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“Viver, para mim, era só a espera de lembrar”

“Living, for me, was just waiting to remember”

“Vivir, para mí, era sólo esperar para recordar”

ACIOLI, Socorro. . Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023

O que se oculta no passado de uma mulher sem memórias? No romance Oração para desaparecer, de Socorro Acioli, a personagem Aparecida sai das terras de Almofala em Portugal, é recebida por Florice e Fernando, um casal de idosos, e não tem memórias sobre quem ela é ou sobre quem ela foi. Com o desenterro de Aparecida, inicia-se o romance publicado pela editora Companhia das Letras em 2023. O livro foi, nesse mesmo ano, o mais vendido da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.

Socorro Acioli nasceu em Fortaleza, em 1975, é escritora, jornalista, mestra e doutora em Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora e coordenadora da especialização em escrita e criação da Universidade de Fortaleza (Unifor). Oração para desaparecer é o segundo romance da autora, que também tem diversos livros infantis e juvenis, além de ensaios e obras traduzidas. A cabeça do santo, primeiro romance de Socorro Acioli, foi publicado em 2014 pela Companhia das Letras.

O romance é dividido em três partes: “Você trouxe todas as palavras”, “Os ossos dela não estão lá” e “A língua de fogo avisou”. A primeira parte inicia com o desenterro de Aparecida - que é assim nomeada por Florice, pois ela não lembra de seu nome - e segue enquanto desmemoriada. Florice e Fernando têm por destino familiar receber os ressurrectos e acompanhá-los até que se lembrem de suas origens. Aparecida, todavia, demora muito para lembrar e, por isso, segue a sua vida em Portugal. Ela se relaciona com Jorge, cuja mãe era amiga da família e sabia da história dos ressurrectos. Apesar da compreensão linguística entre as personagens, pela diferença na língua percebem que Aparecida é brasileira, “ela fala brasileiro” (Socorro ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 18).

Os ressurrectos, segundo Fernando, são “pessoas que iam morrer, mas por um triz escaparam e voltaram à vida em outro lugar” (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 21). Aparecida carrega em seu nome a religiosidade, mas também os começos, ela é a primeira mulher a aparecer na família de Florice. A família já havia recebido vinte e sete ressurrectos, Aparecida seria a última, completando vinte e oito, conforme Jorge relembra:

- Sim. Uma Ressurrecta. Lembro do dia em que avisaram da sua chegada. Vocês lembram? - Jorge disse.

- A chegada de Aparecida? Avisaram a quem?

- Ao senhor Afonso, seu pai. Não disseram o nome, mas é ela. Acho que eu tinha uns dez anos quando estive aqui de férias com meus pais. Chegou um homem, sentaram-se ali no sofá. Já se conheciam, parece que por carta. Deu a notícia da morte de uma pessoa e depois disse que trazia um outro recado, que uma mulher brasileira surgiria na família, alguns anos adiante. Foi uma previsão bem adiantada, pois Cida chegou vinte e cinco anos depois. Seria a última Ressurrecta, a primeira mulher e com ela terminaria a missão de vocês, e o senhor Afonso levantou as mãos para o céu, assim, dando graças. Não sei se havia mais algum detalhe, a senhora se lembra, dona Fátima? (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 60-61).

Os mistérios do passado dessa mulher tomam maiores interesses de leitura quando se sabe que Aparecida é a última e a única mulher a ser desenterrada. O que há no passado dessa mulher? Na falta de um passado e com a demanda por uma identidade, Aparecida consulta Félix Ventura, personagem emprestado do romance O Vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa (2011AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2011.). Diferente dos outros clientes de Félix Ventura, ela não deseja apagar o seu passado, pois nem o conhece: “O teu caso é o mais fácil que já recebi nesses anos todos, parto de uma folha em branco. A maioria dos meus clientes chega aqui sabendo exatamente o que lhes aconteceu e o desejo de apagar, tirar a sua presença do mundo. É um trabalho duplo para mim” (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 72).

A falta de memória sobre o seu passado, restando, até então, apenas alguns fragmentos em sonhos, é rompida quando Aparecida encontra um objeto: a imagem da santa Nossa Senhora da Conceição quebrada em três pedaços. Ela, então, lembra o seu nome, Joana Camelo, e a cidade de onde veio, Almofala no Ceará:

A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronuncia um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber o nome das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso, bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: “Mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e o meu nome (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 111).

Em “Os ossos dela não estão lá”, segunda parte do romance, a história de Joana é contada por Miguel, seu antigo amor. Assim, o seu passado começa a ser delineado não somente através de um amor, mas, principalmente, ao colocar a personagem como uma mulher disposta a defender o que acredita. A personalidade de Joana Camelo se desenha como forte e determinada, de maneira que no decorrer do romance é possível compreender que o seu posicionamento em defesa da comunidade desencadeou em seu desaparecimento.

A santa Nossa Senhora da Conceição tem uma forte relação com Almofala. Ela é encontrada na praia pelos tremembés, que a chamam de Labareda, pois o ouro pintado nela reluz. No entanto, “os portugueses reconhecem o valor da imagem, o ouro da pintura e pediram que a entregassem em troca de um presente: uma igreja para os tremembés, construída por eles” (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 124). A promessa não se cumpre e os tremembés são mortos pelos portugueses. Joana, ainda bebê, é entregue nessa igreja, aos pés da santa, e é criada por Malba, pajé Tremembé.

Quando Miguel chega em Almofala, a igreja de Nossa Senhora da Conceição começa a ser coberta por areia e, por isso, os padres ameaçaram a retirar a figura de lá. Contra essa decisão, Joana compreendia que o soterramento da igreja era uma resposta dos Encantados ao não cumprimento da promessa no passado. Joana some na igreja de Almofala após um embate com os padres que queriam levar embora a Nossa Senhora da Conceição. Joana frequentava a igreja todos os dias, ia para falar com a santa que foi encontrada pelos tremembés na praia:

Os Encantados, para os tremembés, estão no céu, na terra, na água e no ar. O fogo é um encantado poderoso. O pajé que encontrou a Labareda era antepassado de dona Malba, e o fato de Joana ter sido deixada aos seus pés justificava mais ainda a sua veneração (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 147).

Na terceira e última parte do romance, intitulada “A língua de fogo avisou”, Joana reencontra a sua mãe Malba: “Você não é tremembé de sangue de pai nem de mãe, mas é a escolhida para ser minha filha e agora vai escolher o seu caminho” (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 175). A proximidade com Malba, com os tremembés e com os Encantados elucida a trajetória de Aparecida em defesa de Labareda, que a acompanhou na travessia até Almofala em Portugal, após o embate com o padre.

O retorno de Aparecida, portanto, é também o retorno de Labareda, conforme Malba:

- Foi nos pés dela que sua mãe te deixou. Juripariguaçu me avisou em sonho e fui te buscar. Anos depois você quase morreu por ela, lutou a guerra dos valentes para salvar nossa Encantada e agora ela te salvou. Vamos fazer um novo tijupá, no mesmo lugar da primeira vez, honrando os trembembés que a encontraram na praia e honrando a sua vida. Nossa Labareda nunca mais voltará para a igreja (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 171).

Joana enfrenta e, por isso, desaparece. Quando retorna, ela sente o ódio de boa parte dos moradores de Almofala, que a consideram uma prostituta, uma feiticeira, a assassina do padre. Joana era livre, segundo a sua mãe Malba, e a luta na igreja iria matá-la, se ela não rezasse a Oração para Desaparecer:

- Você rezou a Oração. Nossa proteção nos momentos de perigo. A gente reza e vira folha, bicho, árvore, o nome disso é envultamento. Ou muda de lugar, como foi o seu caso. Mudou para outra Almofala, foi a palavra que te levou. Os tremembés sabiam que foi a oração. Se você se lembrar dela, algum dia, nunca diga em voz alta” (ACIOLI, 2023ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023., p. 176).

Socorro Acioli desenvolve a narrativa de Oração para desaparecer a partir de diversos fatos. A igreja de Almofala foi soterrada por areia e a ideia do romance surge quando a escritora recebe de uma amiga a fotografia dessa igreja. Durante as pesquisas de desenvolvimento do romance, a autora se depara com uma crônica escrita em 1946 por Carlos Drummond de Andrade sobre a santa encontrada pelos tremembés e o pacto de paz que não foi cumprido pelos portugueses. Joana Camelo, segundo Drummond, foi uma prostituta que tentou impedir a retirada da santa e durante a briga jogou um tamanco na cabeça do padre.

A personagem desenvolvida a partir da crônica do escritor tensiona nomeações atribuídas às mulheres como uma forma de deslegitimá-las. Quando desmemoriada, Joana vive apenas para lembrar. Quando lembra, retorna a sua cidade Almofala e devolve Labareda para os tremembés. Para não ser morta, Joana Camelo precisou rezar a Oração para Desaparecer, que é apresentada no final do romance como uma criação poética de Socorro Acioli1 1 Segundo a autora, os tremembés têm uma Oração para Desaparecer, no entanto, ela não está escrita no romance. . Ao ficcionalizar eventos e personagens, a autora transpõe esquecimento e memória, memória e esquecimento, como narrativas que desenterram existências.

Referências

  • ACIOLI, Socorro. Oração para Desaparecer São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
  • AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados Rio de Janeiro: Gryphus, 2011.
  • 1
    Segundo a autora, os tremembés têm uma Oração para Desaparecer, no entanto, ela não está escrita no romance.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    VOGT MICHAELSEN, Mariana. “Viver, para mim, era só a espera de lembrar”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e99709, 2024.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2024
  • Aceito
    20 Abr 2024
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