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Neutralidade pseudo-inscrita: a doméstica Lena, a dona de casa Alice e a intelectual Gertrude têm uma só incompreensão do valor

Pseudo-inscribed neutrality: the servant Lena, the housewife Alice and the intellectual Gertrude all misconceive the notion of value

Resumos

Uma leitura do tratamento dispensado pelo feminismo ao trabalho doméstico, preocupada com a relação entre o trabalho doméstico e a infra-estrutura que este proporciona à produção intelectual burguesa. Esta leitura, que busca desestabilizar os valores negativos regularmente agregados à subserviência doméstica, tem como base de análise as obras literobiográficas Autobiografia de Alice B. Toklas e Autobiografia de todo mundo, e o conto A Gentil Lena, todos de Gertrude Stein.

trabalho doméstico; trabalho intelectual; feminismo; Gertrude Stein


This paper presents a reading of the way in which feminism treats the issue of houseswok, especially the relationship between domestic labor and its basis for bourgeois intellectual production. Through an examination of three of Getrude Stein's works - The Authobiography of Alice B. Toklas, Everybody's Biography, and The Gentle Lena - this reading seeks to destabilize the negative values usually attributed to domestic labor.

housework; intellectual work; feminism; Gertrude Stein


ENSAIOS

Neutralidade pseudo-inscrita: a doméstica Lena, a dona de casa Alice e a intelectual Gertrude têm uma só incompreensão do valor

Pseudo-inscribed neutrality: the servant Lena, the housewife Alice and the intellectual Gertrude all misconceive the notion of value

Fernando Meneghel

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Uma leitura do tratamento dispensado pelo feminismo ao trabalho doméstico, preocupada com a relação entre o trabalho doméstico e a infra-estrutura que este proporciona à produção intelectual burguesa. Esta leitura, que busca desestabilizar os valores negativos regularmente agregados à subserviência doméstica, tem como base de análise as obras literobiográficas Autobiografia de Alice B. Toklas e Autobiografia de todo mundo, e o conto A Gentil Lena, todos de Gertrude Stein.

Palavras-chave: trabalho doméstico, trabalho intelectual, feminismo, Gertrude Stein.

ABSTRACT

This paper presents a reading of the way in which feminism treats the issue of houseswok, especially the relationship between domestic labor and its basis for bourgeois intellectual production. Through an examination of three of Getrude Stein's works – The Authobiography of Alice B. Toklas, Everybody's Biography, and The Gentle Lena – this reading seeks to destabilize the negative values usually attributed to domestic labor.

Key words: housework, intellectual work, feminism, Gertrude Stein

Sou bastante boa como dona-de-casa, como bordadeira, como secretária, como editora e como veterinária e tenho que fazer tudo isso ao mesmo tempo e acho difícil ser ainda bastante boa como autora.1 1 STEIN, 1984, p. 208.

Aí começou uma longa correspondência, não entre Gertrude Stein e T. S. Eliot, mas entre a secretária de T. S. Eliot e eu. Nos tratávamos uma à outra de Senhor, eu me assinando A. B. Toklas e ela usando as iniciais dela. Demorou muito tempo para eu descobrir que o secretário dele não era homem. Não sei se algum dia ela percebeu que eu também não era.2 2 STEIN, 1984, p. 168.

Conseguir uma empregada era difícil, para não dizer impossível, os salários estavam altíssimos. Contentamo-nos provisoriamente com uma femme de ménage por apenas algumas horas diárias. Eu vivia dizendo que Gertrude Stein era a chofer e eu a cozinheira. Passamos a ir bem cedo de manhã aos mercados públicos para comprar provisões. O mundo estava uma verdadeira confusão.3 3 STEIN, 1984, p. 158.

Eu desejaria continuar construindo um texto só de epígrafes, não interpor minha voz, escrever um texto do já escrito, um texto como uma coletânea de vozes outras que não a minha, nem uma só palavra minha, um texto que fosse pura inscrição. O que somente se inscreve pode ser neutro? Nem feminino nem masculino: uma voz VERBO, um tudo feito nome, um nome substantivo neutro, uma escrita em alemão, toda com das. Inscrever seria assim uma das formas textuais mais neutras, se não penso na neutralidade matemática, aquela que é o resultado da neutralização do positivo e do negativo. Penso em um texto inscrito que não possua valores ad principium.

A inscrição neste texto se dá de um modo formal: há um texto com a fonte Avant Garde e um texto com a fonte Americana. Um deles complementa o outro, debate com o outro, ou explica o outro, como em uma nota. As notas não deixam de persistir, no entanto, cada qual relacionada também a um dos textos, pela mesma aplicação das diferentes fontes. Não que a diferença de fontes seja uma característica formal indispensável, mas tem como escopo uma primeira leitura que se faça com menos entraves, em uma tentativa de que não seja tão mister uma segunda leitura. Proponho um diálogo de pseudo-inscrições interventivas, uma estratégia para driblar a impossibilidade da inscrição pura.

As diferenças coexistem. O problema é que elas têm existido se e somente se um diferente é supervalorizado em detrimento de um outro diferente ou um diferente é subvalorizado em detrimento de um outro diferente. A coexistência, portanto, nunca é pacífica. As diferenças, portanto, nunca somente existem, e isso constitui um estado não ético da diferença. Esse estado é não ético porque é intrinsecamente histórico, mas não revisionista. A interpretação desconstrutivista da escovação da história a contrapelo4 4 Walter BENJAMIN, 1996, p. 225. recupera, de certo modo, a ética, quando não defende algo que não seja o modo de recuperação de um dado, dado este que é sempre intrinsecamente histórico. Os textos desconstrutivistas e pós-desconstrutivistas não querem dizer, não querem afirmar, não querem defender, não querem postular: querem a revisão permanente, querem manter relações e evidenciar o modo de realização disso. Algo como uma arte pela arte benjaminiana – um modo de recuperar a preocupação sobre a forma, dentro de uma perspectiva historicista. A realização desses textos, no entanto, sempre constitui uma ação afirmativa, na medida em que também eles estão inseridos em um dado momento histórico, produzindo, (in)conseqüentemente, valores.

Não existe neutralidade, na sua possível acepção de imparcialidade. A minha preocupação consiste em evidenciar não somente o modo de recuperação, como também em evidenciar que o que se está buscando é, sim, inatingível, porém nunca dispensável. A neutralidade é como a busca do cálice sagrado, busca esta que produz a destituição, ainda que de modo imparcial, de desejos impuros. Os desejos impuros são os valores agregados. Nunca alcançamos a neutralidade, mas, nunca perdendo a esperança de encontrá-la, não podemos esquecer de buscá-la. Não a buscamos quando agregamos valores, quando temos valores internos anteriormente concebidos.

"O termo 'estética' é formado em correlação com 'lógica' e 'ética'. Temos sempre que lhes acrescentar epistéme, ciência. Lógica: logiké epistéme: ciência do lógos, isto é, doutrina da enunciação do juízo enquanto forma fundamental do pensamento. Lógica: ciência do pensamento das formas e das regras do pensamento. Ética: ethiké epistéme: ciência do éthos, da atitude anterior do homem e da maneira como determina sua conduta. [...] De maneira análoga formou-se o termo 'estética': aisthétike epistéme, ciência do comportamento sensível e afetivo do homem e do que o determina."5 5 Benedito NUNES, 1986, p. 250 (nota 5).

Se entendo a ética como pensamento anterior, porque pensamento apriorístico e porque pretende reger uma determinada conduta, então a falta de valores agregados conforma falta de ética? Sim, a não ser que o pensamento anterior determine como próprio de si a dispensa dos valores agregados. A ética, vista dessa forma, promove uma atitude que, na medida em que não se deixa corromper, faz com que o ser humano tenha uma conduta que esteja de acordo com o pensamento anterior. A ética teria, então, como essência, a fim de se manter, de existir, uma não-maleabilidade, uma não-influência do momento histórico. Mas o próprio pensamento anterior é formado por um momento histórico, o que faz com que a natureza da ética seja também a história. A ética não é maleável, a não ser que a maleabilidade seja uma determinação histórica. E esse nosso momento histórico que produz a possibilidade de uma ética maleável é o mesmo momento histórico que impossibilita a neutralidade absoluta e a falta de valores agregados como postura ética desejável. O meu texto, assim, não pode (ainda) ser a voz do outro em inscrição pura. Haverá um momento histórico em que isso seja possível? Não seria esse momento histórico o inatingível? A inscrição pura? Um momento nunca se inscreve, porque ele é uma leitura, é sempre uma revisão de si mesmo, é sempre escovado a contrapelo.6 6 BENJAMIN, 1996, p. 225. Por isso, mesmo em uma inscrição pura, a voz daquele que inscreve será sempre existente. Por isso, este tipo de diferença a produzida pela inscrição pura talvez seja a única que existe sem agregar valores.

*

As mulheres são diferentes dos homens, do mesmo modo que uma mulher é diferente de um homem, do mesmo modo que uma mulher é diferente de uma outra mulher, do mesmo modo que um homem é diferente de um outro homem, do mesmo modo que um hermafrodita é diferente de uma mulher, do mesmo modo que um hermafrodita é diferente de um homem, do mesmo modo que essas diferença independem da orientação sexual de cada uma dessas mulheres ou desses homens ou dos hermafroditas. É natural que cada uma das escritas, produzida por cada um desses diferentes, reflita as diferenças. É natural que o reflexo dessas diferenças, em se tratando de literatura – no sentido restrito –, seja intencional. É natural que uma das intenções seja a de procurar compreender o diferente através do uso intencional de uma linguagem própria daquele que é diferente do que escreve. O modo de compreensão que talvez seja o que intenta um conhecimento mais íntimo – mas não necessariamente mais profundo –, que seja o mais destituído de comodismo, é o de colocar-se no lugar do outro. Colocar-se no lugar do outro conforma um exercício de empatia sem resistências, principalmente intelectuais, um exercício de dirimir as diferenças, como se elas não existissem, um exercício de igualdade, já que ela ainda é utópica; enfim, um exercício de existência, quase uma busca apriorística de neutralizar as diferenças. Cláudia Lima Costa relata, em disciplina ministrada para o curso de Pós-Graduação em Literatura (UFSC), que, assistindo a uma palestra de uma mulher negra, e resolvendo expor seu desconforto em tratar de questões relacionadas à raça negra, já que ela não é negra, recebe, como resposta, a quase acusação de que, desse modo, ela estava adotando uma posição muito cômoda. Colocar-se no lugar do outro é um exercício incômodo, mas é um exercício, e isso diz muito no atual momento dos estudos feministas e de gênero.

Se não esqueço de uma situação particularmente reveladora das diferenças valorizadas e, conseqüentemente, determinadoras do ser humano, que é a situação do hermafrodita, é devido ao conto "A opção".7 7 Rubem FONSECA, 1994, p. 149-155. Quando um ser humano nasce hermafrodita, a opção pelo sexo – feminino ou masculino – é geralmente definida logo após o nascimento, por uma determinação estritamente calcada no discurso da medicina, ou seja, que só leva em consideração as condições fisiológicas do nascente. Mas esse discurso da medicina é baseado no dado histórico que diz que, na nossa sociedade, só podem existir seres humanos ou do sexo feminino ou do sexo masculino. A opção, portanto, é sempre problemática, porque é calcada em um determinante histórico arbitrário ou não ético. Há uma sobredeterminação histórica que recai opressivamente sobre um indivíduo, quando a determinação deveria ocorrer sobre o momento histórico, que deveria eticamente reavaliar, revisar suas predeterminações, a fim de acoplar à sua normalidade arbitrária o hermafrodita. Em "A opção", Rubem Fonseca, quando escreve entre parênteses, procura refletir a escrita do pensamento de uma primeira pessoa que nascera hermafrodita e que questiona não exatamente a opção que lhe foi imposta, mas a imposição da opção em si.

O direito romano constitui o primeiro esforço normativo para lidar com o caso natural do hermafrodita, estabelecendo que: a) o hermafrodita não representa um terceiro gênero; b) o hermafrodita pertence ao "gênero que nele seja predominante"; c) seja decretado o sexo predominante a que pertence o hermafrodita; d) o hermafrodita pode casar-se e "instituir seu herdeiro", desde que nele prevalecesse os "órgãos viris"; e) um hermafrodita pode assistir, como testemunha, à abertura de um testamento, de acordo com "a aparência que apresentam os seus órgãos genitais quando excitados".

"[...] a tradição médica antiga, como não tinha que identificar os sexos em função de uma norma de divisão obrigatória, considerava a existência do uterque sexus como uma verdadeira mistura de gêneros sobre a qual nada havia que decidir. Por seu lado, a tradição religiosa tratava este fenômeno em termos de prodígio, como o demonstram as abundantes notícias analíticas consagradas à expulsão dos hermafroditas, por afogamento no Tibre, nomeadamente. Mas só o direito podia obrigar a reintegrar este ser ambíguo em um outro gênero, mesmo que, por absurdo, ele fosse partilhado de maneira igual entre eles."8 8 Yan THOMAS, [s.d.], p. 128-129.

O exercício da procura da neutralidade das diferenças-com-valores-agregados entre mulheres e homens é uma realidade histórica desde os primeiros momentos do movimento feminista. Sustentado pelo próprio manancial teórico que os Estudos Feministas e os Estudos Culturais desde então vêm expondo, antes de refutar o processo de ridicularização que o feminismo tem enfrentado, busco compreender o porquê da existência insistente de um discurso que ridiculariza o feminismo, e que aparece, mais naturalmente, por exemplo, na grande mídia. Aqui, levanto a hipótese de que um dos motivos que fazem com que esse discurso que ridiculariza o feminismo permaneça é o fato de que o exercício da procura da neutralidade das diferenças-com-valores-agregados não teve, na maior parte de sua história de atuação, como contraponto de equilíbrio, um exercício da procura de neutralidade das diferenças-sem-valores-agregados.

Uma das VJs mais visualmente modernas da MTV, Penélope, em programa transmitido no ano de 2003, responde à pergunta "Você é feminista?" deste modo: "Eu não, essa coisa daquelas radicais que queimavam sutiã não tá com nada". Esse dado, esse tipo de discurso, não deve ser ignorado.

*

Um dos textos mais contemporâneos que conheço - no sentido de sua determinação histórica, de sua inserção nas políticas feministas e, especialmente, de seu acréscimo de valores não agregados às políticas feministas, e que promove mais abertamente o colocar-se no lugar do outro - é Autobiografia de Alice B. Toklas. É Gertrude Stein, escrevendo como se fosse Alice B. Toklas, escrevendo sobre Gertrude Stein. Alice é a companheira constante de Gertrude; é quem revisa os textos de Stein; quem, durante um período, publica os livros de Stein; quem cuida da casa, do jardim, dos cachorros, das empregadas domésticas contratadas; quem, em resumo, provê a infra-estrutura adequada para que Gertrude Stein possa escrever, possa ser a escritora profícua e profusa que é, possa exercer a genialidade com a qual se caracteriza.

Em Autobiografia de todo mundo, Stein relata o esmorecimento da relação absolutamente profunda e amigável com seu irmão desta forma:

"Quanto a isso a única coisa é que era eu o gênio, não havia razão para isso mas era eu, e ele [o irmão] não era não havia razão para isso mas ele não era e isso foi o começo do fim e sempre havíamos estado juntos e agora quase nunca estávamos juntos."9 9 STEIN, 1983, p. 84. A tradução que Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho empreendem para a Autobiografia de todo mundo tenta reproduzir as preocupações formais de Gertrude Stein, através da eliminação das vírgulas. Considero uma boa solução, já que aproxima o leitor das características de escrita automática e de aproximação com a oralidade, presentes nesse texto de Stein.

Para se ter uma idéia do tamanho da 'autoconfiança' de Stein, cito: "[...] Einstein foi a mente filosófica criativa do século [XX] e eu fui a mente literária criativa do século [...]"10 10 STEIN, 1983, p. 27-28. . E isso em 1937.

Levando em consideração o ego de Gertrude Stein – e utilizando uma leitura de sua obra que guarda relações com sua biografia –, poder-se-ia observar, na Autobiografia de Alice B. Toklas, uma espécie de defeito, de desvalorização da proposta modernista de Stein, que advém do fato de que, apesar de Gertrude Stein se colocar na pele de Alice, como se fosse contar a vida de Alice, a Alice de Stein fala mais de Gertrude Stein do que propriamente de Alice. Mas essa é uma crítica que, além de possuir uma base de argumentação e uma base tanto teórica quanto crítica fracas, leva em conta só o conteúdo. Essa é uma crítica biográfica (e nem todas as críticas biográficas são desprezíveis) que só se sustenta na medida em que é levantada por uma pessoa que quer saber mais da vida pregressa de Alice, da vida de Alice antes da convivência com Gertrude, do que da vida em comum de Alice e de Gertrude. Colocar-se no lugar do outro para falar de si mesmo é o que faz com que Gertrude Stein ultrapasse os eventuais limites de uma inclusão da autora na proposta modernista, tornando-a de uma contemporaneidade ímpar. Alice não escreve sobre Gertrude porque esta é mais importante que aquela, mas porque, assim como Gertrude Stein só pode se ver na medida em que o seu olhar é atravessado pelo olhar de Alice B. Toklas, Alice só pode ser biografada na medida em que sua vida é atravessada pela vida de Gertrude Stein.

Em 1954, um editor tenta convencer Alice a escrever uma biografia sobre a sua vida com Gertrude Stein, relatando:

"'Ah', disse Alice, 'isso não dá para eu fazer.' 'Por que não?', perguntou o jovem editor de Nova York que estava tentando persuadi-la a escrever um livro sobre a vida dela com Gertrude Stein e sobre todas as pessoas e aventuras que partilharam. 'Porque', respondeu Alice naquela voz sensual, rouca de cigarro, 'Gertrude já fez minha autobiografia e está feita.' "11 11 TOKLAS, 1996, p. 7.

Então Alice resolve escrever um livro que mistura relatos e receitas culinárias, de onde vem a citação.

Gertrude Stein não é mais importante que Alice porque o trabalho dela é um trabalho intelectual e o de Alice é um trabalho doméstico: Gertrude só é importante porque consegue dar a devida importância ao trabalho doméstico, realizado por Alice, e porque é somente devido a esse trabalho doméstico que Stein pode escrever o que escreve. E a devida importância é a mesma importância. Existe diferença entre o trabalho intelectual e o trabalho doméstico; o que não existe é um valor positivo agregado ao trabalho intelectual e um valor negativo agregado ao trabalho doméstico, e vice versa. Em Autobiografia de Alice B. Toklas, existem tantas referências ao método de escrita de Gertrude Stein ou sobre as opiniões de Stein quanto existem referências à rotina doméstica de Alice ou aos dotes domésticos desta ou daquela pessoa.

Historicamente, o feminismo combateu o valor negativo agregado às tarefas domésticas com a proposição de um modelo de mulher que não quer mais ficar restrita às tarefas domésticas, que tem capacidade de ser mais do que uma dona de casa, como se ser uma dona de casa carregasse, em si, um valor negativo. É a sociedade patriarcal que valoriza negativamente o trabalho doméstico, como um dos métodos de manutenção do patriarcalismo.12 12 Estou falando do feminismo até os anos 1980. Os caminhos tomados pelo feminismo depois do que se pode chamar de uma crise, seguida de uma retomada menos generalista, em direção a aproximações com os estudos de gênero, identidade, raça, etnia, nação e pós-colonialismo, por exemplo, estão longe de serem passíveis de um parágrafo como este. A relação que aqui ponho em xeque é a que existe entre o ser humano e os conceitos de trabalho que a sociedade, desde os seus primórdios, tem desenvolvido. Conseqüentemente, as questões que se apresentam são: de que modo a desvalorização histórica e sistemática do trabalho doméstico encontra certo grau de aceitação no discurso de um feminismo primevo?; até que ponto os resquícios dessa aceitação são mantidos no discurso de um feminismo posterior?

Há uma diferença entre o trabalho doméstico e a função social, já observada na antigüidade clássica, que relega à função doméstica desqualificações – ditas naturais –, caracterizando essa função como inoperante para uma sociedade.

"As incapacidades de direito público não são de uma natureza fundamentalmente diferente das do direito privado. A cidade é, sem dúvida, 'um clube de homens'. No entanto, uma Romana é civis romana e gera um civis romanus. Mas aquilo de que as mulheres estão privadas, na política como nas relações intersubjetivas, é de exercer um serviço que transcenda a estreita esfera dos seus interesses próprios; que des-subjectivize a sua acção para lhe conferir o sentido abstracto de uma função."13 13 THOMAS, [s.d.], p. 190. Yan Thomas faz um estudo sobre a divisão dos sexos, baseado no direito romano, em que os critérios jurídicos que delimitam os direitos testamentários são muito importantes. Por isso aqui completo a citação, para esclarecer a inclusão do texto neste artigo: "Não é de admirar, por exemplo, que uma mulher possa testemunhar em justiça: a sua palavra não é menos digna de crédito que a de um homem [isso depois de certa evolução do direito romano]. Mas o facto de ela não poder ser testemunha de um testamento não contradiz esta regra, porquanto o cidadão romano testis, neste caso, valida a operação conferindo-lhe a sua publicidade."

Com o tempo, o movimento feminista procurou utilizar-se das estratégias de controle patriarcalistas, a fim de desestabilizar o próprio discurso patriarcal. O domínio das estratégias do outro é uma estratégia de combate perigosa: ao mesmo tempo em que, em algumas ocasiões, ela se mostra como única possibilidade de exercício de existência, ela incorre no risco de, ao adotar, de modo indiscriminado, a ética da maleabilidade, trazer contra si mesma as conseqüências de uma posição não ética: um passo atrás no avanço. É uma escolha difícil e talvez intrínseca à luta em favor de qualquer igualdade: ou são utilizadas todas as armas disponíveis e se caminha lentamente, não por caminhar devagar, mas por dar um passo longo para frente e um passo médio para trás; ou se caminha lentamente, sob uma ética menos condescendente, mas de um modo tão lento, e muitas vezes tão imperceptível, que se corre o risco de nem chegar a dar um passo curto. Os intelectuais de hoje, que se preocupam com uma reverberação política do pensamento, procuram um caminho intermediário. O que eu faço aqui é tentar dar uma amostra de que esse caminho intermediário é possível, fazendo essa recuperação, essa revisão histórica de Autobiografia de Alice B. Toklas. Melhor: já que o passo médio para trás já foi dado, o que faço aqui é tentar retomar a noção de trabalho doméstico, mas livrando-o de seu valor negativo agregado.

Ninguém anda sem a companhia da história e o que proponho não é nada de novo, senão uma forma diferente de compreender o porquê de os trabalhadores estarem começando "a entrar no setor de serviços, tradicional reduto feminino".14 14 Cristina BRUSCHINI, 2000, p. 25. Se há algo em comum entre os artigos presentes no livro de Maria Isabel Baltar da Rocha,15 15 ROCHA, 2000. é o fato de partirem da compreensão de que o desemprego, provocado por uma política neoliberal, "deixa de ser acidental ou expressão da crise conjuntural e se define como estrutural".16 16 Magda de Almeida NEVES, 2000, p. 172. Cristina Bruschini tem uma visão que não agrega valor negativo ao trabalho doméstico, criticando a ampliação do conceito de trabalho promovida pelo IBGE em 1992, por este não "incluir a atividade doméstica realizada pelas donas de casa, que continua a ser classificada como inatividade econômica".17 17 BRUSCHINI, 2000, p. 16. Enfim, esse é o dado histórico que dá indícios de que em breve a atividade doméstica remunerada não será quase que exclusiva das mulheres, e que, portanto, a atividade doméstica não remunerada – a tal inatividade econômica – tem chances de se tornar, também para o homem, uma atividade sem valor agregado negativo. Só então a conquista feminista será intrínseca, mesmo que ainda de um modo natural. E é somente esse estado intrínseco de uma atitude que torna essa atitude natural, mesmo que contrarie uma natureza própria da diferença. O que trago aqui talvez não passe, portanto, de uma proposta de aceleração da presença desse estado intrínseco, promovido pelo acento do valor agregado positivo na atividade doméstica, em uma busca ética mas não absolutamente maleável, através da neutralidade, promovida pela aposição do positivo sobre o negativo.

É basicamente esse o valor feminista de Autobiografia de Alice B. Toklas, e, sendo esse um texto proveniente de uma relação diferida18 18 Mais do que uma relação incomum, uma relação diferida é uma relação difusa, produzida por um distanciamento que é consciente de sua historicidade e de uma diferença que não é valorativa. – dentro da normalidade arbitrária histórica –, em que da relação observada não participam homens, torna-se dos poucos textos propícios para a recuperação das diferenças-sem-valores-agregados, que não incorrem em um perigo de retrocesso nas conquistas do movimento feminista, conquistas essas patrocinadas pela política de agregação de valor negativo à situação doméstica da mulher. O valor literário de Autobiografia de Alice B. Toklas é o de aproximar o leitor de uma situação diferente, sem que a este leitor essa situação soe estranha ou incompreensível, já que passa a fazer parte da normalidade arbitrária histórica do leitor essa relação diferida.

Eu poderia trabalhar com o exemplo da esposa de Jackson Pollock, uma pintora que deixa de produzir suas obras para viver em função de construir a infra-estrutura adequada para que Pollock continue produzindo as dele. Mas esse é um exemplo bastante ofensivo, em termos histórico-feministas, porque conota sacrifício, que é uma coisa a que nem mulheres nem homens deveriam se submeter. Para a utilização mais adequada desse exemplo, eu teria de pressupor uma autoconsciência crítica na esposa de Pollock, que a levasse a desistir voluntariamente de sua produção artística, e uma atividade crítica vivencial que a levasse a considerar a obra de Pollock boa a ponto de tornar sua auto-imposta-voluntariamente tarefa de dona de casa e de fiscal de bêbado justificável. Mas a voluntariedade é sempre relativa e esse não parece ter sido um relacionamento muito equilibrado, o que acarreta uma relação sem muito respeito, e uma relação em que há um domínio de um sobre o outro – de um lado, o domínio intelectual, que agrega valor positivo à atividade artística de Pollock e valor negativo à atividade doméstica de sua esposa, e de outro lado o domínio relacionado ao controle das situações, que agrega valor positivo ao trabalho da esposa e valor negativo à displicência de Pollock para com sua própria vida.

Por toda a Autobiografia de Alice B. Toklas, perpassam relatos da convivência entre Gertrude e Alice e as empregadas domésticas por elas contratadas. Essa convivência é sempre pacífica e natural, não como se fosse sustentada por um vínculo empregatício bem regularizado, mas porque se pressupõe uma relação de dependência mútua, através de uma crença intrínseca de que a possibilidade da produção intelectual de Gertrude Stein depende dessa infra-estrutura proporcionada tanto por Alice quanto pelas empregadas domésticas.

A questão pode parecer absolutamente frívola para os marxistas mais ortodoxos, já que, por trás de tudo que falo, há uma espécie de empunhadura burguesa. Afinal de contas, Baudelaire produziu uma obra poética impressionante sem nunca ter tido nenhuma espécie de infra-estrutura burguesa. Mas a literatura não vive só dos escritores destituídos de estrutura de apoio, muito pelo contrário. Para escrever os seus Ensaios, Montaigne se refugiou, propositadamente, em um seu castelo de campo; Yeats escreveu muitos de seus versos em meio aos confortos do castelo de uma sua patrocinadora; a família Medici é hoje tida como fundamental para a compreensão do Renascimento, por ter sido a infra-estrutura adequada para vários artistas; a Igreja Católica – da Inquisição – é a mesma que nos proporcionou um Giotto. Se, em outro tempos, a estrutura de apoio a artistas foi proporcionada de outros modos, e esses modos se tornaram objetos de estudo adequados para a escovação da história a contrapelo, essa mesma escovação hoje se dá pelo reconhecimento da dona de casa e da empregada doméstica como parte da infra-estrutura que viabiliza as obras de arte da era burguesa. Mesmo porque, como já expus, meu sustento teórico se baseia em uma diferença-sem-valores-agregados. A empregada doméstica não é, então, menos importante que a família Medici. Para ver a consciência de Stein sobre a questão da estrutura que proporciona a produção artística, cito, de Autobiografia de Alice B. Toklas:

"Picasso tinha se entusiasmado com a possibilidade de fazer a cenografia de um balé russo, cuja música seria de Satie e o livreto de Jean Cocteau. Todo mundo estava em guerra, a vida em Montparnasse não era muito alegre. Em Montrouge, mesmo com uma empregada fiel, [Picasso] não tinha grande animação [...]".19 19 STEIN, 1984, p. 144-145.

"Tínhamos instalado aquecedores elétricos no estúdio. Estávamos, como a nossa empregada finlandesa diria, ficando modernas. Ela acha difícil de entender por que não somos mais modernas ainda. Gertrude Stein diz que se a gente toma uma dianteira intelectual torna-se naturalmente antiquada e conservadora na vida quotidiana."20 20 STEIN, 1984, p. 203.

Entro aqui na questão das empregadas domésticas para, enfim, alcançar o que há de literário, no seu sentido mais restrito. A obra mais propriamente literária de Gertrude Stein tem, em Three lives, o seu exemplar mais canonizado. Primeiro livro da autora, publicado, a princípio, em uma edição particular, em 1909, e que, sub-repticiamente, atrai leitores dos menos leigos, Three lives é a reunião de três contos ou de um conto, uma novela e um pequeno romance. Em 1931, fazendo um estudo sobre a literatura imaginativa, Edmund Wilson escreve:

"Foi ele [Three lives] editado por uma pequena e obscura editora e àquela época atraiu pouca atenção; todavia, emprestado de mão em mão, adquiriu certa reputação. [...] O que é mais notável nesses contos – especialmente se os compararmos a uma produção tão tipicamente naturalista como 'Un Coeur Simple', de Flaubert, na qual sentimos que a velha criada de família foi vista de grande distância e documentada com esforço – é a íntima identificação que a autora logrou estabelecer com suas personagens. Num estilo, que parece nada dever ao de qualquer outro ficcionista, parece ela ter captado os próprios ritmos e timbres das mentes de suas heroínas [...] Three lives, conquanto não tivesse tido circulação ampla, exerceu considerável influência. Carl Van Vechten escreveu acerca dele; Eugene O´Neill e Sherwood Anderson leram-no com admiração. É interessante notar que todos esses três escritores se iriam ocupar, mais tarde, da vida do negro, a respeito da qual Miss Stein dera exemplo de atitude não complicada por consciência racial."21 21 WILSON, [s/d], p. 168-169.

O modelo do colocar-se no lugar do outro alcança, em Gertrude Stein, o seu teor literário, porque reflete uma vivência. Defende-se que o escritor é mais bem-sucedido na medida em que escreve sobre coisas que lhe são próximas. Ser empregada doméstica não é a realidade de Stein, e nem mesmo cuidar da casa ou se relacionar com as empregadas domésticas faz parte da vida de Stein.22 22 Sobre uma mudança de endereço: "Trabalhamos muito, quer dizer, eu [Alice], a porteira e Hélène [a empregada], até a sala ficar em condições de recebê-lo" (STEIN, 1984, p. 118). Note que quem parece resmungar do fato de que Gertrude Stein não ajuda em nada é a voz de Alice, pelas palavras da própria Stein: há consciência de que a inutilidade doméstica de Stein pode incomodar. Mas a naturalidade com que Stein lida com essa situação, naturalidade essa proporcionada pela consciência de que não há valor agregado aos diferentes tipos de realização, e a vivência no outro, através do respeito e da compreensão que promove o colocar-se no lugar desse outro, acaba por aproximar a escritora Gertrude Stein desse universo, a ponto de a sua escrita representar adequadamente esse outro que é tão diferente de Gertrude.

Considero que Gertrude Stein atinge o ponto máximo dessa compreensão absoluta do outro, uma compreensão sem julgamento de valor, um colocar-se no lugar do outro sem receios ou resistências, com o acréscimo de um teor humanista impressionante, no conto The gentle Lena.23 23 STEIN, 2003. Lena é uma mulher trazida da Alemanha para os Estados Unidos por uma tia teuto-americana, para trabalhar, provisoriamente, como empregada doméstica, até que a tia lhe arrume um casamento. Lena é um dos personagens mais passivos de toda a história da literatura. Tudo o que ela faz é porque alguém disse que era para ela fazer daquele jeito. Mas isso não conforma, para o leitor, uma personagem de quem se deva ter pena, ou uma personagem plana ou incompleta. Pelo contrário, a personagem é, estranhamente, uma personagem muito bem construída, exatamente porque faz parte de seu ser a passividade. A vontade própria, em Lena, nunca é suficientemente vontade, porque é a vontade dos outros que é a verdadeira vontade própria de Lena. Mas há uma coincidência entre a não-vontade de Lena e a vontade dos outros para Lena, que é o fato de ela ser empregada doméstica. A partir do momento em que a vontade dos outros é a de que Lena seja uma esposa, e não mais uma empregada doméstica, Lena começa a esmorecer. Em um primeiro momento, quando Lena, casada, mora com a sogra, ela recebe ordens da sogra, mas o trabalho doméstico então não lhe mantém as mesmas características de uma passividade absoluta e não sofrida. Quando ela passa a ter uma casa sua para cuidar, onde mora só com o marido, e o marido não é uma pessoa que interfere muito na vida doméstica, não opinando nem ordenando coisa alguma, o esmorecimento se acelera. Ela tem filhos, até que o último parto a mata, e nunca demonstra ter qualquer tipo de prazer em cuidar dos próprios filhos, como demonstrava quando cuidava dos filhos de sua patroa. Faz parte da natureza de Lena viver para o outro, e é vivendo para o outro que ela vive bem.

Viver para o marido ou para os filhos não é, para Lena, viver para os outros. A interpretação aqui é ambígua, e se mistura com um dado que vem de encontro com a minha hipótese: é fundamental, para Lena, o trabalho, a função social; a remuneração não é fundamental, mas o trabalho é. Lena não vê sentido no casamento ou na criação de filhos, porque o casamento e a criação de filhos são atividades egoístas, autocentradas, cheias de valores agregados (o altruísmo da maternidade é a mais alta representação de egoísmo, assim como o morrer pelo outro é a mais alta representação do heroísmo, e o heroísmo a mais alta representação da individualidade). O centro de Lena está nos outros, e o trabalho significa o seu descentramento permanente, com a conseqüência que a descentralização tem de evitar valores. O ambiente doméstico é um ambiente de domínio, o ambiente de domínio exclusivo da mulher. Mas Lena não quer dominar, e é por isso que não se adapta a esse ambiente, enquanto dona de casa. Vale lembrar que a situação da dona de casa é a de um domínio aparente, que é onde reside a proximidade com a empregada doméstica: é um domínio sobre sua própria domesticação. Mas não existe uma realidade aparente para Lena, porque não existe uma proposição pessoal de tornar algumas coisas aparentes e outras não, e isso tudo porque não existe uma pessoalidade em Lena. Vale lembrar que em Os trabalhos e os dias,24 24 HESÍODO, 2002, p. 43. lê-se: "Homem excelente é quem por si mesmo tudo pensa" e "o ócio desonra é". O trabalho intelectual depende, em grande medida, do ócio, enquanto que o trabalho não intelectual impossibilita, em grande medida, o pensar por si próprio. O trabalho físico é um descentramento de si mesmo, mas, nem por isso, deixa de estruturar a possibilidade do trabalho intelectual do outro, e o pensamento como um reflexo do pensamento do outro em si. Se o pensamento do outro não considera esse trabalho estrutural mais físico, é conseqüência esse trabalhador mais físico acreditar não ter pensamento próprio. Não pensar por conta própria não pode ser tomado como um valor negativo, mas como um estado neutro, assim como o ócio não pode ser pensado como um valor negativo do trabalho intelectual, a não ser quando o trabalho de que se fala, como na citação de Hesíodo, for especificamente do homem, enquanto gênero historicamente determinado, e não do homem enquanto ser humano. Hesíodo parece não considerar o trabalho doméstico, mesmo porque nem sequer parece considerar a mulher dentro do seu discurso. O trabalho que para Lena é essencial é o que lhe proporciona não pensar por conta própria, não por uma incapacidade, mas por um modo de existência. Assim, Lena não compreende o domínio. A incompreensão do domínio impede o julgamento de valor, e é por isso que a personagem adquire a empatia e a compreensão, tanto da escritora quanto do leitor. Stein percebe que domínio, no caso o domínio das técnicas de escrita, não possui um valor em si, porque é incompreensível nas relações humanas, em seu sentido mais humano. Por isso Stein parte para uma escrita em que o domínio de uma linguagem não interessa; o que interessa é deixar-se dominar pela linguagem, por uma escrita quase automática, tornando-se um sujeito neutro da perfectibilidade realista de um Flaubert. O elemento que aproxima Stein de Lena é, portanto, a falta de valores agregados, seja sobre o conceito de trabalho, seja sobre o tipo de trabalho, e uma natural incompreensão das relações de domínio em Lena, porque é de sua natureza, em Stein, porque pretende, ao colocar-se no lugar do outro, reproduzir essa naturalidade (e uma reprodução é sempre uma interpretação e uma interpretação é sempre uma compreensão). No poema From before the flowers of friendship faded faded, Stein escreve: "Thank you for being there/ Nobody has to care/ Thank you for being there/ Because you are not there". Stein parece agradecer uma ausência consciente, um estado menos que virtual de presença, uma existência que é uma ausência, que é uma aparente ausência, uma nulidade que tem um valor positivo. O valor reside na nulidade, na neutralidade, pois é somente estando em não estando que o valor é possível. Pode-se mesmo interpretar o desvio que Stein toma para a escrita nonsense como uma conseqüência natural desse tipo de compreensão: o sentido, no nonsense, está em não estando, a própria palavra contém o que diz não conter, a própria compreensão está em uma impossibilidade natural de colocar-se no lugar do outro, tornada uma segunda natureza.

Acrescentando um elemento bastante feminista avant la lettre, Stein nos mostra como o casamento, para o marido de Lena, funciona muito bem: ele se livra de morar com os pais, não tem que dar atenção alguma à esposa, e ainda pode se dedicar com mais intensidade à educação dos filhos, que parece ser a única coisa com que se importa. É fundamental aqui observar que a morte de Lena não afeta, de nenhum modo, o seu marido. Ele já tomara as rédeas da casa, e, se Lena não servia para nada e nem era objeto do amor de seu marido, tornara-se dispensável. Mas, para Stein, um ser nunca é dispensável, o que faz com que ela repita incansavelmente o nome de Lena, ao longo de todo o texto, e principalmente no final, quando Lena morre, para que, pelo menos ao leitor, reste a lembrança de Lena. A necessidade de lembrar de Lena remete à necessidade que todo trabalhador intelectual tem de lembrar de que o fruto de seu trabalho só é possível devido a uma infra-estrutura, burguesa que seja, proporcionada por pessoas próximas. Mas essa necessidade não pode ficar limitada a agradecimentos escritos nos frontispícios de textos acadêmicos ou publicados. Deve ficar incrustada na própria existência, como um respeito consciente, uma compreensão do nível do colocar-se no lugar do outro. Há a necessidade do exercício da compreensão da nulidade para que se compreenda o outro de um modo que os valores que temos agregados a nós mesmos sejam neutralizados. É um exercício intelectual que, para o homem, pode trazer uma maior proximidade com os problemas abordados pelo feminismo, uma proximidade mais real, mais intrínseca. Estou chamando o feminismo de nulidade, na medida em que ele seria dispensável em uma eventual e utópica sociedade igualitária, na medida em que relativizo o determinismo histórico que impede a perspectiva utópica a ser sempre perseguida. Estou chamando o feminismo de nulidade, na medida em que a neutralidade é o valor positivo intrinsecamente histórico do nosso atual momento, e a nulidade o expediente mais humano na compreensão da neutralidade aqui proposta, de acordo com a hipótese levantada. Estou chamando o feminismo de nulidade enquanto política (cultural) não identitária, sustentada em La comunidad que viene.25 25 Giorgio AGAMBEN, 1996. Agamben é tradutor de Benjamin para o italiano e companheiro de escrita de Deleuze no texto sobre Bartleby, o escrivinhador, de Herman Melville. Esse texto, que tem contatos com uma leitura benjaminiana, acentua a passividade como elemento de resistência. A percepção de que a passividade pode ser um modo legítimo de resistência é também promovida por Bataille e por Debord, mas esse particular texto de Agamben é o que me parece ter ido mais longe, tendo alcançado a idéia da não-identidade, do não-pertencimento à qualquer grupo social identificável, como um modo de resistência. Em Autobiografia de todo mundo, Gertrude Stein passa constantemente por essa questão:

"A única coisa que torna possível a identidade é não haver mudanças mas apesar de tudo não existe identidade ninguém realmente pensa que é a mesma pessoa de que se lembra."26 26 STEIN, 1983, p. 76.

"[...] se alguma coisa muda então não existe identidade e se muda completamente então não há o menor sentido em isso ser o que foi."27 27 STEIN, 1983, p. 91.

"O que é que faz uma pessoa estar certa de que não vai acontecer realmente nada. É tudo aquilo ligado a tempo a à inexistência de identidade sem dúvida alguma é isso."28 28 STEIN, 1983, p. 119.

"Dinheiro é uma coisa engraçada. E identidade é uma coisa engraçada. Você é você porque seu cachorrinho o conhece, mas quando o seu público o conhece e não quer pagar por você e quando o seu público o conhece e realmente quer pagar por você, você não é a mesma pessoa."29 29 STEIN, 1983, p. 51.

"[...] talvez eu não seja eu mesma mesmo se o meu cachorro me conhece mas de qualquer maneira gosto do que tenho e agora é hoje."30 30 STEIN, 1983, p. 339 (últimas palavras do livro).

Não há sentido, para Lena, em viver para si mesma ou em função de algo que seja seu. A propriedade não é um conceito compreendido por Lena, mesmo porque nada lhe é próprio. Mesmo assim, o leitor simpatiza com a personagem, devido à capacidade que Stein tem de fazer com que compreendamos que, nas mais diferentes conformações do ser humano, mesmo naquela em que apresenta um ser humano que não tem a mínima capacidade de existir para si mesmo, deve existir o respeito pela diferença, exatamente porque a essa diferença nunca pode ser agregada um valor negativo ou positivo.

É nesse ponto que podemos compreender a terceira epígrafe mais do que como uma futilidade burguesa: o mundo estar uma verdadeira confusão porque não se consegue uma empregada doméstica é sim um relato bastante significativo da situação da guerra. Expor o cotidiano dos relacionamentos com as empregadas domésticas é altamente significativo para a compreensão presente e futura da arte produzida na era burguesa e ainda mais significativo para o aperfeiçoamento das relações entre as donas de casa e as empregadas domésticas brasileiras, que têm se mostrado desumanas. Em 1995, de 27,7 milhões de mulheres, 17,2% delas eram trabalhadoras domésticas. Destas, 92% trabalhavam na casa do patrão. E mais de 92% destas que trabalhavam na casa do patrão eram empregadas domésticas. Ou seja, o Brasil tinha por volta de 4 milhões de mulheres que eram empregadas domésticas, sendo que 90% delas recebiam menos do que dois salários mínimos.31 31 BRUSCHINI, 2000, p. 31-33. Eu conheço o caso de uma doutora em Bioquímica, formada pela USP, que, apesar de pagar mais do que dois salários mínimos para sua empregada, faz com que ela trabalhe mais do que 15 horas diárias, atormentado-a - e essa é a palavra mais adequada - para que todo o serviço doméstico (serviço este que só poderia ser realizado satisfatoriamente por, pelo menos, três empregadas) seja impecável, pois, afinal de contas, a empregada recebe mais do que dois salários mínimos.32 32 A única coisa que posso usar como defesa do exemplo aqui utilizado é a analogia possível entre a literatura oral do passado – e que hoje encontra poucos redutos de permanência – e a fofoca, considerada como resquício dessa literatura oral. Ou seja, o nível de instrução de um pessoa não a impede de agregar um valor tão patriarcalista e negativo ao serviço doméstico, ou melhor, o próprio nível de instrução, ao agregar valor deveras positivo à instrução ou ao trabalho intelectual, endossa a diferença entre os trabalhos, endossa o desrespeito e endossa a incompreensão. Sabendo dos dados que demonstram que as mulheres têm adquirido um maior nível de instrução que os homens, a fim de estarem mais aptas ao mercado de trabalho, conquistando, relativamente, um espaço maior neste mercado (mas ainda recebendo menos nos mesmos cargos ocupados pelos homens), para que a própria mulher não endosse o discurso patriarcalista, mantendo e promovendo a ridicularização do feminismo, faz-se mister valorizar o trabalho doméstico. Que seja então do modo que menos interfira na caminhada do movimento feminista, que seja através de Gertrude Stein e de Alice B. Toklas, por exemplo.

O comodismo de ambas é outro detalhe que a história preserva para a compreensão da era burguesa. Em Autobiografia de todo mundo, Stein escreve:

"Se você ganhou dinheiro não é a mesma coisa que não ter ganho. E agora chegou o momento em que eu estava começando a ganhar algum e foi uma coisa boa porque agora ninguém a não ser que seja realmente rico pode viver de rendas. Mesmo os franceses e até agora a maioria deles sempre viveu de rendas mesmo eles estão começando a perceber que ninguém mais se não é muito rico pode viver de rendas, bem eu não sabia que eu não podia mas as coisas acontecem assim, quando chega o momento em que você ganha dinheiro chegou o momento em que você não podia mais viver da sua renda. Isto é política e superstição é um cuco cantar para você quando você tem dinheiro no bolso ou mesmo uma aranha verde aproximar-se de você durante o pôr-do-sol, uma aranha à noite faz tudo ficar favorável uma aranha de manhã é um aviso."33 33 STEIN, 1983, p. 50.

Não é um comodismo que os marxistas ortodoxos podem criticar com muita facilidade. Esse conceito de política, que traz para o processo ativo de mudança de um quadro social uma dependência histórica intrínseca, arraigada em uma possibilidade mínima de verdadeira ação política, reflete uma consciência bastante à frente de seu tempo e aqui pode-se concordar com o estatuto de gênio auto-imputado de Gertrude Stein – e que entende a ação política como um processo lento e minucioso, que só leva a uma melhora das condições de existência do ser humano – e da mulher – na medida em que caminha atenta às condições históricas, e na medida em que consegue encontrar as minúsculas brechas que a história abre para essa ação política. A ação política, assim, é uma (in)consciência passiva do indivíduo – (tornada) uma teoria – e é, ao mesmo tempo, uma prática que é mais do que identitária, e que planta ínfimas mas não desprezíveis possibilidades de melhoras do ser humano.34 34 Aqui há certa tautologia. Com ela, pretendo retomar e esclarecer a argumentação do nono parágrafo da terceira parte deste artigo.

A diferença existe, e isso não é bom nem ruim, e o humanismo de Gertrude Stein reside em saber que a diferença simplesmente existe, para ser, quando pouco, observada e respeitada, e, quando muito, compreendida com o colocar-se no lugar do outro, com a aproximação intrínseca das diferenças: a neutralidade inscrita.

[Recebido em setembro de 2003 e aceito para publicação em abril de 2004]

  • AGAMBEN, Giorgio. La comunidad que viene Valencia: Pre-textos, 1996.
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas, v. 1).
  • BRUSCHINI, Cristina. "Gênero e trabalho no Brasil: novas conquistas ou persistência da discriminação? (Brasil, 1985/95)". In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios São Paulo: Ed. 34, 2000. p.13-48.
  • FONSECA, Rubem. Contos Reunidos Organização de Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • HESÌODO. Os trabalhos e os dias Introdução, tradução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2002.
  • NEVES, Magda de Almeida. "Reestruturação produtiva, qualificação e relações de gênero". In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 171-185.
  • NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger São Paulo: Ática, 1986.
  • ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios São Paulo: Ed. 34, 2000.
  • STEIN, Gertrude. Autobiografia de todo mundo Tradução de Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
  • STEIN, Gertrude. Autobiografia de Alice B. Toklas Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM Editores, 1984.
  • STEIN, Gertrude. Three lives Disponível em: http://www.bartleby.com/74/11.html Acesso em: 24 mar. 2003.
  • THOMAS, Yan. "A divisão dos sexos no direito romano". In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (direção da obra); PANTEL, Pauline Schmitt (direção do volume). História das mulheres no Ocidente: a Antiguidade Porto: Afrontamento, [s.d.]. v. 1, p. 126-199.
  • TOKLAS, Alice B. O livro de cozinha de Alice B. Toklas Tradução de Helena Londres. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • WILSON, Edmund. O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930 Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, [s.d.].
  • 1
    STEIN, 1984, p. 208.
  • 2
    STEIN, 1984, p. 168.
  • 3
    STEIN, 1984, p. 158.
  • 4
    Walter BENJAMIN, 1996, p. 225.
  • 5
    Benedito NUNES, 1986, p. 250 (nota 5).
  • 6
    BENJAMIN, 1996, p. 225.
  • 7
    Rubem FONSECA, 1994, p. 149-155.
  • 8
    Yan THOMAS, [s.d.], p. 128-129.
  • 9
    STEIN, 1983, p. 84. A tradução que Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho empreendem para a
    Autobiografia de todo mundo tenta reproduzir as preocupações formais de Gertrude Stein, através da eliminação das vírgulas. Considero uma boa solução, já que aproxima o leitor das características de escrita automática e de aproximação com a oralidade, presentes nesse texto de Stein.
  • 10
    STEIN, 1983, p. 27-28.
  • 11
    TOKLAS, 1996, p. 7.
  • 12
    Estou falando do feminismo até os anos 1980. Os caminhos tomados pelo feminismo depois do que se pode chamar de uma crise, seguida de uma retomada menos generalista, em direção a aproximações com os estudos de gênero, identidade, raça, etnia, nação e pós-colonialismo, por exemplo, estão longe de serem passíveis de um parágrafo como este. A relação que aqui ponho em xeque é a que existe entre o ser humano e os conceitos de trabalho que a sociedade, desde os seus primórdios, tem desenvolvido. Conseqüentemente, as questões que se apresentam são: de que modo a desvalorização histórica e sistemática do trabalho doméstico encontra certo grau de aceitação no discurso de um feminismo primevo?; até que ponto os resquícios dessa aceitação são mantidos no discurso de um feminismo posterior?
  • 13
    THOMAS, [s.d.], p. 190. Yan Thomas faz um estudo sobre a divisão dos sexos, baseado no direito romano, em que os critérios jurídicos que delimitam os direitos testamentários são muito importantes. Por isso aqui completo a citação, para esclarecer a inclusão do texto neste artigo: "Não é de admirar, por exemplo, que uma mulher possa testemunhar em justiça: a sua palavra não é menos digna de crédito que a de um homem [isso depois de certa evolução do direito romano]. Mas o facto de ela não poder ser testemunha de um testamento não contradiz esta regra, porquanto o cidadão romano
    testis, neste caso, valida a operação conferindo-lhe a sua publicidade."
  • 14
    Cristina BRUSCHINI, 2000, p. 25.
  • 15
    ROCHA, 2000.
  • 16
    Magda de Almeida NEVES, 2000, p. 172.
  • 17
    BRUSCHINI, 2000, p. 16.
  • 18
    Mais do que uma relação incomum, uma relação diferida é uma relação difusa, produzida por um distanciamento que é consciente de sua historicidade e de uma diferença que não é valorativa.
  • 19
    STEIN, 1984, p. 144-145.
  • 20
    STEIN, 1984, p. 203.
  • 21
    WILSON, [s/d], p. 168-169.
  • 22
    Sobre uma mudança de endereço: "Trabalhamos muito, quer dizer, eu [Alice], a porteira e Hélène [a empregada], até a sala ficar em condições de recebê-lo" (STEIN, 1984, p. 118). Note que quem parece resmungar do fato de que Gertrude Stein não ajuda em nada é a voz de Alice, pelas palavras da própria Stein: há consciência de que a inutilidade doméstica de Stein pode incomodar.
  • 23
    STEIN, 2003.
  • 24
    HESÍODO, 2002, p. 43.
  • 25
    Giorgio AGAMBEN, 1996. Agamben é tradutor de Benjamin para o italiano e companheiro de escrita de Deleuze no texto sobre
    Bartleby, o escrivinhador, de Herman Melville. Esse texto, que tem contatos com uma leitura benjaminiana, acentua a passividade como elemento de resistência. A percepção de que a passividade pode ser um modo legítimo de resistência é também promovida por Bataille e por Debord, mas esse particular texto de Agamben é o que me parece ter ido mais longe, tendo alcançado a idéia da não-identidade, do não-pertencimento à qualquer grupo social identificável, como um modo de resistência.
  • 26
    STEIN, 1983, p. 76.
  • 27
    STEIN, 1983, p. 91.
  • 28
    STEIN, 1983, p. 119.
  • 29
    STEIN, 1983, p. 51.
  • 30
    STEIN, 1983, p. 339 (últimas palavras do livro).
  • 31
    BRUSCHINI, 2000, p. 31-33.
  • 32
    A única coisa que posso usar como defesa do exemplo aqui utilizado é a analogia possível entre a literatura oral do passado – e que hoje encontra poucos redutos de permanência – e a fofoca, considerada como resquício dessa literatura oral.
  • 33
    STEIN, 1983, p. 50.
  • 34
    Aqui há certa tautologia. Com ela, pretendo retomar e esclarecer a argumentação do nono parágrafo da terceira parte deste artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2004
    • Recebido
      Set 2003
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