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Por uma pedagogia dos feminismos

For a pedagogy of feminisms

Por una pedagogía de los feminismos

TELES, Maria Amélia de Almeida. . Feminismos - Ações e histórias de mulheres . São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2023.

Maria Amélia de Almeida Teles, ou simplesmente Amelinha Teles, é jornalista, escritora, ativista por direitos humanos, feminista. A mulher que foi militante do Partido Comunista do Brasil durante a ditadura militar, foi ainda presa e torturada pelo órgão de repressão do regime. Condição que levou Amelinha não só a denunciar as atrocidades do período não tão distante da história brasileira, mas que também lhe conferiu uma compreensão politizada muito particular sobre a importância de as meninas e mulheres terem consciência de seus direitos desde muito cedo. E talvez seja esse também o ponto de propulsão para a escrita de Feminismos - Ações e histórias de mulheres que se coloca como uma pedagogia dos feminismos.

Com um histórico de militância de décadas, Amelinha já escreveu outros livros que se dedicam à perspectiva feminista, com destaque para Breve História do Feminismo no Brasil (1993), Breve História do Feminismo no Brasil e Outros Ensaios (2017), O que é violência contra a mulher? (2002) e O que são direitos humanos das mulheres? (2007) - sendo que pelo menos um destes também se encontra disponível pela Alameda Casa Editorial, que é uma referência em publicações que tratam de feminismo, movimento negro, temáticas LGBTQIAPN+, entre outras.

Com Feminismos - Ações e histórias de mulheres, no entanto, Amelinha aposta em uma linguagem de fácil compreensão, organizando a obra em cinco capítulos e contando com recursos didáticos como os infogramas e indicações de bibliografia complementar. Destaca-se ainda a preocupação em ilustrar o contexto histórico dos feminismos, revelando personagens por novas perspectivas, rompendo com o apagamento crônico com relação a muitas delas (Maria Amélia TELES, 2023TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismos - Ações e histórias de mulheres. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2023.).

Para efetivar a proposta de uma pedagogia dos feminismos, Amelinha constrói o livro passando por temas extremamente caros aos feminismos, que vão desde aspectos que orientam a compreensão da realidade, como o reconhecimento do patriarcado, até outros específicos sobre instrumentos de luta feminista e contribuições de mulheres para a construção dos feminismos no Brasil. Informações sempre acompanhadas de explicações sobre o avanço da legislação e das políticas públicas, além de incluir panoramas estatísticos atualizados. A autora também não deixa de atentamente observar a incongruência da participação de mulheres que, embora lutassem por algum empoderamento feminino, negaram a própria condição de feminista.

A proposta aqui, entretanto, busca olhar para a obra partindo da visada que coloca o gênero como um espaço de lutas (Joan SCOTT, 2012SCOTT, Joan Wallach. “Os Usos e Abusos do Gênero”. Projeto História, São Paulo, v. 45, p. 327-351, dez. 2012. Disponível em Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/15018 . Acesso em 21/05/2024.
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), enfatizando questões colocadas pela virada epistêmica feminista negra (Ana Maria VEIGA, 2020VEIGA, Ana Maria. “Uma virada epistêmica feminista (negra): conceitos e debates”. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0101, jan./abr. 2020. Disponível em Disponível em http://dx.doi.org/10.5965/2175180312292020e0101 . Acesso em 22/07/2024.
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) e, também, as que articulam gênero, raça e classe a partir da interseccionalidade (Kimberlé CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberle. “A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero”. Cruzamento: Raça e Gênero, 2012, p. 7-16. Disponível em Disponível em https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf . Acesso em 21/07/2024.
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; Patrícia Hill COLLINS; Sirma BILGE, 2021COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. “O que é interseccionalidade?”. In: COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 15-49.). Para avançar, neste sentido, a leitura foi orientada por três aspectos: A. A maneira como Amelinha buscou retratar o feminismo negro; B. O quanto o livro favorece o reconhecimento de meninas e mulheres negras enquanto sujeitas de direitos; e C. A aplicação da interseccionalidade ao longo da obra.

Reforçando a noção enfatizada no título, Amelinha demonstra que não existe um único feminismo, porque as mulheres não são iguais e também têm enfrentado ao longo da história distintas condições de opressão, existência e resistência. Isso posto, ao tratar de temas como a divisão racial do trabalho e a face racista do capitalismo e do patriarcado, a escritora busca introduzir questões que se relacionam diretamente ao feminismo negro, nominando-as em muitos momentos, inclusive.

Também não faltam, ao longo dos capítulos, exemplos de protagonismo negro, inclusive quando da interpretação crítica sobre fatos históricos. Um terço das mulheres cujas histórias são apresentadas no capítulo final é de negras que tiveram capital importância na consolidação de marcos da luta feminista no Brasil, como Luíza Mahin, Maria Firmina dos Reis, Lélia Gonzalez.

A autora também detalha as dificuldades enfrentadas pelas primeiras mulheres que chegaram ao Congresso Nacional, sem deixar de pontuar o quanto isso foi fundamental para alavancar mudanças importantes na Constituição Federal do país. Ao retratar a atuação de Benedita da Silva, que levou as mulheres pretas, periféricas e trabalhadoras da favela para a Câmara Federal e ao desvendar a verdadeira história por traz da inclusão da licença-paternidade na Constituição e as alterações legislativas (até hoje ainda insuficientes) em prol das trabalhadoras domésticas, Amelinha passa a limpo muitas questões que precisam ser reconhecidas como vitórias dos feminismos brasileiros.

É óbvio que não se pode afirmar que seja suficiente para fazer frente ao imenso fosso de desigualdades existente no país, mas não deixa também de ser uma visibilidade necessária e relevante - especialmente para aquelas meninas e mulheres que irão buscar em Feminismos... uma tentativa de reconhecimento e constituição da própria condição de sujeitas de direitos. O texto traz, portanto, mapas para compreensão da realidade, mas também cartografa múltiplas possibilidades de luta.

Mesmo ao tratar das ações e movimentos que antecederam a luta sufragista - talvez o aspecto mais valorizado em uma história que se apresenta de forma mais geral - Amelinha expõe as contribuições de mulheres como Dandara e Aqualtune. O que a autora parece querer deixar claro é que existem aspectos que são essenciais aos feminismos e que estes passam, necessariamente, pelo protagonismo das meninas e mulheres negras. Não há uma invisibilização na obra neste sentido, uma vez que é perceptível o esforço de pesquisa para documentar e legitimar essas vozes de luta ao longo das 263 páginas do livro.

Por outro lado, ao apresentar as mulheres negras que tiveram protagonismo mais evidente para a constituição dos feminismos no Brasil, muito embora exista o esforço de lançar luz sobre essas contribuições, há quase que uma naturalização a respeito dessa contribuição em alguns momentos. Talvez tenha faltado reforçar em alguns pontos, por exemplo, o apagamento intencional dessas vozes ao longo da história.

Isso porque enquanto as mulheres negras lutam contra um entrecruzamento de opressões - machismo, misoginia, racismo ou mesmo pelo simples direito de ser quem se é -, o feminismo enquanto construção discursiva (Judith BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 17-19) se detém sobre outros aspectos que assumem um caráter generalista e que, por vezes, parece orientar a compreensão das lutas feministas. Em outras palavras, enquanto mulheres brancas lutam por igualdade salarial, as negras lutam para ter condições de acesso e permanência em espaços em que as primeiras são aceitas com menos barreiras. Isso é cruel e é preciso que seja uma questão objetivamente colocada, sob pena de não se avançar pela ausência de reconhecimento do problema.

No que tange à visada interseccional, a autora não apenas faz menções diretas ao conceito e às mulheres que contribuíram para estruturá-lo enquanto eixo de compreensão, como busca abordar ao longo dos capítulos aspectos que valorizem o entrecruzamento entre raça, classe e gênero. Nesse sentido há que se destacar, em especial, a tradução testemunhal que a escrita de Amelinha adquire em vários momentos, inclusive dirigindo-se às leitoras e aos leitores em primeira pessoa em alguns trechos. Além de ter presenciado o desenrolar de muitos dos acontecimentos descritos, a escritora também participou e participa ativamente da constituição de importantes movimentos que dão sustentação aos feminismos.

É preciso reconhecer ainda que, embora em alguns momentos ocorra uma certa ausência de aprofundamento crítico, ressalvando que este não parece ser o objetivo da obra, Amelinha traz dados atuais e relevantes que, quase sempre, são reveladores das desigualdades que atravessam o Brasil. Por esse ângulo, reconhecendo o caráter pedagógico da obra, não se pode negar que o texto oferece subsídios para que as leitoras possam se reconhecer minimamente nas heroínas negras históricas e, a partir disso, avançar em algumas reflexões e ações.

A apresentação da biografia de Lélia Gonzalez e sua contribuição para o feminismo negro de viés institucional é extremamente importante. Ela demonstra a potência de uma mulher negra que rompeu padrões também por uma perspectiva interseccional, uma vez que compreendia a realidade de um ponto de partida bastante definido. Não é possível verificar o mesmo fôlego ao retratar, por exemplo, outras mulheres não-brancas que também tiveram protagonismo na constituição dos feminismos brasileiros. Amelinha traz algo sobre as contribuições de mulheres indígenas e quilombolas, mas não com o mesmo fôlego dedicado às negras - talvez por essa ainda ser uma seara por ser documentada.

Então, por mais críticas que possam ser tecidas ao texto de Amelinha, contudo, é necessário reconhecer que a autora empenhou um esforço importante e que cumpre o objetivo de instrumentalizar meninas e mulheres a partir do acesso à informação. Como a própria escritora registra na conclusão do capítulo “Histórias de Mulheres e suas Contribuições”, quando trata da dificuldade de considerar a seção encerrada, mapear os feminismos no Brasil se trata de uma tarefa sempre por cumprir. Existem muitas sujeitas que construíram e ainda constroem essa história e “é preciso que se registrem essas histórias” (TELES, 2023TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismos - Ações e histórias de mulheres. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2023., p. 263). E essa parece ser a principal provocação do livro, um chamado ao despertar de meninas e mulheres.

Referências

  • BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. “O que é interseccionalidade?”. In: COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade São Paulo: Boitempo, 2021. p. 15-49.
  • CRENSHAW, Kimberle. “A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero”. Cruzamento: Raça e Gênero, 2012, p. 7-16. Disponível em Disponível em https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf Acesso em 21/07/2024.
    » https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf
  • SCOTT, Joan Wallach. “Os Usos e Abusos do Gênero”. Projeto História, São Paulo, v. 45, p. 327-351, dez. 2012. Disponível em Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/15018 Acesso em 21/05/2024.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/15018
  • TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismos - Ações e histórias de mulheres São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2023.
  • VEIGA, Ana Maria. “Uma virada epistêmica feminista (negra): conceitos e debates”. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0101, jan./abr. 2020. Disponível em Disponível em http://dx.doi.org/10.5965/2175180312292020e0101 Acesso em 22/07/2024.
    » http://dx.doi.org/10.5965/2175180312292020e0101
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    RIOS, Aline de Oliveira. “Por uma pedagogia dos feminismos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e100295, 2024.
  • Financiamento:

    Não se aplica.
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2024
  • Revisado
    22 Jul 2024
  • Aceito
    25 Jul 2024
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