Open-access Construindo o 14º Congresso Mundos de Mulheres

O Dossiê “Mundos de Mulheres 2021: pensamentos feministas Afro-Moçambicanos” foi motivado pela transição da organização da série de eventos Mundos de Mulheres, que veio da Índia para sua 13ª edição na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2017, fazendo sua travessia para a Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, em 2021.1 É, portanto, mais um elemento das relações históricas e institucionais que redundaram no 14º Congresso Mundos de Mulheres. Essa relação intercontinental, apesar dos seus diferentes marcadores sociais, tem em comum a colonização portuguesa e o uso de idiomas semelhantes. A possibilidade de construir um “Corredor de Saberes” nos desafia a estabelecer interações com experiências situadas e a contribuir com deslocamentos na ordem da produção do conhecimento brasileiro (Vera GASPARETTO, 2019).

O Dossiê integra um conjunto de discussões sobre o pensamento feminista africano promovido pela Revista Estudos Feministas (REF) ao longo de 2019. Logo, tem o compromisso com a projeção dos feminismos africanos, particularmente moçambicanos, e a circulação de suas/seus teóricas/os e ativistas (Isabel CASIMIRO, 2014; Ana LOFORTE, 2003; Amina MAMA, 2002). Visibiliza, com isso, produções sobre temas e realidades vividas pelas mulheres e pensadas por acadêmicas e acadêmicos, sendo esta uma característica dos estudos de gênero moçambicano. Os homens pesquisadores agregam olhares, contribuindo para a ampliação da equidade de gênero nas relações sociais e no âmbito do conhecimento.

Em seu conjunto, o Dossiê contribui para uma história das mulheres ainda invisibilizadas, a ser contada, de um território historicamente exotizado, ignorado, colocado nas margens da produção de conhecimento hegemônico (Ifi AMADIUME, 2001; CASIMIRO, 2014; MAMA, 2002, 2011; Oyèrónkẹ́ OYĚWÙMÍ, 2004). Abrange reflexões sobre especificidades do pensamento feminista africano e anuncia saberes outros, que interagem na produção acadêmica, na realidade local, em seus coletivos e nas ações políticas (FÓRUM MULHER, [s.d.]). Pode ser considerado um espaço de partilha de conhecimentos interdisciplinares na construção de um “Corredor de Saberes” que reafirma redes, projetos acadêmicos, institucionais, políticos e afetivos em trânsito. Do mesmo modo, possibilita problematizar como nos relacionamos com as similitudes, mas, acima de tudo, com as diferenças e as diversidades dos movimentos feministas e de mulheres africanos, bem como suas produções, que desestabilizam nossas leituras sobre o continente e desafiam a um outro olhar, para além de um território de crises, conflitos e catástrofes, e sim como um lugar de existências e resistências (Joaquim NHAMPOCA, 2016; CASIMIRO, 2014; LOFORTE, 2004).

Outro motivo que nos levou a propor este Dossiê é a tímida visibilidade do campo de gênero e feminismo em África/Moçambique no âmbito da academia brasileira. As publicações são incipientes, figuram a partir desse século e timidamente circulam nos últimos 10 anos, sem grandes projeções que incluam o ativismo e a produção de saberes outros para além do espaço acadêmico (GASPARETTO, 2019). Nesse sentido, o Dossiê, além de pesquisas, congrega três Manifestos,2 oriundos da ação política das mulheres, apontando para metodologias de luta dos diferentes coletivos. A existência de ações de resistências e construções de eventos, colaborações e lutas comuns entre os movimentos sociais e sindicais tornou-se uma presença no cenário moçambicano nos últimos anos, incluindo também os movimentos feministas como a rede Fórum Mulher (FM), o Fórum de Mulheres Rurais (FOMMUR), a Associação Sócio-Cultural Horizonte Azul (ASCHA), a Women and Law in Southern Africa Research and Education Project (WLSA) Moçambique e a Marcha Mundial de Mulheres (MMM), que tem sua sede internacional em Moçambique (FÓRUM MULHER, [s.d.]).

De modo geral, os textos asseguram o debate sobre as trajetórias políticas com a participação das mulheres tanto em Moçambique como em Cabo Verde, como os movimentos de mulheres e feministas estabeleceram compromissos com a participação das mulheres no espaço público; a denúncia a todas as formas de violências; um olhar brasileiro sobre os estudos de gênero em Moçambique. A proposta do Dossiê enfatiza os saberes e realidades de Moçambique, mas se abriu a pesquisas de outros contextos de África, o que nos trouxe também contribuições de Cabo Verde. Para tanto, 10 textos integram o Dossiê, organizados em dois momentos. No primeiro, pesquisas sobre o contexto e a realidade em África, a partir de leituras feministas e de gênero, reúnem diferentes temáticas que trazem problemáticas importantes, mas também apontam perspectivas e revelam a agência das mulheres. Emergem temas como violências diversas, uniões forçadas (ou casamentos prematuros), feminização do HIV/SIDA, assédios, sexualidades, direitos sexuais e reprodutivos, assim como ativismos, luta pela terra, participação política, resistências cotidianas, participação na luta armada e a luta por uma outra academia, com espaço para gênero, com mulheres nas áreas exatas e sem assédios e violências.

No segundo momento são trazidos três Manifestos e uma entrevista, que expressam o ativismo e a ação política das mulheres em Moçambique, marcada por resistências históricas e atuais a partir da organização de movimentos de mulheres e feministas, enfocando a produção de conhecimentos da rede FM, do FOMMUR e da ASCHA. A entrevista com a docente e pesquisadora da Universidade Eduardo Mondlane, Isabel Maria Casimiro, realizada por Vera Gasparetto, encerra o Dossiê, apresentando um panorama atual do movimento de mulheres e feministas, bem como dos estudos feministas no contexto de Moçambique. Optamos por manter os textos conforme sua origem: o português de Moçambique e de Cabo Verde.

No artigo “Da autonomia do Fórum Mulher na arena pública moçambicana”, o autor Orlando Nipassa faz uma revisão de literatura para tratar de denúncias de casos de violência contra a mulher, incluindo a mulher idosa, na perspectiva do quanto as desigualdades sociais vividas ao longo de suas vidas são causadas pela intersecção de fatores ligados à pobreza e desigualdade de gênero.

No trabalho intitulado “Militantes invisíveis: as cabo-verdianas e o movimento independentista (1956-1974)”, Ângela Coutinho escreve a partir da consulta de diversos arquivos e da realização de entrevistas. Ela reconstrói trajetórias e analisa o quanto foi ativa a participação de mulheres no movimento independentista em Cabo Verde, ainda que tem sido ocultada na história da independência, conquistada em 1975.

O trabalho coletivo escrito por Solange Rocha, Evandro Alves Barbosa Filho e Isabel Maria Alçada Padez Cortesão Casimiro, “Catanas contra o neoliberalismo-patriarcal em tempos de Aids”, analisa a articulação das relações de classe, raça e gênero na história de Moçambique pós-independência para produzir uma vulnerabilidade estrutural das mulheres em relação ao vírus da imunodeficiência humana (HIV). Parte da teoria social critica e utiliza discursos produzidos por políticas governamentais, relatórios de ONGs nacionais e internacionais, pesquisas acadêmicas e outros.

Soma-se a essa reflexão o artigo “Mulher moçambicana: cultura, tradição e questões de género na feminização do HIV/SIDA”, apresentado por Hélio Bento Maúngue, que reflete sobre as experiências vivenciadas por 20 mulheres pobres e infectadas pelo vírus do HIV e como elas estruturam o seu cotidiano no contexto das relações sociais que estabelecem, de modo a superar obstáculos, desafios e enfrentamentos à feminização do HIV e SIDA.

A necessária discussão sobre “A mulher em cursos de ciências, tecnologia, engenharia e matemática no ensino superior moçambicano” é uma escrita coletiva de Amália Alexandre Uamusse, Eugénia Flora Rosa Cossa e Tatiana Kouleshova. O estudo objetiva estimular a reflexão sobre as diferenças de gênero nos cursos de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM), identificando as principais causas e propondo ações de intervenção para promover o acesso e maior participação de raparigas e mulheres, a partir de dados documentais e revisão de literatura.

“O Campo dos Estudos de Gênero em Moçambique/África” é o artigo apresentado por Vera Gasparetto, a partir de análise de documentos, entrevistas e revisão de literatura. Seu objetivo é descrever parte da trajetória das acadêmicas, um panorama da história e dos temas que vêm sendo debatidos, das perspectivas, das controvérsias, das conexões e como essas contribuem para a formação de um campo de estudos de gênero moçambicano.

A imagem de capa desse número da revista faz parte do Projeto “Mamãs, Bebês e Capulanas: corpos e afetos tecidos dos corpos”, realizado na periferia da Matola, em Moçambique, por Vera Gasparetto (organizadora do Dossiê), Mateus Almeida da Silva (fotógrafo, graduando do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense e pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Movimentos Sociais, Trabalho e Identidade) e Hélder Pires Amâncio (Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Estudos de Populações Indígenas).

Na perspectiva de relações globais e no âmbito Sul-Sul, o Dossiê recebe o apoio do Subprojeto “Práticas Culturais, Educação e Direitos Humanos: violências, gênero, diversidade”, do Programa de Internacionalização (PRINT/CAPES), que vem sendo realizado pela Área de Concentração em Estudos de Gênero (EGE) do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (PRINT, 2019).

Índice

Parte I - Artigos

Da autonomia do Fórum Mulher na arena pública moçambicana

Orlando Nipassa

Militantes invisíveis: as cabo-verdianas e o movimento independentista (1956-1974)

Ângela Coutinho

Catanas contra o neoliberalismo-patriarcal em tempos de Aids

Solange Rocha, Evandro Alves Barbosa Filho, Isabel Maria Alçada Padez Cortesão Casimiro

Mulher moçambicana: cultura, tradição e questões de género na feminização do HIV/SIDA

Hélio Bento Maúngue

A mulher em cursos de ciências, tecnologia, engenharia e matemática no ensino superior moçambicano

Amália Alexandre Uamusse, Eugénia Flora Rosa Cossa, Tatiana Kouleshova

O Campo dos Estudos de Gênero em Moçambique, África.

Vera Gasparetto

Entrevista “É preciso visibilizar as alternativas silenciadas do Sul: entrevista com a moçambicana Isabel Casimiro”

Vera Gasparetto

Parte II - Ativismos

Manifesto Político das Mulheres

Fórum Mulher (FM)

Carta das raparigas e mulheres

Associação Sócio-Cultural Horizonte Azul (ASCHA)

Manifesto das Trabalhadoras Rurais

Fórum das Mulheres Rurais (FOMMUR)

Referências

  • AMADIUME, Ifi. “African Women: Voicing Feminisms and Democratic Futures”. International Feminisms: Divergent Perspectives, v. 10, p. 47-68, 2001.
  • CASIMIRO, Isabel. Paz na Terra, Guerra em Casa - Feminismo e organizações de mulheres em Moçambique Pernambuco: EDUFPE, 2014. (Série Brasil & África - Coleção Pesquisas 1)
  • FÓRUM MULHER. Disponível em Disponível em http://ibismozambique.org/parceiros/forum-mulher/ ; Disponível em http://ibismozambique.org/parceiros/forum-mulher/; http://www.forumulher.org.mz/ Acesso em 10/01/2016.
    » http://ibismozambique.org/parceiros/forum-mulher/» http://www.forumulher.org.mz/
  • GASPARETTO, Vera Fátima. Corredor de Saberes: vavasati vatinhenha (mulheres heroínas) e redes de mulheres e feministas em Moçambique 2019. Tese (Doutorado) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • LOFORTE, Ana. Género e Poder - Entre os Tsonga de Moçambique Lisboa: Ela por Ela, 2003.
  • MAMA, Amina. Gains and Challenges: Linking Theory and Practice Women’s World’s Congress: Keynote Address presented at opening ceremony, Makerere University, July 21st 2002.
  • MAMA, Amina. “What does it mean to do feminist research in African contexts?”. Feminist Review Conference Proceedings, 2011.
  • NHAMPOCA, Joaquim. “Os três C’s da África e a desconstrução do rótulo”. In: BOAVENTURA, Ilka; SEVERO, Cristine (Orgs.). Kadila: Culturas e ambientes - Diálogos Brasil-Angola São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 2016. p. 417-426.
  • OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Conceptualizing gender: the eurocentric foundations of feminist concepts and the challenge of African epistemologies, Dakar, Codesria, v. 1, 2004. Disponível em Disponível em https://www.codesria.org/img/pdf/oyewumi.pdf Acesso em 22/04/2017.
    » https://www.codesria.org/img/pdf/oyewumi.pdf
  • PRINT. Projeto de Internacionalização CAPES/UFSC, 2019. Disponível em: Disponível em: https://propg.ufsc.br/internacionalizacao/print/ Acesso em 28/10/2019.
    » https://propg.ufsc.br/internacionalizacao/print/
  • 1
    A data inicial era 2020, mas foi transferido devido à pandemia do Covid-19.
  • 2
    Esses manifestos serão publicados no Portal de Periódicos da UFSC e no site do Instituto de Estudos de Gênero (IEG).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    ZUCCO, Luciana; GASPARETTO, Vera; CASIMIRO, Isabel. “DOSSIÊ Mundos de Mulheres 2021: pensamentos feministas Afro-Moçambicanos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e68329, 2020
  • Financiamento:
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e do Programa de Internacionalização PRINT/CAPES. /
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2019
  • Aceito
    21 Nov 2019
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