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Sexo, género & feminismo: para uma vindicação contemporânea dos direitos das mulheres

Sex, Gender & Feminism: For a Contemporary Vindication of The Rights of Women

PAGLIA, Camille. . Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. de Pereira, Hélder Moura. . Lisboa: Quetzal Editora, 2018. 361p.

A obra em referência é constituída por um conjunto de 36 “artigos mais representativos” (Camille PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 13) publicados pela autora ao longo dos anos em diferentes meios, bem como “excertos, palestras e entrevistas” (PAGLIA, 2018, p. 13) que esboçam o seu pensamento em relação às temáticas apresentadas. Camille é uma conhecida académica feminista “pouco ortodoxa” (PAGLIA, 2018, p. 13), que se assume como “dissidente” (PAGLIA, 2018, p. 8), “rebelde insubmissa” (PAGLIA, 2018, p. 8), “libertária”1 1 Libertária: que é partidária de uma liberdade sem limites (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XV. Página Editora, 1998, p. 38); Sistema em que a liberdade é proclamada valor absoluto e único. Quase sinónimo de anarquismo. O/a libertário/a intenta suprimir toda a espécie de constrangimentos, de normas e de leis (Enciclopédia Verbo luso-brasileira de cultura - Edição Século XXI. Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo, 1999, p. 1086); A palavra libertário centra-se na autonomia dos indivíduos (MORIN, Edgar. A minha esquerda. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, p. 13). (PAGLIA, 2018, p. 25), “entidade sem género” (PAGLIA, 2018, p. 9), o que lhe granjeou a alcunha de feminista anti-feminista. Autora de várias obras como Sex, Art and American Culture (1992), Vamps & Vadias (1994) e o seu mais conhecido trabalho Personas Sexuais (1999)2 2 Obra muito criticada por académicas e políticas. , procura, com a presente obra, mostrar “consistência e continuidade das [suas] posições libertárias” (PAGLIA, 2018, p. 13), bem como a sua coerência na defesa dos seus ideais.

Na introdução, devidamente documentada, identificamos as primeiras pistas sobre o crescimento da autora enquanto intelectual e feminista. Ao apontar as principais referências que a influenciaram ao longo de todo o seu percurso, Paglia dá-nos conta da necessidade premente de definição dos conceitos e seu devido enquadramento. Tendo como eixo e ponto de partida a mulher, a autora disserta, ao longo das 361 páginas que compõem a obra, em torno de três conceitos complexos socialmente construídos, politicamente explorados e culturalmente enraizados: sexo, género e feminismo, áreas sobre as quais se tem dedicado a pesquisar, dando assim relevante contributo na produção de conhecimento e, consequentemente, na desconstrução de ideias pré-concebidas sobre as mulheres e ao que se convencionou chamar “o mundo das mulheres” (Alain TOURAINE, 2008TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Trad. de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.).

Assim, a mulher, considerada ao longo dos séculos, em todas as dimensões (económica, social, política, cultural, religiosa…) um ser inferior em relação ao sexo masculino, classificada como o “segundo sexo” (Simone de BEAUVOIR, 2016BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Trad. de Sérgio Milliet. Lisboa: Quetzal, 2016.) e colocada sob a dependência de pais, irmãos, esposos, filhos, tem sido objeto de inúmeros estudos, tanto do ponto de vista social, emocional, biológico, psicológico e sobretudo, intelectual, que, de acordo com Paglia, têm sido dominados por “uma cambada de gente banal, imbecil e lamurienta… burocratas, seguidistas, partidárias, utopistas, quixotescas e pregadoras utópicas” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 95), conduzindo assim a uma “institucionalização do sexismo” (PAGLIA, 2018, p. 95). O que todos esses estudos têm descurado é o seu corpo, entendido pela autora como “local sagrado e secreto” (PAGLIA, 2018, p. 67), dominado pelas hormonas que “muda[m] de hora a hora e de dia para dia” (PAGLIA, 2018, p. 188), pelo aparelho reprodutor, pelas mudanças causadas pelo inquietante ciclo menstrual, pela “maldição” (PAGLIA, 2018, p. 47) da menstruação, pelos efeitos da gravidez e do parto nesse mesmo corpo, aspetos que interferem com as suas emoções e que por sua vez influenciam as suas reações e ações e a tornam prisioneira de si mesma.

Do ponto de vista teórico e intelectual, esses três conceitos têm merecido particular destaque não só em termos de pesquisa científica, como igualmente, em termos de atuação3 3 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acordos de cooperação entre estados, planos de desenvolvimento internacionais, nacionais, regionais, locais… . Daí que a autora chame a atenção para a necessidade de se eliminarem fronteiras e se mobilizarem outras ciências, revelando uma abertura teórica e epistemológica, procedimento que resvala para a interdisciplinaridade, ou seja, deve prevalecer a produção do conhecimento, o debate de ideias, bem como a liberdade de pensamento e de expressão, em detrimento da censura de pensamento, do conformismo, do saber instalado, dos guardiões do saber, do raciocínio presunçoso, que nada mais fazem do que sufocar. A autora constrói assim uma posição que rejeita o conhecimento dogmático, o que faz com que vá contra alguns pressupostos das teorias feministas ditas “universais”, daí a sua “incapacidade desajeitada de encaixar[-se] no grupo das raparigas dóceis e bem-comportadas” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 9). Paglia chama ainda a atenção para o carácter provisório e falível da ciência, sublinhando a contínua necessidade pela construção do conhecimento e o seu “compromisso ético com a procura da verdade” (PAGLIA, 2018, p. 26).

É essa constante procura da verdade que faz com que Paglia questione o porquê da subjugação, subordinação, submissão, sujeição das mulheres ao longo dos séculos. Para a autora, a resposta a essas e a outras questões reside na compreensão de diversos fatores e acontecimentos, que se resumem nos três conceitos estruturantes do livro em análise. Em relação à temática sobre o sexo, propõe o seu enquadramento em torno de três dimensões, nomeadamente: a) biológica, na qual realça que a diferença principal entre homens e mulheres não se limita aos órgãos sexuais, mas no seu organismo, que funciona de modo distinto, influenciado pelas hormonas que por sua vez agem sobre as emoções e consequentemente define a sexualidade de cada um/a. b) sexualidade, “O sexo não pode ser compreendido” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 37) na sua plenitude, faz parte da natureza animal. Por conta desses pressupostos foram criadas, institucionalizadas e enraizadas normas sociais/culturais que sufocaram a mulher e é da luta contra essa condição que emerge o feminismo e, mais tarde, às teorias da desigualdade de género. c) socialização/cultura, em que o aspeto físico da mulher que se convencionou caraterizar como “frágil”, permitiu uma socialização (primária e secundária) da inferioridade desta em relação ao homem, o que fez com que as diferenças biológicas servissem de pressuposto para uma educação em função do sexo, atribuindo a cada um papéis sociais distintos.

O feminismo, movimento social cuja finalidade reside na igualdade dos sexos relativamente ao exercício dos direitos civis e políticos é definido por Paglia como um dos principais “movimentos sociais progressistas da era moderna” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 154), que visa a luta (ideológica) contra a ordem política patriarcal4 4 De acordo com Raquel Gutiérrez, “O patriarcado é o sistema cuja principal instituição, a família, se encarrega de perpetuar os valores da dominação e da opressão da mulher. E são as diferentes maneiras de educar o menino e a menina que determinam suas características” (GUTIÉRREZ, Rachel. O feminismo é um humanismo. Rio de Janeiro: Booklink, 2009, p. 28). Assim, o pai, “considerado como chefe de família, era senhor absoluto em sua casa, tendo o poder de vida e de morte sobre os seus filhos e toda a família” (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XX. Página Editora, 1998, p. 622) instalada. Apesar de feminista, não deixa de apresentar a sua crítica ao feminismo, sobretudo académico, que considera ter-se perdido num “intricado construcionismo social” (PAGLIA, 2018, p. 89), que fez com que as mulheres se esquecessem da sua essência, transformando-as em mulheres obcecadas e moralistas. Para Paglia, trata-se essencialmente de um feminismo político que se distanciou da cultura e que apresenta “dificuldades em lidar com a beleza e a arte” (PAGLIA, 2018, p. 106), a sensualidade e a sexualidade.

Pelo mesmo caminho seguiram os estudos de género que, à semelhança dos estudos feministas, se foram encerrando cada vez mais para dentro de um sistema “que se alimenta a si próprio, ao mesmo tempo que cria o seu próprio cânone” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 279), em detrimento de outras contribuições que pautam sobretudo pela não aceitação do saber institucionalizado. Para a autora, as dinâmicas culturais dos papéis de género são constantemente alteradas, fazendo com que haja uma frequente modificação dos pressupostos inicialmente construídos, daí que defenda que a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres não deve assentar em “proteções especiais para as mulheres” (PAGLIA, 2018, p. 298), nem tão-pouco pode ser alcançada “à custa da destruição das tradições masculinas” (PAGLIA, 2018, p. 149), mas a partir de uma união de esforços entre homens e mulheres, tendo como princípio base um compromisso ético com a procura da verdade, “animado por um código de responsabilidade pessoal corajoso” (PAGLIA, 2018, p. 28), alicerçado na liberdade de pensamento e de expressão.

Em suma, o livro em referência é mais do que um manual sobre mulheres. É também um livro para todos os cidadãos - homens e mulheres - pensarem a sua condição humana nas suas diferentes dimensões. Questionando o saber institucionalizado, as teorias feministas, de género e sobre o sexo e sexualidade, Paglia pretende sobretudo desconstruir as ideias enraizadas, com o objetivo de alargar os horizontes de possíveis, de onde sairá uma outra visão subordinada à construção de uma sociedade mais justa, igualitária, sustentável, humana. Para que tal aconteça, diz-nos a autora “o meu conselho é ler muito e pensar pela própria cabeça. Precisamos de mais dissidência e de menos dogma” (PAGLIA, 2018PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018., p. 345).

Cabe aqui uma referência à Quetzal Editora pelo investimento na tradução e publicação da obra, mostrando que todas as ideias são bem-vindas e devem ser debatidas e conhecidas. De destacar ainda, o excelente trabalho de tradução de Hélder Moura Pereira , que não descurando o profissionalismo, conseguiu transmitir o espírito e a letra da obra de Camille Paglia.

Referências

  • BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo 2. ed. Trad. de Sérgio Milliet. Lisboa: Quetzal, 2016.
  • PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018.
  • TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres Trad. de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
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    Libertária: que é partidária de uma liberdade sem limites (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XV. Página Editora, 1998, p. 38); Sistema em que a liberdade é proclamada valor absoluto e único. Quase sinónimo de anarquismo. O/a libertário/a intenta suprimir toda a espécie de constrangimentos, de normas e de leis (Enciclopédia Verbo luso-brasileira de cultura - Edição Século XXI. Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo, 1999, p. 1086); A palavra libertário centra-se na autonomia dos indivíduos (MORIN, Edgar. A minha esquerda. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, p. 13).
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    Obra muito criticada por académicas e políticas.
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    PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acordos de cooperação entre estados, planos de desenvolvimento internacionais, nacionais, regionais, locais…
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    De acordo com Raquel Gutiérrez, “O patriarcado é o sistema cuja principal instituição, a família, se encarrega de perpetuar os valores da dominação e da opressão da mulher. E são as diferentes maneiras de educar o menino e a menina que determinam suas características” (GUTIÉRREZ, Rachel. O feminismo é um humanismo. Rio de Janeiro: Booklink, 2009, p. 28). Assim, o pai, “considerado como chefe de família, era senhor absoluto em sua casa, tendo o poder de vida e de morte sobre os seus filhos e toda a família” (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XX. Página Editora, 1998, p. 622)
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    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: LIBERATO, Ermelinda Sílvia de Oliveira. “Sexo, género & feminismo: para uma vindicação contemporânea dos direitos das mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e71698, 2021.
  • 6
    Financiamento: Não se aplica
  • 7
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
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    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2020
  • Aceito
    12 Mar 2020
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