Resumo:
Pioneira do movimento modernista português, Sarah Affonso (1899-1983) encontrou por todo seu caminho poderosos entraves concretos e inconscientes definidores do seu destino como mulher e como artista: coadjuvou sua identidade para protagonizar a do esposo e artista vanguardista, Almada Negreiros (1893-1970), e transmutou seu percurso artístico para gerir um projeto familiar. Será, pois, pela consciência da própria artista que apresentaremos à leitora brasileira a trajetória de uma mulher que se vestiu extraordinariamente de liberdade, mas logo despiu-se um pouco dela. Contextualizaremos ainda o seu lugar na história da arte moderna portuguesa retratando as figuras de linguagens e terminologias empregadas pela crítica coeva para defini-la embaixo de uma série de estereótipos ligados antes ao seu gênero que à sua pintura.
Palavras-chave:
Sarah Affonso; mulheres artistas; modernismo; arte ingênua
Abstract:
A pioneer of the Portuguese Modernist movement, Sarah Affonso (1899-1983) encountered powerful concrete and unconscious obstacles along the path that defined her fate as a Woman and as an artist. The wife of the avant-garde artist, Almada Negreiros (1893-1970), hers was a story of enduring an eclipsed identity, her husband had the spotlight, and instead she transmuted her artistic career to the task of managing family life. Through the consciousness of the artist herself, we will present to the Brazilian reader the history of a woman who unfurled the banner of freedom in an extraordinary manner, but who was soon to be deprived of it to a certain degree. We will also contextualise her place in the history of Portuguese Modern Art, referencing the figures of speech and terminology used by contemporary critics to define her work, employing a series of stereotypes that are more closely associated with her gender than with her painting.
Keywords:
Sarah Affonso; Women Artists; Modernism; Naïve Art
Resumen:
Pionera del movimiento modernista portugués, Sarah Affonso (1899-1983) encontró a lo largo de su trayectoria poderosos obstáculos concretos e inconscientes que definieron su destino como mujer y artista: coadyuvó a su identidad para protagonizar la identidad de su esposo y artista de vanguardia, Almada Negreiros (1893-1970), y transmutó su carrera artística para gestionar un proyecto familiar. Es, por lo tanto, a través de la conciencia de la propia artista que presentaremos para las lectoras brasileñas la trayectoria de una mujer extraordinariamente revestida de libertad, pero que pronto se desnudó un poco de ella. Contextualizaremos, por último, su lugar en la historia del arte moderno portugués, retratando las figuras del lenguaje y las terminologías utilizadas por la crítica coeva para definirla bajo una serie de estereotipos vinculados más a su género que a su pintura.
Palabras clave:
Sarah Affonso; mujeres artistas; modernismo; arte ingenuo
História da arte como história das hierarquias
“Ele é o que é. Eu sou o que eu sou” (Maria José de Almada NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 113). A assertiva sentença pronunciada por Sarah Affonso nas conversas registradas por/com sua nora, Maria José de Almada Negreiros, carregou sumariamente o anseio da artista por reverter a soldagem da sua identidade à órbita de José Sobral de Almada Negreiros1 1 Ilustrador, poeta, pintor, dramaturgo, escritor, o multifuncional artista é figura central e incontornável do futurismo português. Ao lado de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros despontou na primeira geração dos modernistas dos anos 1910, atravessando as quatro gerações sucessivas como um dos nomes mais importantes do panorama artístico e intelectual de Portugal na primeira metade do século XX. O artista possui uma bibliografia consolidada e atualizada (Ver: Joana Cunha LEAL et al., 2014; Mariana PINTO DOS SANTOS, 2018) (PINTO DOS SANTOS, Mariana. “Modernismo segundo Almada Negreiros: o lugar da narrativa gráfica”. Morlacchi Editore, v. 4, p. 131-144, 2018; LEAL, Joana Cunha; SILVA, Raquel Henriques da; FLOR, Pedro. “Almada Negreiros”. Revista de Ciências Sociais e Humanas, Série W, n. 2, 2014). (1893-1970).
Nosso interesse por suas memórias partiu da detecção de um evidente deslocamento de discurso e posicionamento social da artista antes e depois do seu matrimônio com Almada Negreiros, tardio para os padrões da época, aos 33 anos. Antes de casar-se, como veremos, Sarah narrou suas lembranças de vida com um olhar agudo, intrinsecamente feminista, questionador do lugar da mulher na sociedade portuguesa e nas artes. Por diversos momentos ela beirou ao discurso subversivo e transgressor, defendendo o direito de liberdade e acessibilidade de espaços às mulheres, consternando-se, inclusive, com a performance requerida historicamente ao “papel da mulher”.
Progressivamente, no entanto, conforme Sarah vai orbitando em torno da figura do esposo Almada Negreiros como o centro da sua centralidade narrativa, percebemos um deslocamento discursivo seja como mulher que como artista. A partir de então, Sarah orquestrou defensivamente a (des)afirmação da sua individualidade profissional, titubeou entre valores burgueses, intimidou-se diante da suposta genialidade do esposo e concretizou, por fim, o papel de doadora/cuidadora de um homem por ela tido como repleto de “infantilidades”.
É preciso que digamos, de princípio, que aqui não se fará nenhum juízo de valor à figura de Almada Negreiros, nem como homem nem como artista. Tampouco adentraremos nos pormenores da relação íntima do casal pois, afinal, não acreditamos que isso seja necessário ao escopo deste artigo. Daremos estritamente atenção ao discurso de Sarah por um recorte de gênero para apresentar à leitora brasileira uma mulher que literalmente vestiu-se de liberdade de uma forma magnífica para a sua época, mas depois, tal qual o lugar-comum do seu tempo, despiu-se um pouco dessa em direção ao paradigma da domesticidade.
Analisaremos também o plano de escrita da arte moderna portuguesa que alocou a fortuna crítica de Affonso emanando de um forjado universo apolítico, maternal, “ingênuo”, de “certo primitivismo encantado”, subtraindo, assim, dentre outras coisas, a sua complexidade e variedade estética em constante diálogo e rompimento com as tradições representativas e vanguardas da sua geração.
Desde ao menos a década de 1970,2 2 Sugerimos aqui dois estudos pioneiros nos campos citados: Joan Scott (1988) e Nochlin (2016) (SCOTT, Joan. “Genre: Une catégorie utile d’analyse historique”. Les Cahiers du Grif, Paris, n. 37-38, 1988). com a maturação e sistematização dos campos de pesquisas pós-coloniais e de gênero, problematiza-se o (não)lugar da mulher na história da arte e a polissemia de termos como “ingênuo” ou, em modo mais expandido, “primitivo” nos fazeres artísticos modernos. Poucos estudos entrecruzam a leitura de gênero à luz de tais glossários e até hoje não há um consenso sobre a aplicação prática de nenhum desses termos.
É certo, porém, que o fazer narrativo fixado pela história das artes visuais modernas ocidentais3 3 Apesar de existirem incontáveis metodologias e formas de se apreender a história da arte moderna de acordo com o tempo no qual foi produzida, a nacionalidade, a cultura, o mercado, quem a institucionalizou e, sobretudo, quem a escreveu, é necessário reconhecer que existe uma “grande narrativa” na história das artes visuais modernas e ocidentais que contou mais ou menos o mesmo ciclo dominante dos movimentos vanguardistas, dos modernismos, dos centros difusores de ideias, dos cânones etc. Nesses termos, as linhas narrativas de interpretações das ideias de como a arte moderna deveria ser vista ou compreendida firmaram suas raízes a partir do final do século XIX e metade do século XX no meio cultural anglo-americano e francês, criando uma bibliografia convencional utilizada massivamente em grande parte dos cursos de História da Arte. valeu-se comumente dessas palavras em voláteis contextos com interesses diversos: de um lado usou-se para a confirmação da autenticidade e autoridade canônica de artistas como Henri Rousseau, Pablo Picasso ou Paul Gauguin, e do outro para epitetar (leia-se estereotipar) arbitrariamente três largas categorias de artistas: as mulheres, os artistas socioeconomicamente marginalizados e os loucos.
Não é nenhuma novidade que a arte moderna fixada no modelo historiográfico hegemônico ocidental jamais poderia ter existido se não fosse pela interação do imaginário europeu com culturas ditas “primitivas”, ou “o outro”. Henri Rousseau não seria Douanier sem o imaginário colonial, Paul Gauguin não seria Gauguin sem o Taiti, Pablo Picasso não seria Picasso sem a África. De modo sucinto e nos valendo da forma totalizante e exclusivista desta grande narrativa que dissolve o múltiplo para isolar referências incontestáveis, se talharmos estes encontros, talhamos o pós-impressionismo e o cubismo e, por conseguinte, talhamos a arte moderna.
Em termos mais diretos, Pablo Picasso decodificou o primitivo, mas foi, acima de tudo, um cubista. Henri Rousseau planificou os matizes puristas dos trópicos e Paul Gauguin apreendeu a cor ingênua do espírito das taitianas, mas eles foram, acima de tudo, pós-impressionistas. Sem grandes delongas, Affonso epitetou-se ingênua, por sua obra e por ela mesma. Vejamos como isso se construiu na prática.
Alinhado à teoria baudelairiana do “artista moderno”, Almada Negreiros, o esposo da artista, cristalizou-se nos registros da primeira geração dos modernistas portugueses como o protótipo do artista “louco”, puro, livre, vanguardista, político, impulsivo, moderno. Affonso, por sua vez, entrelaçou-se à segunda geração amalgamando os papéis de artista mulher e mulher (de) artista (Idalina CONDE, 1995CONDE, Idalina. “Sarah Affonso, mulher (de) artista”. Análise Social, v. XXX, n. 131-132, p. 459-487, 1995.): pintora maternal, ingênua, apolítica, docilmente popular, cheia de renúncia, renunciaria até à própria carreira.
Notemos, contudo, ao regressar aos anos 1910 e 1920, ponto anterior à aliança da artista com Almada, o surgimento de uma nova Sarah: artista inquieta, livre, questionadora, transgressora, moderna (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 47). Dessa artista pouco se sabe.
José Augusto França (1979FRANÇA, José Augusto. O modernismo na arte portuguesa. Lisboa: ICP, 1979.), por exemplo, não considera o trabalho de Affonso nesses primeiros anos. O historiador responsável pela hegemonização da linha narrativa das gerações modernistas portuguesas4 4 É preciso trabalhar com reservas as designações das “gerações modernistas”. Estas, em Portugal, estabeleceram-se nos recortes altamente problemáticos de França (1979; 1984), nos quais os artistas, durando no máximo dez anos produtivos, eram lidos enquanto estanques, isto é, como se não estabelecessem trocas transgeracionais ou não prosseguissem os seus trabalhos após certo tempo e idade. Este artigo refuta as ferramentas que construíram e solidificaram esse pensamento e, ao mesmo tempo, analisa criticamente esses desígnios. colocou Sarah entre os artistas da segunda geração, isto é, entre aqueles atuantes sobretudo nos anos 1930, puxando forçosamente sua fortuna crítica para a etapa pictórica na qual a artista, já casada com Almada Negreiros e mãe do seu primeiro filho, expressaria “um universo feminino de noivados e maternidade”, inspirados por uma “visão ingênua e encantada capaz de ousadias de cor e desenho” (FRANÇA, 1984FRANÇA, José Augusto. A arte em Portugal no século XX (1911-1961). Lisboa: Bertrand, 1984., p. 301-302).
Ignorou-se, todavia, não só suas elaborações modernas dos anos 1910 e 1920, como também a pintura social em torno da mão de obra da mulher no campo (Figura 1), as naturezas mortas dos anos 1930, as paisagens dos anos 1940, e a própria discussão que Sarah estava propondo com a estética lida pela chave “maternal” de obras como Retrato do Filho (Figura 2).
Esse último trabalho, por exemplo, aponta para uma Sarah em completo diálogo com a iconografia classicista da pintura quinhentista italiana, extraindo dali o seu modelo representativo para, então, abandonar todo resquício da superfície tridimensional em direção à planaridade. A artista concretizou o plano horizontal em comunhão ao corpo da criança que vem representada nua, isto é, retendo em si mesma os modelos religiosos da figuração do divino, ou, em outras palavras, do menino Jesus. Sarah, entretanto, sugere novos arranjos de motivo: ela agrega elementos tipicamente populares, nacionalistas e ordinários, o boi, o galo, refundando a pintura divina na percepção comum.
O processo assimétrico de interpretação da obra de arte de uma artista mulher,5 5 Existem múltiplas valências de mecanismos e terminologias empregadas enquanto fator subjugante de expressividade feminina em nome de uma supremacia masculina no fazer artístico moderno. A vasta lista de artistas submetidas ao julgo das regras sociais erigidas por e para os homens perpassa desde artistas socioeconomicamente privilegiadas, como a europeia Marie Laurencin, a artistas brasileiras como Madalena Santos Reinbolt, esta última carregando o brutal fardo do preconceito racial e social, incrustrado na prática pela sua vida e na teoria pela narrativa historiográfica da arte brasileira. Para um aprofundamento da temática, sugere-se o estudo de Elizabeth Louise Kahn (2003), no caso da artista francesa, e Aline Reis Chiarelli (2021), debruçada na poética de Reinbolt (KAHN, Elizabeth Louise. Marie Laurencin: Une Femme indaptée in Feminist Histories of Art. Routledge, 2003; CHIARELLI, Aline Reis. Madalena Santos Reinbolt, memória e arte popular: uma questão para a Arte Afro-Brasileira. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso - Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil). felizmente, está se alterando. Desde o início do século XX, figuras femininas interrogam o posicionamento da arte quando executada por mulheres e isso tomou força a partir da expansão de teorias feministas, sobretudo a partir dos anos 1970, a qual teve suas oscilações, mas com impactos claros em Portugal nas últimas décadas (Filipa VICENTE, 2012VICENTE, Filipa Lowndes. A arte sem história: mulheres e cultura artística (séculos XVI-XX). Lisboa: Athena, 2012., p. 35).
Neste contexto, percebe-se a importância de revisitação da trajetória de Affonso, motivada inclusive pelo questionamento das hierarquias dos objetos artísticos em virtude de seus atributos materiais na história da arte. Até muito recentemente, as artes têxteis, e em particular os bordados, entravam na esteira da assim chamada “arte menor” ou, mais especificamente, de uma arte vista como prática naturalmente feminina e, portanto, menor.
Affonso colocou-se no terreno do bordado e das artes têxteis transcendendo questões estilísticas e hierarquias construídas socialmente. Não à toa a estudiosa norte-americana Ellen W. Sapega (2020SAPEGA, Ellen W. “Portraits, Landscapes, Buttons: The artistic career of Sarah Affonso (1889-1983)”. Diacrítica Revista do Centro de Estudos Humanísticos, v. 34, n. 2, p. 21-28, 2020.) entrelaçou o afastamento da pintura com o direcionamento à produção têxtil subordinado ao contexto sociopolítico no qual a artista viveu, perpassando a questão de gênero por toda sua trajetória.
Em janeiro de 1928, a artista estreou sua primeira exposição individual no Salão Bobone,6 6 O Salão Bobone foi criado em 1889, sob a gerência do fotógrafo Augusto Bobone. O espaço distinguiu-se como uma das principias oportunidades para artistas jovens e vanguardistas exporem seus trabalhos. É frequentemente lembrado como o palco da primeira manifestação do ímpeto modernista da arte portuguesa, em 1911, em ocasião da “Exposição dos Livres”. em Lisboa. Sarah expôs ao todo vinte e duas obras de arte, com os mais variados temas e estilos. António Ferro (1928FERRO, António (catálogo). Sarah Affonso. Lisboa, Salão Bobone, jan. 1928.), autor do texto catalográfico e autoridade máxima entre os críticos de arte de então, apresentou o conjunto da artista com as seguintes palavras:
Sarah Affonso, com as suas bonecas de tinta, com a aldeia em festa da sua palheta, com a varinha de condão do seu pincel, desembarca na pintura portuguesa, como uma boa fada. [...] Sarah Affonso não procura os assuntos. Os assuntos é que a procuram, é que a fazem parar, como uma criança para num jardim, diante duma flor vermelha: Que linda rosa! [...] E tudo sai brinquedo, tudo sai embonecado, tudo sai infantil, duma infantilidade expressiva e reveladora (FERRO, 1928FERRO, António (catálogo). Sarah Affonso. Lisboa, Salão Bobone, jan. 1928.).
Poucos anos depois, em 1930, no I Salão dos Independentes, Affonso esteve presente com cinco obras de arte. Dois retratos, um desenho, um bordado e a tela “Meninas”, premiada em Paris, em 1928. Apesar da crueza cromático-geométrica, solidamente novecentista, elaborada em pelo menos três das cinco obras expostas, nada disso será canalizado na recepção da crítica coeva, cujo único argumento analítico esbarrou nos limites do estereótipo:
Toda a sua pintura “diz” saudades da infância; ou antes; persistência dum “estado” infantil numa consciência já suficientemente “crescida” para aproveitar artisticamente essa infantilidade. A escolha de modelos ainda é a nota mais superficial - embora mais evidente - do seu, digamos, infantilismo: a verdade é que é ao próprio fundo da sua alma, ao condicionalismo do seu próprio temperamento (José RÉGIO, 1930RÉGIO, José. “Divagação à roda do primeiro Salão dos Independentes”. Presença, Coimbra, n. 27, p. 4-8, junho-julho 1930.).
Convém perceber a insistência semântica da infantilização não só na marcação das obras, mas, sobretudo, da própria psique da artista. Comparecem no veredito de Ferro e Régio fatores determinantes para que entendamos a conjugação arbitrária da aplicação de certas terminologias na arte moderna.
De volta em 1928, celebrando a seleção da obra “Meninas” (Figura 3) pelo Salão de Outono de Paris, Ferro afirmou que “o quadro de Sarah Affonso, adorável de frescura e de ingenuidade intencional, foi colocado numa das melhores salas do Grand Palais”. A importância emblemática da seleção francesa, direcionada a uma tela na qual havia como motivo duas crianças, realçou e deu força à leitura do “ingênuo” como estrutura paradigmática do seu lugar na pintura portuguesa, porém a “adorável frescura” de “ingenuidade intencional”, descrita por Ferro, derrubou desde o princípio a parede interna da pintura em direção à própria artista, pois nada reverbera frescor ou intenção ingênua nos sólidos contornos dessa obra.
Interessante indagar-nos se semelhantes soluções aplicadas pelas mãos de outros artistas, como, por exemplo, um Amadeo Modigliani, com Bambina in azzurro (Figura 4), evocariam semelhante leitura. Aparentemente, não. Seu quadro de centralidade temática infantil foi inclusive recebido, lido e consagrado como uma obra-prima. As motivações para a consagração passaram longe de uma eventual “ingenuidade intencional” de Modigliani, incidindo-se, antes, na análise criteriosa dessa produção em diálogo com as estéticas do artista como um todo, encerrando-se a ingenuidade e seus derivados estritamente aos limites da imagem operada, muito distante da persona do artista.
O caráter polissêmico adquirido no uso dessas terminologias na história da arte moderna, aplicadas em discrepantes e instáveis perspectivas serviu, aparentemente, a um objetivo pouco nobre: hierarquizar posições e conservar fortemente o estado das coisas. Nesse rumo, a hierarquia, parte integrante do fenômeno das modernidades, não foi fixa em seus pontos, mas realocou-se de acordo com o referente ao qual foi aplicada.
No caso do modernismo brasileiro, por exemplo, Tarsila do Amaral é uma exceção. A artista teve um imenso protagonismo na arte moderna brasileira, flertou com as diversas facetas do “primitivismo”, porém jamais recebeu a alcunha de pintora “ingênua”, talvez por isso mesmo tenha entrado ao lado das figuras masculinas no panteão da arte moderna brasileira. Importante lembrar, no entanto, como bem pontuou a socióloga Ana Paula Simioni (2022SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres artistas: nos salões e em toda parte. São Paulo: Arte123, 2022., p. 06), que a centralidade de Tarsila, sem a devida reflexão das motivações para tal exceção, pode “ter um efeito indesejado e perverso: o de ofuscar a existência de diversas outras artistas mulheres, tanto as que lhes antecederam quanto as que lhes foram contemporâneas”.
Um outro ponto interessante de se sublinhar é que o fato de o trabalho conceitual do “primitivo” entre os e as artistas do mainstream europeu e latino-americano, embora ambos assentados em raízes hierárquicas sociais, raciais e de gênero, adquiriu papéis socioculturais muito diversos em ambos os contextos. Isto é, enquanto, no caso europeu,7 7 Embora correntemente tenhamos o hábito de englobar a ideia do “europeu” dentro de uma única unidade cultural, é preciso que compreendamos que o processo histórico das modernidades foi absolutamente diverso dentro da própria Europa. o primitivo foi tomado como a via de saída para a decadência das tradições clássicas e a renovação de uma linguagem moderna, no caso brasileiro, a ideia do “primitivo” foi apropriada por um formato nacionalista e elitista de autoafirmação e ação anticolonialista contra os próprios domínios europeus.
Entre dois modernismos
Ilustradora, pintora, bordadeira e desenhista, Sarah Affonso (Figura 5), artista multiforme, é pouquíssimo conhecida no Brasil. A última substancial exposição da artista no país ocorreu com a representação portuguesa na II Bienal de São Paulo (CATÁLOGO... 1953II BIENAL DE SÃO PAULO. Catálogo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1953., p. 279-281).8 8 A sala portuguesa na II edição da Bienal de São Paulo foi organizada pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), o órgão responsável pela propaganda política cultural externa do ditador António de Oliveira Salazar. Neste ano, coube ao historiador José Augusto França a organização e a curadoria de um amplo conjunto de artistas, contabilizando, no total, 36 artistas e 137 obras expostas. O debuto da artista no país, no entanto, remonta ao ano de 1933.
Walter Zanini (1991ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: o Grupo Santa Helena. São Paulo: Nobel/EDUSP, 1991., p. 54-55), distinguindo a complexidade do ambiente artístico de São Paulo na primeira metade do século XX, relembrou que, nos anos 1930, apenas de forma muito esporádica circulavam exposições de coleções ou artistas estrangeiros no Brasil. Uma das iniciativas que Zanini demarcaria como crucial para o ingresso da arte moderna internacional no Brasil foi a I Exposição de Arte Moderna, da Sociedade Pró-Arte Moderna,9 9 Criada em 1932, a Sociedade Pró-Arte Moderna agrupou artistas de diversas áreas, com vistas a promover exposições e mercados de arte, circulações de artistas afinados ao ideário moderno e modernista. Desde a fundação, participaram da Sociedade nomes como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Anita Malfatti e Lasar Segall, entre outros. Após a formulação dos estatutos e da primeira comissão executiva da sociedade, a SPAM concretizou os seus objetivos, em 1933, com a I Exposição de Arte Moderna, reunindo os grandes nomes do modernismo brasileiro e internacional. Ao que tudo indica, muitos artistas estreitaram relações e parcerias justamente por conta dessa exposição. que ocorreu em 1933, na cidade de São Paulo. Nessa exposição, o historiador rememora o impacto no cenário brasileiro da presença de dezesseis artistas da então soberana Escola de Paris: André Lhote, Edouard Vuilard, De Chirico, Picasso, Léger, Juan Gris, Brancusi, Gleizes, Lipchitz, Delaunay, Dufy, Marie Laurencin, Foujita, François Pompon, Joseph Csaky e, por fim, Sarah Affonso, presente no catálogo com a obra “Lisboa”10 10 No catálogo da exposição, a pintura de Sarah consta como pertencente à coleção de Olívia Guedes Penteado, contudo, não foram encontradas informações a respeito do paradeiro ou das tratativas entorno da aquisição da obra. e nomeada por Zanini, duas décadas depois, como “Sarah Affonso de Almada Negreiros”.
Para além do apagamento da artista enquanto sujeito de identidade própria, queda, porém, um enigma: Como se deu a relação de Sarah com esse ambiente modernista brasileiro? Até o presente momento, não há nenhum estudo direcionado à participação de Sarah naquele contexto, nem em Portugal e tampouco no Brasil.
O nosso desconhecimento da artista, entretanto, não é um fato isolado, valendo a pena irrompermos sucintamente neste ponto antes de voltarmos nossa atenção ao caso da artista.
O modernismo português, quando refletido junto ao francês, italiano, alemão ou norte-americano, aparece eclipsado na linha interpretativa que deu a tônica para a visão historiográfica da arte moderna brasileira. Desde as elaborações prognósticas dos anos 1920 e 1930, notadamente aquelas circulantes em São Paulo, até a institucionalização e formulação crítica do moderno, entre os anos 1940 e 1960, sublinhou-se marcadamente a ausência de Portugal.
Decerto, em 1925, Mário de Andrade afirmou ao poeta Carlos Drummond de Andrade (1982ANDRADE, Carlos Drummond de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982., p. 22) que Portugal não era nada além de um “paisinho desimportante para os modernistas”. Descendente direto dos portugueses e das tradições portuguesas (Leonor XAVIER, 1986XAVIER, Leonor. Fala de Viver. Rio de Janeiro: Difel-Bertrand, 1986., p. 77-99), Andrade (1924ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poesia Brasileira”. Diário de Minas, Belo Horizonte, 17 de outubro de 1924.) concluiu, por sua vez, que Portugal produziu “Os Lusíadas” e morreu.
Já nos anos 1950, Antônio Cândido de Mello e Souza (1965SOUZA, Antônio Cândido de Mello. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965., p. 140) estruturou um paradigma para a teoria literária moderna, reiterando que Portugal foi “simples e puramente” desconhecido pelo modernismo brasileiro. De acordo com Souza (1965, p. 134), se, no século XIX, o Romantismo concedeu espaço para a atuação de autores lusitanos como António Nobre, o último a comunicar-se com a literatura brasileira, no século seguinte não existiu lugar para os portugueses.
Em linhas gerais, existe um significado operatório nesta formulada historiografia na qual prosseguir o diálogo com Portugal era tomado como sinônimo de prosseguir a colonização. Aplicado nesses termos, é compreensível que tenha partido dos portugueses a iniciativa de expor sistematicamente, de modo programático, as pontes de interlocução entre os dois modernismos.
Nos anos 1980, Arnaldo Saraiva, amigo próximo dos poetas Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, publicou um estudo-referência no qual desvelou o intenso intercâmbio entre os modernistas de lá e de cá até mais ou menos 1926 - a nível publicitário e literário, com notável referimento às revistas luso-brasileiras nas quais os modernismos se tocaram (e.g. Águia, Orpheu, Atlântida, A rajada e Terra do Sol).
Por um lado, Saraiva (2015SARAIVA, Arnaldo. O modernismo brasileiro e o modernismo português: subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015., p. 105-133) comprovou a atuação dos brasileiros nas gêneses do modernismo português ao explicitar que a meteórica “Orpheu”, marco zero do movimento em Portugal, foi concebida em 1914, no Rio de Janeiro, em Copacabana, fruto de uma conversa entre o escritor e futuro colaborador da revista, o brasileiro Ronald de Carvalho, e o português Luís de Montalvor. Por outro, trouxe à tona a longa relação de amizade entre Oswald de Andrade e António Ferro, distinguindo a carta na qual Andrade confere a estadia de Ferro no Brasil ao “apoio à atitude iniciada pelos modernistas de São Paulo” (SARAIVA, 2015SARAIVA, Arnaldo. O modernismo brasileiro e o modernismo português: subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015., p. 397).
Percebe-se por todo o estudo de Saraiva o esforço para horizontalizar o debate entre os dois fenômenos modernistas enquanto inter-relações econômicas, sociais, ideológicas, estéticas, culturais, em micro/macro esferas (trans)nacionais. Contudo, não se pode deixar de articular os signos da violência suscitados no cerne desta resposta disruptiva.
No campo da história da arte moderna brasileira e portuguesa são escassos estudos inter-relacionados dessa magnitude. Atualmente, porém, assistimos a uma crescente atenção à interlocução destes fenômenos em recentes publicações. Recorda-se, por exemplo, o catálogo expositivo de Candido Portinari em Portugal, com especial referimento ao texto de Luciene Lehmkuhl (2021LEHMKUHL, Luciene. O Café́ de Portinari na Exposição do Mundo Português - agente catalisador do neorrealismo. Rio de Janeiro: Anais do Museu Histórico Nacional, v. 54, 2021., p. 18), que recupera o pensamento historiográfico de França, ao posicionar Candido Portinari como catalizador do neorrealismo português.
Outra importante contribuição chegou pela tese de doutorado de Lígia Filipa Dias Afonso (2018AFONSO, Lígia Filipa Dias. O SNI e a Bienal de São Paulo na génese da internacionalização contemporânea da arte portuguesa (1951-1973). 2018. Tese de Doutorado (História da Arte especialidade Museologia e Patrimônio Artístico) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.), na qual a investigadora desvendou os esforços contínuos de França por organizar junto ao Secretariado Nacional de Informação (SNI) as representações portuguesas nas Bienais de São Paulo, confirmando, assim, o papel crucial da exposição brasileira no processo de exportação, ou melhor, os “dias de saída” (FRANÇA, 1955FRANÇA, José Augusto. “Ideia para a representação da III Bienal de São Paulo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, fev. 1955.) da arte moderna e contemporânea portuguesa em tempos salazaristas.
Pensa-se, ainda, nas duas recentes exposições de Affonso, “Sarah Affonso e a arte popular do Minho” e “Sarah Affonso: o dia das pequenas coisas”, que trouxeram o modernismo brasileiro como ponto de apoio historiográfico para a releitura da obra da artista e a teorização do popular na arte moderna. A curadora Ana Vasconcelos reclamou Tarsila do Amaral como aporte analítico à estética do popular em Affonso:
Apesar das muitas e óbvias diferenças entre as duas pintoras, o paralelo é possível entre as obras de Tarsila do Amaral de 1924 e a de Sarah Affonso de 1937 que convoca as memórias da infância como os seus coloridos festivos, como na volta de criar uma obra que ligue visualmente a experiência mais local do popular à intencional formulação de uma cultura nacional (VASCONCELOS, 2019VASCONCELOS, Ana. Sarah Affonso e a arte popular do Minho. Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian, 2019., p. 16).
Embora estejamos caminhando em direção a este diálogo transatlântico, é preciso ainda muito trabalho e investigações que se dediquem a traçar e inter-relacionar, por exemplo, a incorporação da arte moderna portuguesa em acervos e coleções brasileiras, e vice-versa.
Sarah Affonso por ela mesma e pela crítica
Delimitado o campo de atuação no qual estamos inseridos e por onde nos movimentaremos, podemos finalmente partir para os testemunhos de Affonso. Proferidos ao longo de um ano de conversas gravadas com/por sua nora, Almada de Negreiros, a diversidade de perspectivas que podemos incidir nas memórias da artista é quase infinita.
Para os interesses desse artigo, daremos uma especial atenção à leitura de gênero, analisando as subjetividades do seu discurso como produtor de narrativas sem, contudo, ignorarmos seu fator social.
Sarah Sancha Affonso nasceu em Lisboa no dia 13 de maio de 1899. Filha mais velha de seis irmãos, o referencial paterno, figura ativa no processo de colonização portuguesa na África, apareceu em suas memórias como a adjetivação assertiva de uma infância segura, com posterior apoio financeiro na adolescência. Descendente de argentinos, a mãe vem descrita por Sarah com elementos que remetem à antinomia do pai, figura “fraca”, passiva, que “não se impunha”.
Os polos assimétricos representados pelos progenitores retratam agudamente o formato da relação conjugal expressiva por todo o século XIX e início do século XX. Isto é, o pacto consentido com a hegemonia masculina que prevê a absorção total da identidade feminina em troca do “sentido da sua existência” (Gilda CHARRIER, 1988CHARRIER, Gilda. “Vie commune et pensée célibataire”. Dialogue, Paris, n. 102, p. 44-53, 1988., p. 51).
A artista iniciou seu relato resgatando a infância em uma pequena província portuguesa à beira-mar, ao norte do país, na região do Minho, chamada Viana. Entre cenas cotidianas, ritos, tradições, feiras, procissões e arraiais - tema futuro para suas interjeições artísticas - Sarah fotografou especialmente um caso de violência doméstica no Convento de S. Tiago:
Havia lá uma rapariga nova, casada com um merceeiro, que era um bêbado desgraçado, e ela farta de o aturar quis matá-lo. Deitou-lhe vidro moído no vinho (é fácil encontrar vidro moído, porque o Minho é o sítio dos fogos de artifício, e o fogo de artifício é feito com vidro moído), mas ele desconfiou e meteu-a dentro desse convento, senão tinha que a entregar à polícia (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 21).
A invalidez da existência feminina fora do matrimônio e, ainda, a impossibilidade de separar-se de forma legítima (o direito do divórcio só foi instituído em 1910) e autônoma (em uma eventual ruptura das relações conjugais, a situação das mulheres jamais seria igualitária à dos homens) carregaram milhares de mulheres para dentro de relações sujeitas a todo tipo de abusos, tal qual expressos com indignação por Sarah.
O caso, repleto de simbolismos, do aprisionamento religioso após a revolta de uma mulher contra as violências de um homem dependente químico, porém, ainda assim, responsável pelo seu destino, desponta como as primeiras impressões de Sarah a respeito do lugar do feminino na vida conjugal e das possíveis alternativas que ela própria teria, caso prosseguisse naquela circunstância social:
Adorei viver em Viana, mas tenho horror de pensar que se a minha mãe fosse minhota tínhamos lá ficado toda a vida; em Viana a rapariga que não tivesse dinheiro também não tinha futuro. Ou se casava, geralmente mal, ou não se casava. [...] Era só. Não havia saída para a mulher. Era casar-se ou ficar solteira! (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 22).
Com 11 anos arriscou seu primeiro desenho, uma folha (Figura 9). Chamamos especial atenção para esta expressividade inicial pois ela adquire um significado cíclico e filosófico no fim da vida de Sarah, como acompanharemos mais para a frente.
“Por sorte”, como disse, quando adolescente, mudou-se com a família para Lisboa e, por incentivo de uma vizinha, entrou na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1915. Sarah fez questão de pontuar que o apoio partiu da vizinha “toda atirada para a frente” e não da sua mãe.
O acesso das mulheres às escolas superiores naquele início do século não era algo habitual, embora publicamente discutido na sociedade portuguesa desde a última década do século XIX. Contavam para o debate as propostas das primeiras feministas que circulavam e eram sentidas, ainda que com grande dificuldade de difusão por conta de uma forte resistência entre a elite portuguesa (Carlota Maria PEDRO, 2006PEDRO, Carlota Maria. Educação feminina no século XIX em Portugal: em busca de uma consciência. Lisboa: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, 2006., p. 142-192).
Naquele mesmo ano de 1915, emblemático levante antifeminista partia das Cartas às Mulheres, publicadas pelo professor e escritor Eurico de Seabra (1915SEABRA, Eurico de. Cartas as Mulheres. Lisboa: Porto Médico, 1915., p. 139-141). A longuíssima missiva solicitou às portuguesas que “resistissem” com sua “emotividade e beleza de mulher” ao modismo do “sexo frágil inglês”. Além de atribuir as lutas feministas como fenômeno estrangeiro e, portanto, não pertencente às mulheres portuguesas, na ânsia da manutenção do status quo masculino, Seabra lançou mão de uma estratégia muito sutil que vinha lá do século XVIII, atravessou gerações e ainda, pasmemos, tem força o ataque ao físico feminino:
A mulher inglesa é uma criatura que me causa calafrios. Vê-la discursando num comício ou dando canivetadas sacrílegas num quadro de pintor célebre - dá-me apetite de estrangulá-la.11 11 Importa contextualizar: Eurico de Seabra referia-se ao gesto da sufragista Mary Raleigh Richardson que, em 10 de março de 1914, entrou na National Gallery, de Londres, e perfurou com facadas a pintura “Vênus ao Espelho” do artista espanhol Diego Velázquez. O ato de Richardson era contestatório à prisão de Emmeline Pankhurst, nome incontornável do feminismo ocidental e uma das grandes líderes do movimento sufragista inglês, na luta pelo direito do voto feminino. [...] Aparece-me desnalgada e esquelética [...]. Na boca negreja-lhe, entre o fumo, um cachimbo de marinheiro. E quando fala, não fala de Amor. Fala de direitos e reivindicações. Já ouvi dizer que havia sufragistas e feministas bonitas. Tu acreditas? Eu, por mim, não acredito (SEABRA, 1915SEABRA, Eurico de. Cartas as Mulheres. Lisboa: Porto Médico, 1915., p. 142-143).
Sarah frequentou a Escola de Belas-Artes de Lisboa por quatro anos e foi uma das únicas artistas entre os modernistas da sua geração a ter concluído o curso. Já formada, expôs pela primeira vez coletivamente, em 1923. Dali, uma crítica consistente do jornalista anarquista Mario Domingues12 12 Mário Domingues nasceu dia 3 de julho de 1899 na antiga colônia portuguesa de São Tomé e Príncipe. Das memórias de Sarah ficamos sabendo que ele escrevia em periódicos sindicalistas e lutava pelos direitos dos proletariados, mas acrescentamos que não só. Domingues defendeu incisivamente a liberdade das colônias portuguesas da África e defendeu a criação de organizações para proteger a cultura africana. Conforme Sarah recordou, o ditador Salazar fechou o diário tão logo subiu ao poder. chamou a atenção dos seus pares e motivou sua ida para Paris no ano seguinte:13 13 A artista recortou o excerto do jornal com as palavras de Domingues e enviou ao pai, então na África por afazeres militares coloniais, solicitando apoio financeiro para sua primeira ida a Paris. O pai da artista enviou o dinheiro para a viagem de trem e para os seus primeiros meses de adaptação. A vida e a produção de Sarah à luz do contexto francês não possuem, ainda, uma unidade interpretativa ou estudo aprofundado.
D. Sarah Affonso devia - que nos seja permitido dar conselhos - fazer as malas, meter-se no sud-express e desembarcar em Paris. Nessa cidade entregar-se-ia ao estudo de pintores modernos e antigos, clássicos e bizarros. [...] Ao cabo de seis meses ou de um ano de permanência em Paris, não andaria mal Sarah Affonso empreender uma viagem até à Alemanha. Aí completaria a sua educação artística, analisando toda a pintura moderna alemã e russa (ALMADA NEGREIROS, 1989ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Sarah Affonso. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989., p. 15-16).
A determinação do crítico corresponde à premissa do tema e da execução da arte moderna por Sarah. Um olhar atento para a produção da artista antes de sua ida para Paris nos diz que Sarah atribuiu à sua arte, já em 1918, a capacidade de subverter uma velha sociedade regida pelos olhares masculinos que moldaram todo o seu tempo.
A obra “Piquenique” (Figura 6), por exemplo, marca a escolha do seu motivo como um fator de nada acidental ou intuitivo. Sarah estava interagindo diretamente com a posição antinormativa, em prol da espontaneidade, firmada em Le déjeuner sur l’herbe, de Édourad Manet (Figura 7). A artista, no entanto, mudou integralmente o eixo da verossimilhança masculina em direção à verossimilhança feminina, respondendo à dimensão do espaço mediante traços circulares e reduzidos, elaborando a antítese da servidão feminina à órbita masculina sob protagonismo ativo e central das mulheres.
Nada disso foi apreendido pelos seus pares, que concederam a essa fase pictórica uma atenção historiográfica mínima, para não dizer inexistente. José Augusto França (1979FRANÇA, José Augusto. O modernismo na arte portuguesa. Lisboa: ICP, 1979.), por exemplo, nem mesmo a considerou.
As supracitadas exposições dedicadas à Sarah, “Sarah Affonso e a arte popular do Minho” e “Sarah Affonso: o dia das pequenas coisas”, reuniram, pela primeira vez, um conjunto vasto de obras da artista que propiciaram uma compreensão mais abrangente da sua consciência histórica, poder semântico, pesquisa de estilos e transições temáticas. Contudo, ainda que de incomensurável relevância, as mostras não colmaram a lacuna de uma unidade interpretativa focada no início da carreira da artista. Os primeiros anos produtivos de Sarah são, até os dias de hoje, um ramo desconhecido e aberto à pesquisa.
Ao reexaminarmos as interpretações coevas das obras de Sarah, percebemos a insistência ao caráter supostamente ingênuo, inclusive amador, de um “pintor de domingo”, sufocando a artista. A sua fortuna crítica foi erigida em paradigma da pintura intuitiva, sem um diálogo geracional ou questionamento estético da sua premissa artística.
O profundo descaso da crítica incomodou a própria Sarah, que se mostrou, já naquele tempo, completamente consciente do que ali estava em jogo: “parece-me que encaram a minha arte - que eu muito prezo e à qual me consagro toda - com o ar descuidoso de quem olha os brinquedos das crianças. É isso que me custa; e é contra isso que eu quero lutar” (AFFONSO, 1928AFFONSO, Sarah. “Vida Artística - A pintora Sarah Affonso fala-nos sobre arte moderna”. O rebate, Lisboa, p. 4, 26 de janeiro de 1928., p. 4).
A primeira estadia em Paris, com apenas 22 anos e sozinha, é sublinhada como uma “das poucas boas recordações da juventude”. “Viajar e andar sozinha” trouxeram para Sarah instantes de “deslumbramento” nos quais “passava muito bem sem a família” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 28).
Entretanto, em menos de oito meses na capital francesa, teve de regressar para Lisboa para cuidar de sua mãe adoecida. Embora, nas conversas com a nora, a artista apontou apenas brevemente entre reticências e pausas a frustração que lhe atingiu ao interromper o caminho profissional em nome do cuidar familiar, é possível ter uma ideia do quanto a decisão lhe pesou por meio de uma carta à escritora Fernanda de Castro:
Estou resolvida a partir em vista da doença de minha mãe. No entanto, até ao último momento espero notícias mais tranquilizadoras. Agarro-me a todas as esperanças como náufrago à boia de salvação. O coração aconselha-me a partir, a consciência a ficar... entre estas duas lutas estou completamente desorientada e não sei que resolução tomar (Carta de Sarah Affonso (1928AFFONSO, Sarah. “Vida Artística - A pintora Sarah Affonso fala-nos sobre arte moderna”. O rebate, Lisboa, p. 4, 26 de janeiro de 1928., Paris, França), para Fernanda Castro (Lisboa, Portugal)).
A frustração do retorno transmutou-se em uma aguda crítica social feita por Sarah ao pacato teatro da performance feminina/familiar tradicional:
[...] era uma chatice, os preconceitos que havia, as mães não deixam ir as filhas sozinhas para a praia. Os piqueniques, os passeios, as mamães iam sempre. Era uma coisa terrível! E eu já era mais velha, já tinha estado em Paris, achava as mães umas estúpidas, a darem opiniões parvas, e a conversa delas ainda era mais indecente que qualquer outra conversa; era dizer mal das amigas e dos maridos das amigas. A conversa delas era só aquilo e julgavam-se muito morais! Era uma vida estúpida em Portugal, ela ainda é, mas ser rapariga no meu tempo era bastante difícil (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 47).
Ao equacionar o universo maternal e submisso à diminuição do intelecto da mulher, percebe-se que Sarah repudia as vivências domésticas sem atentar-se, ou melhor, sem possuir, naquele instante, as ferramentas justas para uma elaboração mais complexa dos tentáculos que controlavam aquele sistema performático.
No entanto, o seu repúdio pelo espaço que lhe era reservado enquanto mulher atuou, nesse instante, como um movimento de ação e protesto na medida em que a artista, subvertendo a barreira espacial do domínio masculino, conquistou o seu lugar no café lisboeta “A Brasileira”, o icônico ponto de encontro da vanguarda portuguesa:
Era eu sozinha. Fazia aquilo por desafio, tinha vindo de Paris de forma que trazia um encanto dentro de mim, uma certeza de certas coisas, e porque é que eu não hei de entrar na “Brasileira”? Não é por gostar de café, que eu não gostava. Mas como as mulheres não entravam, eu entrei. E, como era nova ficavam todos a olhar, uns riam-se, mas depois habituaram-se e já não ligavam (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 73).
Decidida ainda a retornar para a França, Sarah passou quatro anos produzindo “almofadas, cortinas” para juntar dinheiro para a nova ida a Paris, objetivo que ela atingiu em 1928. Entre a primeira e a segunda estadia na cidade das luzes, no entanto, a artista jamais deixou de expor. Continuamente se fez presente em exposições como os “Salões de Outono”, de 1924 e 1926 (Figura 8), ou, ainda, na individual, em 1928, da Galeria Bobone.
Neste arco temporal, embora Sarah tenha produzido um conjunto estético alinhado às experimentações analíticas do Retorno à Ordem, altamente em voga naquela década de 1920, e ascender, para além disso, à revolucionária imersão da centralidade feminina enquanto sujeito de ação, a crítica de arte coeva insistiu em epitetar sua pintura ao caráter “infantil e ingênuo” (Manuel MENDES, 1929MENDES, Manuel. “Exposição Sarah Affonso e José Tagarro”. Seara Nova, n. 191, p. 365, dez. 1929.), com pinceladas de certo “primitivismo encantado” (Artur PORTELA, 1929PORTELA, Artur. “No Salão Bobone: A exposição de pintura inaugurada hoje”. Diário de Lisboa, p. 4, dez. 1929.) de “ternura recatada” (Vitorino NEMÉSIO, 1930NEMÉSIO, Vitorino. “1. Salão dos Independentes (Escultura - Pintura - Desenho)”. Seara Nova, Lisboa, n. 208, abr. 1930.), subjugando-a continuamente, enquanto artista e mulher, a uma esfera infantilizada, apolítica e a-geracional.
Ao reter agudamente as memórias da capital francesa, Sarah teceu considerações a respeito da aprendizagem de técnicas de pintura em tecido adquiridas em um ateliê de costura no qual trabalhou com russas fugidas da Revolução de 1917, criando mercadorias para “clientes americanas ricas” (ALMADA NEGREIROS, 1989ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Sarah Affonso. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989., p. 27). Pontuou as implicações do auge das experiências abstratas circulantes em Paris, mas que, segundo a artista, nunca a interessaram, e, por fim, tratou da forte amizade com a escritora Fernanda de Castro que, naquele ano, estava em Paris junto com o esposo António Ferro.14 14 Interessante lembrar que, além de o casal Castro e Ferro ser amigo próximo de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (e todos circularem por Paris naquele 1928), a figura de Fernanda de Castro foi pintada por ela e por Tarsila do Amaral, em 1928 e 1923, respectivamente.
A nova promessa de uma estadia na França interrompeu-se poucos meses da sua chegada na capital. Fatalidades familiares devido à saúde frágil da mãe, reiteradamente, puxaram a artista de volta a Lisboa. Sarah regressou para o território lusitano e, com a morte da mãe, decidiu não mais se mover para fora.
Sarah Affonso, mulher (do) artista
Após o retorno definitivo a Portugal, Affonso estreitou a convivência com o artista de quem já conhecia a “fama de maluco”: Almada Negreiros. A artista nos concede poucos detalhes a respeito do breve período de namoro entre eles. Segundo Sarah, casaram-se “três ou quatro meses depois” de estreitarem uma amizade, em 1934. O primeiro filho do casal nasceu no mesmo ano do casamento, a segunda filha oito anos depois.
Curiosamente ela nos introduz à problemática do matrimônio não por suas próprias palavras, senão dando voz ao amigo em comum dos artistas, António Pedro, quem, segundo afirmou, teria advertido “[...] olhe, acho que o Almada faz um bom casamento, você não” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 72).
Embora expondo o alerta profético de uma díade desequilibrada, Sarah vestiu-se de uma certa missão salvadora para convencer-se - e talvez justificar a domesticidade - que aquele homem “agarrado no fim”, “se não tivesse casado, tinha estoirado!” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 80).
Ela explica que Almada, por um lado, vinha de uma sólida consagração junto aos vanguardistas da geração Orpheu, mas, por outro lado, circulavam críticas pejorativas quanto ao seu possível caráter ultrapassado, que “já deu o que tinha que dar”, “vencido da vida”. Sarah se valerá justamente desse argumento para interiorizar a ideia de que era preciso proteger Almada dos ataques externos, estampando a abdicação da sua individualidade em prol da salvaguarda hegemônica do esposo.
Em seu discurso narrativo, a artista deixou entrever por meio de linguagem titubeante (ora expondo a injustiça ora justificando-a) certa frustração por seu papel doméstico, subjetivando os desequilíbrios do casamento enquanto uma escolha voluntária sua, afinal, ela sujeitou-se “porque admirava muito Almada. Se fosse por outro homem qualquer, penso que não! Mas, pelo Almada, achava bem, achava natural” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 65).
A admiração pelo esposo converteu-se em um danoso pareamento para competir suas capacidades. Ela inclusive colocou em jogo a formação acadêmica na Escola de Belas-Artes, que Almada não realizou, como distinção para uma efêmera “superioridade” e assistência ao artista, pois, afinal, ela possuía conhecimentos técnicos e “isso ele não conhecia” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 83).
Contudo, não houve espaço para igualdade de voz ou troca. Sarah relembrou que o esposo até escutava seus conselhos, contudo, não admitia que os levava em consideração ou até mesmo que eram intelectualmente válidos. “Tu não percebes nada disto”, ele dizia (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 127).
Ao se posicionar em um lugar assistente enquanto mulher (do) artista, Sarah passa a imprimir a si própria uma certa indiferença, de todo discrepante ao seu histórico de vida pregressa, por sua autonomia de mulher artista:
Nunca tive encomenda! E, depois, eu entretinha-me com tanta coisa! Há tanta coisa com que a gente se pode divertir e ser feliz. Para mim, só pintar não era felicidade. E, depois, eu também não gosto de vender os meus quadros. Ainda se os vendesse bem! O José (Almada) vendia desenhos por 1000$00. Mas a maior parte dava-os. Só tinha interesse em fazer as coisas e depois desligava (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 80).
Ainda que pudesse mercantilizar seus desenhos, Almada muitas vezes “dava-os” ao posto de buscar vendê-los. As faltas daquele homem no projeto doméstico/financeiro da família, no entanto, são apaziguadas por uma Sarah que compreende sua condição de artista “puro”:
O José (Almada) rebentava com todos os contratos, como tudo se a menor coisa não corria bem. Não se prendia pelo dinheiro, apesar de precisar de dinheiro como toda a gente. Tinha coragem demais para a vida. E eu é que me lixava, olha que durante anos não pude ler um livro de tal maneira andava obcecada, não tinha o pensamento fixo, não lia uma história, lia só assuntos, revistas, coisas assim. Livros, não era capaz. Mas era um homem sério. Um artista mais puro e tudo isto era compensado com a sua convivência (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 76).
Pese a hibridação entre verbalizar o seu próprio esgotamento e o apaziguamento do esposo com “coragem demais para a vida”, Sarah foi mais adiante: “Eu não tinha um quarto para ficar 5 minutos sozinha! O Zé (seu primeiro filho) em pequeno apanhou não sei quantas intoxicações”. Questionada da inexistência paternal nos cuidados com o filho, afirmou “o José tinha um poder de abstração enorme” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 78).
Dessa formulação pretensamente simples pulula uma brutal realidade que a condicionou e conectou com o passado de Virginia Woolf (1882-1941) e o futuro de Linda Nochlin (1931-2017).
Woolf (1929WOOLF, Virginia. A Room of One’s Own. Londres: Hogarth Press, 1929.) produziu o célebre ensaio ficcional “A room of one’s own - Um teto todo seu”, no qual nos apresenta uma personagem fictícia que, ao receber um convite para proferir algumas palestras universitárias a respeito da presença de mulheres na escrita de ficção literária inglesa, interroga-se com ironia: como afinal abordar a presença de mulheres se haviam apenas umas poucas dúzias de mulheres escrevendo ficção na Inglaterra daquele século XX? Invertendo a ordem do pedido, a autora pergunta: por que afinal não há mulheres escritoras da literatura?
A resposta de Woolf estava em Affonso: a ausência de um quarto, trocando em miúdos, a privação de um espaço apenas seu - e alguns livros (ou tempo) para ler. A apreensão ficcional de Woolf desatou o primeiro nó de uma longa e tortuosa corda de interrogações aportadas, nos anos 1970, no escopo referencial do artigo de Nochlin (2016NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Aurora, 2016. Disponível em Disponível em http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ensaio6.pdf . Acesso em 01/11/2022.
http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ens...
): “Why have there been no great women artists” - “Por que não houve grandes mulheres artistas?”.
A análise de Nochlin é transmutável para a historicidade de Affonso, do início ao fim. De fato, quando analisamos a díade conjugal, cada um deles desempenhou as funções que lhes foram tradicionalmente desenhadas: ela performando a abdicação da sua própria carreira artística na missão de gerir o sistema conjugal e familiar; ele com direito à “abstração” e à criação. Conserva-se ainda o modus operandi do sistema das artes criado e controlado por figuras masculinas para alçar homens aos postos de protagonistas desta história da arte, na qual as mulheres são excluídas arbitrariamente, isto é, nem mesmo se prosseguisse “lutando” por sua condição de artista, Sarah, naquele contexto, escaparia do posto complementar à narrativa central. Era uma batalha perdida.
Nesses termos, é muito interessante atentar para o fato de que Sarah interiorizou essa exclusão, elaborando ela mesma a distinção entre fazer artístico descartável e aquele imprescindível, pois, afinal, nas palavras dela “[...] se ele era um grande pintor e desenhador, para quê eu?” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 65). De fato, “[...] um dia, tinha começado uma maternidade e o José olhou e disse “boa ideia, também vou fazer uma”. E começou, e eu nem continuei mais com a minha” (ALMADA NEGREIROS, 1982, p. 79).
Interrogada do porquê de optar pela interrupção da tela, revelou: “A dele havia de ser tão melhor que a minha, que eu desisti”. Esse primeiro marco de desistência transportou-a imediatamente para uma questão mais profunda e definitiva: a interrupção da vida artística.
Ao rememorar os seus primeiros anos de casada, os quais passava as férias de agosto em Moledo do Minho, próximo à sua terra natal, Sarah desvelou privilégios: enquanto ali estava, contou com duas mulheres para auxiliá-la na vida doméstica, uma cozinheira e uma babá que tomava conta do seu filho. Justamente por isso, afinal, pode prosseguir, na década de 1930, sua dedicação à pintura: “Tinha telas, tinha tempo e férias” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 79).
De fato, Retrato do filho (1936) (Figura 2), Retrato de Família (1937) e Casamento na Aldeia (1937), telas que não podem ser compreendidas sem a subjetividade popular, foram todas produzidas nesse contexto.
Em um agosto, não datado por Sarah, no qual Almada trabalhava em Lisboa, afirmou que se encontrava à espera do esposo que “era para chegar todos os dias e que não chegava”. Um dia, por fim, ele apareceu e já no outro dia recebeu um telefonema solicitando seu retorno para Lisboa por causa de um trabalho.
Essa mudança aparentemente inofensiva marcou um limite para a artista: “Fiz as malas, guardei as telas, chorei todo o dia e o José percebeu que eu nunca mais ia pintar. Ficou calado e eu chorei, chorei. [...] Não era feliz, senão desistisse” (ALMADA NEGREIROS, 1982ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso. Lisboa: Arcádia, 1982., p. 79).
Sarah pintou seu último quadro em 1947. E, embora tenha circulado esporadicamente em alguns eventos após essa data, seu nome caiu em relativo ostracismo à sombra do esposo.
Ao se afastar da práxis pictórica cultural, no entanto, transmutou sua condição de artista ao ambiente natural, imprimindo, entorno de si, na personificação e construção de um insólito jardim, nas pinturas dos azulejos, das almofadas, dos móveis e dos espaços decorativos, um capital estético que apenas recentemente está sendo revisitado por arquitetos, paisagistas e historiadores. Simbolicamente, após a morte do esposo, no ano de 1970, a artista transmutou-se em direção à sua derradeira fase produtiva. Dedicada à exploração do próprio jardim, Affonso evocou a continuidade cíclica do retorno ao primeiro (Figura 9) em seu último (Figura 10) traço.
Referências
- II BIENAL DE SÃO PAULO. Catálogo São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1953.
- AFONSO, Lígia Filipa Dias. O SNI e a Bienal de São Paulo na génese da internacionalização contemporânea da arte portuguesa (1951-1973) 2018. Tese de Doutorado (História da Arte especialidade Museologia e Patrimônio Artístico) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.
- AFFONSO, Sarah. “Vida Artística - A pintora Sarah Affonso fala-nos sobre arte moderna”. O rebate, Lisboa, p. 4, 26 de janeiro de 1928.
- ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Conversas com Sarah Affonso Lisboa: Arcádia, 1982.
- ALMADA NEGREIROS, Maria José Almada. Sarah Affonso Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poesia Brasileira”. Diário de Minas, Belo Horizonte, 17 de outubro de 1924.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade anotadas pelo destinatário Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
- CONDE, Idalina. “Sarah Affonso, mulher (de) artista”. Análise Social, v. XXX, n. 131-132, p. 459-487, 1995.
- CHARRIER, Gilda. “Vie commune et pensée célibataire”. Dialogue, Paris, n. 102, p. 44-53, 1988.
- FERRO, António (catálogo). Sarah Affonso Lisboa, Salão Bobone, jan. 1928.
- FRANÇA, José Augusto. O modernismo na arte portuguesa Lisboa: ICP, 1979.
- FRANÇA, José Augusto. A arte em Portugal no século XX (1911-1961) Lisboa: Bertrand, 1984.
- FRANÇA, José Augusto. “Ideia para a representação da III Bienal de São Paulo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, fev. 1955.
- LEHMKUHL, Luciene. O Café́ de Portinari na Exposição do Mundo Português - agente catalisador do neorrealismo Rio de Janeiro: Anais do Museu Histórico Nacional, v. 54, 2021.
- MENDES, Manuel. “Exposição Sarah Affonso e José Tagarro”. Seara Nova, n. 191, p. 365, dez. 1929.
- NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Aurora, 2016. Disponível em Disponível em http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ensaio6.pdf Acesso em 01/11/2022.
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Ilustrador, poeta, pintor, dramaturgo, escritor, o multifuncional artista é figura central e incontornável do futurismo português. Ao lado de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros despontou na primeira geração dos modernistas dos anos 1910, atravessando as quatro gerações sucessivas como um dos nomes mais importantes do panorama artístico e intelectual de Portugal na primeira metade do século XX. O artista possui uma bibliografia consolidada e atualizada (Ver: Joana Cunha LEAL et al., 2014; Mariana PINTO DOS SANTOS, 2018) (PINTO DOS SANTOS, Mariana. “Modernismo segundo Almada Negreiros: o lugar da narrativa gráfica”. Morlacchi Editore, v. 4, p. 131-144, 2018; LEAL, Joana Cunha; SILVA, Raquel Henriques da; FLOR, Pedro. “Almada Negreiros”. Revista de Ciências Sociais e Humanas, Série W, n. 2, 2014).
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Sugerimos aqui dois estudos pioneiros nos campos citados: Joan Scott (1988) e Nochlin (2016) (SCOTT, Joan. “Genre: Une catégorie utile d’analyse historique”. Les Cahiers du Grif, Paris, n. 37-38, 1988).
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Apesar de existirem incontáveis metodologias e formas de se apreender a história da arte moderna de acordo com o tempo no qual foi produzida, a nacionalidade, a cultura, o mercado, quem a institucionalizou e, sobretudo, quem a escreveu, é necessário reconhecer que existe uma “grande narrativa” na história das artes visuais modernas e ocidentais que contou mais ou menos o mesmo ciclo dominante dos movimentos vanguardistas, dos modernismos, dos centros difusores de ideias, dos cânones etc. Nesses termos, as linhas narrativas de interpretações das ideias de como a arte moderna deveria ser vista ou compreendida firmaram suas raízes a partir do final do século XIX e metade do século XX no meio cultural anglo-americano e francês, criando uma bibliografia convencional utilizada massivamente em grande parte dos cursos de História da Arte.
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É preciso trabalhar com reservas as designações das “gerações modernistas”. Estas, em Portugal, estabeleceram-se nos recortes altamente problemáticos de França (1979; 1984), nos quais os artistas, durando no máximo dez anos produtivos, eram lidos enquanto estanques, isto é, como se não estabelecessem trocas transgeracionais ou não prosseguissem os seus trabalhos após certo tempo e idade. Este artigo refuta as ferramentas que construíram e solidificaram esse pensamento e, ao mesmo tempo, analisa criticamente esses desígnios.
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Existem múltiplas valências de mecanismos e terminologias empregadas enquanto fator subjugante de expressividade feminina em nome de uma supremacia masculina no fazer artístico moderno. A vasta lista de artistas submetidas ao julgo das regras sociais erigidas por e para os homens perpassa desde artistas socioeconomicamente privilegiadas, como a europeia Marie Laurencin, a artistas brasileiras como Madalena Santos Reinbolt, esta última carregando o brutal fardo do preconceito racial e social, incrustrado na prática pela sua vida e na teoria pela narrativa historiográfica da arte brasileira. Para um aprofundamento da temática, sugere-se o estudo de Elizabeth Louise Kahn (2003), no caso da artista francesa, e Aline Reis Chiarelli (2021), debruçada na poética de Reinbolt (KAHN, Elizabeth Louise. Marie Laurencin: Une Femme indaptée in Feminist Histories of Art. Routledge, 2003; CHIARELLI, Aline Reis. Madalena Santos Reinbolt, memória e arte popular: uma questão para a Arte Afro-Brasileira. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso - Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil).
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O Salão Bobone foi criado em 1889, sob a gerência do fotógrafo Augusto Bobone. O espaço distinguiu-se como uma das principias oportunidades para artistas jovens e vanguardistas exporem seus trabalhos. É frequentemente lembrado como o palco da primeira manifestação do ímpeto modernista da arte portuguesa, em 1911, em ocasião da “Exposição dos Livres”.
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Embora correntemente tenhamos o hábito de englobar a ideia do “europeu” dentro de uma única unidade cultural, é preciso que compreendamos que o processo histórico das modernidades foi absolutamente diverso dentro da própria Europa.
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A sala portuguesa na II edição da Bienal de São Paulo foi organizada pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), o órgão responsável pela propaganda política cultural externa do ditador António de Oliveira Salazar. Neste ano, coube ao historiador José Augusto França a organização e a curadoria de um amplo conjunto de artistas, contabilizando, no total, 36 artistas e 137 obras expostas.
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Criada em 1932, a Sociedade Pró-Arte Moderna agrupou artistas de diversas áreas, com vistas a promover exposições e mercados de arte, circulações de artistas afinados ao ideário moderno e modernista. Desde a fundação, participaram da Sociedade nomes como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Anita Malfatti e Lasar Segall, entre outros. Após a formulação dos estatutos e da primeira comissão executiva da sociedade, a SPAM concretizou os seus objetivos, em 1933, com a I Exposição de Arte Moderna, reunindo os grandes nomes do modernismo brasileiro e internacional. Ao que tudo indica, muitos artistas estreitaram relações e parcerias justamente por conta dessa exposição.
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No catálogo da exposição, a pintura de Sarah consta como pertencente à coleção de Olívia Guedes Penteado, contudo, não foram encontradas informações a respeito do paradeiro ou das tratativas entorno da aquisição da obra.
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Importa contextualizar: Eurico de Seabra referia-se ao gesto da sufragista Mary Raleigh Richardson que, em 10 de março de 1914, entrou na National Gallery, de Londres, e perfurou com facadas a pintura “Vênus ao Espelho” do artista espanhol Diego Velázquez. O ato de Richardson era contestatório à prisão de Emmeline Pankhurst, nome incontornável do feminismo ocidental e uma das grandes líderes do movimento sufragista inglês, na luta pelo direito do voto feminino.
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Mário Domingues nasceu dia 3 de julho de 1899 na antiga colônia portuguesa de São Tomé e Príncipe. Das memórias de Sarah ficamos sabendo que ele escrevia em periódicos sindicalistas e lutava pelos direitos dos proletariados, mas acrescentamos que não só. Domingues defendeu incisivamente a liberdade das colônias portuguesas da África e defendeu a criação de organizações para proteger a cultura africana. Conforme Sarah recordou, o ditador Salazar fechou o diário tão logo subiu ao poder.
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A artista recortou o excerto do jornal com as palavras de Domingues e enviou ao pai, então na África por afazeres militares coloniais, solicitando apoio financeiro para sua primeira ida a Paris. O pai da artista enviou o dinheiro para a viagem de trem e para os seus primeiros meses de adaptação. A vida e a produção de Sarah à luz do contexto francês não possuem, ainda, uma unidade interpretativa ou estudo aprofundado.
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Interessante lembrar que, além de o casal Castro e Ferro ser amigo próximo de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (e todos circularem por Paris naquele 1928), a figura de Fernanda de Castro foi pintada por ela e por Tarsila do Amaral, em 1928 e 1923, respectivamente.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
ROQUETTI, Dunia. “Sarah Affonso: diálogos transatlânticos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e92147, 2023. -
Financiamento:
Projeto financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia de Portugal (FCT), 2022 -
Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica -
Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Dez 2022 -
Revisado
06 Abr 2024 -
Aceito
06 Ago 2024