DOSSIÊ
Cadernos Pagu: contribuindo para a consolidação de um campo de estudos
Cadernos Pagu: consolidating a field of studies
Adriana Piscitelli; Iara Beleli; Maria Margaret Lopes
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
Partindo da premissa de que publicações científicas são influentes indicadores e conformam campos disciplinares, este ensaio traz algumas reflexões sobre a importância dos Cadernos Pagu, revista semestral do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, na consolidação do campo de estudos de gênero, através do estímulo à, e difusão da, produção de conhecimento nessa área de estudos no Brasil. Gênero não é pensado aqui como um tema, mas sim como distinção categórica, como distinções entre características consideradas femininas e masculinas, que atravessam o social, e, portanto, pode estar presente em qualquer recorte temático.
Palavras-chave: gênero, publicações científicas, produção de conhecimento.
ABSTRACT
As scientific publications are influential indicators and constitute disciplinary fields, this article reflects on the importance of Cadernos Pagu, published twice a year by Unicamp's Núcleo de Estudos de Gênero [Gender Studies Center], as it has contributed to the consolidation of that field of studies both through de stimulation and diffusion of knowledge in the area in Brazil. Here gender is no conceived of as a theme, but rather as a categorical distinction, as a distinction between characteristics taken as feminine and masculine, that run through society and, as such, can be felt within any thematic frame.
Key words: gender, scientific publications, the production of knowledge.
Cadernos Pagu completa, em 2003, dez anos de vida, o que é motivo de orgulho, levando-se em conta as dificuldades que as publicações científicas enfrentam no país. É com carinho que, particularmente, as integrantes do grupo que fundaram a revista a viram crescer, contribuindo para a constituição do campo de estudos de gênero no Brasil.
Diferentemente das publicações feministas pioneiras, a revista foi criada em um momento em que os estudos de gênero já contavam com alguma legitimidade acadêmica no país. Na verdade, e essa é a proposta da publicação desde seu início, em 1993, a intenção era ampliar o espaço já existente, difundindo e estimulando a produção de conhecimento na área.
Desde então, o campo continuou se diversificando enormemente e a ampliação da produção acompanhou a diversificação das temáticas apoiadas em perspectivas de gênero. Estamos em um momento em que se coloca a necessidade de revisões e levantamentos mais abrangentes que mapeiem as publicações existentes, de modo a permitir identificar as principais tendências do campo, as orientações teórico-metodológicas, as áreas disciplinares preferidas em detrimento de outras preteridas ao longo desse processo.
Se entendemos de forma crítica que as publicações científicas são influentes indicadores e conformam campos disciplinares, abordar de forma inicial uma avaliação dos Cadernos Pagu tem o sentido de contribuir para esse balanço das tendências e perspectivas da área de estudos de gênero no Brasil.
A criação dos Cadernos Pagu foi resultado de mais de dois anos de leituras, pesquisas e debates, nos quais integrantes do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu mapeavam os avanços na produção sobre gênero e seus impasses. O primeiro número foi inteiramente redigido por integrantes do Núcleo, cujos artigos esboçavam essas inquietações. Entre o segundo e o terceiro número, a publicação foi definindo sua política editorial e, simultaneamente, se abria para contribuições de pesquisadoras/es brasileiras/os estrangeiras/os, constituía um corpo de pareceristas ad-hoc e criava um Comitê e um Conselho Editoriais. O quinto número já contou com financiamento externo à universidade.
De fato, há dois momentos na história da publicação, visíveis em diversos aspectos dos Cadernos, que estão ligados à obtenção do apoio de diversas agências - FAPESP, FAEP (Fundo de Apoio ao Ensino e à Pesquisa, da Unicamp) -, mas, sobretudo, do CNPq, que concedeu o apoio mais relevante em termos de recursos e de continuidade a partir de 1996.1 Esses financiamentos foram cruciais para o crescimento da publicação, não apenas no que se refere à melhoria da qualidade gráfica e à incorporação de maior número de textos, mas também à adequação às normas editoriais, à ampliação do Conselho Editorial,2 ao registro em diversos indexadores nacionais e internacionais. Nesses dez anos, a revista, semestral, registrada em nove indexadores,3 praticamente dobrou o número de páginas e a tiragem desde as primeiras edições - 350 páginas em média e mil exemplares a cada número.
Cadernos Pagu é uma publicação acadêmica vinculada ao Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, da Universidade Estadual de Campinas. Essa vinculação é marcante no que se refere às temáticas tratadas na revista e foi fundamental, também, para viabilizar os primeiros números, quando a publicação ainda não contava com financiamentos externos. Entretanto, seu público-alvo não se restringe à comunidade acadêmica; a revista tem atingido e subsidiado organizações governamentais e não-governamentais e movimentos sociais.
A preocupação central que nos mobilizava, e ainda nos mobiliza, tem sido pensar como estimular a produção de conhecimento sobre gênero no Brasil. Nossa opção foi procurar difundir resultados de pesquisas inéditas - nacionais e estrangeiras - e textos ainda não traduzidos no país, viabilizando, assim, a divulgação de conhecimentos e procurando promover a leitura crítica da produção internacional. A proposta editorial da revista inclui a divulgação de reflexões teórico-metodológicas, resultados de pesquisa, documentos e resenhas, abordados a partir de diversas perspectivas teóricas, estimulando a produção de jovens pesquisadoras/es, publicando a cada número trabalhos de estudantes e/ou pesquisadores ainda não considerados seniors (24%).
Uma das questões que vêm nos preocupando, desde o início, é tentar estabelecer um equilíbrio no conteúdo, incorporando as colaborações enviadas espontaneamente, mas, também, introduzindo, a partir de propostas do Comitê Editorial, questões, reflexões, temáticas que, por diversos motivos, têm nos parecido importante desenvolver no sentido de avançar a discussão. Questões novas, ou não tão novas, mas ainda pouco tratadas; outras que, pela renovação da produção, mereceriam destaque especial, reflexões que necessitavam maior desenvolvimento ou retomada. Assim, alguns números se concentraram em questões específicas, como os volumes que tratam da relação gênero-raça, ou de tecnologia e ciência.4 Outros apresentaram discussões particulares, como o debate entre Louise Tilly e Joan Scott, comentado por Eleni Varikas,5 ou o debate "Gênero, trajetórias e perspectivas".6 Finalmente, outros contaram com dossiês sobre temas particulares - curso da vida, feminismos, ciência, trabalho... Mas, desde o início até o momento, e essa é a continuidade que interessa destacar, essas propostas do Comitê são resultado do trabalho de discussão conjunto das integrantes do Núcleo e expressam momentos da história dessa reflexão e desse trabalho compartilhados.
Nesse sentido, um dos pontos que têm nos preocupado, precisamente pela vinculação da revista ao Núcleo, é a diversidade temática. Concordamos que gênero não é, nem constitui, um tema. Se gênero for pensado como distinção categórica, como distinções entre características consideradas femininas e masculinas, que atravessam o social, gênero estará presente em qualquer recorte temático. Como o Núcleo concentra pesquisadoras das Ciências Humanas, trabalhando com questões específicas, e como nossa prática, desde o início, foi contar com uma editora convidada diferente em cada número, decidimos alargar o leque temático, convidando especialmente algumas editoras externas para organizar números ou dossiês.
Um olhar sobre os 19 números publicados mostra essa diversidade, incluindo temas como mídia, parentesco, relações amorosas, bioética, políticas educacionais, violência, embora com uma visível concentração da produção em certos temas - sexualidade e corporalidade (18%), teorias e práticas feministas (14%), raça (10%), trabalho (8%), literatura (8%). No que se refere às disciplinas nas quais se ancora a produção veiculada na publicação há uma concentração nas áreas de antropologia (32%), história (23%), sociologia (21%), teoria literária e lingüística (9%), filosofia (4%), educação (3%), psicologia (2%). Outras áreas disciplinares estão presentes apenas com 1% da produção - biologia, geografia, informática, jornalismo, ciência política, medicina, química. É importante chamar a atenção para essas áreas porque sua presença expressa o esforço da revista por ampliar o leque de abordagens disciplinares presentes na publicação, particularmente a partir do número 15,7 voltado para a história da ciência, um número que circula entre alunos da Biologia ou das Ciências Médicas, áreas nas quais é pouco freqüente incorporar leituras sobre gênero. Finalmente, em termos da inserção institucional dos colaboradores, a revista tem publicado trabalhos de autoras do Norte, do Nordeste, do Sul e do Centro-Oeste do país, mas há uma concentração de autora/es vinculadas/os a instituições de São Paulo e do Rio de Janeiro. As/os colaboradoras/es internacionais se concentram em autoras/es sediadas/os nos Estados Unidos e na Europa, particularmente, França, Inglaterra e Portugal; a participação de colaboradoras/es da América Latina ainda é pequena.
Embora a produção internacional represente apenas 15% dos textos veiculados nos Cadernos - excluindo as resenhas -, a seleção dessa produção é um dos esforços permanentes do Comitê Editorial, viabilizando a difusão de textos que são referência na produção internacional sobre gênero.
Possibilitar o diálogo com essa bibliografia é importante em diversos sentidos, e não apenas para aqueles que trabalham na academia. Experiências de trabalho com organizações não-governamentais mostraram o valor que essa produção adquiria, oferecendo ferramentas a partir das quais essas organizações ampliavam suas possibilidades de negociação com as agências de financiamento internacional. Mas se trata de algo que vai além disso.
Nosso interesse principal era, e é, estimular uma leitura crítica da produção internacional a partir das realidades locais, contribuindo, nesse jogo, para a criação de novo conhecimento. Essa relação na produção de conhecimento é estabelecida por Gayatri Spivak, autora indiana que discute a utilização das teorias de elite do Primeiro Mundo para investigar questões das colônias e as possibilidades de promover teorias nativas e que defende a utilização do que se tem para lutar - e nisso entra o que foi escrito durante vários séculos no assim chamado Primeiro Mundo. A autora propõe confrontar essas teorias com as questões coloniais para abri-las, questioná-las, implodi-las. Isso conduz a certas questões, particularmente, a considerar se é ou não possível defender que o intelectual pós-colonial dependa dos modelos ocidentais como uma necessidade histórica, e a considerar as possibilidades de 'descobrir' e promover 'teorias nativas'. A resposta que a autora dá à primeira pergunta alude à importância de utilizar o que se tem para lutar. A resposta à segunda questão se articula com a anterior; tratar-se-ia, mais, de questionar o que é teoria nativa, porque não poderia existir uma teoria nativa que ignorasse a realidade da história do século XIX. Spivak considera importante utilizar (de maneira crítica) o que a história escreveu. 8
Em certo sentido, tentativas análogas vêm tendo resultados no Brasil. Parte da produção sobre raça mostra esses resultados - o brilhante texto de Peter Fry "O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a 'política racial' no Brasil"9 é uma expressão do processo de considerar de maneira crítica 'teorias forâneas', no caso, sobre relações raciais, esquadrinhando suas fragilidades, questionando-as e deslocando-as a partir do confronto com recortes empíricos nacionais. Esse breve comentário transmite uma idéia mais palpável dos objetivos de nossa publicação: estimular a difusão de novas pesquisas, estimulando, simultaneamente, a produção de conhecimento teórico que leve em conta realidades locais.
No entanto, os esforços para que a produção de conhecimento, no sentido acima assinalado, tenha o necessário impacto colocam outros problemas. Para que esses esforços incidam, de fato, na disseminação e na criação de novos conhecimentos, nossa produção também tem que ser divulgada internacionalmente. Mas, aqui, nos deparamos com a dificuldade colocada pela necessidade de difundir nossa produção no exterior, e em outras línguas, o que exige recursos adicionais com os quais não é fácil contar.
Finalizando, chamamos a atenção para o fato de que neste momento, no qual o conceito de gênero é alvo das mais diversas críticas, nossa publicação continua afirmando a importância de trabalhar no sentido de ampliar o conhecimento da problemática de gênero, considerando que a partir dessa ampliação é possível aprofundar a compreensão do social e aprimorar os esforços para opor-se às desigualdades, entendidas como distribuições desiguais de poder.
Copyright © 2003 by Revista Estudos Feministas
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Out 2003 -
Data do Fascículo
Jun 2003