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Donna Haraway e a implosão do projeto moderno de ciência

Donna Haraway and the Implosion of the Modern Science Project

Donna Haraway y la implosión del proyecto de ciencia moderna

Resumo:

No presente trabalho, nos dedicamos a analisar, a partir do tecnofeminismo de Donna Haraway, sua leitura crítica da construção do projeto moderno de ciência, fundado na separação entre natureza e cultura. Para entendê-la, analisaremos três textos escritos entre as décadas de 1980 e 1990: “O Manifesto Ciborgue”, “Saberes Localizados” e Modest Witness. Seu conceito de ciborgue e identidades fraturadas, e sua crítica à construção da figura do cientista como sujeito de “lugar nenhum” e, por isso, único capaz de dar testemunho válido e fiável, exploram a impossibilidade de um sistema que tende à implosão. Se não há objetividade científica que não esteja implicada em uma localização, o cientista ou a “testemunha modesta” é corporificada e seu olhar, como o de todo e qualquer, bem como sua produção, é sempre parcial.

Palavras-chave:
natureza-cultura; ciborgue; objetividade; saberes localizados; testemunha modesta

Abstract:

This work aims to analysing Donna Haraway's techno-feminism, her critical reading of the construction of the modern science project, based on the separation between nature and culture. To understand it, we will analyse three texts written between the 1980s and 1990s: The Cyborg Manifesto, Situated Knowledge and Modest Witness. Her concept of cyborg and fractured identities, and his criticism of the construction of the figure of the scientist as a subject from “nowhere” and, therefore, the only one capable of giving valid and reliable testimony, explore the impossibility of a system that tends to implode. If there is no scientific objectivity that is not implied in a location, the scientist or the “modest witness” is embodied and his gaze, like that of all, as well as his production is always partial.

Keywords:
Nature-Culture; Cyborg; Objectivity; Situated Knowledges; Modest Witness

Resumen:

El presente trabajo está dedicado a analizar el tecnofeminismo de Donna Haraway, su lectura crítica de la construcción del proyecto de ciencia moderna, a partir de la separación entre naturaleza y cultura. Para entenderlo, analizaremos tres textos escritos entre las décadas de 1980 y 1990: El Manifiesto Cyborg, Situated Knowledge y Modest Witness. Su concepto de cyborg y de identidades fracturadas, y su crítica a la construcción de la figura del científico como sujeto “de la nada” y, por tanto, único capaz de dar un testimonio válido y fiable, exploran la imposibilidad de un sistema que tiende a implosionar Si no hay objetividad científica que no esté implícita en un lugar, el científico o el “modesto testigo” se encarna y su mirada, como la de todos y cada uno, así como su producción es siempre parcial.

Palabras clave:
naturaleza-cultura; cíborg; objetividad; conocimiento situado; testigo modesto

Introdução

“[...]objetividade feminista significa, simplesmente, saberes localizados.”

Donna Haraway (2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Donna Haraway, bióloga de formação e filósofa da ciência estadunidense, tem se dedicado, desde pelo menos a década de 80, a pensar as relações entre tecnociência, mundo multiespécies e feminismo.1 1 Este artigo é o resultado de uma parte de minha tese de doutorado “A natureza-cultura em construção: histórias de filosofia e ciência sobre corpos e feminismos”, defendida em 2021, no PPGFIL UERJ, sob orientação de Antonio Augusto Videira, a quem agradeço a companhia crítica e atenta em minha trajetória acadêmica. Também agradeço a uma bolsa de pesquisa do programa de Doutorado sanduíche CAPES-PRINT, recebida entre novembro de 2019 e março de 2020 para estágio na Université Paris X Nanterre, sob a supervisão da professora Anne-Lise Rey. Aproveito também para agradecer pelos comentários recebidos das/dos pareceristas anônimas/os, que contribuíram para uma revisão necessária no presente texto. Parte das sugestões foram acatadas, outras oportunizaram uma continuidade em minhas pesquisas recentes e devem constar em trabalhos futuros. Suas preocupações partem de muitas questões e tensões colocadas de modo metafórico e crítico, em uma leitura e disposição de pensar que nada, nem a epistemologia feminista, se dá sem esse mundo. Ou seja, a revolução de sua obra se encontra na análise de problemas fundamentais, como o sistema natureza-cultura, a partir da relação entre filosofia da ciência, feminismo e tecnociência.

No presente artigo, analisamos três trabalhos de sua vasta obra em que os problemas da natureza, cultura, mundo, objetividade e sujeito da ciência podem ser estudados de forma complementar e comparada, pelo período em que foram escritos, antes e depois da queda do muro de Berlim. Essa exposição nos dará a ver o desenvolvimento de um pensamento, simultaneamente, vivo e persistente. Atualmente, Haraway tem se dedicado a pensar esse e outros problemas em um mundo multiespécies, como é o nosso, a partir de noções como a de parentesco, que envolve relações simbióticas entre animais, humanos e outras espécies que coabitam o mundo de forma real e ficcional; e a relação entre essa coletividade e habilidades de respostas (response-abilities) em um fazer coletivo. Todavia, nos limitaremos às análises dos textos abaixo referidos na certeza de que não daríamos conta da totalidade de sua obra no espaço que temos para desenvolver nosso objetivo, qual seja, o de entender sua proposta de implosão do projeto moderno pela epistemologia feminista.

O primeiro trabalho a que nos dedicaremos mais detidamente é o “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, publicado pela primeira vez como “Manifesto for the cyborgs: Science, technology and socialista-feminism in the 1980’s” em 1985 pela Socialist Review, e publicado posteriormente como “A cyborg manifesto: Science, technology and socialista-feminism in the late 20th century”, em seu livro “In simians, cyborgs and women: the reivention of nature”, em 1991. Usaremos a sigla M.C. para referenciá-lo a partir daqui. Uma tradução feita por Tomaz Tadeu foi publicada em 2000 e atualmente contamos com o texto lançado também na organização Pensamento Feminista: conceitos fundamentais, publicado em 2019 pela Bazar do Tempo.2 2 Agradeço ao comentário recebido em parecer que destaca a importância de mencionar que a versão utilizada pela publicação da Bazar do Tempo, publicada em 2019, trata-se da tradução de Tomaz Tadeu em Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano (Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 37-129).

O segundo trabalho trata-se de um texto que reúne comentários de Haraway ao The science question in feminism, de Sandra Harding (1986HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986.), ocorridos nas reuniões da Western Division da American Philosophical Association, São Francisco, em março de 1987. Publicado originalmente em 1988 pela Feminist studies, “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” foi traduzido por Mariza Corrêa e publicado em 2009 pela Cadernos Pagu. Usaremos a sigla S.L. para referenciá-lo.

O último é o Modest Witness@Second_Millenium.FemaleMan©_Meets_On coMouse™: Feminism and Technoscience - título cujo hiperlink acabo de remover no Word -, publicado em uma primeira edição em 1997 e uma segunda em 2018, que usamos, acrescida de uma entrevista com Haraway sobre os vinte anos da publicação. Essa obra será referenciada pela sigla M.W. a partir daqui.

O Manifesto Ciborgue e o tecnofeminismo socialista

Em seu ensaio da década de oitenta, “O Manifesto”, Haraway critica a hierarquia moderna entre natureza e cultura, que define a tecnologia como mero produto da cultura. Ainda que Haraway não possa ser definida como a cientista encantada com as novidades tecnológicas, seu trabalho também critica a defesa de um retorno a uma forma de natureza sagrada (Hari KUNZRU, 2009KUNZRU, Hari. “Você é um ciborgue. Um encontro com Donna Haraway”. In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009., p. 22), geralmente atrelada a uma herança e a um destino femininos. Para isso, ela argumenta a favor da implosão das fronteiras, dos binarismos, que reproduzem acriticamente demarcações de identidades e ontologias, produzindo, assim, uma nova política-ciborgue. Em seus próprios termos:

As dicotomias entre mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, homens e mulheres, primitivo e civilizado estão, todas, ideologicamente em questão. A situação real das mulheres é definida por sua integração/exploração em um sistema mundial de produção/reprodução e comunicação, o que se pode chamar de “informática da dominação” (Donna HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 177).

Ao defender o que ela chama implosão das fronteiras entre natural e fabricado, seu tecno-feminismo foi visto como relativista, em um sentido pejorativo, como se Haraway estivesse interessada em atacar a ciência ou a possibilidade de qualquer construção racional. Implodir, nos termos de Haraway, não implica que a tecnociência seja uma construção social - social como ontologicamente real e separada -, mas sim “uma reivindicação de construção heterogênea e contínua por meio de práticas historicamente localizadas, onde os atores não são todos humanos”3 3 Trecho retirado da entrevista de Haraway no M.W. No original: “But I want to clarify, ‘implosion’ does not imply that technoscience is ‘socially constructed’, as if the ‘social’ were ontologically real and separate. ‘Implosion’ is a claim for heterogeneous and continual construction through historically located practice, where the actors are not all human” (HARAWAY, 2018, p. XXVI). (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. XXVI). Observar a relação dos compromissos e respostas da ciência - que é sempre parcial e situada, como todo conhecimento - com/no mundo é, antes de tudo, apreender essa relação de forma responsável.

Seu ensaio-manifesto é um “esforço para construir um mito político, pleno de ironia, que seja fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 157). A aposta na ironia, na blasfêmia, retoma a ideia de relacionalidade, no sentido de que “tem a ver com contradições que não se resolvem [...] tem a ver com a tensão de manter juntas coisas incompatíveis, porque todas são necessárias e verdadeiras” (HARAWAY, 2019). Ou seja, tem a ver com a aceitação de que o conhecimento é parcial. Por isso, Haraway defende o uso da ironia como estratégia retórica e método político. E o aporte inicial para isso é o jogo de linguagem feito com a imagem do ciborgue, que são criaturas que guardam uma ambiguidade entre animal e máquina, natural e fabricado. Haraway entende esse acoplamento entre organismos e máquinas enquanto dispositivos codificados e com um poder que ultrapassa o previsto pela biopolítica foucaultiana (HARAWAY, 2019, p. 158): a informação.

O poder da informação é o “elemento quantificável (unidade, base da unidade) que permite uma tradução universal, e, assim, um poder universal sem interferências, isto é, aquilo que se chama de ‘comunicação eficaz’” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 178). Ela pode ser condensada por diversas tecnologias e/ou estratégias, como pela “metáfora C³I (comando-controle-comunicação-inteligência) - o símbolo dos militares para sua teoria de operações” (HARAWAY, 2019, p. 178). Essa estratégia militar (C³I) opera pela coleta, processamento e distribuição de conhecimento e informação para obter comando e controle em uma guerra cibernética latente (John ARQUILLA; David RONFELDT, 1993ARQUILLA, John; RONFELDT, David. “Cyberwar is coming!”. Comparative Strategy, v. 12, n. 2, p. 141-165, 1993.).

No “Manifesto”, Haraway entende o problema natureza-cultura a partir da constatação de que há uma nova ontologia em jogo que determina a política: o ciborgue, traduzido pela ciência em termos de um problema de codificação (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210.).

O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação. Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 158-159, grifos nossos).

A linguagem bélica usada é característica do momento em que o M.C. foi escrito: Guerra Fria (1947-1989) e a “Guerra nas estrelas” (1983) do governo Reagan, com o programa militar “Iniciativa Estratégica de Defesa” (Strategic Defense Initiative - SDI), que visava à dominação do espaço, sob a justificativa de defesa contra armas nucleares soviéticas. Enquanto frutos incestuosos desse universo, “do militarismo e do capitalismo patriarcal”, os ciborgues, ela acredita, são completamente infiéis às suas origens e podem, como parricidas, permitir histórias feministas que “recodifiquem a comunicação e a inteligência, a fim de subverter o comando e o controle” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 194). Ou seja, Haraway defende que o ciborgue pode ser também uma arma contra a estratégia antissocialista que lhe deu origem.

Haraway colocou seu trabalho ao lado da crítica ao sonho estadunidense de dominação do poder nuclear e espacial, sem, contudo, condenar a tecnociência como algo unicamente fabricado e legado à vilania. O M.C. expressa uma esperança por meio de um mito político feminista e socialista, permitido pela própria formação e situação da autora:

Estou consciente da estranha perspectiva propiciada por minha posição histórica - um doutorado em Biologia para uma moça irlandesa católica tornou-se possível por causa do impacto do Sputnik na política de educação científica dos Estados Unidos. Tenho um corpo e uma mente construídos tanto pela corrida armamentista e pela guerra fria que se seguiram à Segunda Guerra Mundial quanto pelos movimentos das mulheres. Há mais razões para a esperança quando consideramos os efeitos contraditórios das políticas dirigidas a produzir tecnocratas estadunidenses leais - as quais também produzem um grande número de dissidentes - do que quando nos concentramos nas derrotas atuais (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 190-191).

“O ciborgue pula o estágio da unidade original, da identificação com a natureza, no sentido ocidental. Essa é sua promessa ilegítima, aquela que pode levar à subversão da teleologia que o concebe como guerra nas estrelas” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 160). Adjetivado por ela como oposicionista, utópico e nada inocente, “o ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade” (HARAWAY, 2019, p. 160). Com ele, natureza e cultura são reestruturadas de modo que uma não pode mais ser apropriada ou incorporada pela outra (HARAWAY, 2019, p. 160).

Em sua análise do momento presente, ela assevera: “neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos - teóricos e fabricados - de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 158). A escrita-ciborgue implode três fronteiras características da ciência moderna: o humano e o animal; o organismo e a máquina; e o físico e o não físico. Trata-se de uma ontologia que conduz a uma nova forma de política, o ciborgue simula a política (HARAWAY, 2019, p. 177), de modo que a visão comum não alcança sua ubiquidade e invisibilidade. Por isso, o realismo ficcional político de Haraway passa por uma análise, estruturada pela linguagem, entre a realidade e a ficção:

A política do ciborgue é a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita - o dogma central do falogocentrismo. É por isso que a política do ciborgue insiste no ruído e advoga a poluição, tirando prazer das ilegítimas fusões entre animal e máquina. São esses acoplamentos que tornam o Homem e a Mulher extremamente problemáticos, subvertendo a estrutura do desejo, essa força que se imagina como sendo a que gera a linguagem e o gênero, subvertendo, assim também, a estrutura e os modos de reprodução da identidade ‘ocidental’, da natureza e da cultura, do espelho e do olho, do escravo e do senhor (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 195, grifos nossos).

A linguagem, assim reestruturada por uma escrita ciborgue, é extremamente importante para a compreensão do mundo em que as fronteiras foram implodidas, com identidades fraturadas, que Haraway nos conta. É por ela que os binarismos são postos em xeque. Afinal, se no mundo analisado no M.C. o conflito gira sempre em torno de conhecimento e informação, o feminismo ciborgue, um tecnofeminismo, deve orientar-se contra toda dominação e controle acerca da identidade e subvertê-las.

As feministas-ciborgue têm que argumentar que “nós” não queremos mais nenhuma matriz identitária natural e que nenhuma construção é uma totalidade, a inocência, bem como a consequente insistência na condição de vítima como a única base para a compreensão e a análise, já causou suficientes estragos (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 169).

Para isso, Haraway analisa a feminização do trabalho e a economia do trabalho das mulheres, nas sociedades industriais avançadas, com o declínio do estado de bem-estar. Para isso, ela utiliza o conceito “mulheres no circuito integrado”, inventado por Rachel Grossman (1980GROSSMAN, Rachel. “Women’s place in the integrated circuit”. Radical America, v. 14, n. 1, 1980.), para pensar o que ela chama de uma “nova Revolução industrial” que gerou uma nova classe trabalhadora bem como novas formas de sexualidade e etnicidade, nas quais os termos homem e mulher perdem sua materialidade moderna. O sentido de fe,minização do trabalho, por exemplo, não se refere direta ou unicamente ao que seria próprio de sujeitos femininos, e sua compreensão é extremamente importante para seu manifesto feminista socialista:

O trabalho está sendo redefinido ao mesmo tempo como estritamente feminino e como feminizado, seja ele executado, nesse último caso, por homens, ou por mulheres. Ser feminizado significa: tornar-se extremamente vulnerável; capaz de ser desmontado, remontado, explorado como uma força de trabalho de reserva; que as pessoas envolvidas são vistas menos como trabalhadores/as e mais como servos/as; sujeito a arranjos do tempo em que a pessoa ora está empregada num trabalho assalariado ora não, num infeliz arremedo da ideia de redução do dia de trabalho; levar uma vida que sempre beira a ser obscena, deslocada e reduzível ao sexo. A desqualificação é uma velha estratégia aplicável, de forma renovada, a trabalhadores/as anteriormente privilegiados/as. Entretanto, o conceito de “economia do trabalho caseiro” não se refere apenas à desqualificação em larga escala, nem pretende negar que estão emergindo novas áreas de alta qualificação, inclusive para mulheres e homens anteriormente excluídos do emprego qualificado. Em vez disso, o conceito quer indicar que a fábrica, a casa e o mercado estão integrados em uma nova escala e que os lugares das mulheres são cruciais - e precisam ser analisados pelas diferenças existentes entre as mulheres e pelos significados das relações existentes entre homens e mulheres, em várias situações (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 181, grifos nossos).

A feminização do trabalho, seja do trabalho produtivo ou reprodutivo (Silvia FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2019.), é vista por Haraway a partir das relações sociais entre ciência e tecnologia que operam pela estratégia histórica da desqualificação, agora renovada. Para ela, não há novidade no fato de que a manutenção da vida cabe às mulheres “como parte de sua forçada condição de mães; o que é novidade é a integração de seu trabalho à economia capitalista global e a uma economia que progressivamente se torna centrada em torno da guerra” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 182).

O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 159). O mito ciborgue, sua escrita e sua política perturbam as fronteiras de sexo-gênero: “Ciborgues podem expressar de forma mais séria o aspecto - algumas vezes, parcial, fluido - do sexo e da corporificação sexual. O gênero pode não ser, afinal de contas, a identidade global, embora tenha uma intensa profundidade e amplitude históricas” (HARAWAY, 2019, p. 201). Não há possibilidade de uma teoria total ou holista, ainda que não se perca a ideia - ou esperança - de conexões possíveis. Haraway afirma que há uma ideia de rede bastante significativa na quebra de fronteiras entre o público e o privado, que explica o modo como a comunicação ciborguiana se estabelece. E essa ideia de rede atrelada à explicação da subversão de gênero operada pelo ciborgue explica, em parte, a frase que encerra seu Manifesto: “Embora estejam envolvidas, ambas, numa dança em espiral, prefiro ser uma ciborgue a uma deusa” (HARAWAY, 2019, p. 202). Esta frase encontra seus fundamentos tanto em um contexto histórico e geopolítico, como procuramos apresentar, quanto em um diálogo profícuo com filósofas e cientistas feministas, de diferentes perspectivas, que, também na década de oitenta, questionavam o aspecto dualista do gênero nas ciências, tais como Ruth Bleier, Sandra Harding, Anne Fausto-Sterling, Ruth Hubbard, Evelyn Fox Keller, Carolyn Merchant, Chela Sandoval e bell hooks, dentre outras, as quais ela recomenda nominalmente no texto. E é na continuidade desta construção feminista dialogada que o segundo texto que selecionamos para analisar é escrito.

Saberes localizados: a defesa da objetividade científica localizada e corporificada

Em “Saberes Localizados”, Haraway pondera, a partir da leitura da primeira grande obra de Sandra Harding (1986HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986.), The Science Question in Feminism, sobre os problemas das teorias construtivistas sociais se pautarem naquilo que contam sobre a ciência - por seus manuais ou relatos de cientistas, por exemplo - em vez de analisarem a própria atividade científica. Essa distorção da visão sobre a ciência levou a uma análise tão perniciosa quanto o relativismo e o realismo ingênuo, no sentido de que produzem discursos igualmente totalitários sobre um conhecimento que é sempre corporificado, localizado, parcial. “O relativismo e a totalização são, ambos, ‘truques de deus’, prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, mitos comuns na retórica em torno da Ciência” (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 24). Diante disso, ela afirma que:

Assim, creio que o meu e o “nosso” problema é como ter, simultaneamente, uma explicação da contingência histórica radical sobre todo conhecimento postulado e todos os sujeitos cognoscentes, uma prática crítica de reconhecimento de nossas próprias “tecnologias semióticas” para a construção de sentido, e um compromisso a sério com explicações fiéis de um mundo “real”, um mundo que possa ser parcialmente compartilhado e amistoso em relação a projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, sofrimento reduzido e felicidade limitada (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 15-16).

Haraway sugere a imagem de mundo - heterogêneo, histórico, orgânico e fabricado - contra a imagem de uma natureza sagrada, universal ou dominável. Para isso, a objetividade é retomada como instrumento capaz de indicar a permanência da ambiguidade orgânico-fabricada deste mundo. Haraway retoma a metáfora da visão como importante estratégia para ressignificar, via epistemologia feminista, o conceito de objetividade. Em um retorno à epistemologia histórica de Lorraine Daston e Peter Galison (2007DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.), poderíamos dizer que a abordagem feminista de Haraway implica apontar de que modo, por exemplo, a objetividade mecânica é tão parcial quanto a objetividade comunitária, isto é, ambas não são livres de valores:

Não há nenhuma fotografia não mediada, ou câmera escura passiva, nas explicações científicas de corpos e máquinas: há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos [...] Compreender como esses sistemas visuais funcionam, tecnicamente, socialmente e, psiquicamente, deveria ser um modo de corporificar a objetividade feminista (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 22).

Por isso, uma abordagem feminista da objetividade, para Haraway, diz respeito à corporificação situada e não a uma “falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades” (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 21). Cabe lembrar que corporificação não é entendida por Haraway como uma materialidade fixa, mas, em referência direta ao seu ciborgue, como “prótese significante” (HARAWAY, 2009, p. 29), isto é, escrita e política ciborgue que habitam as fronteiras fraturadas da história do mundo.

Não queremos uma teoria de poderes inocentes para representar o mundo, na qual linguagens e corpos submerjam no êxtase da simbiose orgânica. Tampouco queremos teorizar o mundo, e muito menos agir nele, em termos de Sistemas Globais, mas precisamos de uma rede de conexões para a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas em termos de poder. Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 16, grifo nosso).

A crítica de Haraway em relação ao “ponto de vista dos subjugados” diz respeito ao fato de que, para ela, “identidade, incluindo auto-identidade, não produz ciência; posicionamento crítico produz, isto é, objetividade” (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 27). “A questão da ciência para o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada” (HARAWAY, 2009, p. 33). Em suas palavras:

Admita-se ou não, a política e a ética são a base das lutas a respeito de projetos de conhecimento nas ciências exatas, naturais, sociais e humanas. De outro modo, a racionalidade é simplesmente impossível, uma ilusão de ótica projetada de maneira abrangente a partir de lugar nenhum. As histórias da ciência podem ser eficazmente contadas como histórias das tecnologias. Essas tecnologias são modos de vida, ordens sociais, práticas de visualização. Tecnologias são práticas habilidosas. Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? Ver com quem? Quem deve ter mais do que um ponto de vista? Nos olhos de quem se joga areia? Quem usa viseiras? Quem interpreta o campo visual? Qual outro poder sensorial desejamos cultivar, além da visão? O discurso moral e político deveria ser o paradigma do discurso racional nas imagens e tecnologias da visão (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 28).

Haraway entende que grande sacada da leitura feminista da objetividade foi a de insistir na agência e autoria dos objetos, vistos historicamente como fatos passivos. Isso não elimina a importância dos fatos para a ciência, mas introduz uma noção crítica sobre o modo como eles são fabricados pela ciência: como saberes localizados (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 36). O sexo e a natureza, ou seu substrato não discursivo: o corpo e o mundo, em seus termos, constituem exemplos que ela utiliza para demonstrar sua análise, uma vez que ambos foram marcados na história da ciência ocidental como objetos em relação aos seus pares binários: gênero e cultura. Haraway não propõe uma inversão dos pares, mas uma conversa, uma análise responsável em que os posicionamentos - seus valores epistêmicos e alternativos - em relação a esses pares sejam igualmente justificados.

Explicações de um mundo “real”, assim, não dependem da lógica da “descoberta”, mas de uma relação social de “conversa” carregada de poder. O mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um senhor decodificador. Os códigos do mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos. O mundo não é matéria-prima para humanização; todos os ataques ao humanismo, outro ramo do discurso sobre “a morte do sujeito”, deixaram isto muito claro. De certa maneira crítica, isso é grosseiramente apontado pela categoria incerta do social ou de agência: o mundo encontrado nos projetos de conhecimento é uma entidade ativa (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 37).

Não há ingenuidade ou passividade na pesquisa científica. Por isso, a proposta de Haraway de “assumir posicionamentos” como uma atitude científica responsável não é o mesmo que renunciar a qualquer projeto de racionalidade. Ao contrário, vemos em seu texto uma preocupação em diferenciar a proposta de saberes localizados de qualquer semelhança com estratégias universalistas, inclusive em relação a uma espécie de construtivismo social radical.

Sua crítica aos pares de sexo e gênero e natureza e cultura, por exemplo, requer não seu aniquilamento, mas sim uma recodificação dos termos a partir de uma leitura feminista ciborgue que subverteu a demarcação entre um sujeito ativo e um objeto passivo. Em suas palavras: “A ativação permanentemente problematiza distinções binárias como sexo e gênero sem, entretanto, eliminar sua utilidade estratégica” (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 38). Essa reflexão crítica sobre as origens e a utilidade estratégica dos dualismos sexo e gênero, masculino e feminino, cultura e natureza, dentre outras categorias, será analisada em detalhe por Haraway em nosso próximo texto, tanto a partir da história da ciência quanto da filosofia moderna ocidental.

Testemunha Modesta: a construção do cientista

Em 1997, Haraway publica “Modest Witness@Second_Millenium.FemaleMan©_Meets_On coMouse™: Feminism and Technoscience” inspirada pela transformação social ocasionada pelo advento e avanço da internet como meio de comunicação em redes. O uso da internet não era mais uma estratégia de função militar apenas, já que se alastrava também e principalmente entre cientistas, universidades e, mesmo, já no uso considerado doméstico. Essa mudança de perspectiva é justificada por ela por uma mudança política e econômica nomeada na época como a Nova Ordem Mundial (New World Order) Pós-Guerra Fria, que hoje entendemos como a ascensão do neoliberalismo.

A escrita de M.W., assim como os textos anteriores, é marcada pela literatura de ficção científica feminista de Joanna Russ (1975RUSS, Joanna. The female man. New York: Bantam Books, 1975.), em seu The Female Man.4 4 Esta obra segue sem tradução para o português. Russ conta a história de quatro personagens femininas: Jeannine, Janet, Jael e Joanna. As quatro jotas habitam mundos distintos, em um modelo não linear de tempo, em que questões de gênero são exploradas de forma exagerada e cômica. Uma análise do livro pode ser encontrada em Marlova Soares Mello (Sobre mulheres, aliens e ciborgues: uma análise de The Female Man de Joanna Russ. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS). Haraway acredita na potência irônica desta literatura para a compreensão das tensões que ela visa apontar com seu trabalho. Além da FemaleMan©, também figuram em seu trabalho a Testemunha Modesta, o OncoMouse™,5 5 Haraway o utiliza para problematizar o patenteamento de um animal vivo e seu significado para o problema natureza-cultura. o chip, a bomba, e o feto. Aqui, nos limitaremos à testemunha modesta, mas, na obra, eles são mais do que meras imagens, são como figurações profícuas para o entendimento da complexidade do “novo mundo” que habitamos. Em suas análises sobre The Female Man e Onco Mouse - em que ela afirma haver uma relação de parentesco -, ela quer demonstrar também como uma metáfora pode se tornar um programa de pesquisa (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 83). Mas voltemo-nos agora para a testemunha modesta.

A grande influência para o uso de testemunha modesta foi o Leviathan and the Air Pump, livro de Simon Schaffer e Steven Shapin (1985SCHAFFER, Simon; SHAPIN, Steven. Leviathan and the Air Pump. Princeton: Princeton University Press, 1985.), que mostra que o debate entre o modelo de produção de conhecimento de Thomas Hobbes (1588-1679) e o modelo de produção de experimentos Robert Boyle (1627-1691) foi resolvido com uma decisão política. Haraway assume que essa sua inspiração se deu em uma reação contra a ausência de contribuições dos estudos feministas da ciência (Feminist Science Studies) no argumento de Schaffer e Shapin (1985). M. W. trata, por isso, de uma reação ao Leviathan e ao “Ciência em Ação”, de Bruno Latour (2000LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 2000 [1987]. [1987]). Haraway também afirma que o uso de “testemunha modesta” vem do trabalho de Deborah Heath6 6 Conferir: HEATH, Deborah. “Bodies, Antibodies, and Modest Interventions”. In: DOWNEY, Gary Lee; DUMIT, Joseph (Eds.). Cyborgs and Citadels: Anthropological Interventions in the Borderlands of Technoscience. Washington: University of Washington Press, 1998. p. 67-82. e, posteriormente, da leitura do Gender and Boyle’s Law of Gases, de Elizabeth Potter (2001POTTER, Elizabeth. Gender and Boyle’s Law of Gases. Bloomington: Indiana University Press, 2001.). Sobre este último, Potter observou como as mulheres não eram listadas entre aqueles que poderiam testar a veracidade dos relatórios experimentais, ainda que estivessem presentes no momento das experimentações. Ainda que pudessem ver, não eram autorizadas a dar seu testemunho.

Vários historiadores descrevem o tumulto causado em 1667 na Royal Society quando Margaret Cavendish (1623-1673), Duquesa de Newcastle, generosa patrona da Universidade de Cambridge e importante escritora de filosofia natural, que pretendia ser levada a sério, solicitou permissão para visitar uma sessão de trabalho da sociedade exclusivamente masculina. Não querendo ofender uma personagem importante, ‘os líderes da sociedade acabaram acatando seu pedido, fazendo com que ela visitasse várias demonstrações científicas de, entre outros, Hooke e Boyle’ (Noble 1992: 231). Não houve retorno da visita, e as primeiras mulheres admitidas na Royal Society, depois que o conselho dos advogados deixou claro que a exclusão contínua de mulheres seria ilegal, entraram em 1945, quase 300 anos após a aparição indesejada de Cavendish (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 32).7 7 No original: “Potter notes that women’s names were never listed among those attesting the veracity of experimental reports, whether they were present or not, Several historians describe the tumult caused in 1667 at the Royal Society when Margaret Cavendish (1623-1673), Duchess of Newcastle, generous patron of Cambridge University, and a substantive writer on natural philosophy who intended to be taken seriously, requested permission to visit a working session of the all-male society. Not wanting to offend an important personage, “the leaders of the society ultimately acceded to her request, arranging for her to visit several scientific demonstrations by, among others, Hooke and Boyle (Noble 1992:231). There was no return visit, and the first women admitted to the Royal Society, after lawyers’ advice made it clear that continued exclusion of women would be illegal, entered in 1945, almost 300 years after Cavendish’s unwelcome appearance”. Sobre Margaret Cavendish, ver: SATTLER, Janyne. “Margaret Cavendish e a impetuosidade da palavra”. In: MACHADO, Rita de Cassia; LECCI, Alice de Carvalho Lino; SEUS, Beatris da Silva; DAMIÃO, Carla Milani; FELÍCIO, Carmelita Brito de Farias; PIRES, Cecília; SATTLER, Janyne; VALLE, Karina de França Silva; BARBOSA, Lia Pinheiro; VERBICARO, Loiane Prado; CASTRO, Susana. As Pensadoras. Vol 1. São Leopoldo, RS: As Pensadoras, 2021.

A diferença de Haraway em relação aos argumentos de exclusão e conservação do livro de Schaffer e Shapin, bem como de livro posterior deste último,8 8 SHAPIN, Steven. A Social History of Truth: Civility and Science in Seventeenth-Century England. Chicago: University of Chicago Press, 1994. é que ela se interessa pela questão de se o gênero, em suas interseções com outros sistemas de relações estratificadas, “estava em jogo nas principais reconfigurações do conhecimento e da prática que constituíram a ciência moderna” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 27). Haraway não sugere, com isso, que eles deveriam ter escrito sobre a exclusão de mulheres ou que seu trabalho não exerça importância para os estudos sobre ciência, mas:

No entanto, o que acho que Shapin não questiona em suas formulações é se e com que precisão o mundo dos senhores cientistas (scientific gentlemen) foi fundamental tanto para sustentar antigos quanto para criar novos modos de vida “de gênero”. Na medida em que o modo de vida experimental construiu a exclusão de mulheres reais, bem como de práticas culturais e símbolos considerados femininos, no que poderia ser considerado a verdade na ciência, a bomba de ar era uma tecnologia de gênero no cerne do conhecimento científico. Foi a ausência geral, não a presença ocasional, de mulheres de qualquer classe ou linhagem/cor - e os modos historicamente específicos como a semiótica e a psicodinâmica da diferença sexual funcionavam - que gerou o gênero do modo de vida experimental de uma maneira particular (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 28).9 9 No original: “However, what I think Shapin does not interrogate in his formulations was whether and how precisely the world of scientific gentlemen was instrumental in both sustaining old and in crafting new “gendered” ways of life. Insofar as the experimental way of life built the exclusion of actual women, as well as of cultural practices and symbols deemed feminine, into what could count as the truth in science, the air-pump was a technology of gender at the heart of scientific knowledge. It was the general absence, not the occasional presence, of women of whatever class or lineage/color - and the historically specific ways that the semiotics and psychodynamics of sexual difference worked - that gendered the experimental way of life in a particular way”.

Para Haraway, “gênero é sempre um relacionamento, não uma categoria pré-formada de seres ou uma posse que se pode ter. O gênero não pertence mais às mulheres do que aos homens” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 28). Essa relação se dá entre categorias instáveis (HARDING, 1993HARDING, Sandra. “A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista”. Revista Estudos Feministas, n. 1, p. 7-31, 1993.) constituídas por e para homens, mulheres e “tropos diversamente arranjados” (HARAWAY, 2018, p. 28), igualmente marcados por território, geração, classe, cor, religião, dentre outros.

Gênero e raça nunca existiram separadamente e nunca foram sobre sujeitos pré-formados dotados de genitais engraçadas e cores curiosas. Raça e gênero envolvem categorias relacionais entrelaçadas, dificilmente separáveis analiticamente e altamente multiformes. As formações raciais, de classe, sexuais e de gênero (não as essências) foram, desde o início, máquinas perigosas e instáveis para proteger as principais ficções e poderes da masculinidade civil europeia. Ser pouco masculino é ser incivilizado, ser negro é ser indisciplinado: essas metáforas têm uma enorme materialidade na constituição do que pode ser considerado conhecimento (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 30).10 10 No original: “Gender and race never existed separately and never were about preformed subjects endowed with funny genitals and curious colors. Race and gender are about entwined, barely analytically separable, highly protean, relational categories. Racial, class, sexual, and gender formations (not essences) were, from the start, dangerous and rickety machines for guarding the chief fictions and powers of European civil manhood. To be unmanly is to be uncivil, to be dark is to be unruly: Those metaphors have mattered enormously in the constitution of what may count as knowledge”.

Para Haraway, o problema da abordagem de Shapin foi o de atrelar gênero a uma questão apenas sobre mulheres e isso o teria impedido de alcançar duas das questões que mobilizam o M.W.: 1) De que forma o gênero estava sendo criado pelo modelo de vida experimental? 2) Como o gênero em formação se tornou parte da negociação da fronteira continuamente acirrada entre o que era ou não ciência? Como a definição de gênero se relacionava com o estabelecimento do que era considerado objetivo e subjetivo, político e técnico, abstrato e concreto, crível e ridículo? (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 28-29).

A testemunha modesta de Boyle corresponde a uma espécie de “categoria não marcada, construída pelas convenções extraordinárias de autoinvisibilidade” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 23):

Reforçando sua agência por meio de sua virtude masculina exercida em espaços “públicos” cuidadosamente regulados, os homens modestos deveriam ser autoinvisíveis (self invisible), transparentes, para que seus relatos não fossem poluídos pelo corpo. Só dessa forma eles poderiam dar credibilidade às suas descrições de outros corpos e minimizar a atenção crítica aos seus próprios. Este é um movimento epistemológico crucial na fundamentação de vários séculos de discursos de raça, sexo e classe como relatórios científicos objetivos (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 32).11 11 No original: “Enhancing their agency through their masculine virtue exercised in carefully regulated “public” spaces, modest men were to be self invisible, transparent, so that their reports would not be polluted by the body. Only in that way could they give credibility to their descriptions of other bodies and minimize critical attention to their own. This is a crucial epistemological move in the grounding of several centuries of race, sex, and class discourses as objective scientific reports”.

A modéstia, nesse caso, era uma virtude especificamente moderna, europeia, masculina, e, por tudo isso, científica. Esta virtude legitimava e autorizava a “testemunha modesta” a estabelecer os fatos sob o argumento da objetividade mecânica, afinal, a bomba de ar era um instrumento fabricado, logo, livre dos possíveis erros dos sentidos humanos. Seu testemunho é objetivo, sua subjetividade é sua objetividade! (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 24).

Haraway quer estranhar (queer) esse modelo pretensamente “não marcado” da modernidade, a fim de pensar uma testemunha de fato modesta e, por isso, mais corpórea, flexionada e opticamente densa. Ela argumenta, como vimos aqui desde pelo menos o M.C., sobre a impossibilidade de separarmos completamente o orgânico e a máquina e sua crítica à testemunha modesta de Boyle explora isso. O cientista, livre de valores, que teoricamente apenas trabalha com o conhecimento dos fatos, a leitura de resultados técnicos, habita a “cultura de nenhuma cultura” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 25), enquanto o resto de nós estaria limitado ao domínio da cultura e sociedade. Ou seja, esse modelo exige uma comunidade científica especializada e limitada.

Haraway recorre ao texto de Potter (2001POTTER, Elizabeth. Gender and Boyle’s Law of Gases. Bloomington: Indiana University Press, 2001.), que argumenta que as tecnologias literárias e sociais de Boyle ajudaram a construir o novo homem e a nova mulher adequados/as ao modo de vida experimental e sua produção de fatos. Nesse novo modelo, a modéstia operava de modo distinto em relação ao masculino e ao feminino. Para os homens, era exigida uma modéstia da mente, e, para as mulheres, do corpo. O “estilo masculino” que mesclava puritanismo e moderação tornou-se o estilo nacional inglês. Boyle, que, como qualquer cientista, não entrava no laboratório totalmente livre das controvérsias da época, não podia deixar que sua testemunha modesta fosse considerada um haec vir (homem feminino). “Deus me livre que o modo de vida experimental tenha fundações queer” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
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, p. 30).

O puritanismo fez com que o laboratório experimental virasse uma espécie de local de adoração, o cientista um padre, e o experimento um rito religioso (POTTER, 2001POTTER, Elizabeth. Gender and Boyle’s Law of Gases. Bloomington: Indiana University Press, 2001.). Nesse ambiente, o gênero foi construído e o homem se fez homem de testemunha modesta. “O vir modestus era um homem caracterizado por um status elevado e contenção ética disciplinada. Parece estranho (queer) afirmar que o homem, tal como conhecemos, essa figura moderna legitimada e assumida como não marcada, é também corporificado e fabricado pela mesma tradição que demarcou como Outro qualquer um que não fosse limitado por este ideal de masculinidade construído.

Haraway afirma que a história de Boyle e o modelo de vida experimental representam mais do que a si mesmos, isto é, ela os utiliza como figuras para pensar a tecnociência em sua formação e consequências. Sua dupla reivindicação com esta análise é a de que houve heranças práticas que sofreram reconfigurações, mas permanecem potentes; e que essa história (como outras revoluções científicas) é uma narrativa sobre “objetividade” que atrapalha uma tecnociência mais adequada e autocrítica comprometida com saberes localizados. O que está em jogo, ainda, é a prática de testemunho confiável. “A modéstia associava classe alta, poder efetivo e gênero masculino” (HARAWAY, 2018HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience. 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 . Acesso em 06/09/2021.
https://www.taylorfrancis.com/books/9780...
, p. 31). A ciência moderna nascia, assim, completamente marcada e comprometida com sua pretensão de ser um não marcado.

Considerações finais

A partir desse recorte da obra de Haraway, acreditamos ser possível concluir que o binarismo natureza e cultura, tal como discriminado pelo projeto moderno de ciência, já nasce tomado por diferentes vieses éticos e políticos que impossibilitariam tanto sua sustentação científica quanto a própria defesa da neutralidade das ciências como garantida de objetividade. A leitura de uma implosão desse projeto não se refere, portanto, a uma oposição à racionalidade e à objetividade científica, mas se trata do entendimento de que este é um projeto marcado por sua impossibilidade.

Já que, nos termos de Haraway, “uma das tarefas dos estudos da tecnociência feminista é construir as linguagens analíticas - projetar os espéculos - para representar e intervir em nossos mundos ciborgues emendados” (HARAWAY, 2019HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210., p. 212), entendemos que a filósofa constrói, de diferentes formas, nesses três textos, uma linguagem que expõe as fraturas dessa implosão em curso ao representar suas dinâmicas de construção e impossibilidades. Assumir a parcialidade do conhecimento como característica própria da ciência e não uma falha a ser eliminada de suas atividades é, portanto, uma das contribuições mais relevantes das perspectivas feministas para os estudos sobre ciências. Ou como nos lembra Evelyn Fox Keller (1936-2023), “a ciência real é descrita de forma muito mais fidedigna pela multiplicidade de estilos e enfoques que constituem sua prática do que por sua retórica ou ideologia dominantes” (KELLER, 1991KELLER, Evelyn Fox. Reflexiones sobre género y ciencia. Valencia: Alfons el Magnanim, 1991., p. 135).

Referências

  • ARQUILLA, John; RONFELDT, David. “Cyberwar is coming!”. Comparative Strategy, v. 12, n. 2, p. 141-165, 1993.
  • DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity New York: Zone Books, 2007.
  • FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpos e acumulação primitiva São Paulo: Elefante, 2019.
  • GROSSMAN, Rachel. “Women’s place in the integrated circuit”. Radical America, v. 14, n. 1, 1980.
  • HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 157-210.
  • HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan_Meets_OncoMouse: Feminism and Technoscience 2 ed. New York: Routledge, 2018. Disponível em Disponível em https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093 Acesso em 06/09/2021.
    » https://www.taylorfrancis.com/books/9780203731093
  • HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 Acesso em 06/09/2021.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  • HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986.
  • HARDING, Sandra. “A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista”. Revista Estudos Feministas, n. 1, p. 7-31, 1993.
  • KELLER, Evelyn Fox. Reflexiones sobre género y ciencia Valencia: Alfons el Magnanim, 1991.
  • KUNZRU, Hari. “Você é um ciborgue. Um encontro com Donna Haraway”. In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 2000 [1987].
  • POTTER, Elizabeth. Gender and Boyle’s Law of Gases Bloomington: Indiana University Press, 2001.
  • RUSS, Joanna. The female man New York: Bantam Books, 1975.
  • SCHAFFER, Simon; SHAPIN, Steven. Leviathan and the Air Pump Princeton: Princeton University Press, 1985.
  • 1
    Este artigo é o resultado de uma parte de minha tese de doutorado “A natureza-cultura em construção: histórias de filosofia e ciência sobre corpos e feminismos”, defendida em 2021, no PPGFIL UERJ, sob orientação de Antonio Augusto Videira, a quem agradeço a companhia crítica e atenta em minha trajetória acadêmica. Também agradeço a uma bolsa de pesquisa do programa de Doutorado sanduíche CAPES-PRINT, recebida entre novembro de 2019 e março de 2020 para estágio na Université Paris X Nanterre, sob a supervisão da professora Anne-Lise Rey. Aproveito também para agradecer pelos comentários recebidos das/dos pareceristas anônimas/os, que contribuíram para uma revisão necessária no presente texto. Parte das sugestões foram acatadas, outras oportunizaram uma continuidade em minhas pesquisas recentes e devem constar em trabalhos futuros.
  • 2
    Agradeço ao comentário recebido em parecer que destaca a importância de mencionar que a versão utilizada pela publicação da Bazar do Tempo, publicada em 2019, trata-se da tradução de Tomaz Tadeu em Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano (Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 37-129).
  • 3
    Trecho retirado da entrevista de Haraway no M.W. No original: “But I want to clarify, ‘implosion’ does not imply that technoscience is ‘socially constructed’, as if the ‘social’ were ontologically real and separate. ‘Implosion’ is a claim for heterogeneous and continual construction through historically located practice, where the actors are not all human” (HARAWAY, 2018, p. XXVI).
  • 4
    Esta obra segue sem tradução para o português. Russ conta a história de quatro personagens femininas: Jeannine, Janet, Jael e Joanna. As quatro jotas habitam mundos distintos, em um modelo não linear de tempo, em que questões de gênero são exploradas de forma exagerada e cômica. Uma análise do livro pode ser encontrada em Marlova Soares Mello (Sobre mulheres, aliens e ciborgues: uma análise de The Female Man de Joanna Russ. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS).
  • 5
    Haraway o utiliza para problematizar o patenteamento de um animal vivo e seu significado para o problema natureza-cultura.
  • 6
    Conferir: HEATH, Deborah. “Bodies, Antibodies, and Modest Interventions”. In: DOWNEY, Gary Lee; DUMIT, Joseph (Eds.). Cyborgs and Citadels: Anthropological Interventions in the Borderlands of Technoscience. Washington: University of Washington Press, 1998. p. 67-82.
  • 7
    No original: “Potter notes that women’s names were never listed among those attesting the veracity of experimental reports, whether they were present or not, Several historians describe the tumult caused in 1667 at the Royal Society when Margaret Cavendish (1623-1673), Duchess of Newcastle, generous patron of Cambridge University, and a substantive writer on natural philosophy who intended to be taken seriously, requested permission to visit a working session of the all-male society. Not wanting to offend an important personage, “the leaders of the society ultimately acceded to her request, arranging for her to visit several scientific demonstrations by, among others, Hooke and Boyle (Noble 1992:231). There was no return visit, and the first women admitted to the Royal Society, after lawyers’ advice made it clear that continued exclusion of women would be illegal, entered in 1945, almost 300 years after Cavendish’s unwelcome appearance”. Sobre Margaret Cavendish, ver: SATTLER, Janyne. “Margaret Cavendish e a impetuosidade da palavra”. In: MACHADO, Rita de Cassia; LECCI, Alice de Carvalho Lino; SEUS, Beatris da Silva; DAMIÃO, Carla Milani; FELÍCIO, Carmelita Brito de Farias; PIRES, Cecília; SATTLER, Janyne; VALLE, Karina de França Silva; BARBOSA, Lia Pinheiro; VERBICARO, Loiane Prado; CASTRO, Susana. As Pensadoras. Vol 1. São Leopoldo, RS: As Pensadoras, 2021.
  • 8
    SHAPIN, Steven. A Social History of Truth: Civility and Science in Seventeenth-Century England. Chicago: University of Chicago Press, 1994.
  • 9
    No original: “However, what I think Shapin does not interrogate in his formulations was whether and how precisely the world of scientific gentlemen was instrumental in both sustaining old and in crafting new “gendered” ways of life. Insofar as the experimental way of life built the exclusion of actual women, as well as of cultural practices and symbols deemed feminine, into what could count as the truth in science, the air-pump was a technology of gender at the heart of scientific knowledge. It was the general absence, not the occasional presence, of women of whatever class or lineage/color - and the historically specific ways that the semiotics and psychodynamics of sexual difference worked - that gendered the experimental way of life in a particular way”.
  • 10
    No original: “Gender and race never existed separately and never were about preformed subjects endowed with funny genitals and curious colors. Race and gender are about entwined, barely analytically separable, highly protean, relational categories. Racial, class, sexual, and gender formations (not essences) were, from the start, dangerous and rickety machines for guarding the chief fictions and powers of European civil manhood. To be unmanly is to be uncivil, to be dark is to be unruly: Those metaphors have mattered enormously in the constitution of what may count as knowledge”.
  • 11
    No original: “Enhancing their agency through their masculine virtue exercised in carefully regulated “public” spaces, modest men were to be self invisible, transparent, so that their reports would not be polluted by the body. Only in that way could they give credibility to their descriptions of other bodies and minimize critical attention to their own. This is a crucial epistemological move in the grounding of several centuries of race, sex, and class discourses as objective scientific reports”.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    SOARES, Maria Helena Silva. “Donna Haraway e a implosão do projeto moderno de ciência”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e93449, 2024
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2023
  • Revisado
    25 Mar 2024
  • Aceito
    04 Abr 2024
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