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Homens e mulheres: almas gêmeas?

RESENHAS

Homens e mulheres: almas gêmeas?

Wanda Beatriz Elsen Barcellos

Universidade Federal de Santa Catarina

Atendimento a homens autores de violência contra as mulheres: experiências latino-americanas.

TONELI, Maria Juracy Filgueiras; LAGO, Mara Coelho de Souza; BEIRAS, Adriano; CLIMACO, Danilo de Assis (Org.).

Florianópolis: UFSC/CFH/NUPPE, 2010. p. 280.

Trata-se de uma pesquisa em 22 programas de atendimento a homens autores de violência contra mulheres, em seis países ibero-americanos, realizada por um grupo multidisciplinar de pesquisadores brasileiros vinculados ao Núcleo de Pesquisa MARGENS (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero) da Universidade Federal de Santa Catarina. Dentre os programas entrevistados e visitados, foram selecionadas 12 entrevistas que preenchiam os quesitos estabelecidos pela pesquisa para serem incluídas na obra.

Os autores apresentam como um dos eixos que nortearam o estudo a visão de violência como um "problema de saúde pública, e mais especificamente, de saúde mental, compreendida como um processo complexo de construção cotidiana, individual e coletiva do ser humano em relação aos seus sentimentos, seu corpo, sua sexualidade e seu meio" (p. 18). Além de considerarem a violência inscrita no sistema sexo/gênero, "A perspectiva de gênero é introduzida buscando-se entender as relações de poder que transformam as diferenças, seja de gênero ou geração, em desigualdades com fins de dominação-exploração" (p. 17).

Outro eixo se refere ao desenvolvimento de estratégias que fortaleçam a construção de novas masculinidades e novas feminilidades, no sentido de se opor aos padrões hegemônicos existentes hoje na socialização das crianças, e de que o atendimento ao autor da violência seja feito com "base na aposta de que o sujeito possa reconhecer e responsabilizar-se pelos seus atos, assumir seu compromisso com as formas hegemônicas de masculinidades e procurar alternativas existenciais não violentas" (p. 17).

Fizeram parte da amostra os seguintes países e e respectivas quantidades de programas: México (5), Honduras (4), Nicarágua (4), Peru (3), Argentina (4) e Brasil (2). Quanto à vinculação institucional, cinco programas são governamentais e os demais de organizações da sociedade civil, sendo algumas vinculadas a grupos de pesquisa de universidades ou a instituições religiosas.

Os dados, coletados através de entrevistas (realizadas com profissionais facilitadores dos programas possuindo formações diversas como psicologia, psicanálise, serviço social, antropologia e sociologia), visitas com observações in loco e consultas a documentos, foram analisados seguindo duas linhas: uma relacionada à operacionalidade dos programas, tipo de instituição, profissionais que nela atuam, financiamento do programa e público-alvo, enquanto a outra referia-se aos objetivos do programa, metodologia de trabalho, avanços e dificuldades encontradas.

Foram identificadas pelos autores duas categorias de programas: os que atendiam homens autores de violência, centrando a intervenção sobre essa ação; e os que atendiam homens autores ou não de violência, centrando sua intervenção em outros aspectos relacionados à vivencia de gênero. Os resultados apontam que nos programas com autores de violência são realizadas atividades/ações re-educativas e de contenção e, em alguns programas, ações terapêuticas. No outro grupo, as atividades/ações são de caráter reflexivo, trabalhando-se com homens, mulheres, jovens e crianças ao proporcionar atividades e temas de prevenção da violência.

Várias dificuldades foram relatadas pelos pesquisados, sendo a mais citada a falta de financiamento dos programas, o que enfraquece as ações compreendidas como necessárias, bem como seu funcionamento adequado. Esse aspecto é percebido pelos profissionais como reflexo da pouca atenção que o Estado dá às ações de erradicação da violência de gênero e/ou intrafamiliar, valorizando as ações emergenciais, curativas e de criminalização.

Quanto ao método de avaliação de resultados, tem sido feita por meio de questionários e entrevistas com os homens autores de violência e, em alguns casos, com suas respectivas companheiras, de forma periódica. Os coordenadores dos programas consideraram obter resultados positivos, contudo os autores discutem que a avaliação ainda se mostra em processo de construção.

Entre os referenciais teóricos adotados pelos programas, os autores identificaram três principais, quais sejam: o modelo ecológico, no qual se enquadra o programa do Instituto de Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimento de Redes Sociais (NOOS); o comportamental, que fundamenta o modelo psicoeducativo do Colectivo de Hombres por Relaciones Igualitárias (CORIAC), privilegiando aspectos educativos visando a responsabilização dos homens autores de violência, modelo este que sofreu adaptações nos diferentes países da America Latina; e o modelo preventivo, voltado a ações de educação e reflexão e destinado à comunidade em geral, não tendo como foco o homem autor de violência. Os autores apontam ainda que os programas selecionados para análise adotam a perspectiva de gênero.

Este olhar crítico das relações entre masculinidades e feminilidades pressupõe uma avaliação mais ampla das relações de gênero, geração, classe e etnia, cultura e as relações de poder onde são sustentadas todas as diferenças, e "como" e "por que" são transformadas em desigualdades entre pessoas e classes sociais. Esta perspectiva não é detalhada nas entrevistas publicadas na obra, assim como não são detalhadas as formas e práticas de transformação sociocultural utilizadas pelos programas que promovem a equidade nas relações de gênero.

Embora os referenciais e propostas metodológicas dos programas sejam diferentes, os resultados positivos são semelhantes, como a própria criação dos mesmos, uma vez que é para a sociedade um passo importante no sentido de iniciar a mudança na concepção de equidade nas relações de gênero, e os homens autores de violência que permanecem no programa relatam mudanças positivas em sua vivência. Por outro lado, as dificuldades também se revelam comuns entre os programas, pois ainda não possuem uma sustentação sistemática suficiente.

Pontos importantes nos programas de combate às violências são a sua duração (em torno de dois anos), necessidade de preparo pessoal/profissional, capacitação contínua e equipe multidisciplinar e que atue de maneira articulada e interdisciplinar, o que requer domínio da área e a existência de recursos financeiro suficientes. O fato de o financiamento ter sido o ponto mais citado por quase todos os programas é preocupante, pois indica um vazio entre o preconizado na legislação e sua concretização.

A falta de articulação entre as políticas públicas provoca a fragmentação dos programas e serviços, bem como das vivências das pessoas. Além disso, a interdisciplinaridade é igualmente um quesito diferencial do trabalho em casos de violência, altamente indicada devido à complexidade e responsabilidade de todos diante desse fenômeno. Embora tenha sido evidenciado que há uma preocupação de que esses facilitadores tenham formação política e acadêmica de gênero, os dados mostram que a equipe não se apresenta, na maioria dos grupos, de forma interdisciplinar.

Ainda que os autores pressuponham ser a violência um problema de saúde pública, ideia defendida por Maria Cecília de Souza Minayo e Elenilsa Ramos de Souza,1 1 MINAYO e SOUZA, 2003. e Daniel Costa Lima e Fátima Büchele,2 2 LIMA e BÜCHELE, 2011. os programas expõem pouco sobre as articulações com outros setores da sociedade. Uma vez que a violência é compreendida como sendo multifacetada, enraizada no "sangue" sociocultural, complexa, e que seus efeitos são devastadores em todos os sentidos para as pessoas, entende-se que as ações precisam ser dialogadas e articuladas de maneira interdisciplinar e intersetorial entre as políticas e os serviços públicos como os de saúde, justiça, educação, entre outros, para que ocorra uma transformação social.

Uma dificuldade que poderia ser questionada na obra é a ênfase dada à apresentação das entrevistas em detrimento de mais informações sobre as visitas, o contexto social e cultural onde os programas estão inseridos, a consulta aos documentos, entre outras. (Ocorre que alguns desses temas os autores abordaram em outros trabalhos, como o de Maria Juracy Toneli et al.3 3 TONELI et al., 2013. )

Tal dificuldade, contudo, de forma alguma diminui a contribuição do estudo, uma vez que as pesquisas têm avançado muito mais com relação às mulheres vítimas da violência do que em relação aos homens autores da violência. Entretanto, sabe-se que a violência contra mulheres não é apenas um crime; mais que isso, é uma relação social e culturalmente construída, via de mão dupla, interpessoal. Assim sendo, as ações até agora propostas, a duras penas, mostram-se ainda insuficientes, por atender apenas a uma parte dos envolvidos nessa problemática, não dando conta de sua complexidade.

Uma grande importância da obra é a de transcender os muros da academia, indo ao encontro das realidades vividas pelos profissionais que atuam nos serviços de prevenção e tratamento de violência de gênero. Além disso, também realça questões socioculturais da desigualdade de gênero, éticas, ideológicas, políticas e financeiras que permeiam o combate e erradicação da violência contra mulheres.

Ressalta-se a capacidade dos autores de desmistificar, para o leitor, o autor da violência, mostrando a sua humanidade, as dificuldades, a necessidade de encontrar um caminho diferente para a resolução do problema, abordando a questão da violência contra as mulheres não como um problema individual do homem, mas como produto de uma estrutura sociocultural que a desencadeia. Dentro dessa perspectiva, emerge a possibilidade para os profissionais transformarem suas reticências contra o homem autor da violência em uma postura de nova compreensão e abertura para o diálogo e intervenção.

Os autores do livro são pesquisadores e profissionais comprometidos com a luta pela transformação social de direitos e responsabilidades equânimes de gênero. Seus currículos mostram a heterogeneidade da equipe, o vínculo com grupos/núcleos de pesquisa, uma rica produção científica na área da violência, como também uma prática social e política na área da violência de gênero. Assim, a obra oferece um recurso valioso de referências bibliográficas, com autores expoentes nas áreas de violência, gênero e direitos humanos, enriquecendo o conhecimento sobre violência de gênero, posicionamento crítico e político, e ampliando a visão de mundo dos leitores.

O livro é indicado a profissionais que trabalham com gênero, família, violências, educadores, professores, profissionais da saúde, da justiça (pois a violência de gênero vai além do crime), psicólogos, psiquiatras, gestores públicos, e também a estudantes de graduação em diferentes áreas do conhecimento.

Notas

  • LIMA, Daniel Costa; BÜCHELE, Fátima. "Revisão crítica sobre o atendimento a homens autores de violência doméstica e familiar contra as mulheres". Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 721-743, 2011.
  • MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Elenilsa Ramos de (Org.). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003.
  • TONELI, Maria Juracy Filgueiras; BEIRAS, Adriano; RIED, Juliana. Políticas públicas e programas de atendimento: homens autores de violência contra a mulher. Disponível em: <http://www.cime2011.org/home/panel2/cime2011_P2_AdrianoBeiras_JulianaReid.pdf>. Acesso: 1° jan. 2013.
  • 1
    MINAYO e SOUZA, 2003.
  • 2
    LIMA e BÜCHELE, 2011.
  • 3
    TONELI et al., 2013.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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