RESENHAS
A palavra reapropriada: o processo da escritura na obra de Nicole Brossard
Ana Lúcia Silva Paranhos
Université de Nantes, França
Nicole Brossard: Essays on Her Works.
FORSYTH, Louise H. (ed.)
Toronto: Guernica, 2005. 255 p. (coll. Writers Series).
O lançamento recente, em língua inglesa, de ensaios críticos sobre a obra da escritora quebequense Nicole Brossard, uma compilação criteriosa realizada por Louise H. Forsyth, professora emérita e pesquisadora da Universidade de Saskatchewan atuando há vários anos na área de Women's and Gender Studies, veio preencher uma lacuna que se fazia sentir já há algum tempo: reunir, em um único volume, diferentes vozes da crítica literária feminista enfocando as várias faces da produção e a trajetória dessa escritora.
Nicole Brossard nasceu em Montreal, em 1945. Durante os anos 60, época da Revolução Tranqüila, movimento que pretendeu transformar todas as dimensões da sociedade quebequense, suas palavras de ordem eram ruptura, transgressão, desejo, exploração. Queria, antes de tudo, deixar para trás o passado de um Quebec católico e puritano que havia prevalecido até então e, em segundo lugar, compreender a alienação do povo quebequense. Na base dessa mudança estavam a linguagem e a sexualidade: esses constituiriam, mais tarde, os dois eixos que passariam a mover seu texto. O processo da escritura passará a ser visto como campo de pesquisa e como gerador de uma linguagem nova; a consciência feminista, como campo de ação e como possibilidade de transformação.
Se essas duas linhas trabalham juntas no texto brossardiano, também estão ligadas a um aspecto que, de um modo geral, não passa despercebido quando o assunto é o Quebec; estamos nos referindo ao caminho que começa pela busca da identidade. Ao longo desse caminho, dois momentos se destacam: o período que antecede e o que se segue à década de 1970. Se, nos seus primórdios, o texto quebequense via-se mais voltado para si próprio, ao fim dos anos 70 a reflexão e a ficção identitária serão afetadas pela irrupção do heterogêneo; no caso do Quebec, esse heterogêneo será representado tanto pelo discurso nacionalista (leia-se separatista) e pela escritura migrante, como pela escritura "no feminino". Assim, o texto "no feminino" e o discurso feminista serão introduzidos na literatura quebequense pela brecha do heterogêneo. Integrando ao mesmo tempo esses dois campos de interesse, a linguagem e os valores feministas, Nicole Brossard irá moldá-los a sua maneira, passando a ocupar um espaço textual único, singular. Havendo produzido mais de vinte coletâneas de poesia, nove romances e inúmeros trabalhos teóricos e críticos, sua obra é hoje uma referência incontornável na área dos estudos literários e de gênero.
Havendo participado ativamente do projeto da escritura "no feminino", projeto esse inscrito no Quebec notadamente no período que vai de 1975 a 1982, Brossard conferiu a sua obra um status em que a intuição espacial ocupa um lugar bastante particular: observa-se aí uma tensão permanente entre o "lá" e o "aqui", entre o "dentro" e o "fora". Essa tensão é, antes de tudo, um sinal evidente do jogo inclusão versus exclusão que se instala no discurso, representado pelo desejo de inserir um sujeito feminino na linguagem patriarcal, mas também, e sobretudo, um sinal maior da energia inerente à linguagem e ao processo da escritura.
O presente livro de ensaios críticos oferece, além de poemas inéditos de Brossard, trechos de uma entrevista realizada por Louise Forsyth com a escritora em fevereiro de 2003, ocasião em que foram abordados os temas mais variados, como a criatividade, o processo da escritura, a literatura, a poesia, o corpo feminino, os personagens, a cumplicidade, a cidade de Montreal e muitos outros. A essa entrevista, seguem-se onze ensaios realizados por especialistas; são pesquisadoras, tradutoras, escritoras, todas elas profundas conhecedoras do texto brossardiano: Louise H. Forsyth (University of Saskatchewan), Karen S. McPherson (University of Oregon), Alice A. Parker (University of Alabama), Louise Dupré (Université du Québec à Montréal), Claudine Potvin (University of Alberta), Katharine Conley (Dartmouth College), Catherine Campbell (Bishop's University), Susan Knutson (Université Sainte-Anne), Susan Holbrook (University of Windsor), Barbara Godard (York University) e Lynette Hunter (University of Leeds and University of California, Davis). Após esses ensaios críticos, o leitor encontra uma lista completa de todos os títulos publicados pela escritora, nos domínios da poesia, ficção, ensaios teóricos, teatro, antologias e cinema. Finalmente, uma listagem detalhada, porém não exaustiva, dos trabalhos já realizados sobre a obra brossardiana. Tem-se assim, à mão, um recurso de grande valor didático, uma preciosa fonte de consulta em uma única peça, o que nem sempre é o caso.
Como bem afirma a organizadora, todos os ensaios desse volume enfocam, de diferentes formas, o ponto vital do trabalho de Brossard, que é a palavra e o processo escritural. Cada um revela, nas palavras de Louise Forsyth, a inovação radical e apaixonada na sua forma de abordar a linguagem, em todas as suas funções. Cada um dos ensaios reconhece que as palavras, em Brossard, trazem consigo um enorme potencial de trabalho conjunto, reinventando a realidade, o conhecimento e cada ser humano. Cada ensaio, continua a pesquisadora, chama a atenção para o fato de que escrever a frase je suis une femme é um ato pleno de conseqüências.
O texto apresentado na contracapa convida-nos a descobrir ou, se for o caso, a melhor conhecer esse recanto do imaginário feminino: "sensuais e envolventes, as palavras simples de Nicole Brossard penetram de uma forma inesperada na mente dos leitores, transformando, para melhor, o significado do 'eu' e da realidade. Criando tropos, seja a partir das experiências veladas femininas, seja tendo como ponto de partida a ciência avançada, as tradições filosóficas e literárias, a devastação política que acontece pelo mundo afora, a autora vem revolucionando conceitos do ser e do conhecimento humanos, desafiando a suposta capacidade daqueles que têm abusado do poder há mais de três décadas". Esse convite nos estimula a repensar um mundo novo, forjado por uma nova palavra, mundo tantas vezes criado e recriado, mundo a ser novamente refeito, tantas e quantas vezes existirem vozes capazes de se exprimir "no feminino", tantas e quantas vezes essas falas forem capazes de ser transformadas em texto. Para Brossard, a palavra da mulher "est sans conséquence [...] elle ne s'insère pas dans l'histoire"; a escrita e o livro, ao contrário, "entrent dans l'histoire".1 1 Winfried Siemerling, 1994.
Nota
Referência bibliográfica
SIEMERLING, Winfried. "The Visibility of the Utopian Form in the Work of Nicole Brossard." In: SIEMERLING, Winfried. Discoveries of the Other. Toronto: University of Toronto Press, 1994. p. 173-204.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Maio 2006 -
Data do Fascículo
Dez 2005