DOSSIÊ
Vivências trans: desafios, dissidências e conformações - apresentação
Berenice BentoI; Larissa PelúcioII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte
IIUniversidade Estadual Paulista, Bauru
"Alguém sabe como se atravessa uma linguagem dominante?
Com que corpo? Com que armas?"
Beatriz PRECIADO, 2009.
Os textos reunidos neste dossiê expõem parte do arsenal teórico que um número expressivo de pesquisadoras e pesquisadores vem elaborando há pelo menos 20 anos na busca por caminhos que nos possibilitem "atravessar linguagens dominantes" sobre sexualidades, gêneros e corpos. São frutos do diálogo intenso com múltiplas vozes num exercício diário e apaixonante. Sobretudo, resultam do encontro com nossas interlocutoras e nossos interlocutores em campo, da provocação nascida nessas e dessas convivências, nas quais aprendemos, às vezes com prazer, outras com culpa, ou ainda, com surpresa, que nós também temos um corpo, um sexo (não tão estabilizados como acreditávamos) e desejos.
Nossa presença em campo, discute Tiago Duque neste volume, testa limites éticos estabelecidos, desafia-nos. Exige que pensemos em outras estratégias para garantir anonimato para quem o deseja; que aprendamos a usar o próprio corpo como parte da metodologia, sem, com isso, ultrapassar os tênues e escorregadios limites entre nós/pesquisadoras/es e elas/eles/integrantes da pesquisa; que nos defrontemos com o desejo como uma categoria que nos assoma em campo e com a qual ainda temos dificuldades profundas.
Duque contribui ainda nos convidando a compartilhar com ele de sua experiência etnográfica, quando foi desafiado por referenciais teórico-políticos e posturas metodológicas no estudo de travestis adolescentes. Desacomodando certezas, desconfia das categorias "êmicas"; interroga-se sobre como sua própria sexualidade é testada em campo; lança-se no desafio de visibilizar e analisar as experiências de adolescentes fora dos paradigmas da normalidade.
Escapar dos paradigmas da normalidade exige imaginação teórica e certa dose de inconformismo. Em sua contribuição para este dossiê, Flávia Teixeira cria uma estratégia (orto)gráfica para marcar sua dúvida/recusa ao vocabulário disponibilizado por aqueles paradigmas. Assume a instabilidade da classificação médica "transexual" colocando-a entre parênteses. Por meio de "Histórias que não têm era uma vez", Teixeira evidencia que seu recurso é também teórico, uma vez que as pretensas certezas sobre o sexo não resistem à vocação plural dos corpos e das experiências. Poeticamente a autora mostra que essas histórias continuam, na persistência diária de se fazerem habitáveis.
Os fragmentos biográficos de três pessoas (transexuais) reunidas pela pesquisadora revelam a vida precária do gênero. As "certezas científicas" que entronizaram essa categoria no panteão das verdades trabalham com "uma sexualidade fundada em dois sexos opostos e condutas e comportamentos erguidos sobre a base de uma polaridade biológica". Na estreiteza das certezas, Carolina, Rita e Neil procuram termos capazes de torná-las/os inteligíveis, humanas/nos, e parecem quase desistir, mas resistem. Sua resistência abre fissuras nos protocolos que se recusam a "reconhecer o caráter incerto e mutável das identidades".1
Mesmo quando diagnósticos forjados na talha dura das ciências naturais cunham identidades para os/as refratários/as às normas, elas acabam "alteradas" pela maleabilidade dos corpos e pela flagrante capacidade de as pessoas se apropriarem criativamente das classificações disponíveis, a fim de elas também, de alguma maneira, se colocarem na lógica semântica binária.
Ainda que esses termos identitários carreguem em seu DNA as marcas de sua origem laboratorial, são eles, muitas vezes, que ajudam a ancorar uma longa experiência de deriva, como ocorreu com alguns dos "homens trans" com os quais conviveu Guilherme Almeida. A gramática heteronormativa e a criatividade popular são insuficientes em seus termos, quando não perversas, o que faz dos descritores médico-psiquiátricos opções possíveis.
Os 'homens trans' têm encontrado também na internet um lugar possível para o autorreconhecimento, pontua Almeida. Em blogs, no Facebook ou em comunidades virtuais, as discussões e a camaradagem acontecem para além dos espaços hospitalares, possibilitando que suas vivências múltiplas, atravessadas por diferentes marcadores sociais, sejam exploradas e "novos matizes na aquarela das masculinidades" possam ser pensados para além dos enclaves orgânicos: testículos e pênis.2
A testosterona acentua o caráter tecnoconstruído dos gêneros. Homens trans têm nesse potente hormônio um aliado na conquista dos corpos que desejam. Invisibilizam-se mais rápida e eficientemente do que as mulheres trans, garantindo-lhes o "direito à indiferença", como discute Almeida, que aponta também as implicações políticas do exercício desse direito.
Porém, às vezes é preciso se fazer invisível para assegurar os sonhos, como fazem as travestis "europeias"3 fotografadas por Gilson Carrijo em Milão (Itália) e em Uberlândia (MG). No estratégico jogo das visibilidades/invisibilidades, "as travestis permanecem invisíveis e silenciadas nas políticas públicas de acesso à seguridade social e cidadania, mas estrategicamente visíveis na argumentação sobre tráfico e exploração",4 seja na Itália ou no Brasil, como observa Carrijo.
O olhar sensível do fotógrafo não busca flagrantes e registros. O que ele dá a ver são "poses, posses e cenários" que elas, as travestis, consideram que merecem ser mostrados, capturados, revelados porque contam a melhor versão de suas histórias. Seu texto, "escrito com o olho", mostra a estética cuidada dessa conquista da Europa como uma forma de ocupar, a partir de lá, um lugar menos marginal em seu próprio país.
É nessa margem compulsória que Wiliam Peres nos convida a entrar, apostando no potencial transgressivo das travestis. Os limites metafóricos e geográficos desses espaços marginais são desafiados pelos corpos subversivos desses sujeitos nômades.5 Pesquisar nesse campo de tensões, propõe Peres, tem exigido ampliar nossas referências. As travestis, insiste ele, demandam novos questionamentos a respeito de si mesmas, colocando em xeque os cânones das teorias psicossociais existentes. A existência travesti produz novas perguntas e reivindicações tanto para o mundo acadêmico quanto para o ativismo político.6
Como escapar da força molar das leis e manter o potencial rizomático de algumas experiências? Heloisa Helena Barboza nos mostra que essa é, de fato, uma questão tão desafiadora quanto desestabilizadora. Ao discutir o direito reprodutivo de transexuais, Barboza mostra que o potencial transgressivo dessa reivindicação parece não fazer outra coisa senão reiterar a norma heterorreprodutiva familiar, a mesma que coloca transexuais, travestis e pessoas intersexo como precários "sujeitos de direitos". Sujeitados/as ao direito que biologiza seus corpos, transexuais, ao lutarem pelo direito constitucional da procriação, provocam abalos na ordem sólida das leis.
Mas esse discurso da ordem resiste. Encontra elaborados mecanismos para punir dissidentes. "A pena que lhe é aplicada - não prevista em qualquer lei - é o não reconhecimento da identidade sexual que adota, em alguns casos mesmo tendo feito a transgenitalização e, 'com mais razão', quando não a realiza", acusa Barboza.
O jogo de silêncios retóricos cerca a "aplicação da pena perpétua de negação da identidade". A flagrante fragilidade dos argumentos para essa sentença, espantosamente, tem se mostrado mais potente que os princípios da Constituição da República.
Parte importante desses poderes se vale de saberes que determinaram a qualidade patológica das pessoas que não estão confortáveis no binarismo de sexo e gênero. Para esses "corpos que são tão refratários que chegam a apagar as fronteiras,"7 estão disponíveis todo um aparato regulador, ortopédico, punitivo.
Entre esses sofisticados mecanismos de controle se encontram volumosos protocolos que se esmeram, há mais de 60 anos, a detalhar verdades sobre o sexo, classificando como diagnosticáveis os desejos.
Jorge Leite Júnior reforça o argumento despatologizador, ressaltando, porém, a urgência teórico-filosófica de se alargarem os limites do conceito de humano. Na construção de seu elaborado argumento, desafia-nos, ainda, a testar o potencial descritivo e transformador de conceitos fartamente usados nos estudos mais recentes no campo do gênero e da sexualidade. Dedica-se a uma genealogia da "abjeção", conduzindo-nos ao "monstro". "Conforme vários autores que trabalham o tema, o 'monstro' é, por excelência, a marca hiperbólica de algo fora da ordem, seja ela 'natural', 'sobrenatural' ou, no mínimo, fora dos ordenamentos conhecidos".8
Os 'desviantes sexuais', em especial travestis, transexuais e intersexuais, são os "monstros pálidos" da contemporaneidade, porque foram alocadas/os nos limites do pensável, autorizando, por meio de um longo e persistente percurso histórico, a escrutinação dos seus corpos, pelo nojo ou fascínio; a desautorização dos seus desejos; a suspeita em torno da sua sanidade; a violação de seus direitos. Por isso, insiste, Leite Junior, é preciso dilatar as fronteiras do inteligível, derrubando teórica e politicamente as barreiras que pressupõem que existe um nós-humanos e um eles-monstros. Afinal, "quem de nós não teria nascido torto?".9
"Por que diagnosticar o gênero? Quem autoriza psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e outras especialidades que fazem parte das equipes multidisciplinares a avaliarem as pessoas transexuais e travestis como "doentes"?10 Essas são algumas das perguntas que Berenice Bento e Larissa Pelúcio lançam no artigo "Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas".
Elencando e desarmando os incertos argumentos médicos-psi, as autoras engajam-se na campanha Pare a Patologização!, somando-se a inúmeras/os ativistas, intelectuais, entidades políticas e profissionais que, desde 2007, vêm se organizando em diversas cidades do mundo pelo fim do diagnóstico de gênero.
A entrevista com um dos principais articuladores da Campanha Stop 2012, Amets Suess, nos leva a compreender os desafios e potenciais na Campanha, seu histórico e os canais de negociação com a Associação de Psiquiatria Norte-Americana (APA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Enfim, as discussões desenvolvidas neste dossiê buscam fazer enfrentamentos a discursos fortemente instituídos que, historicamente, têm tratado travestis, transexuais e intersexo no marco da patologização ou de um reducionismo biológico no qual todo um léxico médico-fisicalista tem sido acionado para regular e normalizar corpos e subjetividades. Porém, o que transparece nos artigos aqui reunidos é que, se esses discursos têm poder, eles também falham. No seu afã normalizador, deixam de considerar que as pessoas, em geral, se apropriam e ressignificam tanto os discursos quanto as tecnologias regulatórias. E é provável que falhem também porque, como já propôs Donna Haraway, a noção de corpo com a qual eles trabalham seja ainda aquela do século XIX, mais do que com esses corpos atravessados pelas tecnologias e pelos tráficos próprios do século XXI. Justamente os corpos sobre os quais temos dedicado nossos esforços transgressivos.
Referências bibliográficas
- BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades Buenos Aires: Editorial Paidós, 2000.
- FAUSTO-STERLING, Anne. "Dualismo em duelo". Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, p. 9-79, 2001.
- HARAWAY, Donna. "Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial". Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995.
- PRECIADO, Beatriz. Testo yonqui. Madrid: Espasa, 2008.
- ______. "Terror anal". In: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual España: Melusina, 2009.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Ago 2012 -
Data do Fascículo
Ago 2012