Acessibilidade / Reportar erro

Fazer adulto: capacidade e ambiguidades do cuidado materno na deficiência intelectual

Hacer adulto: capacidades y ambigüedades del cuidado materno en discapacidad intelectual

Resumo:

A noção de capacidade é central para o tema da deficiência e suscita reflexões sobre como a lógica capacitista organiza a sociedade a partir do binômio corpos capazes e corpos não capazes. No presente artigo, parto das práticas de cuidado de adultos com deficiência intelectual para examinar como o binômio infância e adultez espelha tal lógica capacitista. A partir de pesquisa realizada junto às mães de adultos com deficiência intelectual na cidade de Porto Alegre entre os anos de 2017 e 2018, analiso os paradoxos de uma maternidade que é, ao mesmo tempo, responsável pela promoção da “autonomia e independência” de seus filhos e pelo seu bem-estar físico. Argumento que as noções de adulto e criança são constantemente acionadas para classificar comportamentos de pessoas com deficiência intelectual, fazendo com que a tensão entre tutela e autonomia que medeia o cuidado seja produzida a partir de noções rígidas do que é “ser um adulto”. Proponho, por fim, que a categoria de adultez, tal qual a de capacidade, se aplica de forma hierárquica na categorização de pessoas e na avaliação do bom cuidado para adultos com deficiência intelectual.

Palavras-chave:
Maternidade; Deficiência Intelectual; Adultez; Capacitismo

Resumen:

La noción de capacidad es central en el tema de la discapacidad en Brasil y plantea reflexiones sobre cómo la lógica capacitista organiza la sociedad a partir del binomio cuerpos capaces y cuerpos no capaces. En este artículo, me aparto de las prácticas de cuidado de adultos con discapacidad intelectual para examinar cómo el binomio infancia y edad adulta refleja esa lógica capacitista. A partir de una investigación realizada con madres de adultos con discapacidad intelectual en la ciudad de Porto Alegre entre 2017 y 2018, analizo las paradojas de una maternidad que es, al mismo tiempo, responsable de promover la “autonomía e independencia” de sus hijos y para tu bienestar físico. Sostengo que las nociones de adulto y niño se utilizan constantemente para clasificar los comportamientos de las personas con discapacidad intelectual, provocando que la tensión entre tutela y autonomía que media el cuidado se produzca a partir de nociones rígidas de lo que significa “ser adulto”. Propongo, finalmente, que la categoría de edad adulta, al igual que la de capacidad, se aplique de forma jerárquica en la categorización de las personas y en la valoración de la buena atención a los adultos con discapacidad intelectual.

Palavras-Clave:
Maternidad; Discapacidad intelectual; Edad adulta; Capacitismo

Abstract:

The notion of capacidade is central to the issue of disability and prompts reflections on how the logic of capacity organizes society based on the divide between abled/non-able bodies. In this article, I look at the care practices for adults with intellectual disabilities to examine how the childhood/adulthood binary mirrors this logic of ableism. Based on research carried out with the mothers of adults with intellectual disabilities in the city of Porto Alegre between 2017 and 2018, I analyze the paradoxes of mothers who are simultaneously responsible for promoting the “autonomy and independence” of their children as well as their physical well-being. I argue that the notions of adult and child are constantly used to classify the behavior of people with intellectual disabilities, so that the tension between guardianship and autonomy that mediates care is produced from rigid notions of what “being an adult” is. Finally, I propose that the category of adulthood, like that of capacity, is applied hierarchically in the classification of people and in the assessment of good care for adults with intellectual disabilities.

Keywords:
Motherhood; Intellectual Disability; Adulthood; Ableism

Introdução

A Associação onde realizei trabalho de campo1 1 Este artigo é fruto de minha tese de Doutorado (2020), “Construindo Futuros, Provocando o Presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão da deficiência intelectual no Brasil”, publicada como livro pela Editora Hucitec (2023). A pesquisa foi realizada enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e financiada pela CAPES, a quem sou grata. Agradeço aos colegas Cíntia Engel e Lucas Besen pelas leituras de versões anteriores deste artigo, bem como às pareceristas anônimas e às editoras deste dossiê temático pelas valiosas contribuições ao texto. semanalmente entre 2017 e 2018 suspende suas atividades durante o verão. Buscando matar a saudade, eu e seis das mães com quem costumava jogar vôlei enquanto seus filhos já adultos realizavam atividades esportivas nos reunimos para um churrasco. Depois do almoço, os jovens foram assistir à televisão e nós permanecemos conversando à mesa. Uma das mães, Dione, partilhou uma história que ilustra o dilema central deste artigo.

Conheci Dione em 2017, enquanto realizava uma pesquisa sobre a relação entre práticas de cuidado para adultos com deficiência intelectual e expectativas familiares quanto ao futuro. Naquele ano, cheguei até a Associação. Fundada quase 20 anos antes, a Associação oferece atividades esportivas, artísticas e de lazer para pessoas com deficiência na cidade de Porto Alegre todos os dias da semana. Por ser uma instituição sem fins lucrativos e filantrópica, os valores pagos pelos associados são consideravelmente menores do que o de outras instituições, fazendo com que famílias de diferentes condições socioeconômicas a frequentem. Às quintas-feiras, eu costumava ir até a sede central e conversar com as mães que se sentavam na sala de espera enquanto seus filhos realizavam aulas de musicoterapia e judô. Já às sextas-feiras, frequentava um espaço cedido pelo exército brasileiro, onde os alunos realizavam atividades esportivas no turno da tarde. Lá, jogava vôlei com algumas mães enquanto elas esperavam por seus filhos. O jogo semanal nos aproximou. Daí a vontade de nos encontrarmos durante o verão. Dione é mãe de Raul, um homem com deficiência intelectual que, à época, tinha trinta anos de idade. Assim como grande parte das pessoas que encontrei ao longo de minha pesquisa, ao completar vinte e um anos e deixar a escola de educação especial onde estudara durante grande parte de sua vida, Raul se viu quase sem alternativas de atividades, fossem laborais, de ensino ou de lazer. Diante dessa realidade, Dione se reuniu com outros pais para montar uma cooperativa para pessoas com deficiência. Seu objetivo era criar um espaço onde os filhos pudessem ser produtivos, socializar e desenvolver suas habilidades.

Naquela tarde, Dione dividiu conosco um momento marcante que aconteceu durante uma oficina de filmes pela qual era responsável. A escolha do filme gerou discórdia entre os pais, uma vez que muitos achavam a animação escolhida muito “adulta” para os seus filhos. Dione, no entanto, insistiu que não apresentaria “desenho da Turma da Mônica” para os jovens, mas sim algo condizente com sua idade. Afinal, todos tinham mais de vinte e um anos. A obra escolhida foi Jack e a Mecânica do Coração (Mathias MALZIEU; Stéphane BERLA, 2013MALZIEU, Mathias; BERLA, Stéphane (Direção). Jack e a mecânica do coração. França, 2013. 92 minutos.). Segundo ela, o filme retrata a história de um menino que, ao nascer em uma fria noite de inverno, é abandonado por sua mãe biológica. A mulher que o encontra e o adota percebe que seu coração congelara e coloca um relógio em seu lugar. A prótese funciona e Jack sobrevive, mas, para que não venha morrer, deve evitar emoções, como sentir medo ou se apaixonar. Isso faz com que o jovem Jack tenha uma infância controlada pela mãe e só possa sair de casa sozinho e frequentar a escola ao completar dez anos de idade. A mãe, que trocara o coração por um relógio para que o filho sobrevivesse, tem dificuldades em aceitar que Jack se coloque em risco quando ela havia abdicado de tantas coisas para garantir sua sobrevivência. Ao longo da vida, Jack consegue, aos poucos, conhecer o mundo, enfrenta riscos e se apaixona perdidamente por uma jovem, apesar dos conselhos de sua mãe para que não o faça. Havia, na história contada por Dione, uma constante tensão entre proteger-se do risco da morte que as emoções poderiam causar e a possibilidade de experienciar a vida em sua plenitude. Jack, ao final, escolhe a segunda opção e coube à sua mãe aceitar sua escolha. Para além do enredo, Dione ficou emocionada com a conversa que teve com os jovens ao final da sessão. Ela começou com uma pergunta bem simples: qual o nome do protagonista. Para sua surpresa, todos responderam com o próprio nome. Pensando se tratar de uma confusão, Dione os corrigiu. Uma das participantes prontamente lhe disse que sabia que o nome do menino era Jack, mas que “era a Isabela que estava ali”. Dione, então, percebeu que era assim que eles se sentiam: aprisionados pela constante supervisão materna.

A história de Dione reflete a tensão entre proteção e superproteção que se faz presente quando falamos sobre cuidados maternos para pessoas com deficiência intelectual. Um dilema que toma diferentes formas à medida que seus filhos atingem a vida adulta. Ao longo deste artigo, abordo esta tensão a partir de sua relação com a presunção de que pessoas com deficiência intelectual são “eternas crianças” e centro minha análise nos modos como o capacitismo opera nas práticas de cuidado a partir de julgamentos sobre o que é ou não adequado para um adulto fazer. Logo, proponho que pensar o capacitismo requer refletir sobre diferentes formas de se experenciar e performar a adultez.

Em meio a suas muitas diferenças, minhas interlocutoras compartilham a experiência de terem sido as principais responsáveis pelos cuidados de seus filhos ao longo da vida. Filhos que, hoje, adultos, viveram desde a infância sob diferentes diagnósticos que os fazem habitar a ampla categoria de “pessoa com deficiência intelectual”. Recorro a suas experiências para analisar os modos como as práticas de cuidado materna para adultos com deficiência intelectual são atravessadas pela construção do binômio adultez e infância a partir da lógica capacitista que ordena a sociedade em termos de corpos mais ou menos capazes (Alison KAFER, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis: Indiana University Press, 2013.; CAMPBELL, 2009CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness. London: Palgrave Macmillian, 2009.). Não apresento aqui uma definição do que é deficiência, uma vez que estou mais interessada no que ela produz (Logan SMILGES, 2023SMILGES, Logan J. Crip Negativity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2023.; AYDOS, 2021AYDOS, Valéria. “Construindo o ‘bom trabalhador’: inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho”. Etnográfica, v. 25, n. 2, p. 289-314, 2021.). Reconheço, também, que tais definições e categorizações do que conta enquanto deficiência são sempre contingenciais, localizadas, relacionais e dependentes de contínuas negociações e, por isso, englobam corpos e mentes muito diversos (KAFER, 2013; LOPES, 2015LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2015. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; 2019LOPES, Pedro. “Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tronar”. Anuário Antropológico, v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019.). Ainda assim, as especificidades da deficiência intelectual, tradicionalmente menos estudada tanto pelos estudos da deficiência quanto pela antropologia (Faye GINSBURG; Rayna RAPP, 2018GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. “Cognitive Disability: Towards an Ethics of Possibility”. The Cambridge Journal of Anthropology, v. 36, n. 1, p. 113-119, 2018.; 2020GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. “Disability/Anthropology: Rethinking the Parameters of the Human”. Cultural Anthropology, v. 61, supplement 21, 2020.; KAFER, 2013; Eva KITTAY, Licia CARLSON, 2010KITTAY, Eva F.; CARLSON, Licia. “Introduction: Rethinking Philosophical Presumptions in Light of Cognitive Disability”. In: KITTAY, Eva F.; CARLSON, Licia (Eds.). Cognitive Disability and Its Challenge to Moral Philosophy. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010. p. 1-25.; LOPES, 2019; 2022LOPES, Pedro. “Deficiência na cabeça: convite para um debate com diferença”. Horizontes Antropológicos, v. 28, p. 297-330, 2022.; Patrick MCKEARNEY; Tyler ZOANNI, 2018McKEARNEY, Patrick; ZOANNI, Tyler. “Introduction: for an anthropology of cognitive disability”. The Cambridge Journal of Anthropology, v. 36, n. 1, p. 1-22, 2018.), são centrais para a análise aqui proposta. Afinal, enquanto categoria diagnóstica que também é, a deficiência intelectual é comumente utilizada para se referir a um “atraso cognitivo” percebido ainda na infância e que impacta as “funções adaptativas” do sujeito. Logo, uma das especificidades de seu diagnóstico é vir acompanhado da presunção de um descompasso entre a idade cronológica e a “idade mental”, termo amplamente utilizado por profissionais da área da saúde e da educação para se referir a expectativas do que uma pessoa deveria fazer em determinada etapa de sua vida. Por essa razão, proponho que compreender os efeitos deste diagnóstico e esses pressupostos nas práticas de cuidado de minhas interlocutoras passa por examinar o modo como o capacitismo informa e espelha noções de adultez e infância.

A deficiência é sempre experenciada em relação e produzida a partir de seu binômio constitutivo: o corpo capaz (KAFER, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis: Indiana University Press, 2013.). Não por acaso, muitas das mães com quem trabalhei relatam terem percebido ainda na primeira infância uma “diferença” de seus filhos em relação a outras crianças da mesma idade, diferença essa relacionada aos chamados “marcos do desenvolvimento” como engatinhar, andar, falar etc. Ainda que nem sempre explicitado, o corpo capaz é a norma e a deficiência opera “infundindo indivíduos e populações com graus e qualidades variados de humanidade baseados em sua proximidade com a normatividade” (SMILGES, 2023SMILGES, Logan J. Crip Negativity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2023., p. 9, tradução minha). É enquanto envolta pela lógica capacitista que ordena o mundo em termos de corpos capazes e não capazes ou deficientes, conferindo aos últimos um estado diminuto de ser humano, que olharei para a experiência da deficiência intelectual e sua relação com a noção de adultez (CAMPBELL, 2009CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness. London: Palgrave Macmillian, 2009.; Anahí MELLO, 2016MELLO, Anahí Guedes de. “Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC”. Ciência e Saúde Coletiva, v. 1, n. 10, p. 3265-3276, 2016.). O binômio infância e adultez espelha a lógica capacitista e informa as práticas de cuidado de minhas interlocutoras, uma vez que, no caso da deficiência intelectual, a presunção de incapacidade está diretamente relacionada a expectativas sobre o que um adulto deve e pode fazer e como deve fazê-lo. É nesse sentido que o capacitismo atua também na produção de mães mais ou menos capazes, sendo a capacidade de maternar marcada pela tensão entre a cobrança de preservar o status de adultez dos filhos para garantir um cuidado não capacitista e a exigência de proteção e tutela em um mundo pouco preparado para lidar com suas diferenças e especificidades. Proponho, com isso, que a categoria adultez, tal qual a de capacidade, se aplica de forma hierárquica tanto na categorização de pessoas, quanto na avaliação do bom cuidado para adultos com deficiência intelectual.

Deficiência intelectual, capacitismo e cuidado materno

A Associação onde conheci Dione foi fundada na cidade de São Paulo por funcionários de uma instituição financeira no fim da década de 1980. Pais de pessoas com deficiência, eles se encontraram para dividir suas experiências e, diante da escassez de recursos para seus filhos, deram início à organização para atender às suas famílias. Com o passar do tempo, a iniciativa foi replicada por funcionários em outras localidades e hoje a Associação é uma instituição filantrópica que atende a comunidade em geral e atua em treze estados e no Distrito Federal. A diretoria nacional e conselhos regionais, contudo, ainda são compostos por funcionários do banco. Dada sua história e abrangência, a Associação participa de conselhos nacionais, estaduais e municipais sobre os direitos das pessoas com deficiência. Meu trabalho de campo foi realizado na sede do Rio Grande do Sul, a qual foi fundada em 1999. Nos anos de 2017 e 2018, ela atendia 200 famílias na cidade de Porto Alegre, a maioria sem qualquer relação com o banco, e oferecia aulas de judô, capoeira, musicoterapia, arteterapia, teatro, natação e esportes. Por ser uma das poucas instituições que oferecem atividades para adultos e pela política de assistência que faz com que o valor da mensalidade seja adequado à renda familiar mensal, a Associação atende pessoas com diferentes trajetórias e de diversos contextos socioeconômicos. Sua localização central também faz com que famílias de diferentes regiões da cidade participassem das atividades, em sua maior parte fazendo uso de transporte coletivo para chegar até o local.

Frequentar semanalmente a Associação permitiu que eu convivesse com as mães e seus filhos, principalmente com aquelas que esperavam enquanto eles realizavam aulas de judô e música às quintas-feiras à tarde ou realizavam esportes às sextas-feiras. De todos os alunos que participavam das atividades, apenas dois iam até a Associação sozinhos. Os demais iam acompanhados por adultos responsáveis por seus cuidados, o que significa dizer que a quase totalidade dos participantes era acompanhada por sua mãe, muitas das quais esperavam por eles durante toda duração das aulas (Helena FIETZ, 2023FIETZ, Helena. “Espera, cuidado e deficiência: as produções do tempo na trajetória de mães de adultos com deficiência intelectual”. Cadernos Pagu, n. 67, p. e236716, 2023b. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8673807 . Acesso em 05/07/2024.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
b). Na Associação, são promovidas também atividades voltadas aos familiares, como palestras, grupos de apoio e rodas de conversa, das quais tive a oportunidade de participar. Apesar de conviver também com seus filhos, foi com essas mulheres que passei a maior parte do tempo e são suas experiências que trago para este artigo. Em especial, daquelas com quem desenvolvi uma relação de maior proximidade, as quais tinham em comum o fato de serem oriundas das camadas médias ou baixas e serem, como já disse, as principais cuidadoras de seus filhos adultos com deficiência intelectual.

A Associação tem como missão trabalhar em prol da inclusão e promoção da autonomia e independência das pessoas com deficiência e também dar apoio a elas e às suas famílias. Essa “dupla missão” espelha aquilo que é exigido das mães cuidadoras: garantir que seus filhos tenham uma vida tão autônoma e independente quanto possível e, ao mesmo tempo, protegê-los e apoiá-los quando necessário. O trabalho dos profissionais da Associação é essencial nesta dinâmica, em especial o dos quatro responsáveis por sua gestão cotidiana: o professor de educação física e coordenador das atividades de lazer e esportes, a assistente social responsável pelo acolhimento dos assistidos e suas famílias, a assistente administrativa e a gerente regional. Além destes, a Associação conta com um número de professores e estagiários responsáveis por ministrar as atividades. Atentos aos mais recentes discursos sobre os direitos das pessoas com deficiência, os profissionais têm como prioridade de seu trabalho a promoção da “autonomia e independência” de seus alunos. Não adentrarei aqui na extensa discussão acerca das noções de autonomia e independência, mas destaco que, no dia a dia da Associação, elas aparecem como uma palavra composta “autonomia-e-independência”, referindo-se tanto ao direito a tomar suas próprias decisões, quanto à possibilidade de realizar atividades contando apenas com o apoio que fosse de fato necessário. Um dos obstáculos para tanto, segundo eles, são as mães-cuidadoras, as quais consideram muito superprotetoras . Por isso, parte central do apoio às famílias é atuar junto a elas e, em especial, às mães, para que “deixem seus filhos crescerem”.

Acusações de superproteção são comuns na vida de minhas interlocutoras e se referem a práticas que cerceiam as possibilidades de aprendizagem de seus filhos, produzindo dependências desnecessárias que os impedem de experenciarem suas vidas descolados de suas famílias. Em outras palavras, como ouvi de um dos profissionais certa vez, as mães acabam não deixando que seus filhos cresçam. Rafael, o coordenador das atividades de lazer e esportes, ilustrou essa necessidade com uma pequena anedota sobre uma mãe que afirmava que sua filha não conseguia calçar as meias sozinha. No entanto, quando lhe foi dada a oportunidade, a jovem o fez. Claro, lembrou Rafael, isso levou mais tempo do que costumava levar quando a mãe fazia por ela e algumas vezes ela acabava vestindo as meias ao avesso, mas ela não só aprendeu a calçá-las como agora o fazia corriqueiramente. Um exemplo bastante simples que falava sobre a necessidade de se reconhecer diferentes modos e tempos de realizar tarefas e, mais do que isso, não presumir que seus filhos seriam incapazes de fazê-las.

Ao apontar para a necessidade de que as mães reconhecessem a capacidade de seus filhos de realizarem tarefas cotidianas e valorizassem seus modos de fazê-lo, os profissionais da Associação discutam, ainda que não nestes termos, o capacitismo que muitas vezes impede a participação social de pessoas com deficiência. A pesquisadora Fiona K. Campbell (2001CAMPBELL, Fiona K. “Inciting Legal Fictions: Disability’s Date with Ontology and the Ableist Body of the Law”. Griffith Law Review, v. 10, n. 1, p. 42-62, 2001.; 2009) define capacitismo como “uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de self e corpo (o padrão corpóreo) que é projetado como o perfeito, típico da espécie e, desse modo, essencial e completamente humano. A deficiência, assim, é tida como um estado diminuto de ser humano” (CAMPBELL, 2001CAMPBELL, Fiona K. “Inciting Legal Fictions: Disability’s Date with Ontology and the Ableist Body of the Law”. Griffith Law Review, v. 10, n. 1, p. 42-62, 2001., p. 44, tradução minha). A lógica capacitista, por sua vez, organiza a sociedade em um sistema binário de corpos capazes e corpos não capazes ou menos capazes e, de modo semelhante ao que faz o racismo em relação à raça, faz com que a desvalorização da deficiência seja internalizada por todos, inclusive por pessoas com deficiência (Dan GOODLEY, 2009GOODLEY, Dan. “Foreword”. In: CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness. London: Palgrave Macmillian, 2009. p. ix-xii). Trata-se, em suma, de presumir a inferioridade e a incapacidade de pessoas em razão de sua deficiência e organizar a sociedade em termos do binômio capaz e incapaz. Uma ordenação social em que pessoas com deficiência são compreendidas enquanto menos pessoa, um estado menor de ser humano (CAMPBELL, 2009).

Dentro da lógica capacitista, a deficiência nada mais é do que aquilo que falta em relação a um corpo não deficiente. Como explica Campbell (2009CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness. London: Palgrave Macmillian, 2009.), a hierarquização e a subalternização de corpos e mentes que constituem a produção da deficiência enquanto “outro” se dão em relação a um “eu” (corpo e mente normativos) nunca explicitado. O “corpo capaz”, ou seja, “normal”, se constrói a partir da relação com aquele tido como deficiente, em um ordenamento repressivo e produtivo que determina o que corpos devem fazer e o como pessoas devem ser. A noção de capacidade não é explicitada ou tampouco fixa. Ainda assim, ela “atua como uma norma estrutural, informando culturas capacitistas” (SMILGES, 2023SMILGES, Logan J. Crip Negativity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2023., p. 4). Daí a necessidade de compreensão da dimensão política da deficiência e do questionamento sobre como o capacitismo atua enquanto produtor de um senso comum, quais caracterizações são naturalizadas e os efeitos destas na vida daqueles que experienciam a deficiência (KAFER, 2013KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis: Indiana University Press, 2013.). Afinal, a idealização e a valorização de certas capacidades em detrimento de outras, como a centralidade da autonomia e a independência para a constituição do sujeito moderno ideal (Nikolas ROSE, 2007ROSE, Nikolas. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty First Century. Princeton: Princeton University Press, 2007.; Emily MARTIN, 2007MARTIN, Emily. Bipolar Expeditions: mania and depression in American culture. Princeton: Princeton University Press, 2007.; Paul RABINOW; ROSE, 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. “O conceito de Biopoder Hoje”. Política & trabalho. Revista de Ciências Sociais, n. 24, p. 27-57, 2006.) são sempre situadas (Sunaura TAYLOR, 2017TAYLOR, Sunaura. Beasts of burden: animal and disability liberation. New York: New Press, 2017.).

Apesar do termo capacitismo não ter aparecido em nenhuma de nossas conversas, as mães com quem convivi na Associação compartilhavam diferentes situações em que experienciaram junto a seus filhos situações de violência e opressão. Era recorrente ouvir casos de locais que não podiam frequentar por não possuírem a estrutura necessária para receber seus filhos, festas para as quais não eram convidadas ou olhares que recebiam ao utilizar o transporte coletivo, por exemplo. Igualmente comum era se depararem com a presunção de incapacidade de seus filhos para realizarem atividades corriqueiras e até mesmo esperadas para pessoas de sua idade. Nestes casos, ao contrário da história compartilhada por Rafael, minhas interlocutoras agiam para combater o preconceito contra seus filhos. Algo que muitas vezes passava por apontar atitudes superprotetoras em outras mães com quem conviviam, tal qual se deu com Dione na cooperativa em que apresentara o filme que mencionei no início deste artigo.

Dione é uma mulher branca com cerca de 50 anos de idade, já foi dona de um restaurante, é atriz e trabalhou em uma ONG para crianças carentes na região periférica da zona sul de Porto Alegre, onde também mora. Após um casamento conturbado, divorciou-se do primeiro marido quando Raul, seu único filho, era apenas um bebê e acabou criando-o sozinha, ainda que contasse com algum auxílio de seus pais. À época em que nos conhecemos, Raul tinha 30 anos de idade. Ele é um homem alto, branco, que se locomove com facilidade e se comunica bem, com uma voz mais fina do que a maior parte dos homens de sua idade. Raul necessita de suporte para realizar algumas atividades cotidianas como fazer a barba, em razão de dificuldades de motricidade fina, ou atravessar a rua, por exemplo. Ainda na infância, fora diagnosticado com “retardo mental”, um diagnóstico recorrente entre meus interlocutores, e frequentou uma escola especial até completar vinte e um anos de idade. Ao atingir esta idade, teve que deixar o colégio, o que fez com que Dione criasse a já mencionada cooperativa para que “os jovens fossem produtivos e produtores para a sociedade e não ficassem lá jogados o dia todo”. Mais do que isso, ela esperava que as oficinas e as atividades oferecidas fizessem com que Raul e seus colegas “ficassem independentes, tivessem função, produzissem, tivessem mais autonomia e aprendessem as coisas”.

No entanto, segundo ela, muitos pais divergiam dessa visão e se opunham a mudanças simples, como pedir que na hora de almoço os jovens ficassem responsáveis por servirem seus pratos, comessem sem auxílio - ainda que fazendo mais bagunça do que quando os pais os ajudavam - e lavassem a louça após a refeição. A resistência de certos pais era vista por Dione como o resultado de mães que não queriam “deixar o filho crescer”. De modo semelhante ao apontado por Rafael, Dione afirmou: “toda mãe é superprotetora. Todas. Então, para aquelas mães, ter um filho assim é ganhar na loteria. Meu filho nunca vai sair de perto de mim. Nunca vai me deixar”. Segundo ela, muitas mães gostam que “o filho seja dependente”. As constantes divergências quanto ao que os filhos podiam ou deviam fazer fizeram com que Dione acabasse saindo da cooperativa.

Diante deste contexto, proponho ser fundamental compreender as práticas de mães de adultos com deficiência intelectual a partir de uma “política da deficiência”, ou seja, questionar como tais presunções e senso comum acerca da deficiência intelectual informam o cuidado materno. A presunção de incapacidade e inferioridade das pessoas com deficiência está no cerne do capacitismo. No caso da deficiência intelectual, elas estão ligadas à noção de uma diferença em relação a outras pessoas da mesma faixa etária a qual é compreendida enquanto um “atraso”. Como anteriormente mencionado, o reconhecimento desta diferença se dá ainda na primeira infância, quando as mães percebem que os tempos ou modos de fazer de seus filhos são outros em relação a crianças da mesma idade. Ao longo da vida, a ideia de atraso é constantemente reforçada pela noção de uma “idade mental” sempre inferior à idade cronológica. Foi comum, ao longo de minha pesquisa, perguntar a idade dos filhos e ouvir de suas mães colocações como “ele fez trinta e um anos, mas, assim, mentalmente, é oito ou nove”, em referência a frases que teriam ouvido de profissionais que consultavam, como pedagogas e psicólogas. A fala destes profissionais é marcante por explicitar o ideal de um progresso linear de desenvolvimento que faz com que em cada etapa da vida seja esperado que façamos algumas coisas e deixemos de fazer outras. Idealizações sobre o que um adulto deve fazer ou o que é uma criança são perpassadas pela noção de capacidade. As constantes comparações com esse “adulto ideal” reforçam a ideia de que seus filhos continuarão a ser sempre crianças e informam as práticas de cuidado materno, afinal, o tipo de “proteção” que se espera da mãe de uma criança em relação ao filho é diferente daquela de uma mãe de adulto.

Paradoxos da maternagem de adultos com deficiência intelectual

A chegada dos filhos à vida adulta causa certa confusão quanto ao que é esperado das mães em termos de cuidados para com seus filhos. Como agir enquanto promotoras de sua “autonomia-e-independência” e ao mesmo tempo garantir o bem-estar dos filhos adultos que necessitam de suporte para a realização de uma série de atividades? É uma suposta incongruência que reflete os modos como os binômios constitutivos “capacidade/incapacidade” e “adultez/infância” se atravessam e se fazem presentes no cotidiano das mães com quem trabalhei. No mesmo dia em que contou sobre a cooperativa e seu incômodo ao ver mães que não aceitavam que seus filhos crescessem, presumindo que eles seriam incapazes de realizar tarefas domésticas ou assistir a determinados filmes, por exemplo, Dione reclamou que seu atual marido a acusava de mimar o filho e tratá-lo como uma criança. Sua resposta para tal “insulto” foi afirmar que Raul era, sim, como uma criança e que cabia a ela protegê-lo. A fala, contrária a tudo aquilo que Dione dissera anteriormente, se deu quando contávamos o que ocorrera quando chegamos ao local do churrasco.

Naquela manhã, nos encontramos na casa de Maria, mãe de José, um jovem com síndrome de Down. Eles moram em uma “vila” localizada em um bairro central da cidade, que pode ser considerada perigosa para aqueles que não vivem lá. Quando já estávamos em sua casa, Margarete ligou avisando que ela e o filho Igor estavam em frente a uma loja e pediram que fôssemos buscá-los. Ela vive na Zona Sul da cidade e levou mais de uma hora para chegar até lá de ônibus. Além disso, como nos disse depois, antes foi até o posto de saúde pegar uma receita para Igor e, em seguida, até a Farmácia Popular retirar o remédio, o que fez com que se atrasasse. Igor é um homem autista com cerca de trinta anos de idade. Ele é branco, baixo, usa óculos e anda um pouco curvado. Ele costuma falar pouco e possui uma voz fina. Naquele dia, ele caminhava um pouco à nossa frente, enquanto íamos em direção à entrada da “vila”. Nisso, um carro em alta velocidade invadiu a calçada e bateu contra uma lixeira, e quase o atropelou. Ao contrário das pessoas ao seu redor, Igor não se moveu mesmo com o carro vindo em sua direção. Sua reação poderia ser fruto da falta de exposição a situações como essa, mas o comum, segundo sua mãe, é que, ao se deparar com circunstâncias que o deixam nervoso, ele fique parado, sem se comunicar ou se mexer. Por isso a mãe não deixa que ele ande por regiões da cidade que não conhece sem estar acompanhado e tampouco que fique sozinho em casa por muito tempo. Uma atitude que faz com que seja acusada por muitos, inclusive por seu psiquiatra, de ficar “muito em cima” do filho e o sufocar. Foi por concordar com a amiga, por pensar que Raul também precisa desta mesma proteção para se locomover pela cidade, que Dione categoricamente afirmou que o filho, um homem de trinta anos de idade, era, sim, uma criança. Algo que, segundo ela, era corroborado pelo fato de que Raul nunca iria terminar uma faculdade, casar-se ou ter filhos e por ainda precisar do auxílio da mãe para realizar certas tarefas. Raul, segundo ela, havia atingido seu limite de aprendizagem.

Dione, ao evocar a imagem do filho enquanto uma criança, está informada por uma divisão rígida entre o que é ser adulto e o que é ser criança, a qual é perpassada, como já mencionado, pela noção de capacidade. Não por acaso, o termo infantilização é comumente utilizado para se referir a práticas que fazem com que a opinião, desejo ou vontade de adultos com deficiência não sejam levadas a sério ou consideradas na tomada de decisões (LOPES, 2015LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2015. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Fernanda NUNES, 2014NUNES, Fernanda. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o campo da saúde. 2014. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.; Julian SIMÕES, 2014SIMÕES, Julian. Assexuados, libidinosos ou um paradoxo sexual? Gênero e sexualidade em pessoas com deficiência intelectual. 2014. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.; 2019). Termo este que reitera a ideia de que a criança é um adulto em formação e, por essa razão, incompleto e incapaz. As ciências sociais há muito tensionam esta ideia. O campo da antropologia da criança, por exemplo, questiona a divisão entre o mundo dos adultos e o das crianças e aponta para como essa pretensa separação reforça dicotomias e coloca a criança no lugar do “outro” em relação ao mundo adulto (Fernanda RIFIOTIS et al., 2021RIFIOTIS, Fernanda; RIBEIRO, Fernanda; COHN, Clarice; SCHUCH, Patrice. “Antropologia e as crianças: da consolidação de um campo de estudos aos seus desdobramentos contemporâneos”. Horizontes Antropológicos, ano 27, n. 60, p. 7-30, 2021.; Claudia FONSECA et al., 2018FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. “Prefácio”. In: FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt (Orgs.). Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 7-21.). Um adultocentrismo que acaba por universalizar a experiência da infância e retirar das crianças sua potência enquanto agente e sujeito de direitos. É evidente, contudo, que estas lógicas, ao serem produzidas e reproduzidas por práticas estatais e familiares de governança, geram efeitos (Clarice COHN, 2013COHN, Clarice. “Concepções de infância e infâncias: um estado da arte da antropologia da criança no Brasil”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 13, n. 2, p. 221-244, 2013.; Fernanda RIBEIRO, 2011RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. “Lealdades, silêncios e conflitos: ser um dos ‘grandes’ num abrigo para famílias”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 11, n. 1, p. 40-55, 2011.; Patrice SCHUCH et al., 2014SCHUCH, Patrice; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt; FONSECA, Claudia. “Infâncias e crianças: saberes, tecnologias e práticas”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 13, n. 2, p. 205-220, 2014.). Dentre estes, temos a ideia de que crianças, ou aqueles que ainda não atingiram a maioridade, devem ser mais protegidas e tuteladas (Philippe ARIÈS, 1978ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LCT, 1978.; Adriana VIANNA, 2002VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. 2002. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.; FONSECA et al., 2018). Ao mesmo tempo, tais concepções produzem e reproduzem a imagem do “adulto ideal”: o sujeito autônomo e independente, dotado de razão e volição, capaz de produzir, consumir e participar plenamente da sociedade. Tudo que se afasta desse “nós” adulto, ou a norma, se aproxima do “outro” criança.

Quando Dione fala sobre o filho atingir o seu limite de aprendizagem, está se referindo a expectativas do que um adulto deveria ser. Adulto é aquele considerado apto para assumir responsabilidades residenciais, profissionais, conjugais e familiares (Elaine MULLER, 2013MULLER, Elaine. “O conceito de transição e o curso de vida contemporâneo”. Revista Feminismos, v. 1, n. 3, 2013.). Como sabemos, nem todas as pessoas de 30 anos se casam, se formam em uma faculdade, têm um emprego que permita que se sustentem ou moram longe da casa de seus pais. Muitos, inclusive, jamais cumprirão estas etapas. Ainda assim, todos são considerados marcos de desenvolvimento ligados à vida adulta e, no caso da deficiência intelectual, o não cumprimento destes “marcos” é rapidamente compreendido enquanto uma incapacidade para fazê-lo. Como nos lembra o antropólogo Pedro Lopes (2015LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2015. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.), a idade cronológica é importante para pensarmos sobre corpos e mentes que fogem à norma. Segundo o autor, “o fato de que chegar aos 30 anos pode significar ocupar diferentes papéis em diferentes sociedades não pode elidir o fato de que, exatamente por isso, ter 30 anos deve corresponder a determinadas expectativas sociais” (LOPES, 2015LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2015. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil., p. 156). Etapas da vida são processos institucionais de sincronização e as expectativas de futuro a partir de trajetórias sempre situadas em determinado tempo-espaço (Jennifer JOHNSON-HANK, 2002JOHNSON-HANK, Jennifer. “On the Limits of Life Stages in Ethnography: Toward a Theory of Vital Conjunctures”. American Anthropologist, New Series, v. 104, n. 3, p. 865-880, 2002.) e a vida das pessoas comumente as transborda (Guita DEBERT, 1999DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP, 1999.). No entanto, apesar do consenso dentro das ciências sociais de que faixas etárias são construções sociais, e portanto relacionais, no senso comum, também no campo biomédico e, muitas vezes, da educação, elas são tidas como naturais, aquilo que é dado e autoevidente (FONSECA et al., 2018FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. “Prefácio”. In: FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt (Orgs.). Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 7-21.).

A transição para a vida adulta representa, portanto, um desafio para as famílias que devem mais uma vez reconfigurar suas expectativas e seu cotidiano. Após os 21 anos de idade, seus filhos devem deixar a escola e o número de serviços voltados ao público adulto é muito menor do que aquele voltado às crianças. Além disto, uma vez que a ideia de capacidade para o mundo laboral ou para vida independente, dois caminhos comuns a pessoas que chegam a fase adulta, está atrelada a um modelo de adulto ideal, pessoas com deficiência têm seu acesso a estas atividades dificultado. Como bem demonstra o trabalho da antropóloga Valéria Aydos (2016AYDOS, Valéria. “Agência e subjetivação na gestão de pessoas com deficiência: a inclusão no mercado de trabalho de um jovem diagnosticado com autismo”. Horizontes Antropológicos, v. 22, n. 46, p. 329-358, 2016.; 2021) ao acompanhar o cotidiano de dois jovens autistas ingressantes no mercado de trabalho, a falta de apoio necessário para o desenvolvimento de suas atividades laborais acarreta uma série de violências. Estas reforçam a presunção de incapacidade quando o que falta é justamente o suporte necessário para a realização de seu trabalho. De modo semelhante, o “morar sozinho” ou longe de suas famílias também é tido como uma realidade improvável por muitos em grande parte pela falta da infraestrutura adequada que permita que isso se dê (FIETZ, 2023FIETZ, Helena Moura. Construindo o Futuro, Provocando o Presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão da deficiência intelectual no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2023a.a).

A presunção de incapacidade é ao mesmo tempo causa e efeito da inacessibilidade e, no caso da deficiência intelectual, ela está especialmente associada à ideia de estas serem “eternas crianças”. Uma associação que, como disse, produz efeitos nas práticas de cuidado das mães. Afinal, como já apontado por Sara Ruddick (1995RUDDICK, Sara. Maternal Thinking: Toward a Politics of Peace. Boston: Beacon Press, 1995.) em seu clássico trabalho sobre a prática de maternar, são três as demandas principais para a criação de uma criança: a garantia de sua sobrevivência, a promoção de seu crescimento e desenvolvimento e a preparação e socialização desta criança para que ela seja aceita no mundo. Quando Dione e Rafael falam sobre mães que não deixam os filhos crescerem, estão apontando para uma “falha” destas mulheres quanto a estas duas últimas demandas. A presunção de incapacidade é também uma presunção de impossibilidade de crescimento e faz com que às pessoas com deficiência intelectual sequer seja dada a oportunidade de aprender com seus erros, de tentar encontrar o modo mais eficiente para realização de tarefas e de encontrar o tempo necessário para que desenvolvam certas habilidades e competências. Não podemos nos esquecer, contudo, da primeira demanda da maternidade, que é a proteção de seus filhos, e tampouco desconsiderar que, no caso da deficiência, a socialização das crianças está sendo feita para um mundo pouco disposto a conviver com suas diferenças (KITTAY, 1999KITTAY, Eva F. Love’s Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge, 1999.; 2019KITTAY, Eva F. Learning from My Daughter: The Value and Care of Disabled Minds. New York: Oxford University Press, 2019.).

Responsabilização materna, capacidade e o “Bom cuidado”

Ao estabelecer os parâmetros para o que significa ser adulto, o capacitismo, ao mesmo tempo que faz com que a adultez da pessoa com deficiência intelectual seja comumente percebida enquanto irrealizável, atua sobre as práticas de cuidado maternas, produzindo mães mais ou menos capazes. A familiarização e a privatização do cuidado, fruto de políticas de austeridade colocadas em prática em diferentes países desde pelo menos a década de 1990, transferiram ou consolidaram a família enquanto responsável pela provisão de cuidados, em especial daqueles considerados mais dependentes (DEBERT, 1999DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP, 1999.; Cintia Liara ENGEL, 2022ENGEL, Cíntia Liara. “Hiperprivatização do cuidado: projetos de cuidado das demências e seus efeitos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e79285, 2022.; Camila FERNANDES, 2017FERNANDES, Camila. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. 2017. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.; FONSECA, 2012FONSECA, Claudia. “Mães ‘abandonantes’: fragmentos de uma história silenciada”. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 1, 2012a.a; FONSECA, 2012FONSECA, Claudia. “Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas ‘alternativos’ de educação para a primeira infância”. In: FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; SANDRINE, Paula (Orgs.). Ciências na Vida: antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012b.b; YAZICI, 2012YAZICI, Berna. “The Return to the Family: Welfare, State, and Politics of the Family in Turkey”. Anthropological Quarterly, v. 85, n. 1, p. 103-140, 2012.). Em se tratando do cuidado infantil, tais políticas de austeridade centralizaram ainda mais o papel da mãe, sendo esta responsabilizada, inclusive, pelo desenvolvimento cognitivo de seus filhos, em especial na primeira infância (FONSECA, 2012b). Fortemente atreladas a marcadores de raça e classe, as práticas maternas de cuidado infantil estão constantemente sob o escrutínio de terceiros - sejam familiares, vizinhos ou mesmo o estado - que avaliam sua capacidade enquanto mãe. Também uma forma de controle de corpos femininos, as moralizações em torno do cuidado materno informam políticas e legislações que, por sua vez, reforçam a ideia do que constitui uma “boa mãe”. Além disso, elas produzem categorias de maternidade não ideais atreladas ao uso da violência, à negligência ou ao abandono, por exemplo, as quais afetam especialmente mulheres negras e oriundas de regiões periféricas do país (FERNANDES, 2017). O equilíbrio entre promover o desenvolvimento de seus filhos de forma adequada e protegê-los é uma constante da prática de maternar e sua busca se dá em meio a constantes julgamentos e vigilância.

A relação de cuidado entre mãe e filho é uma que se estende ao longo do tempo, o que faz com que seja marcada por reconfigurações de práticas e expectativas. A necessidade de proteção vai diminuindo na medida em que o filho se mostra mais preparado e socializado no mundo do qual faz parte. É nesse sentido que proponho que o capacitismo, ao informar a noção de adultez ideal, produz também a ideia de uma mãe capaz, em especial ao falarmos de adultos com deficiência intelectual. Afinal, nesses casos, o capacitismo opera também ao equiparar a experiência de pessoas com deficiência intelectual àquela de crianças. Uma equiparação que se dá sempre em relação a esta adultez idealizada e que é mais facilmente traduzida pela já mencionada noção de “idade mental” à qual seus filhos são constantemente impostos e que os coloca em uma posição social particular em termos de tutela e cuidados necessários para sua sobrevivência e desenvolvimento.

Tal equiparação é muitas vezes complicada pelo fato de que, por vezes, os desejos e as vontades dos filhos podem, sim, colocá-los em risco. De modo semelhante à mãe de Jack, o menino do filme, Miriam, uma mulher branca, na casa dos 50 anos, casada e mãe de dois filhos e que também participava de nossos jogos de vôlei semanais, lidava diariamente com este dilema. Stefani, que à época tinha 25 anos de idade, é uma mulher cheia de energia e sociável, que adora participar de atividades com muitas pessoas e realizar atividades esportivas na Associação. Após ter sofrido três Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) aos sete anos de idade, a jovem foi diagnosticada com a Síndrome de Moyamoya. As restrições de locomoção causadas pelos AVCs, que também resultaram em danos cerebrais que causam dificuldades de aprendizagem e comunicação, não a impedem de realizar aulas de judô, capoeira e natação, ainda que a seu tempo e de sua forma. No entanto, a gravidade da Síndrome faz com que Stefani esteja em risco constante de desenvolver novos AVCs e vir a falecer ou ficar com novas e, talvez, mais graves sequelas. Miriam contou que, ao longo dos anos, já viu a filha “morrer” três vezes em seus braços, porém conseguiu ajuda médica a tempo para que nada pior tivesse acontecido.

Mesmo não frequentando mais a escola em razão da idade, Stefani realiza atividades como natação, capoeira, judô, esportes e arteterapia em diferentes organizações pelo menos um turno por dia, cinco dias por semana. Por morarem na periferia de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre conhecida pelos altos índices de violência urbana, Miriam a acompanha em todas as atividades, ainda que isso signifique ficar mais de duas horas no transporte coletivo. Além disso, a jovem participa dos acampamentos de inverno e verão da Associação sem a presença de Miriam, e já teve diversos namorados que conheceu nas tantas atividades das quais faz parte. Stefani é muito sociável e adora conversar com todos que encontra. Faz amigos facilmente e está sempre disposta a ajudar seus colegas nas atividades quando estes enfrentam dificuldade na realização dos exercícios propostos. Nas festas das quais participei, ela era sempre a primeira a ir para a pista de dança e a última a sair. Para Miriam, garantir que a filha tenha a oportunidade de realizar as atividades e experenciar a intensa vida social de que tanto gosta é parte central de seu papel de mãe e cuidadora. No entanto, isso vem com alguns riscos inerentes à condição da jovem. O risco de ter novos AVCs, por exemplo, é grande, caso bata a cabeça. A filha está ciente desse fato, já que, desde pequena, a mãe a ensinou a ter o máximo de cuidado possível. Miriam, contudo, considera que as relações de amizade, as experiências e a satisfação de Stefani valem o risco. Mesmo sendo a vontade da filha, esta decisão é alvo de muitas críticas por parte de amigos e parentes que entendem que o papel de uma “boa mãe” seria proteger a filha, mesmo que isso signifique ignorar seu desejo.

Ao falar sobre as constantes acusações e interpelações sobre o modo como cuida da filha, Miriam é enfática ao afirmar que tem que deixá-la viver. Como me disse uma vez, enquanto conversávamos sobre isso: “Senão, de que adianta? Ficar sempre presa, sem conhecer nada, sem fazer nada. Ela tem que viver, tem que aproveitar, tem que fazer as coisas dela”. Pensar que cabe à mãe decidir o que o filho já adulto pode ou não fazer é uma especificidade da deficiência - e em especial da deficiência intelectual - que dialoga diretamente com a confusão provocada pelos modos como as noções de adultez e infância são mobilizadas enquanto categorias de acusação para essas mulheres. Afinal, sua capacidade de maternar passa por ora garantir a maior “autonomia-e-independência” de seus filhos, garantindo seus status de adultez, ora por garantir sua proteção e desenvolvimento, uma exigência que aproxima sua experiência materna a de mães de crianças. Uma aproximação que é, muitas vezes, também, legal. Assim como Stefani, é comum que pessoas com deficiência intelectual sejam declaradas “civilmente incapazes” após um extenso processo judicial de interdição civil no qual são avaliadas por médicos peritos e um juiz de direito que as consideram inaptas para tomarem certas decisões e gerirem aspectos de sua vida (SIMÕES, 2019SIMÕES, Julian. Dos Sujeitos de Direitos, das Políticas Públicas e das Gramáticas Emocionais em Situações de Violência Sexual Contra Mulheres com Deficiência Intelectual. 2019. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.; 2022). Miriam é, também, curadora de sua filha, ou seja, responsável legal pela tomada de decisões sobre sua vida, tratamentos médicos, finanças, entre outros. Uma medida legal que reflete e produz a lógica capacitista que norteia nossa sociedade e que, ao mesmo tempo, gera uma responsabilidade sobre essas mães que, se forem consideradas “incapazes” de realizar tal gestão, podem sofrer sanções legais e, em última instancia, até mesmo perder a guarda de seus filhos.

A lógica capacitista que permeia nossa sociedade atravessa minhas interlocutoras de maneira distinta da que o faz na vida de seus filhos. O que está em jogo é sua “capacidade de maternar” em uma sociedade onde o capacitismo atravessa todas as nossas relações e em que a interdependência não é reconhecida ou valorizada. Daí o aparente paradoxo entre ser ao mesmo tempo responsável pela proteção dos filhos em um mundo comumente hostil a suas diferenças e agir enquanto promotoras de seu desenvolvimento, o qual é também medido a partir de métricas pautadas pelo ideal da vida adulta. É por essa razão que desmantelar a presunção de incapacidade passa não apenas pelo reconhecimento da possibilidade da adultez para pessoas com deficiência intelectual, mas, principalmente, por contestar os pressupostos atrelados à rigidez com que compreendemos o binômio adultez/infância.

A confusão causada por essa divisão é constante na vida de minhas interlocutoras, como espero ter deixado claro ao longo deste texto. Como me disse uma das mães ao ouvirmos Rafael falar sobre importância de as famílias atuarem pela promoção da autonomia e independência das pessoas com deficiência, ela sabia que muitas pessoas menosprezavam a filha em razão de sua deficiência. Mesmo a avó de Gabriela, que fora sua principal cuidadora até os 16 anos de idade para que a mãe pudesse trabalhar, a impedia de ajudar com as tarefas domésticas, apesar da insistência da jovem. Com ar de indignação, a mãe disse que sabia que Gabriela sempre conseguia fazer aquilo a que se propunha, ainda que, algumas vezes, levasse mais tempo para aprender. Tanto que, quando parou de trabalhar fora de casa e pôde passar mais tempo com ela, a jovem passou a ter mais responsabilidades, dentre estas a que sempre desejou: alimentar suas cachorras. A fala daquela mãe reforçava a necessidade de reconhecer que, ainda que de modo diferente do que esperamos, pessoas com deficiência intelectual podem realizar as tarefas a que se propõem, se contarem com o auxílio necessário para fazê-lo. Mas a conversa não terminou ali. Olhando para a filha que estava sentada à nossa frente, a mãe continuou falando que, para comemorar os 29 anos de idade, ela pedira que sua festa de aniversário fosse da Fiona, personagem de um desenho da Disney. Olhando para baixo, a mãe disse: “quando a gente acha que deu uma melhorada, que cresceu, ela pede as princesas de criança. Ano passado foi da Frozen e eu fiquei feliz, porque já é de menina mais velha, mas aí esse ano voltou pra Fiona. Fazer o quê?”. Assim como Gabriela, muitos dos adultos com quem convivi não performavam uma adultez idealizada, o que não os impedia de realizar outras atividades consideradas “coisas de adulto”. O mesmo jovem que tivera uma experiência de trabalho significativa, por exemplo, ainda acreditava em Papai Noel, enquanto outra mulher com quase 30 anos de idade adorava desenhos da Disney e tinha um longo relacionamento amoroso com um homem da mesma idade que também frequentava a Associação.

Permitir que os filhos tenham contato com filmes, personagens e situações que muitos consideram “inadequados” por equipará-los a crianças é fundamental e requer um esforço e, muitas vezes, provoca conflitos, como foi o caso de Dione na cooperativa em que trabalhou. Respeitar os desejos dos filhos e suas escolhas, contudo, passa também por aceitar que algumas vezes eles escolherão atividades que não são condizentes com aquilo que o senso comum julga ser adequado para um adulto. A tensão entre a proteção e a superproteção se faz constante nas práticas de cuidado de minhas interlocutoras em grande medida pelos modos como o capacitismo opera ao tornar inimagináveis formas de ser adulto que desafiem o senso comum ou expectativas idealizadas. Daí a importância de não equiparar aquele gosto ou comportamento considerado infantil a uma suposta incapacidade para realização de diferentes tarefas atribuídas à vida adulta, como trabalhar, morar sozinho, relacionar-se romântica ou sexualmente, por exemplo. Noções rígidas do que é ser adulto hierarquizam corpos e embasam nossos critérios de capacidade. Logo, ao mesmo tempo que impedem o acesso de corpos e mentes que desafiam estes critérios a determinados espaços, os colocam em uma posição de menor valor justamente por não performarem a adultez por meio da participação nestes espaços ou pela realização de atividades atribuídas a pessoas adultas. Em outras palavras, o pretenso descompasso entre a idade cronológica e a “idade mental” de pessoas com deficiência intelectual é produzido por lógicas tão abstratas quanto irreais. Ainda assim, ele informa as práticas de cuidado de minhas interlocutoras de forma bastante concreta, fazendo com que sejam constantemente julgadas enquanto mães mais ou menos capazes.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, centrei minha análise nas práticas de cuidado materno de adultos com deficiência intelectual e sua relação com a lógica capacitista e os binômios capacidade/incapacidade e adultez/infância enquanto lugar privilegiado para analisar a tensão entre proteção e superproteção. A proposta é olhar para o problema do capacitismo a partir de sua ontologia, para o que embasa nossos critérios de capacidade (CAMPBELL, 2009CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness. London: Palgrave Macmillian, 2009.), e perguntar de que modos a noção de capacidade atua enquanto norma estruturante (SMILGES, 2023SMILGES, Logan J. Crip Negativity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2023.). Neste sentido, destaco três maneiras como o capacitismo atua na vida de pessoas com deficiência intelectual e suas famílias. Primeiro, ao fazer crer que a não realização de certas etapas ou ciclos de vida é fruto da deficiência enquanto condição de diferença física e mental e não das características específicas de cada sujeito, de suas famílias e dos diferentes contextos históricos, sociais e econômicos em que vivem. Segundo, por meio de barreiras que impedem o acesso e a participação social de pessoas com deficiência. E por fim, fazendo com que um “futuro normativo” não seja sequer imaginável para pessoas com deficiência e, ao mesmo tempo, impedindo que futuros que fogem a este modo normativo de experienciar o mundo sejam tidos como menos desejáveis ou sequer possíveis.

É nesse sentido que, além de garantir a possibilidade de estar no mundo de forma autônoma e independente a partir da criação e manutenção das infraestruturas e apoios necessários para tanto, é importante olhar para a categoria adultez enquanto restritiva, limitante, e que se aplica de forma hierárquica na categorização de pessoas. A sociedade é capacitista com todos aqueles que não performam a adultez ideal. Ainda que não tenha sido o foco deste artigo, marcadores de classe, raça, gênero e sexualidade também informam esta hierarquização de corpos. Repensar o que significa ser um adulto ou uma criança é necessário para não reproduzirmos também violências e opressões para além da deficiência. O que proponho é que tal idealização e categorização se fazem ainda mais evidentes no caso da deficiência intelectual justamente pela ideia de um descompasso entre a idade cronológica e habilidades e capacidades esperadas de pessoas daquela faixa etária. Uma presunção que é informada pela lógica capacitista que desvaloriza pessoas com deficiência, mas que também a produz. Algo que, como argumentei ao longo deste texto, tem efeito direto sob as práticas de cuidado para essa população.

Pensar sobre as possibilidades de saída dos filhos das amarras da superproteção é algo que começa a se desenhar para muitas de minhas interlocutoras, algo conectado aos avanços dos direitos das pessoas com deficiência e sua maior participação social. No entanto, elas muitas vezes se veem limitadas por concepções de bom cuidado atreladas a classificações binárias e reforçadas por noções de “idade mental” ou expectativas sobre o que um adulto deveria fazer. A chegada da vida adulta e as tantas formas que ela pode assumir trazem consigo novas descobertas, desafios, limitações e desenvolvimentos que não cabem em ideias prontas sobre o que e como um adulto deve ser, no que um adulto deve acreditar, do que deve gostar. Definir modos de perfomar a adultez é contraprodutivo e apaga a multiplicidade de modos de estar no mundo. Isso é ainda mais grave no caso da deficiência intelectual, uma vez que a não performance de certos marcos de desenvolvimento é atrelada à presunção de incapacidade que impede sua participação social.

Para além de reconhecer a necessidade de apoio e cuidados para a realização de atividades e, desse modo, valorizar a interdependência enquanto característica universal dos seres vivos, a diferença cognitiva requer um segundo passo que pode ser mais difícil de conciliar com a noção de “adulto”. Isso porque, ainda que muitas vezes seja de fato a falta de incentivo para que tenham acesso a práticas, ações ou entretenimento que condizem com sua idade cronológica, outras tais práticas ou gostos de fato não lhes apetecem. Noções rígidas e fixas do que é ser um adulto nos impedem de conceber as múltiplas formas de sê-lo como homens e mulheres que, por exemplo, gostam de princesas da Disney, preferem filmes infantis ou necessitam de auxílio para contar dinheiro, fazer a barba ou chegar até seu local de trabalho, e também se relacionam afetiva e sexualmente com outros adultos e exercem um ofício que lhes garanta alguma remuneração, tomam decisões sobre o que querem ou não fazer. Isso acaba por colocá-los em um lugar de liminaridade que faz com que, na maior parte das vezes, não lhes seja dado o reconhecimento de suas vontades ou não lhes sejam oferecidas as condições necessárias para que as exerçam. Uma realidade de violência e segregação que acaba por gerar riscos reais a seu bem-estar e, por vezes, à sua segurança e à sua sobrevivência. Ao estabelecer os parâmetros para o que significa ser adulto, o capacitismo faz com que a adultez da pessoa com deficiência intelectual seja percebida enquanto irrealizável ao mesmo tempo que atua sobre as práticas de cuidado maternas produzindo mães mais ou menos capazes.

Referências

  • ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família Rio de Janeiro: LCT, 1978.
  • AYDOS, Valéria. “Agência e subjetivação na gestão de pessoas com deficiência: a inclusão no mercado de trabalho de um jovem diagnosticado com autismo”. Horizontes Antropológicos, v. 22, n. 46, p. 329-358, 2016.
  • AYDOS, Valéria. “Construindo o ‘bom trabalhador’: inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho”. Etnográfica, v. 25, n. 2, p. 289-314, 2021.
  • CAMPBELL, Fiona K. “Inciting Legal Fictions: Disability’s Date with Ontology and the Ableist Body of the Law”. Griffith Law Review, v. 10, n. 1, p. 42-62, 2001.
  • CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness London: Palgrave Macmillian, 2009.
  • COHN, Clarice. “Concepções de infância e infâncias: um estado da arte da antropologia da criança no Brasil”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 13, n. 2, p. 221-244, 2013.
  • DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e reprivatização do envelhecimento São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP, 1999.
  • ENGEL, Cíntia Liara. “Hiperprivatização do cuidado: projetos de cuidado das demências e seus efeitos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e79285, 2022.
  • FERNANDES, Camila. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado 2017. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
  • FIETZ, Helena Moura. Construindo o Futuro, Provocando o Presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão da deficiência intelectual no Brasil São Paulo: Hucitec, 2023a.
  • FIETZ, Helena. “Espera, cuidado e deficiência: as produções do tempo na trajetória de mães de adultos com deficiência intelectual”. Cadernos Pagu, n. 67, p. e236716, 2023b. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8673807 Acesso em 05/07/2024.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8673807
  • FONSECA, Claudia. “Mães ‘abandonantes’: fragmentos de uma história silenciada”. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 1, 2012a.
  • FONSECA, Claudia. “Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas ‘alternativos’ de educação para a primeira infância”. In: FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; SANDRINE, Paula (Orgs.). Ciências na Vida: antropologia da ciência em perspectiva São Paulo: Terceiro Nome, 2012b.
  • FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. “Prefácio”. In: FONSECA, Claudia; MEDAETS, Chantal; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt (Orgs.). Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 7-21.
  • GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. “Cognitive Disability: Towards an Ethics of Possibility”. The Cambridge Journal of Anthropology, v. 36, n. 1, p. 113-119, 2018.
  • GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. “Disability/Anthropology: Rethinking the Parameters of the Human”. Cultural Anthropology, v. 61, supplement 21, 2020.
  • GOODLEY, Dan. “Foreword”. In: CAMPBELL, Fiona K. Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness London: Palgrave Macmillian, 2009. p. ix-xii
  • JOHNSON-HANK, Jennifer. “On the Limits of Life Stages in Ethnography: Toward a Theory of Vital Conjunctures”. American Anthropologist, New Series, v. 104, n. 3, p. 865-880, 2002.
  • KAFER, Alison. Feminist, Queer, Crip Indianapolis: Indiana University Press, 2013.
  • KITTAY, Eva F. Learning from My Daughter: The Value and Care of Disabled Minds New York: Oxford University Press, 2019.
  • KITTAY, Eva F. Love’s Labor: Essays on Women, Equality and Dependency New York: Routledge, 1999.
  • KITTAY, Eva F.; CARLSON, Licia. “Introduction: Rethinking Philosophical Presumptions in Light of Cognitive Disability”. In: KITTAY, Eva F.; CARLSON, Licia (Eds.). Cognitive Disability and Its Challenge to Moral Philosophy Chichester: Wiley-Blackwell, 2010. p. 1-25.
  • LOPES, Pedro. “Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tronar”. Anuário Antropológico, v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019.
  • LOPES, Pedro. “Deficiência na cabeça: convite para um debate com diferença”. Horizontes Antropológicos, v. 28, p. 297-330, 2022.
  • LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual” 2015. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
  • MALZIEU, Mathias; BERLA, Stéphane (Direção). Jack e a mecânica do coração França, 2013. 92 minutos.
  • MARTIN, Emily. Bipolar Expeditions: mania and depression in American culture Princeton: Princeton University Press, 2007.
  • McKEARNEY, Patrick; ZOANNI, Tyler. “Introduction: for an anthropology of cognitive disability”. The Cambridge Journal of Anthropology, v. 36, n. 1, p. 1-22, 2018.
  • MELLO, Anahí Guedes de. “Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC”. Ciência e Saúde Coletiva, v. 1, n. 10, p. 3265-3276, 2016.
  • MULLER, Elaine. “O conceito de transição e o curso de vida contemporâneo”. Revista Feminismos, v. 1, n. 3, 2013.
  • NUNES, Fernanda. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o campo da saúde 2014. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
  • RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. “O conceito de Biopoder Hoje”. Política & trabalho. Revista de Ciências Sociais, n. 24, p. 27-57, 2006.
  • RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. “Lealdades, silêncios e conflitos: ser um dos ‘grandes’ num abrigo para famílias”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 11, n. 1, p. 40-55, 2011.
  • RIFIOTIS, Fernanda; RIBEIRO, Fernanda; COHN, Clarice; SCHUCH, Patrice. “Antropologia e as crianças: da consolidação de um campo de estudos aos seus desdobramentos contemporâneos”. Horizontes Antropológicos, ano 27, n. 60, p. 7-30, 2021.
  • ROSE, Nikolas. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty First Century Princeton: Princeton University Press, 2007.
  • RUDDICK, Sara. Maternal Thinking: Toward a Politics of Peace Boston: Beacon Press, 1995.
  • SCHUCH, Patrice; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt; FONSECA, Claudia. “Infâncias e crianças: saberes, tecnologias e práticas”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 13, n. 2, p. 205-220, 2014.
  • SIMÕES, Julian. Assexuados, libidinosos ou um paradoxo sexual? Gênero e sexualidade em pessoas com deficiência intelectual 2014. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.
  • SIMÕES, Julian. Dos Sujeitos de Direitos, das Políticas Públicas e das Gramáticas Emocionais em Situações de Violência Sexual Contra Mulheres com Deficiência Intelectual 2019. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.
  • SMILGES, Logan J. Crip Negativity Minneapolis: University of Minnesota Press, 2023.
  • TAYLOR, Sunaura. Beasts of burden: animal and disability liberation New York: New Press, 2017.
  • VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento 2002. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
  • YAZICI, Berna. “The Return to the Family: Welfare, State, and Politics of the Family in Turkey”. Anthropological Quarterly, v. 85, n. 1, p. 103-140, 2012.
  • 1
    Este artigo é fruto de minha tese de Doutorado (2020), “Construindo Futuros, Provocando o Presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão da deficiência intelectual no Brasil”, publicada como livro pela Editora Hucitec (2023). A pesquisa foi realizada enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e financiada pela CAPES, a quem sou grata. Agradeço aos colegas Cíntia Engel e Lucas Besen pelas leituras de versões anteriores deste artigo, bem como às pareceristas anônimas e às editoras deste dossiê temático pelas valiosas contribuições ao texto.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    FIETZ, Helena Moura. “Fazer adulto: capacidade e ambiguidades do cuidado materno na deficiência intelectual”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e101265, 2024
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2024
  • Aceito
    27 Jul 2024
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br