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Corpos, identidades, teoria queer e inteligência artificial: diálogos

Bodies, identities, queer theory and artificial intelligence: dialogues

Cuerpos, identidades, teoría queer e inteligencia artificial: diálogos

KLIPPHAHN-KARGE, Michael; KOSTER, Ann-Kathrin; BRUSS, Sara Morais dos Santos. (org.). Queer Reflections on AI: Uncertain Intelligences . New York: Routledge, 2024.

A obra Queer Reflections on AI: Uncertain Intelligences é uma coletânea arguta de textos que articula o emergente tema de Inteligência Artificial (IA) com a teoria queer. O livro é parte da série da editora Routledge que tem foco em novas mídias/cibercultura e é organizado por Michael Klipphahn-Karge, Ann-Kathrin Koster e Sara Morais dos Santos Bruss (2024KLIPPHAHN-KARGE, Michael; KOSTER, Ann-Kathrin; BRUSS, Sara Morais dos Santos (org.) Queer Reflections on AI: Uncertain Intelligences. New York: Routledge, 2024.), duas pesquisadoras e um pesquisador que articulam relações de poder, tecnologia, arte, gênero e diversidade em seus estudos.

Fruto da colaboração entre dois grupos de pesquisa da Technische Universität Dresden (Schaufler Lab@TU Dresden e GenderConceptGroup), a composição de tal empreendimento conta com mais oito autoras e autores provenientes de cinco países. No que se refere à sua estruturação, registra-se que o livro conta com onze textos que se organizam em um texto introdutório, três seções, cada uma com três capítulos, e um texto de conclusão.

Já na introdução as organizadoras e o organizador convidam as leitoras a emergir em exemplos de crítica construídas há mais de uma década sobre as construções naturalizantes sobre as ideias de sexo e de gênero que se manifestam/reproduzem nos artefatos técnicos e tecnológicas a partir do campo artístico, em especial das obras do artista Zach Blas em sua série de trabalho intitulada Queer Technologies.

A partir desta imersão que incita formas disruptivas do consumo de heteronormatividade é que se apresenta às leitoras a forma com que se busca acionar o termo queer no volume, como uma prática crítica contra a naturalização e unificação de conceitos de perspectivas sociais, culturais e políticas, assim como uma estratégia de realçar o potencial de repressão que reside dentro de tais iterações monolíticas.

Ao tratar especificamente da IA, o texto introdutório foca na capacidade de criação de imaginários universais pela vertiginosa velocidade de processamento de dados e denuncia que esta produção de verdade vai contra a tradição de estudos das epistemologias feministas de ciência e tecnologia. Nesses termos, anuncia-se a formação de um campo interdisciplinar, que tem representatividade nos autores e nas autoras que compõem a obra, interessados/as em localizar os impactos normalizadores das tecnologias datificadas e como estes tensionam com princípios de igualdade e liberdade em diferentes marcadores sociais. Conceitos como o de viés algorítmico, para se referir a tratamento desigual injustificado de dados tratados, e de poder são acionados para introduzir as leitoras no debate sobre colonialismo de dados (Safiya Umoja NOBLE, 2018NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism. New York: New York University Press, 2018.), ou seja, a construção e reafirmação de protocolos de tratamento de dados que reproduzem normatividade.

Na primeira seção do livro, “Genealogias”, são explorados alguns exercícios de como o poder normativo da IA pode ser historicizado, desnaturalizando e dando contexto cultural e científico às reflexões teóricas que se desdobram no campo. O primeiro texto já coloca em xeque a própria noção de inteligência como uma noção ambígua e eivada de práticas performativas. Partindo do campo das ciências da informação, Blair Attard-Frost apresenta tensionamentos teóricos e análise crítica de teorias de inteligência para pensar uma ontologia da IA. No capítulo seguinte, Orit Halpern se dedica a pensar uma técnica específica dentro do campo da IA, a rede neural, para pensar algoritmo de sugestão, aprendizado de máquinas e como esses mecanismos estão reformulando a compreensão de categorias como raça e sexo por meio do processamento de dados. No terceiro e último texto da primeira seção é explorada a intersecção entre tecnologia de IA e identidades queer. Nishant Shah apresenta evidências de como a IA define e expõe estranhezas como um artifício de enquadramento do que é normativo.

A segunda seção do livro é intitulada de Materialidade e avança nos rastros fornecidos em “Genealogias” para explorar influências tangíveis da IA sobre os copos, em sua forma física, e sobre as identidades dos sujeitos. Nesses termos, Ute Kalender aciona o conceito de ciborgue, em associação aos adensamentos dos debates queer, para pensar a demanda das tecnologias e a própria IA em abrir espaço para criação de dados, imaginários e experiências com os sujeitos com deficiência e não sobre eles. No texto de autoria de Michael Klipphahn-Karge, explora-se a representação de identidades queer na produção de corpos artificiais e estabelece um debate a partir de uma perspectiva de uma estética da ambiguidade ao explorar uma obra artística, asseverando que corpos artificiais nas artes podem tanto perpetuar como perturbar representações estereotipadas de gênero. Já no terceiro texto desta seção, Katrin Köppert problematiza a dataficação de corpos em aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual e de controle da natalidade para pensar as noções de subjetividade. Assim, aciona a premissa naturalizada de corpos femininos reprodutivos reduzidos a dados e denuncia como tais aplicações tecnológicas podem refletir e reificar preconceitos neocoloniais, misóginos e transfóbicos ao atender predominantemente às questões relativas às mulheres brancas, cisgênero e heterossexuais.

A terceira e última seção tem como título “Especulações” e tem por intenção abrir possibilidade imaginativas sobre o futuro da IA frente as questões de identidade. Considerando a IA como tecnologia disruptiva, a seção explora seu potencial em redefinir subjetividades humanas. Em seu primeiro capítulo, Sara Morais dos Santos Bruss, inspirada na obra de ficção “Annihilation” de Jeff VanderMeer, traça elocubrações sobre a potência imersiva da IA que desafia a subjetividade humana. O capítulo de autoria de Carsten Junker aciona diversos manifestos feministas e queer para pensar suas relações com a tecnologia, identificando vícios de argumento historicamente construídos. Por sua vez, Johannes Bruder, para fechar a seção, se ocupa em explorar a intrigante e complexa relação entre autismo, IA e percepções sociais de inteligência. Nesse capítulo também é tensionado o conceito de neuroqueerness, que busca desafiar visões tradicionais da neurodiversidade e defender uma compreensão mais inclusiva da inteligência que não se baseie em padrões normativos.

O capítulo de conclusões é assinado por Os Keyes. Nele, parte-se da premissa de que diversos sujeitos queer têm usado historicamente tecnologias para fins subversivos e o quanto isso alimenta outras possibilidades de imaginação da IA para além do uso normativo do tratamento de dados. Em paralelo, reivindica dos pesquisadores dos estudos de gênero e da teoria queer uma atitude menos centrada na crítica cultural e mais próxima de um ativismo material.

Queer Reflections on AI: Uncertain Intelligences é um convite instigante à reflexão sobre a IA e suas reverberações no campo dos estudos de gênero. Tem como principal mérito conseguir comunicar-se com leitoras iniciadas ou não iniciadas na literatura sobe IA. Sua estrutura, em seções, contribui no sentido de que a cada novo momento da obra novas interseções teóricas vão se abrindo. Percebe-se que a obra tem possibilidade de abrir debates, em diferentes frentes, na relação da IA com a teoria queer, assumindo essa relação como um tema contemporâneo por excelência.

Do ponto de vista do conteúdo, expresso certo desapontamento com o não aproveitamento do conceito de alucinação (Matias DEL CAMPO; Neil LEACH, 2022DEL CAMPO, Matias; LEACH, Neil (orgs.). Machine Hallucinations. Architecture and Artificial Intelligence. Hoboken: Wiley, 2022.), como a capacidade de um sistema de IA gerar informações falsas ou imprecisas mesmo parecendo autênticas para um observador humano, para iluminar imaginários que destoem do enquadramento normativo da IA e sejam fraturas tangíveis do viés algoritmo que não acolha o diferente. Ao explorar tais fraturas, talvez, também colabore para que noções como devir, diversidade e diferença possam alimentar práticas no desenvolvimento e uso responsável da inteligência artificial.

Referências

  • DEL CAMPO, Matias; LEACH, Neil (orgs.). Machine Hallucinations. Architecture and Artificial Intelligence Hoboken: Wiley, 2022.
  • KLIPPHAHN-KARGE, Michael; KOSTER, Ann-Kathrin; BRUSS, Sara Morais dos Santos (org.) Queer Reflections on AI: Uncertain Intelligences New York: Routledge, 2024.
  • NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism New York: New York University Press, 2018.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    ARAÚJO, Allyson Carvalho de. “Corpos, identidades, teoria queer e inteligência artificial: diálogos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e98931, 2024.
  • Financiamento:

    Não se aplica.
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2024
  • Revisado
    22 Abr 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
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