RESENHAS
No calor da ho(n)ra
Sandra Maria Job
Universidade Federal de Santa Catarina
Feitio de viver: memórias de descendentes de escravos.
NASCIMENTO, Gizêlda Melo do.
Londrina: EDUEL, 2006. 167 p.
A leitura de Feitio de viver deve ser precedida da apresentação de sua autora para se entender de onde ela fala e qual o lugar de sua pesquisa. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal Fluminense, a professora Gizêlda Melo do Nascimento ministra aulas nos cursos de graduação de Letras e Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Na mesma instituição, também ministra, no Programa de Mestrado em Letras, as disciplinas "Vozes Femininas na Literatura Brasileira" e "Literatura, Cidade, Sociedade". Além disso, mantém um projeto de pesquisa sobre escritoras afro-brasileiras contemporâneas cujo objetivo é formalizar, por meio de uma antologia, produções dispersas dessas escritoras. E está prevista para 2007 a publicação de alguns dos resultados obtidos pelos alunos que trabalham nesse projeto sob a orientação da professora. Em se tratando de questões relacionadas à mulher negra como escritora ou personagem essas publicações só vêm acrescer as outras já publicadas pela autora como, por exemplo, "Grandes mães, reais senhoras" (Signum 1: Revista de Estudos Literários, Londrina: EDUEL, 1998), entre outras. Em todas elas, a temática da mulher negra tem sido uma constante, variando somente o enfoque e mostrando-nos, com isso, a preocupação que a professora Gizêlda tem com as questões histórica e social da mulher negra seja analisando-a na literatura, seja analisando o seu percurso e representação históricos.
É nesse contexto de pesquisa que Feitio de viver, primeiro livro da autora, encontra-se situado. É uma pesquisa narrativa. Uma história feita de várias histórias. Contudo, dada a linguagem simples e bastante pessoal da autora que conduz as narrativas, é possível atribuir ao texto um valor ensaístico, ainda mais porque a obra, ainda que seja feita de uma soma de primeiras pessoas, é fruto de uma pesquisa científica. Essa mescla de (aparente) ficção e não-ficção, amparada por uma análise pautada na realidade histórica do passado brasileiro, especificamente do contexto do Rio de Janeiro, dá um tom diferencial e prazeroso à leitura do texto. As histórias das depoentes dão uma expressiva constatação contemporânea dos negros como bons contadores de história. Nessa corrente dialógica, Gisêlda entra como pesquisadora e leitora de sua própria história.
Feitio de viver é um texto que recupera as memórias de descendentes de escravos do Rio de Janeiro para a partir dessas memórias perfilar a formação, construção e sobrevivência de um povo marginalizado, que tentou (re)construir uma vida, crente nos novos ventos republicanos que acenavam com a esperança de um Brasil melhor para todos. A esperança não se concretizou, no que se refere aos negros em especial, motivo pelo qual o objeto de estudo se encontra, conseqüentemente, nas zonas periféricas. E é para lá que a pesquisadora se desloca para traçar o perfil da formação familiar dessas histórias à margem, para melhor identificar e dar a conhecer o seu objeto. Selecionados os depoentes que melhor se enquadravam no perfil escolhido descendentes diretos de escravos, portanto, com idade avançada, moradores no Rio de Janeiro há considerável tempo e/ou carioca da 'gema' , foram escutados durante quatro anos, buscando-se com isso certa intimidade que proporcionasse, entre outros fatores, uma espontaneidade por parte deles. A naturalidade alcançada é evidente nas falas desses descendentes. Além disso, nota-se um certo prazer e orgulho ao narrarem as formas de sobrevivência deles próprios e/ou dos seus antepassados.
Respaldada pela tela de Modesto Brocos y Gomes, a análise da pesquisadora nos remete ao contato do que se é concebido como o seio da família brasileira pós-República. A partir das memórias de Vó Alzira, entre aqueles que tiveram voz no trabalho da professora, é possível (re)conhecer a história do Brasil República sob o viés dos excluídos, uma história política, social, econômica, sem querer ser história oficial. É uma possibilidade de conhecer a formação da família do subúrbio carioca do Rio de Janeiro sob o signo da memória. E essas memórias vão revelando a vida desses excluídos formadores do tecido social da cidade do Rio de Janeiro e permitindo-nos, por exemplo, que se conheça um outro lado das questões políticas relacionadas ao Tenentismo e à Revolta da Chibata.
Nesse caminho trilhado pelas memórias ou pelo que sobrou do imaginário dos personagens do livro, é imprescindível reconhecer as mãos condutoras das mulheres: por um lado, como guardiãs das memórias; por outro, como guardiãs da família e responsáveis por sua formação. Nesse segundo caso, reconhece-se a mulher como a responsável pela busca de caminhos alternativos para a sua sobrevivência e dos seus após o fim oficial da escravidão, situação vivida por algumas depoentes e/ou avós de outras.
Reconhece-se também a mão da autora que, certamente, traçou, fiou, entrelaçou, costurou essa oralidade, transportando-a para esse livro que não possui um lugar: é literatura, é sociologia, é história, é memória, é biografia. É palavra escrita. E palavras escritas nem sempre são palavras perdidas. E quão necessárias são, nesse mundo contemporâneo, cuja tendência ainda é calar vozes.
O livro parece em cada linha querer demonstrar que é sempre tempo de luta pela igualdade e valorização humana. Mas como valorizar o que não ou pouco se conhece? O que nos é estranho? Aquilo que a história deliberadamente escondeu e que, às vezes, por ignorância mesmo, a sociedade não soube/sabe encarar frente a frente: as diferenças raciais, a complexa relação com os negros em uma sociedade predominantemente branca.
Esta é a relevância de Feitio de viver: o resgate histórico, social e político do afrodescendente, da mulher como, mais uma vez comprovado, sustentáculo de um lar de uma vida , o resgate de uma história presa nas malhas da memória. Reconhecer-se como uma, ou como um afrodescendente, é motivo de orgulho, de prazer, oportunidade que Feitio de viver vem proporcionar.
Feitio de viver merece ser lido por nos dar a chance de retirar do limbo uma história do afrodescendente. Uma história que vem se somar, de forma distinta, a obras de autores do porte de Franz Fanon, autor de Pele negra, máscaras brancas, livro que reflete sobre as relações entre a mulher negra e o europeu. Entretanto, Feitio de viver não traz nas palavras sem desmerecer Fanon o tom amargo e desiludido que Pele negra, máscaras brancas traz consigo. Feitio de viver é vida, é ressurreição de uma história, é eros e não thanatos. Tem um gosto de "casa da gente". Despretensioso, mesmo ao ditar saberes e mostrar uma outra face da negra e do negro brasileiros, o livro atinge uma suavidade e uma leveza de ser que só a boa história é capaz de conseguir, prendendo o leitor durante a leitura de cada capítulo.
O resultado do árduo trabalho da professora Gizêlda resulta, enfim, em um cuidadoso empenho de dar a conhecer as memórias dos depoentes, memórias de uma raça esquecida, marginalizada, que, na individualização de um povo, atingem um coletivo. Trata-se de um livro que pode ser lido no calor da hora, mas que traz uma história que pode ser lida, na sua temporalidade, muito mais como o calor da ho(n)ra, de quem, mesmo calado durante mais de cem anos, ao ser ouvido, conta uma outra história do negro no Brasil. Não mais o navio negreiro, mas feitios de viver.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Ago 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2007