosa remediável para distinções sociais inatas, devidas a manchas indeléveis.

Justamente por se acreditar que a posição social era determinada precipuamente pela origem genealógica, a norma reprodutiva na sociedade colonial ibérica era o casamento endogâmico entre pessoas de mesmo status social. Zelando pela garantia da honra social associada à pureza de sangue, as elites coloniais aspiravam casar-se entre si para assegurar a pureza social condicionada ao nascimento legítimo de sua prole. Sob tais circunstâncias, as ordens inferiores dificilmente poderiam se casar de outra forma. Relações sexuais entre parceiros de status sociais distintos não raro aconteciam fora do casamento. Os filhos ilegítimos eram excluídos das honrarias sociais do ascendente mais bem colocado, normalmente o pai, e então eram criados em casas comandadas pelas mães, de status mais baixo. As elites coloniais reproduziam o código de honra metropolitano, em que a busca por pureza dependia daquela moralidade sexual em que a virgindade e a castidade das mulheres apareciam como o valor maior, adaptando tal código ao novo ambiente colonial. Esse elo entre pureza social e virtude sexual feminina era claro numa ideologia de gênero que atribuía aos homens o direito e a responsabilidade de controlar os corpos e a sexualidade de suas mulheres. Isso era assim precisamente porque o valor social de um indivíduo, em vez de ser algo adquirido através de ações ou comportamentos, dependia primordialmente de seus antecedentes genealógicos. Os homens podiam obter honrarias sociais através de feitos heróicos, mas eles precisavam seguir o código de honra para não perdê-las depois, enquanto as mulheres podiam apenas perder sua honra ou virtude.

O sistema de parentesco da Península Ibérica e da América colonial era bilateral, com as crianças definindo sua descendência tanto pelo pai quanto pela mãe, além de ser compreendido como relacionado a parentes consangüíneos de ambos os ascendentes na mesma medida. Por ser a origem genealógica traçada bilateralmente, o casamento entre pessoas socialmente equivalentes teve esse papel central na perpetuação das honrarias sociais. No caso de filhos de uniões mistas, no entanto, era sempre o ascendente inferior, independen-temente do sexo, que determinava o status da criança. Como vou mostrar mais abaixo, dada a importância atribuída à virtude sexual das mulheres para a honra familiar, era inconcebível a uma mulher da elite se casar, e muito pior, manter uma união sexual com um homem de pureza social inferior, porque isso poderia "contaminar" toda sua família. Assim, encontros sexuais mistos eram normalmente hipergâmicos (entre homem de classe alta e mulher de status inferior).

É preciso destacar, entretanto, que, apesar do peso social da genealogia na determinação do status social, a sociedade colonial nunca teve uma ordem hierárquica impermeável e fechada. No século XVIII, as sociedades coloniais portuguesa e espanhola se tornaram uma complexa e fluida gradação de desigualdades resultado do jogo entre raça e critério moderno de classe. O surpreendente aumento no número de petições de legitimação oficial à Coroa, particularmente no Caribe e no norte da América do Sul, reflete a intensa preocupação da elite com a genealogia e com a pureza sangüínea, especialmente nas regiões onde o número de escravos africanos ainda crescia no fim do século XVIII. Casamento e nascimento legítimos não eram apenas provas da qualidade moral dos ascendentes. A pureza do sangue adquiriu nova relevância porque os filhos não puros de uniões sexuais esporádicas e da concubinagem de europeus e crioulos com mulheres índias ou mestiças, ou ainda com aquelas de descendência africana, borraram as fronteiras visíveis de grupo, num tempo em que o fenótipo se tornou um indicador importante de qualidade social. As aspirações desses filhos misturados à ascensão social eram vistas pelas elites como ameaças a sua proeminência social e a seus privilégios.43 43 Twinam, 1999, p. 258-260. Mais do que nunca, o nascimento ilegítimo era sinal de "infâmia, mancha e defeito", como declarou um decreto real de legitimação de 1780.44 44 Konetzke, 1962, III, 2, p. 173.

Os cuadros de castas produzidos nos anos 1780, predominantemente na Nova Espanha (México), por pintores do cotidiano são sintomáticos das agudas sensibilidades sociais que três séculos de mestiçagem, em vez de diminuir, serviram só para intensificar. Esses quadros aparecem normalmente em conjuntos de dezesseis, cada um retratando um casal com cores de pele e fisionomias diferentes, acompanhados de um filho misturado. Esses quadros não apresentam, à primeira vista, taxonomias sócio-raciais, mas representam processos de reprodução sócio-racial ao documentar múltiplas formas de estabelecimento de "misturas" coloniais. Os quadros mostram meticulosamente o grande leque de matizes, texturas de cabelo, vestidos e até condutas morais que os contemporâneos percebiam em meio ao grande número de povos de "sangue" misturado, sugerindo assim a crescente instabilidade social da colônia no que diz respeito a sua fluidez sócio-racial.45 45 Katzew, 1996; e Schwartz e Salomon, 1999, p. 493. É nesse contexto da fluidez social e da instabilidade que a linguagem da limpieza de sangre obtém nova relevância, perdendo sua conotação religioso-moral prévia e adquirindo um sentido racial.

Para dar conta da mudança no sentido simbólico da pureza de sangue para esse sentido racial, e também da fluidez crescente da sociedade colonial, temos que novamente voltar os olhos para a Europa. Ali, a disseminação do individualismo moderno que acompanhou o declínio da monarquia fez surgir novas teorias sobre como "os indivíduos devem ser agrupados de acordo com seus aspectos naturais".46 46 Guillaumin citado por Ann Laura Stoler, l995, p. 37. O advento da filosofia natural experimental na Europa do fim do século XVII buscou descobrir as leis naturais que governavam a condição humana e abandonou a ontologia teológica anterior. Depois da publicação de trabalhos de William Petty, Edward Tyson e Carl Linnaeus sobre a ordem da natureza, a humanidade deixou de ser um todo perfeito criado por Deus e passou a ser dividida entre dois, três, talvez mais, graus em potencial de seres humanos, ou seja, raças. A preocupação dos naturalistas era com seres humanos enquanto criaturas físicas e enquanto membros de sociedades organizadas. A ênfase não recaía mais sobre a unidade humana, mas sobre diferenças físicas e culturais. O interesse em tipos plurais de seres humanos iria ressoar por gerações através de tratados e volumes variados sobre teoria racial e social.47 47 Margaret Hodgen, 1964, p. 418 et seq.

Um artigo anônimo publicado no Journal des Savants, na França, em 1684, percebe um dos primeiros usos do conceito de raça num sentido que se aproxima de seu significado moderno. Seu autor distinguia "quatro ou cinco espécies ou raças de homens", diferenciadas através de características antropológicas, sendo cruciais entre estas a cor da pele e o habitat geográfico, embora o autor hesitasse em conceber índios americanos como uma raça separada. O Journal de Savants estava entre os principais periódicos europeus. O artigo era um sinal dos tempos.48 48 Gusdorf, 1972, p. 362-363. Incidentalmente, essa nova noção de raça se desenvolveu paralelamente ao novo modelo bissexual, no qual o útero naturalmente torna a mulher fadada à maternidade e à vida doméstica.49 49 Thomas Laqueur, 1990, p. 155. É difícil dizer exatamente quando essa noção de raça foi transposta para o Novo Mundo, mas não há dúvida de que ela o foi, principalmente devido à intensa ansiedade das elites coloniais em relação à pureza genealógica. Apesar do novo sentido racial, a linguagem da qualidade menos palpável da pureza de sangue persistiu nas colônias ibéricas, porque no século XVIII o fenótipo se tornou um signo muito pouco confiável da herança genealógica de uma pessoa.50 50 Stolcke, 1974.

A Igreja, obviamente, não era indiferente aos costumes ligados ao casamento e ao sexo. Até fins do século XVIII a Igreja tinha autoridade exclusiva sobre os casamentos. E sua política de casamentos servia apenas para intensificar as preocupações das elites coloniais quanto ao status social. Embora a Inquisição tenha sido contra os contratos de casamento de cristãos velhos com novos na metrópole, o princípio doutrinal que regulou a prática eclesiástica nas colônias era o da liberdade de casamento, que garantia aos jovens o direito de escolher livremente suas esposas e rejeitar a oposição dos pais ao casamento por motivos de pureza de sangue. A partir do século XVI, porém, há exemplos documentados de que alguns pais tentaram impedir os casamentos de seus filhos por motivos de desigualdade social, a fim de manter a pureza da família.51 51 Seed, 1988, p. 75-91. Mas embora a doutrina moral canônica de fazer a virtude sexual prevalecer sobre honrarias sociais tenha desafiado a hierarquia social, a Igreja era liberal apenas na aparência. A Igreja ignorava desigualdades sociais, mas impunha o mais estrito controle sexual, particularmente sobre as mulheres. Para a Igreja, a virtude sexual feminina – virgindade antes do casamento e castidade depois – era o maior de todos os bens morais. A conseqüência da preocupação da Igreja com a proteção da virtude moral era portanto o controle sexual: a salvação da alma dependia da submissão do corpo aos preceitos religioso-morais. Mesmo assim a Igreja nunca conseguiu erradicar a exploração sexual de mulheres consideradas de baixa posição social e "sangüínea", e os religiosos, notórios por seus próprios abusos sexuais nas colônias, não cumpriam estritamente esses preceitos. Apesar de tentativas isoladas de casar casais que "viviam em pecado", uniões socialmente desiguais eram, na maioria, consensuais como eram chamadas eufemisticamente na época. Isso teve outras conseqüências. Hoje está perfeitamente estabelecido que oportunidades e experiências de mulheres diferem de acordo com o nível social reservado a elas na sociedade. Ao exaltar a virtude sexual, a Igreja fomentou a discriminação de diferentes tipos de mulher em termos sexuais: de um lado, mulheres abusadas sexualmente por homens que, devido ao alto status social, não se casariam com elas (essas eram posicionadas em um status inferior e, mais do que isso, penalizadas por estarem, assim, vivendo em pecado mortal); de outro, mulheres virtuosas (de famílias respeitáveis) cuja sexualidade era severamente controlada por homens em nome da família e da pureza social.

Em meados do século XVIII, no entanto, a Igreja se viu ameaçada por dois lados. Ela enfrentou o Estado, que estava limitando os tradicionais poderes eclesiásticos e os privilégios econômicos da Igreja, e também entrou em choque com a Coroa quanto à jurisdição sobre os efeitos civis de casamentos considerados desiguais. As coroas ibéricas aprovaram uma nova legislação sobre casamentos que refletia suas preocupações com a livre escolha de cônjuges pelos jovens, e com isso a Igreja passou a encarar dificuldades cada vez maiores para defender o casamento livre contra a oposição pré-nupcial dos pais. Uma lei portuguesa de 1775 reforçou um decreto de 1603 que autorizava os pais a deserdar a filha que se casasse sem consentimento, estendendo a exigência de consentimento paterno aos filhos homens. Na Espanha, Charles III promulgou a Sanção Pragmática de 1776 que, do mesmo modo, buscou prevenir o "abuso" dos contratos de casamentos desiguais por filhos e filhas. Essas leis suprimiram a livre escolha de casamentos, enquanto o Estado assumia o controle. Daí em diante, os casamentos só puderam ser realizados com consentimento paterno, ficando os filhos sob ameaça de serem deserdados, de acordo com o consagrado princípio "patrimônio pelo matrimônio".52 52 STOLCKE, 1974; e Murial Nazzari, 1991, p. 130 et seq.

Pode ser paradoxal que as coroas portuguesa e espanhola tenham introduzido simultaneamente suas formas severas de controle sobre o casamento num tempo de reforma política e modernização, quando o princípio de status genealógico de limpieza de sangre, além de tudo, perdia validade na Península Ibérica. Mas absolutamente nada tem de atípico o fato de as reformas de secularização liberal serem acompanhadas de novos controles sociais. É portanto plausível ver nessas leis de casamentos uma tentativa, por parte do Estado, de conter as potenciais conseqüências sociais das reformas num clima político que em toda Europa já estava ameaçando hierarquias sociais estabelecidas.

Na América espanhola, como já mencionado, o princípio da limpieza de sangre foi retomado. Em 1778, o rei estendeu a Sanção Pragmática às colônias,

considerando que efeitos iguais ou piores são causados por esse abuso [de casamentos desiguais] em meus reinos e nos domínios das Índias, levando em conta seu tamanho, a diversidade de classes e castas de seus habitantes [...] e o sério dano que vem sendo experimentado em meio a essa liberdade absoluta e desordenada com a qual os casamentos vêm sendo contratados por jovens impetuosos e desajustados de ambos os sexos.

Excluídos da Sanção Pragmática estavam "mulatos, negros, coiotes [filhos de africanos e índios] e indivíduos de castas e raças assumidas e publicamente reputadas como tais", que presumivelmente não tinham qualquer honra que valesse a pena proteger.53 53 Konetzke, 1962, III, 1, p. 438-442. Tendo a Coroa portuguesa buscado refúgio no Brasil, o Brasil seguiu a lei de matrimônios portuguesa de 1775, que foi incorporada ao Código Criminal do Império de 1831.54 54 Nazzari, 1991, p. 132.

No século XVIII, juízes brasileiros ainda se preocupavam com a igualdade entre parceiros para o casamento, mas como Murial Nazzari mostrou, em relação a São Paulo, essa preocupação mudou no século XIX, quando a idéia de igualdade das esposas já perdia a importância que teve em séculos anteriores; a preocupação passou então a ser a competência do marido para sustentar a esposa.55 55 Nazzari, 1991, p. 138-139. Ao contrário do que acontece com Cuba no século XIX, não há infelizmente informação disponível sobre o Brasil quanto aos efeitos da desigualdade sócio-racial sobre o casamento, e também parece não ter havido proibição legal de casamento inter-racial.

A implementação da Sanção Pragmática espanhola encontrou dificuldades consideráveis nas colônias espanholas. Vários decretos reais adicionais relativos a casamentos desiguais se seguiram ao de 1778 para resolver conflitos entre a Coroa e autoridades coloniais quanto à política de casamentos. O problema crucial, nesse momento, era o casamento inter-racial. No início não estava claro se apenas pessoas de idade legal e reconhecida nobreza, ou se pessoas de sangue puro em geral, precisavam de autorização oficial para se casar com "membros das castas". Um decreto de 1805 resolveu essa questão exigindo que "todas as pessoas de reconhecida nobreza e de reconhecida limpieza de sangre que, tendo atingido a maioridade, desejarem se casar com um membro das ditas castas (negros, mulatos e outras)" se dirigissem às autoridades civis coloniais, que poderiam conceder ou negar as licenças correspondentes, enquanto "índios e mestiços puros [eram] livres para se casar com brancos ou hispânicos".56 56 Konetzke, 1962, III, 2, p. 826. Isso não era apenas equivalente a uma virtual proibição do casamento de hispânicos ou crioulos com os negros e seus descendentes: o casamento inter-racial se tornou um problema de Estado. O que estava em questão não eram só os interesses das famílias, mas também a estabilidade da ordem social.

Cuba foi a mais valiosa das colônias espanholas no século XIX. Em seu apogeu econômico como produtor de açúcar, o país explorou uma população escrava que crescia, tornando-se o lugar privilegiado da aplicação dessa legislação sobre o casamento, ainda que o rigor das autoridades coloniais na proibição do casamento inter-racial tenha variado. Particularmente na primeira metade do século, era freqüente pais dissidentes discordarem em relação à limpieza de sangre. Repetidas vezes eles falavam da "absoluta desigualdade" do casal, de sua própria "reconhecida pureza de sangue" e da "mancha evidente e transcendental" em sua reputação, da "degradação dos filhos" e da "desgraça e insatisfação" que o casamento traria à família. Nas colônias espanholas, a estabilidade social representava a preservação da hierarquia social fundada no jogo entre as condições relativas a escravidão, qualidade racial e virtude sexual feminina.57 57 Martinez-Alier, 1974, p. 15.

No século XIX, a pureza de sangue era usada no sentido racial moderno para distinguir pessoas de origem africana/escrava daquelas de origem européia/livre. Pessoas livres "de cor" – eufemismo cubano para pessoas de descendência africana – eram porém igualmente discriminadas. No entanto, no caso de "pardos" (mulatos) nascidos livres, a proibição do casamento inter-racial era aplicada com grande leniência por terem eles escapado mais evidentemente da "cor negra e da escravidão".58 58 Martinez-Alier, 1974, p. 76. Cor de pele e classe eram combinadas na determinação do status social da pessoa. Pele clara e sucesso sócio-econômico podiam amenizar a mancha genealógica da descendência de escravos até um certo ponto. Não eram freqüentes os casamentos entre homens brancos e mulheres de cor, como forma de oposição à concubinagem, mas as autoridades permitiam-nos a homens brancos de poucos recursos se eles quisessem se casar por amor ou para legitimar uma relação sexual anterior e o filho dela resultante.

Como já foi indicado, a sociedade colonial não era uma ordem hierárquica impermeável. A parafernália legal sobre o matrimônio era necessária justamente porque, apesar da preocupação com a limpieza de sangre, sempre houve mulheres e homens brancos prontos a desafiar a ordem político-racial e seus valores sociais e morais, casando-se contra as recomendações da tradição. Havia limites, porém, para a compensação do status racial pelas conquistas econômicas em relação ao casamento. A endogamia sócio-racial era a forma de casamento preferida, oficialmente e socialmente, entre brancos e pessoas de cor em Cuba no século XIX. A maioria dos casamentos obedecia a esse padrão. Mas quando um casal jovem decidia desrespeitar as normas estabelecidas, podia solicitar às autoridades civis uma licença suplementar de casamento, compensando a objeção dos pais, ou podia, mais dramaticamente, fugir para casar. Ao encarar o fait accompli da perda da virtude sexual da mulher, era de se supor que os pais achassem muito mais difícil manter suas objeções iniciais. Mas quando o casal era visto como pertencendo a uma "raça" diferente, os pais brancos em desacordo geralmente preferiam tolerar uma filha desonrada a deixar que sua linhagem fosse poluída. Um pai branco argumentou quanto a isso da seguinte forma:

[O pretendente teve] a audácia inconcebível de seduzir, levar e talvez até estuprar uma moça branca de respeito [...] tornando-se assim culpado, aos olhos da lei, de uma ofensa extremamente grave, uma ofensa do tipo que exige ser levada diante das cortes da Ilha de Cuba a qualquer custo. Este é um país em que, dadas suas circunstâncias excepcionais [isto é, a escravidão], torna-se necessário que a linha divisória entre os brancos e as raças africanas seja muito bem demarcada, porque qualquer tolerância, que em alguns casos pode ser elogiável, trará desonra às famílias brancas, revolta e desordem ao país, e talvez até o extermínio de seus habitantes; [ele] nunca aprovará um casamento de sua filha com um mulato, porque isso estaria recobrindo uma mancha com outra muito maior e ainda mais indelével; ao contrário, é melhor elas engolirem a dor e a vergonha em silêncio do que autorizá-las publicamente.59 59 STOLCKE, 1974, p. 113.

Tais desafios ao status quo social indicam que, paralelamente à norma da hierarquia sócio-racial típica de uma sociedade escravocrata, existia um ideal de liberdade individual, de liberdade de escolha. Esse ideal liberal moderno de liberdade individual, enraizado na noção de igualdade básica de todos os humanos vinda da renascença européia, era a raison d'être da ideologia da limpieza de sangre, tanto no sentido religioso-cultural prévio quanto no sentido racial posterior, que serviu para justificar e dar conta da desigualdade social real. Apesar das diferenças regionais, o ethos universalista cristão, segundo o qual todos os seres humanos seriam iguais diante de Deus, dominou a sociedade ocidental mais ou menos até o século XVIII. Desde então, o iluminismo europeu estabeleceu uma mudança conceitual que foi progressivamente substituindo a ontologia teológica anterior pelo ideal secular segundo o qual todos os seres humanos nascem livres e iguais perante a lei. Mas ambos os conceitos de humanidade foram constantemente contrariados pela realidade das desigualdades sociais. De acordo com o princípio genealógico da limpieza de sangre, cujo sentido histórico está sempre mudando, a desigualdade social, em vez de resultar do acesso desigual a recursos econômicos e ao poder, era vista como algo que está no "sangue". Assim, se desde o início os valores político-morais igualitários possibilitavam mudanças na ordem social desigual, a ideologia da limpieza de sangre desqualificava moralmente essas potenciais mudanças e as neutralizava politicamente ao atribuir a hierarquia social, seja à lei divina, seja às diferenças "naturais" físicas e/ou raciais. Era o elemento ideológico igualitário que fornecia também a brecha para aqueles casais que, diante da oposição dos pais, sentiam-se encorajados a fugir para casar. Embora a endogamia fosse a norma prescrita para perpetuar o status quo hierárquico, o casamento inter-racial, mesmo condenado, de fato ocorria excepcionalmente, justo porque o consenso em relação à legitimação da ordem social e da endogamia racial estrita era nulo.

Que conseqüências essas concepções genealógicas de pureza social e status têm para as mulheres e para as relações de gênero? Aqui a linha geral de meu argumento pode ser reiniciada. Sempre que o posicionamento social numa sociedade hierárquica é atribuído ao nascimento e à descendência, e enquanto o sexo não puder ser dissociado da gravidez, será essencial para os homens da elite controlar a sexualidade de suas mulheres a fim de garantir a reprodução adequada de seu status social através de um casamento apropriado. Na sociedade colonial do século XVIII, o casamento intra-racial aparecia como a forma ideal de casamento, a partir da norma segundo a qual "não pode haver casamento se não há igualdade de linhagem".60 60 STOLCKE, 1974, p. 134. A exploração sexual por homens, embora muito danosa para a mulher envolvida, literalmente não trazia qualquer conseqüência para a honra da família. Ao reforçar a noção metafísica do sangue como veículo do prestígio familiar e como ferramenta ideológica usada para salvaguardar a hierarquia social, o Estado, numa aliança com as famílias que exigiam sangue puro, submetia suas mulheres a uma rígida vigilância de sua conduta sexual enquanto seus filhos se deleitavam livremente com mulheres consideradas sin calidad. A desdenhada imagem da mulata, síntese da mulher irresistivelmente sedutora e moralmente depravada, eximia homens brancos de qualquer responsabilidade, culpando em vez disso a mulher. O ditado cubano do século XIX "no hay tamarindo dulce ni mulata señorita" (não existe tamarindo doce, nem mulata virgem) é expressão dramática dessa lógica de gênero distorcida. O valor moral especial atribuído à virtude sexual das mulheres não se devia, no entanto, a suas características sexuais biológicas específicas. A sexualidade feminina se tornou tão valiosa porque as circunstâncias sócio-ideológicas permitiram às mulheres o papel crucial de transmissora dos atributos de família de geração a geração. Os homens, como guardiães das mulheres da família, assumiam a função de cuidar da transferência socialmente satisfatória desses atributos, através do controle estrito da sexualidade das mulheres. O confinamento doméstico das mulheres e sua subordinação geral em outras esferas sociais eram conseqüências de sua centralidade reprodutiva. E isso era assim porque, como bem observou um jurista espanhol do século XIX, só as mulheres poderiam introduzir bastardos no casamento. Entendia-se o bastardo como uma criança ilegítima nascida de uma relação sexual ilícita entre parceiros que, de acordo com as normas sociais, não poderiam se misturar.

Tradução: Luiz Felipe Guimarães Soares

Revisão da Tradução: Sônia Weidner Maluf

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  • *
    Publicado em MEADE, Teresa A., and WIESNER-HANKS, Merry E. (eds.).
    A Companion to Gender History. Oxford: Blackwell, 2003. Blackwell Companions to History Series. Traduzido e publicado com autorização da autora.
  • 1
    Nota da autora.
  • 2
    Idem.
  • 3
    Citado por STOLCKE, 1974, p. 101.
  • 4
    Nicholas Canny e Anthony Pagden, 1987; e Pagden, 1995.
  • 5
    David Fieldhouse, 1982.
  • 6
    É inadequado o uso do termo
    miscigenação para a relação sexual entre colonos europeus e a população indígena nos dois primeiros séculos após a conquista porque, como mostro mais abaixo, a categoria moderna de "raça", e portanto a idéia da mistura "racial" a que a miscigenação se refere, só apareceram no início do século XVIII.
  • 7
    Rolena Adorno e Ivan Boserup, 2003; e Felipe Guaman Poma de Ayala, 1980.
  • 8
    Stuart Schwartz, 1985.
  • 9
    Freyre, 1933; e Schwartz, 1985.
  • 10
    Bastide, 1959, p. 10-11.
  • 11
    Schwartz e Frank Salomon, 1999.
  • 12
    Albert Sicroff, 1979; Marta Sanguinetti, 2000, p. 106; e Jean-Paul Zúñiga, 1999.
  • 13
    Zúñiga, 1999, p. 429-434.
  • 14
    Henry Kamen, 1985; e Charles Boxer, 1978.
  • 15
    David Nirenberg, 2001.
  • 16
    Maria Luiza Carneiro, 1988, p. 99.
  • 17
    Diaz de Montalvo, citado por Kamen, 1985, p. 158.
  • 18
    Sicroff, 1979, p. 259-342.
  • 19
    Boxer, 1978, p. 85.
  • 20
    Carneiro, 1988, p. 195 et seq.
  • 21
    Kamen sugere igualmente para a Península Ibérica que aquilo que começou como discriminação religiosa e cultural se transformou, em meados do século XVI, em "uma doutrina racista do pecado original da mais repulsiva espécie" (Kamen, 1985, p. 158).
  • 22
    Boxer, 1978, p. 92.
  • 23
    Susan Socolow, 1978; Silvia Arrom, 1985; Socolow, 1987; Irene Silverblatt, 1987; Patricia Seed, 1988; Asunción Lavrin, 1989; Guiomar Dueñas Vargas, 1996; e María Imelda Ramirez, 2000.
  • 24
    Twinam, 1999.
  • 25
    Twinam, 1999, p. 47.
  • 26
    Twinam, 1999, p. 47, grifo meu.
  • 27
    Seed, 1988.
  • 28
    Seed, 1988, p. 330; e Daisy Ardanaz, 1977.
  • 29
    Juan Carlos Garavaglia e Juan Carlos Grosso, 1994, p. 39-42; e Arrom, 1985.
  • 30
    Schwartz e Salomon, 1999, p. 443-478; Schwartz, 1995; e Zúñiga, 1999.
  • 31
    Nirenberg, 2000, p. 42; e Schwartz, 1995, p. 189.
  • 32
    Pagden, 1982; e Georges Gusdorf, 1972.
  • 33
    Richard Konetzke, 1962, III, 1, p. 66-69 e 21. Ao contrário da legislação que regulava direitos e deveres dos africanos, que até o século XVIII foi extraordi-nariamente repetitiva e escassa, as leis referentes aos índios eram abundantes. Por exemplo, a Coroa insistia sempre, como em 1734, que "todas as distinções e honrarias (sejam elas ecle-siásticas ou seculares) atribuídas a castelhanos nobres serão ofere-cidas a todos os caciques e seus descendentes; e a todos os índios menos ilustres e a seus descen-dentes que sejam
    limpios de sangre, sem mistura ou [infecção] de um grupo condenado [...] e por essas determinações reais eles passam a ser qualificados por Sua Graça para qualquer emprego honorífico" (Konetzke, 1962, III, 1, p. 217).
  • 34
    Carneiro, 1988, p. 216 e 220; e Schwartz, 1996, p. 21.
  • 35
    Ardanaz, 1977, p. 230-236.
  • 36
    Dueñas Vargas, 1996, p. 54.
  • 37
    Henry Méchoulan, 1981, p. 58.
  • 38
    Konetzke, 1962, III, 1, p. 185 e 107. A palavra
    casta, hoje associada ao sistema de castas indiano, foi introduzida no sul da Ásia como um conceito ibérico referente a pessoas definidas pelo "sangue". Na América espanhola, "casta" primeiro indicava o contorno natural das desigualdades de poder e de status entre os colonizadores espanhóis, os índios e os escravos africanos. Mas com o tempo, a "casta" se transformou num termo genérico referente à ampla coorte das pessoas "misturadas" (Schwartz e Salomon, 1999, p. 444).
  • 39
    Katzew, 1996, p. 11-12. Katzew cita o seguinte trecho da
    Idea compendiosa del Reyno de Nueva España (1774), de Pedro Alonso O'Crouley: "[...] las calidades y linajes de que estas castas se originan; son español, indio y negro, sabido es que de estas dos últimas ninguna disputa al español la dignidad y estimación, ni alguna de las demás quiere ceder a la del negro, que es la más abatida y despreciada [...] Si el compuesto es nacido de español e indio sale la mancha al tercer grado, porque se regula que de español e indio sale mestizo, de éste y español castizo, y de éste y español sale ya español [...] porque se encuentra que de español y negro nace el mulato, de éste y español morisco, de éste y español tornatrás, de éste y español tenteenelaire, que es lo mismo que mulato, y por esto se dice y con razón que el mulato no sale del mixto, y antes bien como que se pierde la porción de español y se liquida en carácter de negro, o poco menos que es mulato. Por lo que respecta a la confección de negro e indio sucede lo mismo; de negro e indio, lobo: de éste e indio chino, de éste e indio albarazado, y todos tiran a mulato" (Katzew, 1996, p. 109).
  • 40
    Aurelia Martín Casares, 2000.
  • 41
    Martin Casares, 2000, p. 176.
  • 42
    Citado por Boxer, 1963, p. 29.
  • 43
    Twinam, 1999, p. 258-260.
  • 44
    Konetzke, 1962, III, 2, p. 173.
  • 45
    Katzew, 1996; e Schwartz e Salomon, 1999, p. 493.
  • 46
    Guillaumin citado por Ann Laura Stoler, l995, p. 37.
  • 47
    Margaret Hodgen, 1964, p. 418 et seq.
  • 48
    Gusdorf, 1972, p. 362-363.
  • 49
    Thomas Laqueur, 1990, p. 155.
  • 50
    Stolcke, 1974.
  • 51
    Seed, 1988, p. 75-91.
  • 52
    STOLCKE, 1974; e Murial Nazzari, 1991, p. 130 et seq.
  • 53
    Konetzke, 1962, III, 1, p. 438-442.
  • 54
    Nazzari, 1991, p. 132.
  • 55
    Nazzari, 1991, p. 138-139.
  • 56
    Konetzke, 1962, III, 2, p. 826.
  • 57
    Martinez-Alier, 1974, p. 15.
  • 58
    Martinez-Alier, 1974, p. 76.
  • 59
    STOLCKE, 1974, p. 113.
  • 60
    STOLCKE, 1974, p. 134.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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